A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA: UM TESTEMUNHO LINGUÍSTICO PARA O ESTUDO DA TRANSIÇÃO DO PORTUGUÊS ARCAICO PARA O MODERNO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202412301039


Luciano Lima de Oliveira1


RESUMO: Este artigo investiga vestígios linguísticos de transição do português arcaico para o moderno na Carta de Pero Vaz de Caminha. Tanto a delimitação inicial como final do português arcaico são motivos de discussão e controvérsia entre os estudiosos da língua portuguesa porque muitas datas e fatos são sugeridos, mas sem muita consistência linguística. Dessa forma, nos concentramos na caracterização do limite final dele para fins do século XV a meados do XVI, conforme hipóteses linguísticas apontadas pela professora Dra. Rosa Virgínia de Mattos e Silva da UFBA. Para isso, descrevemos o corpus quanto aos aspectos estruturais e históricos, apresentamos as periodizações e subperiodizações do português arcaico e o analisamos linguisticamente na Carta de Caminha. Para que fosse possível esta análise, tomamos como referencial teórico: Mattos e Silva (2006), Pereira (1964), Sousa (2007), Costa (2005), Oliveira (2005), Gonçalves (2007), Rodrigues [20–?] e a Gramática de Fernão de Oliveira (2000). O resultado obtido foi que o nosso objeto de análise é um verdadeiro testemunho linguístico para o estudo da delimitação deste período histórico da língua portuguesa, sendo esta pesquisa uma nova perspectiva para outros estudos tanto neste corpus como em outros documentos do português, no Brasil, referentes aos séculos do período colonial.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Análise; 2. Português arcaico; 3. Transição; 4. Português moderno.

RÉSUMÉ: Cet article étudie les traces linguistiques de la transition du portugais archaïque au portugais moderne dans la Lettre de Pero Vaz de Caminha. Les délimitations initiales et finales du portugais archaïque sont des sujets de discussion et de controverse parmi les spécialistes de la langue portugaise, car de nombreuses dates et faits sont suggérés, mais sans grande cohérence linguistique. De cette manière, nous nous sommes attachés à caractériser sa limite finale vers la fin du XVe siècle jusqu’au milieu du XV Ie siècle, selon les hypothèses linguistiques signalées par la professeure Drª. Rosa Virgínia de Mattos et Silva de l’UFBA. Afin de réaliser cela, nous décrivons le corpus en termes d’aspects structurels et historiques, nous présentons les périodisations et sous- périodisations du portugais archaïque et nous l’analysons linguistiquement dans la Lettre de Caminha. Pour rendre cette analyse possible, nous avons pris comme références théoriques : Mattos e Silva (2006), Pereira (1964), Sousa (2007), Costa (2005), Oliveira (2005), Gonçalves (2007), Rodrigues [20– ?] et la grammaire de Fernão de Oliveira (2000). Le résultat obtenu est que notre objet d’analyse c’est un véritable témoignage linguistique pour l’étude de la délimitation de cette période historique de la langue portugaise, étant cette recherche une nouvelle perspective pour d’autres études tant dans ce corpus que dans d’autres documents portugais, du Brésil, rélatifs aux siècles de la période coloniale.

MOTS-CLÉS : 1. Analyse ; 2. Portugais archaïque ; 3. Transition ; 4. Portugais moderne.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A questão da limitação, tanto inicial como final do português arcaico, não é um consenso entre os estudiosos da língua. No que se refere à sua caracterização final, além de um mapeamento linguístico rigoroso, alguns fatores sociolinguísticos também são significativos para o enquadramento desse período para meados do século XVI, dentre os quais citamos: o aparecimento das propostas normatizadoras, a propagação do ensino do português vulgar e não apenas do latim, a primeira reflexão sobre o idioma, a gramática de Fernão de Oliveira logo seguida pela de João de Barros, em 1540, e as Cartilhas/Cartinhas que se multiplicaram para levar ao mundo novo a língua companheira do império.

Diante desses indícios linguísticos e sociolinguísticos propostos para limitação final do português arcaico, achamos viável a análise linguística da Carta de Pero Vaz de Caminha, uma vez que ela está situada no final do século XV e início do século XVI, sendo, portanto, um testemunho linguístico para a constatação dessa mudança do português arcaico para o moderno.

Objetivando investigar esses vestígios de transição no corpus acima citado, tomamos como referência as seguintes hipóteses linguísticas apontadas pela professora Rosa Virgínia de Mattos e Silva para essa possível caracterização final: 1. As mudanças fônicas, tais como: a uniformização das nasais finais < – ã >, < õ> no ditongo nasal < ão>; 2. A questão dos hiatos do português arcaico que tiveram cinco diferentes resultados – a. ditongo decrescente (malu > mão > mau); b. ditongo crescente (volare > voar > v [w] ar); c. tritongo (tela > tea> teia); d. duas silabas (nidu> nio > ninho); e. uma sílaba (sede> see> sé); 3. Uma mudança fônica do [d] intervocálico nas marcas flexionais da segunda pessoa do plural das formas verbais (vós- 1ª, 2ª e 3ª- ar, er e ir); 4. A simplificação de quatro fonemas sibilantes (/ts/, /s, /dz/, e /z/) com o surgimento de confusão por volta de 1550; 5. A regularização da vogal temática <u> dos particípios passados dos verbos regulares da 2ª conjugação (u-do > i-do): sabudo > sabido; 6. Os dêiticos demonstrativos, locativos adverbiais e anafóricos; 7. Conjunções típicas do português arcaico; 8. Ser e estar, haver e ter; 9. Ausência e emergência do tempo composto; 10. Alguns dados sobre ordem sintática; 11. A colocação dos clíticos; e 12. A pronominalização de homem.

Para que essa investigação fosse possível, fizemos o levantamento dos dados sobre os fenômenos da transição acima referida, conforme hipóteses estabelecidas, e os analisamos, confrontando-os com as teorias, além de apresentar várias ocorrências extraídas do corpus para demonstrar os fatos verificados.

Procuramos, assim, apresentar os aspectos estruturais e históricos da Carta de Caminha utilizando a magnífica edição do historiador português Dr. Jaime Cortesão, as periodizações e subperiodizações do português arcaico, as principais obras e estudo sobre ele e o analisamos a partir das hipóteses linguísticas elencadas por Mattos e Silva.

1 NOTAS SOBRE OS ASPECTOS ESTRUTURAIS E HISTÓRICOS DA CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA

A formação do estado nacional português, no século XVI, está intimamente relacionada às demais expansões marítimas levadas a cabo pelas nações europeias, em especial a Espanha. Com a expulsão dos árabes da Península Ibérica e a conversão forçada dos que ficaram, Portugal, uma vez com o território reconquistado, lança-se à empresa da expansão do seu domínio em terras do além-mar.

Segundo Mattoso (1993), o sucesso de grande parte dessa expansão portuguesa foi possível devido à centralização dos interesses políticos e militares do Estado nas mãos do rei e sua forte ênfase educacional na área humanística. Nesta época, Portugal era tido como um dos melhores centros de formação das ciências náuticas da Europa, destacando-se, evidentemente, a famosa Escola de Sagres que era tida como responsável pelos notáveis descobrimentos marítimos no século XV.

O êxito das grandes navegações portuguesas, de maneira geral, também precisa ser observado dentro de todo um contexto propício para isso. Alguns fatores foram favoráveis para o destaque desta nação na conquista da expansão marítima como: a sua localização, a propagação de ideias no continente, as novas invenções e técnicas náuticas descobertas na Europa, um melhor desenvolvimento da astronomia e da cartografia por parte dos árabes e dos judeus, na Península Ibérica, anos antes da expulsão deles, bem como a propagação de tal conhecimento também realizada por eles (BARRETO, 1986; DIAS, 1988; GODINHO, 1984).

Nesse cenário, surge a Carta do “achamento do Brasil” (OLIVEIRA; VILLA, 1999) ou a Carta ao rei Dom Manuel sobre o descobrimento do Brasil escrita por Pero Vaz de Caminha que nos deu uma excelente narração das Terras de Porto Seguro. Suas descrições vazadas numa linguagem viva e matizada revelam o espírito de um homem perspicaz e observador. Pereira (1964, p.19) nos relata:

O exuberante da vegetação, a amenidade do clima, a boa qualidade das águas, a higidez somática do indígena, esquivo e ingênuo, merecem do cronista- escrivão palavras de mal contido entusiasmo. Caminha não deforma a realidade, que retrata com mão segura e hábil, fixando-lhe aspectos, surpreendendo-lhe peculiaridades, comparando-lhe. Diz somente o que é preciso dizer. É a pena de um escritor lúcido, a redigir com meticulosa precisão, sem carregar nas cores, a notícia da terra que os portugueses acabavam de descobrir, ou melhor, achar.

Também Villela (1997, p. 9-10) assim se expressa sobre a Carta:

O estilo é claro, marcado pela subjetividade que convém a um relatório. Os fatos aparecem narrados em ordem cronológica, desde o começo da viagem, em 9 de março, até o momento de deixar o Brasil, em 2 de maio (…); o espírito observador do autor capta as condições primitivas da cultura, de maneira ingênua, num estilo direto, com comentários realistas e sem subterfúgios. Este pode ser considerado o primeiro documento histórico com características literárias sobre o Brasil.

Quanto às notícias contemporâneas do achamento, Cortesão nos informa (1967, p. 35):

De todos os relatos sobre o descobrimento do Brasil enviados ao soberano, só hoje se conhecem a carta de Caminha, a de Mestre João, físico e cirurgião de El-rei, e uma relação não assinada, conhecida por Relação do Piloto Anónima vertida para o dialeto veneziano e em Veneza publicada pela primeira vez em 1507 e cujo original anda perdido. É breve e só algumas observações astronômicas a carta de Mestre João. A relação quase só repete e resume as informações de Caminha na parte da viagem a que estas se reportam. O documento de Caminha é de longe, o mais importante dos três.

Sousa (2007) afirma que o manuscrito original da Carta de Caminha possui sete folhas dobradas de papel, cada uma com quatro páginas escritas, de 29,6 cm por 29,9 cm, totalizando vinte e sete páginas de texto e uma de endereço. Segundo a autora, as margens são pequenas e, no geral, as páginas apresentam trinta e seis linhas em média, com um mínimo de trinta e uma e um máximo de trinta e nove. A tinta usual era a preta, mas a da Carta era clara, de cor castanha, possibilitando que a frente e o verso do papel fossem utilizados. O estilo caligráfico é a escrita processual originada da cortesã que era a escrita tradicional na corte no século XV.

Oliveira e Villa (1999, p. 19) têm as seguintes informações sobre a primeira publicação dela:

A carta esteve esquecida nos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, durante três séculos, até ser encontrada, em 1773, pelo guarda-mor da Torre, José de Seabra, que incumbiu o escrivão Eusébio Manuel da Silva a fazer dela uma cópia perfeita para sua melhor inteligência. Esta cópia encontra-se hoje no arquivo da Real Marinha do Rio de Janeiro e provavelmente tenha vindo para o Brasil na bagagem da corte portuguesa, em 1808. No entanto, sua primeira publicação se deu em 1817 pelo padre Manuel Aires do Casal, que encontrou uma cópia do texto no Arquivo da Marinha Real do Rio de Janeiro.

Apesar do mérito, essa publicação da Carta pelo Pe. Manuel Aires do Casal foi reproduzida com muitas omissões de trechos que a índole do sacerdote não permitiu publicar por haver descrição da nudez dos indígenas. A partir dessa primeira publicação, ela despertou interesses no Brasil e fora dele, sendo traduzida para diversos idiomas ocidentais como o francês, o alemão, o espanhol e o inglês.

2. O PORTUGUÊS ARCAICO: BREVES ANOTAÇÕES

Vasconcelos apud Carvalho e Nascimento (1970) reconhece, na evolução da Língua Portuguesa, três fases: a Pré-Histórica que começa com as origens do idioma e vai até o século IX; a Proto-Histórica que se estende do século IX ao XII em que se encontram, nos documentos redigidos em latim bárbaro, palavras portuguesas; e a Histórica que se inicia no século XII e se estende até os nossos dias. Quando a Carta de Pero Vaz de Caminha foi escrita ao rei D. Manuel, a língua portuguesa se encontrava na fase Histórica, mais precisamente no seu período arcaico que se inicia no século XII e se estende até atualmente.

No que se refere à periodização do português arcaico, não há um consenso quanto ao assunto. Mattos e Silva (1996), considerando os fatores sociolinguísticos significativos para propor o seu fim em meados do século XVI, sugere alguns elementos contributivos: o aparecimento das propostas normatizadoras e a propagação do ensino do português vulgar e não apenas do latim como na Idade Média.

Para Carvalho e Nascimento (1970), o primeiro texto inteiramente redigido em português é a Cantiga da Ribeirinha, poesia escrita por Paio Soares Taveirós dedicada à D. Maria Paes Ribeiro, a Ribeirinha. A grande filóloga, Drª Carolina Michäelis de Vasconcelos, datou de 1189 este primeiro documento. A partir de então, aparecem textos em poesia e, mais tarde, em prosa. Mattos e Silva (2006) afirma que o início do português arcaico é estabelecido a partir dos primeiros vestígios de uma escrita em português, tendo como documentos inaugurais o Testamento de Afonso II (1214) e a Notícia do Torto (1214 ou 1216) em prosa.

Também são consideradas as mais antigas cantigas de amigo e de amor do Cancioneiro Medieval português, datado do início do século XIII, em verso. Martins (1999), assim como outros pesquisadores, afirma que o documento não literário mais antigo que descobriu em suas pesquisas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo fora a Notícia de fiadores, datada de 1175, porém, Castro (2006) alega não ser a Notícia de fiadores o texto mais antigo escrito, mas, sim, um Pacto de Gomes de Pais e Ramiro Pais, não datado, que José António Souto Cabo situa entre abril de 1173 e abril de 1175.

Por sua vez, a subperiodização do português arcaico apresenta vários pontos de vista. Vasconcelos (1959) limitava-se no início do século XX a designar esse período pela expressão única de português arcaico. Vasconcelos (1990), com base na produção literária medieval portuguesa, subdivide em três séculos: o período trovadoresco até 1350 e o período do português comum ou da prosa histórica, posição aceita por Silva Neto (1979) em seu livro História da Língua Portuguesa. Cintra apud Mattos e Silva (2006) opõe ao português antigo, do século XII às primeiras décadas do XV, o português médio até as primeiras décadas do século XVI. Outros pesquisadores, como Cuesta apud Mattos e Silva (2006), fazem a mesma delimitação temporal, mas adotam a designação de galego- português e de português pré-clássico.

A documentação poética é representada, basicamente, pelo Cancioneiro Profano, constituída pelas cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer. Completando a lírica profana, o cancioneiro religioso ou mariano, com 427 Cantigas de Santa Maria ou em louvor a Santa Maria. O Cancioneiro Profano e Mariano é o que há de mais significativo da primeira fase do português arcaico. Quanto ao seu valor linguístico, é riquíssimo para o conhecimento das palavras da época e de valor fonético e morfossintático indispensáveis para a história da língua.

Já a documentação em prosa não-literária é classificada nos seguintes tipos: chartes (documentação notarial) reais, chartes privadas, foros e forais (ou foros breves) e leis gerais. O documento mais antigo, quiçá, da língua portuguesa, é o testamento de Afonso II.

A documentação também básica para o conhecimento do português arcaico são os registros notariais que tratam de doações, testamentos, compras, vendas, inventários dos cartórios privados e do rei. Os foros referem-se às imunidades e aos encargos de uma comunidade. Alguns estudiosos afirmam que tais documentos são valiosas fontes de pesquisas linguísticas, uma vez que nos informam sobre grafia e fonologia, morfologia, léxico, semântica e sintaxe.

No que se refere à documentação secundária, Mattos e Silva (2006) diz que se tem como fonte de pesquisa as edições paleográficas ou diplomáticas e edições críticas, os glossários, as observações linguísticas que acompanham edições de vários tipos, as monografias sobre fatos linguísticos caracterizados do português arcaico, as gramáticas históricas do português, os dicionários etimológicos e as histórias da língua portuguesa.

3. ANÁLISE FONOLÓGICA E MORFOSSINTÁTICA DA CARTA DE CAMINHA

3.1 FONÉTICA E FONOLOGIA

É comum perceber, na Carta de Pero Vaz de Caminha, os encontros vocálicos decorrentes da queda de diversas consoantes, principalmente do n, do l e do d intervocálicos formando hiatos, embora a tendência seja para sua eliminação no século XV, confirmada nos poetas do final do século (TEYSSIER, 1997). Vejamos alguns exemplos encontrados no nosso corpus:

  • “[…] meteose loguo no esquife a somdar o porto demtro e tomou em huũa almaadia dous daqueles homeẽs da trra […].”;
  • “[…] e famola poer onde avia de seer que será do rrio obra de dous tiros de beesta.”;
  • “[…] E seendo aº Lopez nosso piloto em huũ daqueles naujos pequenos per mandado do capitam por seer homẽ vyuo e deestro pêra jsso meteose loguo no esquife a somdar o porto demtro […].”;
  • “[…] nom doujdo segº a santa tençam de vosa alteza fazeremse xpaãos e creerem na nossa samta Fe […].”;
  • “[…] soomente sayo ele com todos em hu ũ jlheeo grande que na baya esta […].”;
  • “[…] quando o batel chegou aa boca do rrio heram aly xbiij ou xx homeẽs pardos todos nuus sem nehuũa cousa que lhes cobrisse suas vergonhas. […].”;
  • “[…] aquela mostramça pero altar e perao ceeo e huũ seu jrmaão com ele […]”.

Essas ocorrências, geradas acima pela queda de um fonema medial, resultaram em: encontros vocálicos que sofreram o fenômeno da crase das duas vogais: almaadia > almadia, beesta > besta, deestro > destro, creerem > crerem; formação de um ditongo: jlheeo > ilhéu ou colocação de uma consoante intervocálica: nehuũa > nenhuma, huũa > uma. Quando uma das vogais é nasal, o resultado da contração é também uma vogal nasal: jrmaão > irmão, maão > mão.

No que diz respeito aos aspectos da nasalidade observados, Sousa (2007) afirma que é representada ortograficamente pelas consoantes m e n, pelo dígrafo nh e pelo til (~). Quanto à nasalidade representada por m e n, os vocábulos podem vir grafados em posição de coda2 interna: “[…] em tal maneira que trouueram daly pêra as naaos mujtos arcos e seetas e comtas […].” e em posição de coda final: “[…] e os pilotos deuem teer esse cuidado […]”.

O grande uso de n antes de p e b, quando na tradição, ficou com m e nunca n: “[…] e senhos cascaues e senhas campainhas […]”. Já na posição de coda final, a autora salienta que palavras não verbais apresentam letra m: “[…] e chegaríamos a esta amcorajem aas x oras pouco mais ou menos […]”.

No caso dos verbos na terceira pessoa do plural com o pronome oblíquo enclítico agrupado, a tendência é a nasal vir representada por n: “[…] mostraranlhes huũ papagayo pardo que aquy ocapitam traz […]”. Entretanto, com o pronome se, é representada por m: “[…] e olhandonos e asentaramse” […]”. (CAGLIARI, 2001).

Segundo Sousa (2007), no que diz respeito à nasalidade representada pelo til, observam-se as seguintes funções: representar a abreviatura de palavras e representar a nasalidade vocálica de vogais e ditongos. Quando utilizado no meio das palavras, o til nasaliza as vogais e indica a ausência de uma consoante nasal na escrita: “[…] e quãdo se sancho de toar rreclheo aanaao querianse vijr cõ ele alguũs mas ele nõ qujs se nõ dous qujs […]”.

Outro aspecto de nasalidade bastante comum na Carta de Caminha, ainda utilizando o til, é a das vogais duplicadas: “[…] soomente deulhes huũ barete vermelho e huũa carapuça de linho […]”. Para Cagliari apud Sousa (2007), em palavras com vogais duplicadas, o til tem por função apenas representar a nasalidade vocálica, já que se uma consoante nasal fosse introduzida entre essas vogais, seria interpretada como consoante de onset e não de coda. Se, por outro lado, introduzisse a consoante nasal após a segunda vogal, além de desfazer o ditongo final de palavras como mãão e chãão, a escrita seria um tanto estranha.

Quanto às vogais orais simples, para Paiva apud Rodrigues [20–?], com a passagem do latim para o português, elas se alteraram constantemente. Tal fenômeno acontece com frequência no nosso corpus: apaceficar > apacificar, berberja > barbárie, certeficar > certificar, deligençia> diligência, dereito > direito, estamego > estômago.

Com relação aos substantivos e verbos, Rodrigues [20–?] diz que os terminados em am, an, om, on são facilmente encontrados na Carta: “[…] ao qual monte alto o capitam pos nome o monte pascoal […]”. Os substantivos evoluíram para ao: capitam > capitão, adoraçom > adoração, navegaçom > navegação. E as formas verbais passaram para am ou ão: acharom > acharam, ficarom > ficaram, mesturaran > mesturaram.

A forma atual do advérbio não é quase sempre grafada por nom, e no século XV. No nosso objeto de análise, essas grafias são verificadas em diversas passagens, como podemos citar: “[…] nom leixarey tam bem de dar disso minha comta a vossa alteza […]”. Também observamos o uso constante da consoante /j/ com valor de vogal: “[…] a jente que aly era nõ serja mais Ca aquela que soya. […].”, por exemplo.

O galego-português medieval distinguia quatro fonemas sibilantes (/ts/, /s/, / dz/ e /z/) que se conservam durante o século XV e, somente por volta de 1550, começam a aparecer confusões na grafia (TEYSSIER, 1997; RODRIGUES, [20–?]; MATTOS E SILVA, 2006). Curiosamente, Pero Vaz de Caminha terá cometido então alguns equívocos grafando ç no lugar de grafar c: “[…] pero huũ deles pos olho no colar do capitam e começou daçenar cõ a maão pera a terra e despois pera o colar […]”.

Embora o s forte com som de ss já venha grafado no início e no interior das palavras, em outros corpora do mesmo período de escrita da Carta, assim, constamos nela a grafia de apenas um s nos vocábulos: “[…] o capitam quando eles vieram estaua asentado em huũa cadeira e huũa alcatifa aos pees por estrado […]”. Já com relação ao r, apesar de Teyssier (1997) apontar que o r forte no português arcaico pudesse vir duplicado tanto no final como no começo da palavra, verificamos, no corpus, a ocorrência da duplicação apenas no início: “[…] trouucos logo ja de noute ao capitam omde foram rrecebidos com muito prazer e festa. […]”.

Percebemos também várias aglutinações de clíticos aos verbos usadas por Caminha, talvez devido a não uniformidade da escrita como pelo fato de haver divergências na pronúncia: “[…] e entã voluemonos aas naaos ja bẽ noute […]”. Também verificamos a variação na grafia de algumas consoantes: o v por b: “[…] aleuantaranse mujtos deles e tanjeram corno ou vozina e comecaram a saltar e dançar huũ pedaço […].”; o b por v: “[…] e neeste dia a oras de bespera ouuemos vjsta de terá […].”; o m por n e vice-versa: “[…] do emsino que dantes tijnham poseram todos os arcos e acenauam que saisemos […].”; e o g por j: “[…] eles dariam seos leuasem por seer jente que njmguem emtende […]”.

3.2. MORFOSSINTAXE

3.2.1 OS SUBSTANTIVOS E ADJETIVOS

Oliveira (2005), num convincente trabalho sobre os deverbais no vocabulário da Carta de Pero Vaz de Caminha, elencou uma grande quantidade de substantivos e adjetivos oriundos de verbos. Tal fato se dá dentro do processo de formação das palavras: derivação progressiva, derivação sufixal, derivação sufixal e prefixal, derivação parassintética, derivação regressiva e derivação por particípio.

Quanto ao número dos nomes, o morfema de plural do português arcaico é o mesmo do contemporâneo, o –s. Os exemplos são inúmeros no corpus, facilmente notados, não precisando, portanto, arrolarmos uma lista. Além disso, o plural das palavras terminadas em –l varia conforme precedido de a, e, o, u ou i: taaes > tal: “[…] e sua vergonha que ela nõ tijnha tam graçiossa que amujtas molheres de nosa trra vendolhe taaes feições fezera vergonha por nom teerem asua comeela […]”., por exemplo.

No que diz respeito à alomorfia de gênero, Mattos e Silva (2006) diz que, do período arcaico para os dias atuais, se encontram identidades e diferenças nesses processos derivacionais como percebemos em: galo/galinha, abade/ abadessa (iguais aos atuais) e prior/ prioressa, judeu/ judea (diferentes dos atuais).

3.2.2 OS ARTIGOS

Para Rodrigues [20–?], os artigos definidos no português arcaico já apareciam com as formas atuais o, a, os e as. Percebemos a presença dessas formas no nosso objeto de análise: “[…] posto que o capitam moor desta vossa frota e asy os outros capitaães scrpuam a vosa alteza a noua do achamento desta vossa terra noua […]”.

Também observamos a variação do artigo definido masculino singular o em ho: “[…] como eles viram ho esqujfe debertolameu dijz chegarãse logo todos aagoa metendose neela ataa onde mais podiam […]”. Constatamos o alomorfe los, cuja ocorrência se dá quando precede o artigo em termos terminados em s: “[…] evieram logo todolos capitaães das naaos aesta naao do capitam moor e aly falaram […]”.

Rodrigues apud Mattos e Silva (2007) anota que huũ, hũa e seus compostos eram grafados sem a fusão ou transformação de vogais (> um, uma). Caminha adota as grafias huũ, huũa, hũa e variações: “[…] soomente deulhes huũ barete vermelho e huũa carapuça de linho […]” e a utilização do pronome el, que é um artigo de origem castelhana, associado ao rei, o El-Rey: “[…] Carta de pº Vaaz decaminhadodescobrimẽto datrra noua q᷃ fez pº Alvarez/ A El Rey noso Sn᷃or […]”.

3.2.3 OS ADVÉRBIOS

Segundo Mattos e Silva (2006), no português arcaico, os advérbios são divididos em locativos (aqui, aça, ali, alá, aló, hy ~ hi ~ i ~ , e em ~ ende, aquém e além), interrogativos (hu ~ u e onde), temporais (ora ~ agora, enton, , ainda ~ inda, nunca e sempre) e modais (assi, outrossi).

No corpus, percebemos a existência do sistema de dêiticos demonstrativos subdividido em dois subsistemas: um ternário e outro binário (aqui, , ali; , ), fenômeno esse observado do século XIV para o XVI (TEYSSIER, 1981). Não detectamos a presença do anafórico ende, como é descrito no português arcaico, porém o hy foi observado com variação.

3.2.4 AS PREPOSIÇÕES

Quanto às preposições, Câmara Júnior (1985) classifica-as quanto à origem (de dês), direção (ata ~ atẽẽ ~ atẽẽs), percurso (per, por), associação/ exclusão (com, sem, fora ~ foras, tirado, salvo), situação (en), anterior/posterior (ante a, ante de, perante, deante, depos ~ despois ~ depois de/ depois a, após ~ empós a, cabo de ~ acabo de), próxima/ distante (preto de ~ a preto de, cerca de, longe de), interior/exterior (dentro en/ a, fora de), superior/inferior (sobre, de /em/ per a cima de, , em fundo de), circudante (arredor de ~ derredor de), intermediária (antre ~ entre ~ ontre ~ inter) e confronto (contra, escontra, ex contra).

Na obra analisada, foram encontradas as preposições: de (ocorre frequentemente aglutinada a palavras iniciadas por vogal ou h), a, pera (para), ataa (var. até), per (var. por), com (var. ; lat. com < cum), sem (lat. sem < sine), ante, perante, despois (var. depois), segundo, dentro, em, sobre, arredor de, entre (var. amtre, antre, ater; lat. antre < entre < ontre < inter) e comtra (var. contra). Não encontramos a presença das preposições conforme e consoante, uma vez que ainda não eram utilizadas no século XV (MATTOS E SILVA, 2006).

3.2.5 OS NUMERAIS

Referindo-se aos numerais, Said Ali (1964) informa que, no período arcaico tal como hoje, eles eram expressos pelos cardinais, ordinais, fracionários, multiplicativos e distributivos, porém os cardinais apresentavam diferenças de formas decorrentes de regras de natureza não aplicadas como: dous, triinta, quarenta, por exemplo.

Na Carta, os cardinais representados em forma extensiva são: dois (var. dous), três, um, huũ, huũa, hũa. Quanto à sua representatividade, os numerais apresentam uma característica peculiar: há uma mistura de numerais romanos com letras: “[…] do que ey de falar começo e diguo. que apartida de belem como vosa alteza sabe foy segª feira ix de março. E sabado xiiij do dito mes amtre as biij e ix oras […]”.

3.2.6 AS CONJUNÇÕES

Do mesmo modo do português moderno, as conjunções delineadas no português arcaico têm a mesma classificação: coordenadas e subordinadas. No nosso objeto de análise, as orações subordinadas encontradas foram:

  • Temporais – que, quando, enquanto, tanto que: “[…] e asu segujmos nosso caminho per este mar de lomgo ataa terça feira doitauas de pascoa que foram xxj dias dabril que topamos alguũs synaaes de terá […].”;
  • Causais – que, porque, var. por que por q᷃: “[…] jsto nom querjamonos emtender porque lho nõ aviamos de dar […].”;
  • Finais – que, para, var.: pera: “[…] e nicolaao coelho lhes fez sinal que posesem os arcos […].”;
  • Modais – assim como, var.: asy como: “[…] não leixarey tam bem de dar disso comta a vossa alteza assim como eu milhor puder […].”;
  • Consecutivas – que, tanto, de maneira: “[…] a noute segujmte ventou tamto sueste cõ chuuaçeiros que fez caçar as naaos […].”;
  • Conformativas- segundo, como, var.: coma e come: “[…] e diguo que a partida de Belém como vosa alteza sabe foy segº feira ix de março[…].”;
  • Condicionais – que, se: “[…] e começou daçenar cõ a maão pera ocolar como que nos dezia que avia em terá ouro […].”;
  • Concessivas – ainda que, como, quer que: “[…] nom leixarey tam bem de dar disso minha comta a vossa alteza asy como eu milhor poder ajmda que pera o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer […].”;
  • Comparativas – que, como, ca: “[…]os cabelos seus sam coredios e andauã trosqujados de trosquya alta mais que de sobre pemtem de boa gramdura […].”;
  • Proporcionais- enquanto: “[…] E em quanto faziamos a lenha. faziam dous carpenteiros huũa grande cruz dhuũ paao que se omtem pera ysso cortou […]”.

Já as coordenadas observadas foram:

  • Aditivas – e, nem, var.: nẽ: “[…] eles folgauam e rriam e amdauam cõ ele muy bem ao soõ dagaita […].”;
  • Adversativas – pero, mas, porém, var.: porem, contudo, var.: cõ tudo, ca: “[…] pero tome vossa alteza minha jnoramçia por boa vomtade. […].”;
  • Disjuntivas ou alternativas – nem: “[…] a qual bem certo crea q᷃ por afremosentar nem afear aja aquy de poer mais ca aquilo que vy e me pareçeo […].”;
  • Conclusivas – portanto, var.: por tanto, por tamto: “[…] e por tamto Sn᷃or do que ey de falar começo e diguo […].”;
  • Explicativas – pois, ora: “[…] ora veja vosa alteza quem em tal jnocemçea vjue […]”.

3.2.7 OS PRONOMES

Paiva apud Rodrigues [20–?] diz que a forma lhe no português arcaico era invariável e, somente séculos mais tarde, passou a ter flexão no plural. Na Carta de Caminha, aparecem ambas as formas.

Outros pronomes pessoais encontrados foram: 1ª pessoa – eu, nos, me, mim, var.: my, conosco, 2ª pessoa – vos e 3ª pessoa – ele, eles, elas, o, var.: ho, lo, los, se, var.: sy, consigo, var.: comsigo, cõsigo. Não constatamos a presença de homem com valor de pronome, como descrito no português arcaico, e muito menos a presença de a gente com valor de nós.

Os pronomes demonstrativos encontrados foram: este, esta, esto, isto, esse, esse, esa, essa, isso, aquele, aquela e aquilo. Já os possessivos identificados, citamos: meu, minha, noso, nosso, nosa, nossa, voso, vosso, vosa e vossa. Além disso, os indefinidos que achamos foram: todo, toda, tudo, nhuũa, nhuũ, nenhuũ, nhũa, cada, qualq᷃r, quallq᷃r, alguũ, alguũa, algũa, alguém, outro, tanto e quanto. E os relativos: que, cujo, quem, onde (var.: omde), como, (var.: coma, come), quanto e qual.

3.2.8 VERBOS

Mattos e Silva apud Rodrigues [20–?] afirma que ocorriam, no português arcaico, as construções ser, haver/ter + particípio passado (PP), indicando um “ato consumado”. Os particípios passados da segunda conjugação terminam em udo (que vão ceder lugar a – ido). Interessante é que, na Carta, não se observam essas construções e muito menos ter/haver + PP, muito encontrado em textos de períodos anteriores.

O imperfeito já tinha a configuração atual: achauam, daua, dauamos, dauam, tijnha, indicando ações inconclusas (este tempo verbal vinha do infectum latino). Quanto à síncope do [d] intervocálico, as marcas flexionais da segunda pessoa do plural das formas verbais não procedem para esse corpus, uma vez que vós, neste contexto, está representado por vossa alteza, locução pronominal da 3ª pessoa do singular.

Observamos também certa ascendência do verbo ter sobre haver com sentido de posse, tão comum para o período, apesar de se registrar alguns casos isolados do verbo haver com sentido de posse como verificamos em: “[…] a qual bem certo crea q᷃ por afremosentar nem afear aja aquy de poer mais ca aquilo que vy e me pareceo […]”. Na Carta, Caminha utiliza-se do verbo leixar, aquele mais próximo da etimologia latina, em preferência a deyxar, vocábulo que não se registra no documento: “[…] pregumtou mais se seria boo tomar aquy per força huũ par destes homeẽs.pera os mandar a vosa alteza.e leixar aquy por eles outros dous destes degradados.[…]”.

Quanto à estruturação sintática, no século XV, havia uma construção comum: o uso de distributivos – delles, dellas outros, outras ou uns, umas, alguns, algumas outros, outra: “[…] huũs daua huũ cascauel e aoutros huũa manjlha […]”. Quanto à ordem das frases com verbos transitivos utilizada no período arcaico, Mattos e Silva (2006) afirma que a ordem “direta” ou “normal” é a SVC (sujeito/verbo/complemento), mas há presença, também, das seguintes ordens: SCV, VSC, VCS, CVS e CSV. No nosso objeto de análise, foi encontrada com predominância a estrutura normal, ou seja, SVC, porém as demais também foram constatadas.

O estudo dos aspectos linguísticos encontrados na Carta de Caminha é exaustivo e requer uma análise minuciosa dos aspectos diacrônicos da língua. Todavia, consideramos pertinente a brevidade descritiva de cada fenômeno estudado, uma vez que o nosso objetivo não era copilar um tratado estritamente diacrônico de todos os fenômenos analisados no corpus, mas sistematizar as hipóteses suscitadas por Mattos e Silva (2007) sobre a delimitação final do português arcaico para a primeira metade do século XVI.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por se tratar de um documento do final do século XV e início do século XVI, ou seja, o findar do período arcaico e o início do período moderno da língua portuguesa, a Carta de Pero Vaz de Caminha apresenta características peculiares de um texto de transição. Conforme as hipóteses de Mattos e Silva, algumas características do português arcaico se estendem até a 2ª metade do século XVI, outras não ultrapassariam a 1ª metade do século XV, e, por fim, há as que desaparecem nos fins do século XIV.

Consoante análise do corpus, pudemos constatar que essas hipóteses se confirmam nos resultados apresentados:

  • as mudanças finais, tais como: a uniformização das nasais finais <- ã >, < õ > no ditongo nasal < ão >; embora haja alguns vocábulos terminados <ão>. De maneira geral, não há um consenso na grafia, tendo em vista a escrita de muitos vocábulos com três variantes <om>, <an> e <ã>;
  • a questão dos hiatos do português arcaico que tiveram cinco diferentes resultados: 1. ditongo decrescente (malu > mão > mau); 2. ditongo crescente (volare > voar > v [w] ar); 3. tritongo (tela > tea > teia); 4. duas sílabas (nidu > nı᷃o > ninho); 5. uma sílaba (sede > see > sé). Essa hipótese encontrou sustentação em 4 (vı᷃o > vinho) e 5 (creer > crer; maão > mão). Em 3 observamos o adjetivo “meia” (var. mea > meia) como único exemplo da variação moderna de tritongo. 1 e 2 conservam as formas arcaicas;
  • uma mudança fônica do [d] intervocálico nas marcas flexionais da segunda pessoa do plural das formas verbais (vós – 1ª, 2ª e 3ª – ar, er e ir) não procede para esse corpus, uma vez que vós, nesse contexto, está representado por vossa alteza, locução pronominal da 3ª pessoa do singular;
  • a simplificação de quatro fonemas sibilantes (/ts/, /s/, /dz/, e /z/) com o surgimento de confusão por volta de 1550. Constatamos a presença da confusão da grafia no nosso objeto de análise;
  • a regularização da vogal temática <u> dos particípios passados dos verbos regulares da 2ª conjugação (u-do > i-do), por exemplo: sabudo > sabido. Foi encontrada apenas a forma moderna para esse particípio;
  • observa-se o sistema de dêiticos demonstrativos subdividido em dois subsistemas: um ternário e outro binário (aqui, aí, ali; cá, lá). Não foi detectada a presença do anafórico ende e o hy foi observado com variação no corpus;
  • conjunções típicas do português arcaico; raro uso de ca; ausência de pois etimológico, isto é, temporal; ausência de pero e porén com sentido etimológico explicativo; ausência das conjunções mais, pero, ergo, marcar que, que (condicional e modal), para se, para que, em / de / per guisa que, segundo que, segundo como, almeos que, entre que, cada que, ao mesmo tempo que, sol que. Estes itens caíram em desuso nos séculos XIV e XV;
  • predominância do verbo ter sobre haver com sentido de posse, tão comum durante o período do português arcaico, embora ainda se registrem alguns casos isolados. Na Carta, ainda se constata o verbo ser com sentido de estar;
  • raros casos de tempo composto no corpus;
  • SVC é a ordem sintática mais comum, porém outras ordens, SCV, VSC, VCS, CVS e CSV não são menos utilizadas;
  • a próclise tem predominância sobre a ênclise, o que confirma a fase de transição; e
  • quanto à pronominalização de homem, não foi encontrado esse vocábulo com essa função, porém na de substantivo.

Diante do exposto, concluímos que a Carta de Pero Vaz de Caminha é um verdadeiro testemunho linguístico para o estudo da transição do português arcaico para o

moderno, confirmando então, neste corpus, o período final daquele para a primeira metade do século XVI, tal como foi proposto pela pesquisadora Mattos e Silva (2007).

Portanto, pudemos confirmar o que nos propomos a analisar, embora o tenhamos feito de maneira superficial. No entanto, a realização deste trabalho abriu novas perspectivas para outras pesquisas tanto no mesmo objeto de nossa análise quanto em outros documentos do português do Brasil referente aos séculos do período colonial.

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1Mestre em Ciências da Educação com graduação em Letras e pós-graduação em Língua e Literatura Brasileira [UECE- Universidade Estadual do Ceará].