A CONCESSÃO INDISCRIMINADA DO BENEFÍCIO DA GRATUIDADE DE JUSTIÇA E SEU PAPEL NA LITIGÂNCIA PREDATÓRIA: IMPACTOS NO CONGESTIONAMENTO DO PODER JUDICIÁRIO

THE INDISCRIMINATE GRANT OF THE BENEFIT OF FREE JUSTICE AND ITS ROLE IN PREDATORY LITIGANCE: IMPACTS ON CONGESTION OF THE JUDICIARY POWER

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411221209


Stephanie de Moura Pinagé¹
Orientador: André Petzhold Dias²


Resumo

O objetivo dessa pesquisa é demonstrar como a concessão desenfreada do benefício da justiça gratuita impacta na litigância predatória, destacando os efeitos dessa prática sobre o congestionamento do Poder Judiciário. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica e análise legislativa, com foco nas disposições do Código de Processo Civil de 2015. O estudo conclui que a concessão indiscriminada da justiça gratuita fomenta a litigância predatória e sobrecarrega o Judiciário. Como solução, sugere-se a adoção de critérios mais rigorosos para concessão do benefício, inclusive na forma parcial, além do uso de ferramentas tecnológicas para identificação de padrões de abusos. Essas medidas visam garantir o acesso à justiça sem comprometer a eficiência do sistema.

Palavras-chave: Justiça gratuita. Litigância predatória. Poder Judiciário.

Abstract

The objective of this research is to demonstrate how the unchecked granting of the benefit of legal aid impacts predatory litigation, highlighting the effects of this practice on the congestion of the Judiciary. The methodology used was bibliographic research and legislative analysis, focusing on the provisions of the 2015 Code of Civil Procedure. The study concludes that the indiscriminate granting of legal aid fosters predatory litigation and overburdens the Judiciary. As a solution, it suggests the adoption of stricter criteria for granting the benefit, including in partial form, as well as the use of technological tools to identify patterns of abuse. These measures aim to ensure access to justice without compromising the efficiency of the system.

Keywords: Free justice. Predatory litigation. Judiciary.

1.     INTRODUÇÃO

O acesso à justiça é fundamental para a garantia dos direitos individuais e coletivos, sendo essencial para uma sociedade democrática e inclusiva. Dentro desse assunto encontramos a prestação de assistência jurídica aos necessitados na primeira onda renovatória da justiça. A segunda onda renovatória é referente à proteção dos direitos difusos e coletivos. A terceira, por sua vez, trouxe a busca por meios alternativos de resolução de conflitos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). Socialmente, o acesso à justiça promove a igualdade diante da lei ao possibilitar que todos os cidadãos tenham meios adequados para resolver conflitos e reivindicar seus direitos. Isso contribui para fortalecer a confiança na instituição judicial e no Estado de Direito, além de prevenir abusos de poder e injustiças. Dessa forma, garantir o acesso efetivo à justiça não apenas protege os direitos individuais, mas também estimula a coesão social e o desenvolvimento democrático de uma nação.

A gratuidade de justiça é um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 (Art. 5º, inciso LXXIV), visando garantir o acesso ao Poder Judiciário àqueles que não dispõem de condições financeiras para arcar com as custas processuais. Esse instituto tem uma importância vital para assegurar a isonomia entre os cidadãos, possibilitando que todos possam reivindicar seus direitos, independentemente de sua capacidade econômica. No entanto, a concessão indiscriminada desse benefício tem motivado um fenômeno preocupante: a litigância predatória (Neto; Dornelles; Konzen, 2022). Esse tipo de prática caracteriza-se pelo uso abusivo do sistema judicial com o intuito de obter vantagens processuais ou econômicas indevidas, muitas vezes sem que o próprio beneficiário da justiça gratuita tenha ciência da ação movida em seu nome (Vieira; Schnorr, 2024).

No contexto atual, onde o Judiciário enfrenta uma sobrecarga de processos, a litigância predatória agrava o congestionamento das varas e tribunais, comprometendo a eficiência do sistema de justiça e prejudicando o andamento de causas legítimas. Esse cenário desperta a necessidade de discutir soluções para minimizar os impactos dessa prática, sem violar o direito fundamental de acesso à justiça. A presente pesquisa propõe-se a examinar o papel da concessão indiscriminada da gratuidade de justiça na facilitação da litigância predatória, bem como os reflexos dessa realidade no congestionamento do Judiciário. Além disso, o estudo busca explorar alternativas para mitigar esses efeitos, respeitando o equilíbrio entre o direito de ação e a necessidade de evitar abusos processuais.

2.         ACESSO     À     JUSTIÇA:     O     CONTEXTO     HISTÓRICO-JURÍDICO BRASILEIRO DO BENEFÍCIO DA GRATUIDADE DE JUSTIÇA

2.1 Evolução do acesso à justiça no Brasil

O Brasil tem buscado assegurar que o acesso à justiça seja um direito de todos, especialmente para os mais vulneráveis. Dessa forma, a trajetória da justiça gratuita no país é marcada por importantes transformações históricas e jurídicas desde as Ordenações Filipinas de 1603 até a promulgação do Código de Processo Civil de 2015 (Weintraub, 2000).

Durante o período colonial, aplicavam-se leis que vigoravam em Portugal e as Ordenações Filipinas (1603-1916) foram o primeiro marco legal a prever que pessoas pobres poderiam ser isentas de pagar taxas judiciais. O Livro III, Título LXXXIV, §10 dispunha: “Em sendo o agravante tão pobre que jure não ter bens imóveis, nem de raiz, nem por onde pague o aggravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma Del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro do tempo, em que havia de pagar o agravo”. Embora fosse um avanço limitado, essa norma permitia o acesso dos mais pobres ao sistema judiciário, ainda que de forma restrita (Weintraub, 2000).

Dessa forma, as ideias sobre a assistência judiciária gratuita só começaram a ganhar força a partir de 1870, sob a liderança de José Thomaz Nabuco de Araújo, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), que, com o apoio de abolicionistas que consideravam o acesso à justiça uma garantia fundamental para os direitos dos escravos libertos, instituiu um serviço de assistência judiciária (Dantas, 2011).

No âmbito constitucional, a Carta Magna de 1934 incorporou a assistência judiciária no âmbito dos Direitos e Garantias Individuais. O artigo 113, nº 32 estabelecia: “A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais e assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.” (Brasil, 1934).

Contudo, a Constituição de 1937 não manteve essa previsão, e somente com a promulgação da Constituição de 1946, o direito à assistência judiciária foi novamente elevado ao status constitucional, estabelecendo em seu artigo 113: “A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes: § 35 O poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados.” (Brasil, 1946).

Diante da norma de eficácia contida, foi promulgada a Lei nº 1.060, de 1950, que formalizou a justiça gratuita, estabelecendo e ampliando normas para sua concessão. Essa lei possui muita importância, uma vez que trouxe a garantia de um sistema mais inclusivo, assegurando o acesso ao Judiciário como um direito essencial para a promoção da igualdade e da cidadania (Brasil, 1950).

A Constituição de 1967 manteve o benefício, mas foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que ele foi elevado à categoria de direito fundamental. O artigo 5º, inciso LXXIV, determinou: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (Brasil, 1988). Essa disposição ampliou o alcance da justiça gratuita, garantindo não apenas a isenção de custas processuais, mas também o direito à defesa por meio da Defensoria Pública, uma instituição que desempenha um papel crucial na prestação de serviços jurídicos gratuitos aos mais vulneráveis (Dantas, 2011).

O desenvolvimento da justiça gratuita no Brasil também pode ser analisado sob a perspectiva das ondas renovatórias de acesso à justiça, descritas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988). A primeira onda teve como foco a criação de mecanismos para garantir o acesso aos tribunais, principalmente para os mais pobres. No Brasil, a Lei nº 1.060/1950 foi a concretização desse movimento, ao remover barreiras econômicas que impediam o acesso à justiça. A segunda onda buscou introduzir mecanismos coletivos de litígio, como ações civis públicas e coletivas, que permitiram a proteção de grupos inteiros, especialmente os mais vulneráveis. A Defensoria Pública, nesse contexto, passou a atuar em prol dos direitos de grupos vulneráveis, expandindo a proteção legal para além dos casos individuais. A terceira onda renovatória, por sua vez, trouxe a necessidade de reformar as estruturas processuais para torná-las mais eficientes, com a criação de juizados especiais e métodos alternativos de resolução de conflitos, como a mediação e arbitragem.

Essa terceira onda de reformas influenciou diretamente a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, que modernizou o sistema processual brasileiro e trouxe inovações na concessão da justiça gratuita. O CPC/2015 manteve o direito à gratuidade, mas introduziu novos critérios para sua concessão, permitindo que o benefício fosse concedido de forma parcial ou total, dependendo da análise da situação econômica do requerente. Além disso, o CPC/2015 reforçou os mecanismos de controle, permitindo que a justiça gratuita fosse revogada caso se verificasse que a parte beneficiada não preenchia os requisitos para tal (Brasil, 2015).

Portanto, a evolução da assistência jurídica gratuita no Brasil, desde as Ordenações Filipinas até o Código de Processo Civil de 2015, reflete um esforço contínuo de adaptação do sistema jurídico para garantir a democratização do acesso à justiça. O país passou de uma abordagem restrita e formalista para um sistema que reconhece a assistência jurídica gratuita como um direito constitucional fundamental, promovendo a inclusão social e fortalecendo a igualdade de condições no acesso ao Judiciário. Ao longo dos séculos, o Brasil conseguiu avançar significativamente na proteção dos direitos dos mais pobres, embora ainda enfrente o desafio de equilibrar o acesso irrestrito à justiça com a necessidade de evitar abusos que comprometam a eficiência do sistema.

2.2 Distinção entre assistência jurídica, assistência judiciária e justiça gratuita

A distinção entre os institutos de assistência jurídica, assistência judiciária e justiça gratuita é fundamental para o correto entendimento de cada um desses conceitos e sua aplicação prática. Muitas vezes, esses termos são erroneamente utilizados como sinônimos, tanto no meio jurídico quanto na legislação, gerando confusões. No entanto, essas noções se referem a serviços diferentes, com abrangências e finalidades próprias (Passos, 2012).

Assistência jurídica é o conceito mais amplo dos três. Ela abrange não apenas a representação judicial do cidadão, mas também todos os serviços jurídicos que podem ser oferecidos a pessoas que não dispõem de condições financeiras para contratar um advogado particular. Esses serviços incluem orientação jurídica, a resolução de dúvidas legais e o oferecimento de aconselhamento, seja de forma individual ou coletiva, fora do âmbito processual. Portanto, a assistência jurídica não se limita às ações judiciais, sendo um instrumento mais abrangente de suporte jurídico às camadas mais vulneráveis da população (Pierri, 2008).

Por outro lado, assistência judiciária é um conceito mais restrito. Ela se refere especificamente à representação legal em processos judiciais, ou seja, ao patrocínio de causas por advogados, de forma gratuita, para aqueles que não podem pagar pelos serviços advocatícios. Esse patrocínio é considerado um “munus público”, ou seja, uma função pública de relevante interesse social, normalmente prestada pelo Estado ou por advogados conveniados com instituições públicas, como a Defensoria Pública. Diferente do advogado privado, que é livre para escolher seus clientes, o prestador de assistência judiciária oferece seus serviços aos necessitados, por imposição legal ou por convênios com o Estado (Pierri, 2008).

Por fim, justiça gratuita refere-se especificamente à isenção das custas e despesas processuais. Esse benefício garante ao cidadão que ele não precisará arcar com custos relacionados ao trâmite processual, como custas judiciais, honorários de peritos e outras taxas necessárias ao desenvolvimento do processo. A justiça gratuita, portanto, é uma prerrogativa que visa facilitar o acesso ao Judiciário, assegurando que as pessoas sem condições financeiras possam ter seus direitos apreciados pela Justiça, sem serem oneradas pelos custos do processo (Pierri, 2008).

É importante ressaltar que, enquanto a assistência jurídica e a assistência judiciária envolvem prestação ativa de serviços por parte de advogados e profissionais do Direito, a justiça gratuita representa uma postura passiva do Estado, que se abstém de cobrar os custos do processo. Assim, a justiça gratuita não envolve prestação de serviço, mas sim uma isenção de pagamentos.

Essa distinção é relevante, tendo em vista que muitas vezes ocorre confusão na prática jurídica. Por exemplo, um indivíduo pode ter direito à justiça gratuita para isenção de custas processuais, mas pode optar por contratar um advogado particular, que aceitará os honorários apenas em caso de sucesso da ação (contrato de risco). Em outros casos, uma pessoa pode ser assistida pela Defensoria Pública (assistência judiciária), mas ainda assim não ser considerada beneficiária da justiça gratuita, se o juiz entender que ela possui condições de arcar com as despesas processuais.

Portanto, a correta compreensão desses institutos é essencial não apenas para evitar equívocos na prática jurídica, mas também para garantir que os cidadãos usufruam plenamente dos direitos previstos pela Constituição. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LXXIV, assegura que o Estado deve prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, reforçando a importância desses mecanismos para garantir a igualdade de todos perante a lei e o pleno acesso à Justiça (Brasil, 1988).

3.  A CONCESSÃO DA GRATUIDADE DE JUSTIÇA NO BRASIL

3.1 O benefício no CPC/2015

Os critérios para a concessão desse benefício estão previstos principalmente no CPC/2015. O artigo 98 estabelece, no âmbito infraconstitucional, um direito constitucional, ao dispor que a justiça gratuita pode ser concedida a pessoas naturais ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras, independente de residirem no país, diferentemente do disposto no art. 2º da Lei 1060/50 (Neves, 2022).

Uma inovação trazida pelo CPC/2015 foi a possibilidade de concessão parcial da justiça gratuita, prevista no artigo 98, § 5º. Isso permite que o juiz, ao avaliar a situação econômica do requerente, conceda uma isenção parcial das despesas processuais caso a parte não preencha os requisitos para a gratuidade total, mas demonstre que o pagamento integral das custas processuais seria oneroso. Essa concessão parcial é uma solução importante para evitar o uso excessivo e indevido do benefício, permitindo que ele seja ajustado à realidade financeira de cada parte (Brasil, 2015).

Para as pessoas naturais, o principal meio de obtenção do benefício é através da declaração de hipossuficiência, ou seja, uma declaração formal de que o requerente não possui condições de pagar as custas do processo sem comprometer o próprio sustento ou o de sua família. Segundo o § 3º do artigo 99, essa declaração presume-se verdadeira, o que simplifica o procedimento de concessão (Neves, 2022).

No entanto, tal presunção é relativa, pois o CPC/2015 prevê a possibilidade de revogação da justiça gratuita, quando estabelece que o benefício pode ser retirado a qualquer momento caso o juiz constate que o beneficiário, na verdade, possui condições financeiras para arcar com as custas processuais ou se as circunstâncias econômicas da parte mudarem ao longo do processo (Núñez, 2018). Além disso, caso fique comprovada a má-fé ou abuso do benefício, além da revogação, o beneficiário deverá arcar com todas as despesas retroativas, além de eventuais multas. Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE COBRANÇA E REPETIÇÃO EM DOBRO DO INDÉBITO. JUSTIÇA GRATUITA. ESTADO DE HIPOSSUFICIÊNCIA. POSSIBILIDADE DE REVISÃO DE OFÍCIO. 1. Ação declaratória de nulidade de cobrança cumulada com repetição em dobro. 2. É lícito ao juiz determinar, de ofício, a intimação da parte para comprovar a manutenção do seu estado de hipossuficiência econômico-financeira, sob pena de revogação do benefício, quando entender que os elementos dos autos fornecem indício de sua capacidade de custear atos do processo. 3. Agravo interno não provido, com aplicação de multa (art. 81, § 2º, do CPC).
(STJ – AgInt no AREsp: 2141478 PB 2022/0165298-4, Data de Julgamento: 10/10/2022, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/10/2022)

É importante destacar que as decisões que revogam a gratuidade de justiça só produzem efeitos após o trânsito em julgado. Até lá, a parte continua usufruindo do benefício. Esse período é importante para garantir que o direito de defesa seja plenamente exercido e que a parte não seja prejudicada até que a decisão final seja confirmada (Neves, 2022).

Outro ponto de destaque é a concessão de justiça gratuita para pessoas jurídicas, que deve seguir critérios mais rigorosos. As empresas, para obterem o benefício, precisam comprovar de forma clara e inequívoca a sua incapacidade financeira, o que geralmente requer a apresentação de balanços patrimoniais e documentos que atestem a situação de dificuldades econômicas. É o que dispõe a Súmula 481 do STJ:

Súmula 481. Faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais.

Em relação ao procedimento, o artigo 99 do CPC prevê que o pedido de gratuidade pode ser feito em qualquer fase do processo, seja na petição inicial, na contestação ou até mesmo em recurso. Esse pedido deve ser fundamentado, e a parte deve comprovar sua insuficiência de recursos para que o juiz conceda o benefício. Se o pedido for indeferido, a parte deverá recolher as custas processuais sob pena de não prosseguimento do processo. Por outro lado, se o pedido for deferido, a parte é dispensada do pagamento de todas as despesas processuais enquanto durar o benefício (Brasil, 2015).

Portanto, os critérios para concessão da justiça gratuita no Brasil são definidos com base na insuficiência de recursos e regulados pela legislação processual, especialmente pelo CPC/2015. A declaração de hipossuficiência, embora presuma a veracidade da alegação, pode ser contestada, exigindo do requerente a apresentação de provas de sua condição econômica. A possibilidade de concessão parcial e a revogação do benefício em caso de fraude ou mudança nas condições financeiras são medidas que visam equilibrar o direito de acesso à justiça com a necessidade de evitar abusos. Assim, a justiça gratuita no Brasil desempenha um papel crucial ao assegurar que todos, independentemente de sua condição financeira, possam acessar o Judiciário e proteger seus direitos.

3.2 Os impactos da concessão indiscriminada

A concessão indiscriminada de justiça gratuita tem gerado sérios impactos no sistema judiciário brasileiro, principalmente ao aumentar o volume de processos e sobrecarregar os tribunais. Embora o benefício da gratuidade judiciária tenha como objetivo garantir o acesso à justiça para aqueles que comprovam insuficiência de recursos, a aplicação excessiva e, muitas vezes, sem critérios rígidos, acaba fomentando o uso abusivo desse instrumento, resultando em consequências negativas para o funcionamento do Judiciário (Neto; Dornelles; Konzen, 2022).

A Nota Técnica 22/2019 da Justiça Federal aponta que a concessão excessiva da justiça gratuita, sem uma verificação detalhada da real condição financeira dos solicitantes, favorece o ajuizamento de demandas temerárias e aventureiras (Ferraz; Moraes, 2019). O fato de o beneficiário da gratuidade não arcar com os custos processuais (custas, perícias, honorários advocatícios) encoraja o ingresso de ações que, em muitos casos, possuem baixas chances de sucesso. Isso cria um cenário em que tanto advogados quanto jurisdicionados não consideram os custos ou os riscos de propor ações com baixo potencial de procedência, uma vez que não há consequências financeiras significativas em caso de derrota.

Ademais, o impacto orçamentário decorrente da ampliação indiscriminada da gratuidade judiciária é outro fator preocupante. Segundo o relatório, a Justiça Federal, por exemplo, enfrenta crescentes despesas relacionadas à realização de perícias, sendo que grande parte dessas despesas é coberta pelo orçamento do Poder Judiciário. Entre 2010 e 2017, os gastos com perícias quase quadruplicaram, em grande parte devido à alta litigância em causas previdenciárias, que representam 92% desse total.

Outro ponto crítico destacado pela literatura acadêmica, como mencionado por Humberto Dalla e Lucas Núñez (2019), é que o uso indiscriminado da justiça gratuita gera uma espécie de “subsídio à litigiosidade”, no qual se confunde o acesso universal ao Judiciário com a isenção total de custos processuais. Tal prática tem incentivado o uso oportunista e predatório do sistema de justiça, comprometendo sua eficiência e prejudicando o andamento de ações legítimas.

Conclui-se, portanto, que a concessão excessiva e indiscriminada de justiça gratuita aumenta significativamente a carga processual nos tribunais, gera elevados custos para o Poder Judiciário e fomenta a litigância predatória. Medidas para aprimorar os critérios de concessão e monitoramento do uso da justiça gratuita são essenciais para garantir que o benefício continue a servir seu propósito original de promover o acesso à justiça para os mais necessitados, sem prejudicar a eficiência do sistema judicial.

4.  LITIGÂNCIA PREDATÓRIA

4.1 Definição e Características

A litigância predatória é um fenômeno que ocorre quando advogados ou partes utilizam o sistema judiciário de forma abusiva, com o objetivo de obter vantagens indevidas, muitas vezes sem um fundamento legítimo. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na Recomendação nº 127/2022, define: “ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão”.

Esse tipo de prática se caracteriza pelo ajuizamento de inúmeras ações, muitas vezes repetitivas ou infundadas, com a finalidade de sobrecarregar o sistema judicial e, em alguns casos, forçar acordos ou compensações financeiras para evitar os custos e o tempo de um processo completo. A litigância predatória é um problema sério, pois utiliza de maneira distorcida o direito de acesso à justiça para obter benefícios que, em condições normais, não seriam alcançados (Lobo; Souza Netto, 2024).

Esse tipo de abuso afeta diretamente a eficiência do sistema judicial, já que sobrecarrega os tribunais com uma quantidade excessiva de processos sem mérito, o que resulta em maior tempo de tramitação e aumento dos custos processuais. Em vez de o Judiciário focar em resolver conflitos de relevância e urgência, ele acaba tendo que lidar com ações que não contribuem para a verdadeira administração da justiça, comprometendo a celeridade e a qualidade das decisões judiciais. Isso pode prejudicar gravemente o andamento de processos legítimos, uma vez que os recursos e o tempo dos tribunais são desviados para a resolução de litígios improdutivos (Lobo; Souza Netto, 2024).

É importante distinguir demandas em massa e demandas predatórias. Apesar de ambas as modalidades envolverem uma certa repetição de fatos ou causas, as suas motivações e impactos são radicalmente distintos. As ações em massa visam resolver de maneira eficiente e justa os problemas de várias pessoas com um interesse comum, buscando assegurar que os direitos de um grupo afetado sejam reconhecidos e compensados, enquanto as demandas predatórias se baseiam na má-fé, sem a intenção legítima de buscar justiça, mas sim de manipular o sistema judicial (Nunes e Silva, 2024).

Um exemplo clássico de litigância predatória ocorre em casos de ações repetitivas ou ações em massa, onde várias demandas idênticas são movidas por diferentes pessoas ou até pelo mesmo autor, sem que haja a real intenção de resolver o conflito em si. Isso é comum, por exemplo, em demandas contra empresas de telecomunicações ou instituições financeiras, onde os mesmos fundamentos são usados repetidamente, muitas vezes com pequenas variações, para buscar compensações por supostos danos. Em muitas dessas situações, a parte demandante espera que a empresa opte por um acordo rápido, a fim de evitar os custos com a defesa em múltiplas ações, mesmo que o mérito do pedido seja discutível ou infundado (Vieira; Schnorr, 2024).

Outro exemplo de litigância predatória é encontrado em processos trabalhistas, onde algumas vezes são movidas ações com pedidos exagerados ou que visam criar uma pressão para que o empregador ofereça um acordo. Embora o trabalhador tenha todo o direito de buscar a reparação de seus direitos, em alguns casos, a má-fé processual leva ao ajuizamento de demandas infundadas, utilizando o sistema de gratuidade de justiça como um mecanismo para não assumir riscos financeiros em caso de derrota (Calvet, 2023).

O impacto da litigância predatória no Poder Judiciário é amplo. Além de sobrecarregar os tribunais, gerando um acúmulo de processos que poderiam ser evitados, essa prática também encarece o funcionamento da justiça. Os custos de operação, como a realização de perícias e a alocação de juízes e servidores, aumentam desnecessariamente. Além disso, a litigância predatória pode levar a uma crise de credibilidade do sistema judicial, à medida que cidadãos e empresas começam a perceber o Judiciário como um ambiente suscetível a abusos, onde o uso estratégico e desleal dos processos se torna uma forma de obter vantagens ilícitas (Lobo; Souza Netto, 2024).

4.2 Relação entre Litigância Predatória e Justiça Gratuita

A justiça gratuita, prevista no Código de Processo Civil de 2015, foi criada para garantir que pessoas sem condições financeiras pudessem acessar o Judiciário sem ter que arcar com as custas processuais. No entanto, quando concedida sem um controle rigoroso, pode se tornar um fator que fomenta a litigância predatória, ao permitir que indivíduos e empresas movam ações sem enfrentar os custos que normalmente desencorajariam o ajuizamento de demandas infundadas ou abusivas (Wolkart, 2020).

A relação entre a litigância predatória e a justiça gratuita é evidente no fato de que o litigante, ao ser beneficiado pela gratuidade, não assume o risco financeiro inerente a uma derrota processual. O custo do processo é transferido para o Estado, o que cria um incentivo para que ações frívolas ou repetitivas sejam ajuizadas sem qualquer preocupação com os gastos envolvidos (Neto; Dornelles; Konzen, 2022).

Em muitos casos, indivíduos com poucas informações sobre seus próprios direitos são usados como “figuras processuais” em ações fraudulentas. As partes sequer têm ciência de que seus nomes estão sendo usados em processos judiciais. Advogados antiéticos ajuízam ações em massa, requerendo o benefício da justiça gratuita e falsificando documentos, como a declaração de hipossuficiência, de forma que os beneficiários da justiça gratuita acabam envolvidos em casos de fraude processual, sem que tivessem a intenção ou o conhecimento prévio da ação (Vieira; Schnorr, 2024).

Essa prática é particularmente preocupante em casos de ações coletivas e demandas de massa, nas quais as grandes corporações, cientes de que enfrentar múltiplos processos pode ser mais oneroso do que resolver uma única disputa, optam muitas vezes por acordos, mesmo quando as demandas são claramente infundadas (Vieira; Schnorr, 2024). Nesse cenário, a gratuidade judiciária, que deveria servir para promover o acesso à justiça dos mais vulneráveis, é desvirtuada, tornando-se uma ferramenta de exploração processual.

Na Justiça do Trabalho, a relação entre justiça gratuita e litigância predatória também é evidente. Em muitos casos, o reclamante, ao ser isento de custas  e honorários, sente-se encorajado a mover ações sem considerar os méritos da causa. Isso resulta em um aumento expressivo do volume de processos trabalhistas, o que sobrecarrega o sistema e dificulta a resolução rápida de litígios legítimos. A Reforma Trabalhista de 2017 buscou corrigir esse problema ao prever que, mesmo nos casos de justiça gratuita, o beneficiário pode ser obrigado a pagar honorários de sucumbência caso obtenha créditos suficientes em outras demandas para cobrir esses custos. Entretanto, o dispositivo supracitado foi revogado (STF, 2021).

Portanto, a justiça gratuita, quando não monitorada adequadamente, pode se transformar em um incentivo à litigância predatória, ao eliminar o risco financeiro do ajuizamento de ações sem mérito.

4.3 Impactos no Poder Judiciário

A litigância predatória gera um impacto significativo no tempo de tramitação dos processos e no congestionamento do sistema judiciário brasileiro. Ao explorar o sistema de justiça de maneira abusiva, ajuizando ações repetitivas, infundadas ou de baixo mérito, os litigantes predatórios contribuem para a sobrecarga dos tribunais, prejudicando a celeridade processual e comprometendo a qualidade da prestação jurisdicional (Lobo; Netto, 2024).

O tempo de tramitação dos processos no Brasil já é reconhecido como um dos principais desafios enfrentados pelo Poder Judiciário. De acordo com o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (2024), o Brasil possui um dos maiores volumes de processos judiciais do mundo, com quase 84 milhões de ações em tramitação. Esse congestionamento é exacerbado pela litigância predatória, que obriga o Judiciário a desviar recursos que poderiam ser aplicados na resolução de litígios mais relevantes e urgentes.

Quando as ações predatórias são apresentadas em massa, os tribunais enfrentam uma demanda muito superior à sua capacidade de processamento, levando ao acúmulo de processos e ao atraso na entrega da prestação jurisdicional. O tempo necessário para a tramitação de um processo legítimo é ampliado, uma vez que juízes e servidores judiciais são obrigados a lidar com demandas improcedentes ou repetitivas que consomem recursos desnecessários, como a realização de perícias e audiências, além da emissão de despachos e decisões interlocutórias. Esse cenário prejudica os cidadãos que têm demandas legítimas e dependem de uma solução rápida para seus conflitos (CIJMG, 2022).

Na prática, o aumento da carga processual resulta em uma reação em cadeia, em que o atraso de um processo impacta negativamente todos os outros processos que dependem da mesma estrutura judicial. Esse efeito é especialmente visível em áreas como o direito do consumidor e o direito previdenciário, que estão entre os assuntos mais demandados, conforme o relatório Justiça em Números do CNJ (2024), e onde a litigância predatória é comum. As ações repetitivas movidas contra grandes empresas ou o uso abusivo de justiça gratuita em demandas previdenciárias são exemplos claros de como a litigância predatória gera congestionamento, forçando o Judiciário a investir tempo e recursos em processos que, em muitos casos, poderiam ter sido resolvidos extrajudicialmente ou sequer deveriam ter sido movidos.

O impacto negativo da litigância predatória também é observado no tempo de julgamento dos recursos. Ao sobrecarregar o sistema com demandas infundadas, as partes predatórias recorrem de decisões judiciais apenas para prolongar o processo, muitas vezes sem qualquer intenção de obter uma solução real. Esses recursos, frequentemente utilizados como uma tática para pressionar a outra parte, resultam em um aumento no número de processos em instâncias superiores, gerando um efeito cascata que atrasa ainda mais a conclusão dos casos (Lobo; Souza Netto, 2024).

Além disso, o congestionamento causado pela litigância predatória afeta diretamente a efetividade da justiça. A demora na solução de conflitos gera insegurança jurídica e insatisfação dos jurisdicionados, minando a confiança da sociedade no Judiciário. Um processo que poderia ser resolvido em meses acaba se estendendo por anos, não apenas devido à complexidade da matéria, mas pelo volume desnecessário de processos que competem pelos mesmos recursos judiciais. Essa situação prejudica a entrega de uma justiça rápida e eficiente, que é um dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal (Lobo; Netto, 2024).

Diante desse cenário, medidas precisam ser adotadas para mitigar os efeitos da litigância predatória e reduzir o congestionamento no sistema. Para combater esses efeitos, é essencial que o Judiciário adote medidas de controle mais rigorosas e promova uma gestão mais eficiente dos processos, priorizando a solução de demandas legítimas e desincentivando o uso abusivo da justiça gratuita e de ações predatórias.

5.  POSSÍVEIS FORMAS DE COMBATE

O Poder Judiciário opera sob o princípio da demanda, ou seja, age somente quando provocado. Isso significa que qualquer pessoa tem o direito de recorrer ao Judiciário para a defesa de seus direitos, sem que haja limitações ao número de ações que podem ser propostas (Neves, 2022). No entanto, essa garantia, que visa assegurar o amplo acesso à justiça, pode ser explorada de maneira abusiva por litigantes que utilizam a máquina judicial como meio de pressão, muitas vezes apresentando causas repetitivas ou sem mérito.

Embora o direito de ação seja uma garantia constitucional fundamental, o abuso dessa prerrogativa compromete a eficiência do sistema e prejudica o acesso à justiça para todos. Nesse contexto, o controle mínimo de judicialização, através do indeferimento ou recebimento adequado de petições iniciais, pode ser uma ferramenta importante para combater a litigância predatória, sem comprometer o direito de ação (Magalhães; Sousa e Silva, 2024).

Na prática, o juiz, ao detectar suposta demanda predatória, pode solicitar que a parte autora emende a inicial para explicar melhor os fundamentos de fato e de direito que embasam o pedido, apresentar documentos essenciais, detalhar o pedido, especificar o valor da causa, comprovar a legitimidade da parte, através de procuração atualizada, corrigir defeitos formais, como erros na indicação do réu devido ao uso de modelo padrão, entre outros (Magalhães; Sousa e Silva, 2024).

Essas medidas já vêm sendo aplicadas em Tribunais de Justiças, como o de Pernambuco:

EMENTA: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E MATERIAL. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. RECONHECIMENTO DE DEMANDA PREDATÓRIA. NOTA TÉCNICA Nº 02/2021 DO CIJUSPE. PARÂMETROS E BOAS PRÁTICAS PARA TRATAMENTO DE LITIGÂNCIA AGRESSORA. SENTENÇA MANTIDA.
APELAÇÃO IMPROVIDA. 1. Cuida-se de Apelação Cível contra sentença que indeferiu a petição inicial e extinguiu o feito sem julgamento de mérito, com fulcro nos art. 485, inciso VI do CPC. 2. O Centro de Inteligência da Justiça Estadual de Pernambuco – CIJUSPE estabeleceu o conceito e os parâmetros para reconhecimento das Demandas Predatórias, cuja intelecção foi registrada na Nota Técnica nº 02/2021, publicada em 18 de fevereiro de 2022. 3. No presente caso, vislumbram-se diversas condutas elencadas pelo CIJUSPE para identificação de lides temerárias, cujo conjunto representa indício de que as inúmeras e idênticas demandas ajuizadas na Comarca de Macaparana podem representar lide fabricada, isto é, que sua origem decorre não de uma pretensão resistida ou de um direito violado, mas sim do intuito de serem obtidas indenizações baseadas em eventuais falhas na defesa da parte contrária, aproveitando-se do instituto da inversão do ônus da prova e do tumulto processual advindo da pulverização das ações. 4. Além do ajuizamento de ações produzidas em massa e das petições padronizadas contendo teses genéricas, há ainda antecipadas teses jurídicas alternativas (de inexistência e de invalidade dos negócios jurídicos) para que satisfaçam antecipadamente qualquer dos resultados processuais possíveis, isto é, a real ocorrência ou não do empréstimo. 5. Neste contexto – em que há suspeita de litigância predatória – o CIJUSPE elaborou recomendações ao julgador, que se prestam a comprovar que os advogados possuem contato com as partes, a partir da exigência de documentos e condutas pelos demandantes e seus representantes. 6. Levando em consideração a documentação carreada aos autos, infere-se que o magistrado de primeiro grau, ao reconhecer a presente demanda como agressora, exerceu a obrigação, inerente ao exercício da função, de barrar ajuizamentos contrários à boa-fé processual, nos termos do art. 139, III, do Código de Processo Civil, que preceitua que ao juiz incumbe “prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça”. 7. Apelação improvida. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 0001237-92.2022.8.17.2930, em que figura como apelante, Maria de Lourdes Fernandes Silva e como apelado, Banco Itaú Consignado S/A, ACORDAM os Excelentíssimos Senhores Desembargadores integrantes da Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Pernambuco, por maioria, em negar provimento ao recurso, na conformidade com a ementa, o relatório e o voto, que passam a integrar este aresto. Recife, data da certificação digital. Luiz Gustavo Mendonça de Araújo Desembargador Relator. (grifo nosso)

(TJ-PE – APELAÇÃO CÍVEL: 0001237-92.2022.8.17.2930, Relator: LUIZ GUSTAVO MENDONÇA DE ARAÚJO, Data de Julgamento: 06/12/2023, Gabinete do Des. Luiz Gustavo Mendonça de Araújo (5ª CC)

Inclusive, o assunto está em discussão no STJ, através do Tema 1198, que submeteu a julgamento a questão a seguir (Magalhães; Sousa e Silva, 2024):

Possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários.

Além disso, a revisão dos critérios para a concessão da justiça gratuita pode ser uma medida eficaz no combate à litigância predatória, pois o benefício, quando mal utilizado, permite que ações abusivas sejam ajuizadas sem qualquer ônus para o autor. Ao exigir uma comprovação mais rigorosa da hipossuficiência econômica, o Judiciário pode inibir a prática de advogados e partes que usam o sistema para mover processos temerários ou infundados, uma vez que, se indeferida, o litigante precisaria arcar com as custas processuais em caso de indeferimento (Neto; Dornelles; Konzen, 2022)

A adoção de critérios mais robustos, como a apresentação detalhada de documentos financeiros e a reavaliação periódica da situação econômica das partes, pode evitar que a gratuidade de justiça seja concedida de forma automática ou indiscriminada, restringindo seu uso a quem realmente necessita e, consequentemente, reduzindo o volume de demandas predatórias no sistema judicial (Ferraz; Moraes, 2019).

A concessão parcial do benefício, prevista no artigo 98, § 5º, do CPC, pode ser uma medida eficaz também. O requerente não fica totalmente desonerado das despesas judiciais, o que cria um fator de responsabilidade e desestimula o ajuizamento de ações temerárias ou infundadas. Ao impor a obrigação de arcar com parte das custas, a concessão parcial reduz o incentivo para que litigantes abusivos explorem o sistema judicial sem qualquer risco financeiro, uma vez que, em caso de derrota, ainda têm que suportar parte das despesas processuais (Brasil, 2015).

Contudo, é crucial que qualquer controle exercido pelo Judiciário seja realizado de forma equilibrada, sem prejudicar o acesso à justiça para aqueles que realmente necessitam. A implementação de filtros rigorosos nas fases iniciais do processo deve ser feita de maneira que não impeça a resolução de demandas legítimas e de interesse público, principalmente as que envolvem direitos fundamentais.

Além disso, mecanismos como a litigância de má-fé e a imposição de sanções aos autores que abusam do sistema judicial são ferramentas complementares que podem ser usadas para coibir a litigância predatória. O próprio CPC, em seus artigos 80 e 81, prevê penalidades para quem litiga de má-fé, o que serve como um desestímulo para o uso indiscriminado da justiça. O uso dessas sanções, quando necessário, aliado ao controle do recebimento de petições iniciais, pode servir como uma barreira eficaz contra o abuso processual (Magalhães; Sousa e Silva, 2024).

Outra forma de combate é a implementação de inteligência artificial (IA) no âmbito do Poder Judiciário, diante da sua capacidade de processar grandes volumes de dados de maneira rápida e eficiente. No contexto da litigância predatória, isso significa que sistemas de IA podem analisar milhares de processos simultaneamente, identificando padrões suspeitos, como petições iniciais repetitivas, apresentadas por advogados ou escritórios que utilizam os mesmos argumentos em múltiplos casos, sem a devida personalização ou justificativa jurídica adequada (Fonseca; Freire; Leão, 2024).

CONCLUSÃO

A concessão da justiça gratuita, prevista na Constituição Federal de 1988, desempenha um papel essencial na garantia do acesso à justiça, especialmente para as pessoas de baixa renda. No entanto, o uso indiscriminado desse benefício, sem o devido controle, tem fomentado um grave problema no sistema judicial brasileiro: a litigância predatória. Ao permitir que indivíduos ajuízem ações sem qualquer ônus financeiro, o instituto acaba sendo utilizado de maneira abusiva por litigantes que visam vantagens indevidas, muitas vezes sem fundamento legal ou legítimo interesse processual. Esse cenário não só sobrecarrega o Judiciário, mas também compromete o seu funcionamento, prejudicando os processos que realmente possuem relevância social ou jurídica.

A litigância predatória é caracterizada pelo ajuizamento massivo de ações repetitivas ou infundadas, muitas vezes com o objetivo de forçar acordos financeiros ou explorar falhas processuais. Esse fenômeno, em grande parte alimentado pela concessão descontrolada da gratuidade de justiça, gera impactos significativos no congestionamento das varas e tribunais, além de sobrecarregar a infraestrutura judicial com a necessidade de perícias, audiências e despachos desnecessários. Isso acarreta uma série de consequências negativas, não só para o Judiciário, mas também para os cidadãos que dependem de uma resolução eficiente de suas demandas.

Neste sentido, é imprescindível que sejam adotadas medidas mais rigorosas para evitar que o benefício da justiça gratuita seja utilizado de forma abusiva. A revisão dos critérios para sua concessão, com a exigência de comprovações mais detalhadas da situação financeira do requerente, pode ser um primeiro passo importante. Além disso, a possibilidade de concessão parcial do benefício, prevista no Código de Processo Civil de 2015, surge como uma alternativa viável para equilibrar a necessidade de acesso à justiça com a responsabilidade no uso dos recursos judiciais.

Outro ponto crucial para o combate à litigância predatória é a implementação de ferramentas tecnológicas, como a inteligência artificial. A capacidade dessas tecnologias de analisar grandes volumes de dados em curto período permite identificar padrões de comportamento processual repetitivo ou abusivo, facilitando a detecção precoce de ações predatórias e permitindo que o juiz tome providências antes que o sistema seja sobrecarregado. Além disso, o uso da IA pode ajudar na análise preliminar das petições iniciais, verificando sua conformidade com os requisitos processuais e possibilitando um filtro mais eficiente de ações que possam ser indeferidas logo no início.

Não obstante, é fundamental que essas medidas de controle sejam implementadas de maneira equilibrada, para que não haja uma limitação indevida do direito de acesso à justiça. O Judiciário deve adotar uma postura cuidadosa ao avaliar os pedidos de gratuidade, garantindo que apenas aqueles que realmente necessitam do benefício sejam contemplados. Ao mesmo tempo, é importante que o sistema esteja atento às demandas legítimas, para que as ações com fundamento jurídico e relevância social não sejam prejudicadas por um excesso de formalismo ou rigor processual.

Dessa forma, a solução para o problema da litigância predatória passa por uma conjugação de esforços: aprimorar os critérios para a concessão da justiça gratuita, adotar mecanismos tecnológicos para agilizar a identificação de abusos e, principalmente, promover uma conscientização entre os operadores do Direito sobre o uso responsável do sistema judicial. Apenas assim será possível garantir que o direito de acesso à justiça seja preservado sem que isso implique na sobrecarga do Judiciário ou no comprometimento da celeridade e eficiência das decisões.

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¹ Graduanda do 10° período do Curso de Direito da Universidade Estadual do Amazonas (UEA). E-mail: sdmp.dir20@uea.edu.br.

² Doutor em Direito Processual (USP). Professor na Universidade Estadual do Amazonas (UEA). E-mail: apdias@uea.edu.br.