A BUSCA DE SENTIDO NO CAMINHO DA INDIVIDUAÇÃO: DE ALUNA MULTIRREPETENTE A PROFESSORA DE ENFERMAGEM

THE SEARCH FOR MEANING ON THE PATH TO INDIVIDUATION: FROM MULTI-REPEAT STUDENT TO NURSING PROFESSOR

LA BÚSQUEDA DE SENTIDO EN EL CAMINO HACIA LA INDIVIDUACIÓN: DE ESTUDIANTE MULTIREPETIDOR A PROFESOR DE ENFERMERÍA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10248111049


Erika Patricia De Sousa Camelo
Constantin Xypas


Resumo

O presente artigo relata um estudo de caso de uma professora de enfermagem, filha de pais semiletrados, de origem popular, que mediante uma narrativa autorreflexiva actancial, propõe a busca de sentido no caminho da individuação. No decorrer deste escrito, chegou-se às seguintes perguntas norteadoras: como uma menina que reuniu todas as condições para fracassar nos estudos, inclusive preconceitos e bullying, conseguiu não só se tornar enfermeira, mas professora de enfermagem? Será que esse estudo de caso pode esclarecer condições sociológicas e psicológicas pouco estudadas na literatura sociológica sobre o êxito improvável? Esta pesquisa é ancorada nas teorias de resiliência a partir de Bourdieu e Passeron (1964, 1970), Bernard Charlot (2005), Boris Cyrulnik (2004) e Viktor Frankl (2021). Objetiva-se, portanto, compreender, o que explica o êxito de uma menina de origem popular e filha de pais semiletrados tornar-se professora de enfermagem. 

Palavras-chave: Narrativa autorreflexiva actancial; Relação ao saber; Resiliência; Individuação.

Abstract

This article reports a case study of a nursing teacher, daughter of semi-literate parents, of popular origin, who, through an actantial self-reflective narrative, proposes the search for meaning in the path of individuation. In the course of this writing, the following guiding questions were reached: how did a girl who met all the conditions to fail in her studies, including prejudice and bullying, manage not only to become a nurse, but also a nursing teacher? Does this case study shed light on sociological and psychological conditions little studied in the sociological literature on unlikely success? This research is anchored in theories of resilience from Bourdieu and Passeron (1964, 1970), Bernard Charlot (2005), Boris Cyrulnik (2004) and Viktor Frankl (2021). The objective is, therefore, to understand what explains the success of a girl of popular origin and daughter of semi-literate parents becoming a nursing teacher.

Keywords: Actantial self-reflective narrative; Relationship to knowledge; Resilience; Individuation.

Resumen

Este artículo relata un estudio de caso de una profesora de enfermería, hija de padres semianalfabetos, de origen popular, que, a través de una narrativa autorreflexiva actancial, propone la búsqueda de sentido en el camino de la individuación. En el transcurso de este escrito, se llegó a las siguientes preguntas orientadoras: ¿cómo una niña que reunía todas las condiciones para fracasar en sus estudios, incluidos los prejuicios y el acoso escolar, logró no solo convertirse en enfermera, sino también en profesora de enfermería? ¿Este estudio de caso arroja luz sobre las condiciones sociológicas y psicológicas poco estudiadas en la literatura sociológica sobre el éxito improbable? Esta investigación está anclada en las teorías de resiliencia de Bourdieu y Passeron (1964, 1970), Bernard Charlot (2005), Boris Cyrulnik (2004) y Viktor Frankl (2021). El objetivo es, por lo tanto, comprender qué explica el éxito de una niña de origen popular e hija de padres semianalfabetos para convertirse en maestra de enfermería.

Palabras-clabe: Narrativa autorreflexiva actancial; Relación con el conocimiento; Resiliencia; individuación.

Introdução

O trabalho que descrevo é uma tentativa de apontar caminhos para o entendimento de uma longa e resiliente trajetória de individuação estudantil até tornar-se docente de enfermagem. Nesse contexto, que emergiram as inquietações, me fizeram chegar às seguintes perguntas norteadoras: como uma menina que reuniu todas as condições para fracassar nos estudos, inclusive preconceitos e bullying, conseguiu não só se tornar enfermeira, mas professora de enfermagem? Será que esse estudo de caso pode esclarecer condições sociológicas e psicológicas pouco estudadas na literatura sociológica sobre o êxito improvável?

Portanto, já na introdução, gostaria de deixar dito que falo da minha própria individuação e todo o percurso percorrido até a narrativa desse artigo. Foi a partir do início das aulas com um professor tutor de resiliência, dentro da modalidade de “aluna especial”, do programa de mestrado em Educação em Ciências e Matemática, com a disciplina, “em busca do bem- estar docente e do alto desempenho na profissão docente”, que se deu início a construção da narrativa autobiográfica, sempre motivada por nosso docente da componente então citada. 

Estudos de Bourdieu e Passeron (1964; 1970) apontam que filhos de famílias de classe popular teriam maiores probabilidades de fracassar, enquanto filhos de famílias de classe média seriam “predestinados” ao sucesso nos estudos. Quanto ao êxito pelos estudos de origem popular, explica-se que ocorre de maneira marginal, ou seja, “estatisticamente improvável” sem que se esclareça como ocorrem.

As pesquisas de Bernad Charlot (2000; 2009) e de sua equipe, apontam que as questões do fracasso e do sucesso escolar não podem ser reduzidas a uma correlação estatística, a partir da origem social do sujeito, como defendiam as teorias da reprodução. Para Charlot, as teorias de herança cultural não conseguem explicar o caso de alunos de famílias pobres que conseguiram êxito e tiveram ascensão social; nem o caso de alunos de classe média e alta que não tem vontade de aprender. Nesse sentido, as teorias de reprodução,

“deixam fora do seu campo a história singular dos alunos no sistema escolar (encontros, acontecimentos etc.)” (Charlot, 1997, p. 48). Para além da origem social, é preciso analisar a individualidade do sujeito.

Inicialmente, sentia que minha história de vida não era tão motivacional, a ponto de virar artigo em forma de narração autobiográfica, no entanto, toda turma teve um incentivador para nos dá apoio e autoconfiança na construção e elaboração do nosso trabalho. Essas aulas me possibilitaram entender e reproduzir melhor estruturas sociais e como alunos de origem popular conseguem construir sentido aos estudos até concluírem graduação e mestrado. 

Conscientes, assim, da individualidade e subjetividade de um sujeito que tem desejos e vontades próprias, objetivamos, neste trabalho, compreender o que explica o êxito de uma professora de origem popular e filha de pais semiletrados, através de uma “leitura em positivo” da história de uma menina multirrepetente (Valentina[1]) que se tornou professora de Enfermagem.

A fim de termos nosso objetivo alcançado, buscamos pesquisas que pudessem contribuir com a construção desta, e encontramos alguns trabalhos que tem como abordagem o êxito improvável de alunos de origem popular. Inclusive as pesquisas de Xypas e Cavalcanti (2022) que tem os testemunhos do êxito escolar de filhos de pobres semiletrados, moradores de zona rural do Nordeste, que apresenta a luta destes pela busca ao saber e pela ascensão social. Estes filhos pobres vieram a se tornar professores, mestres e doutores, apesar de sua origem social. 

A partir de uma leitura detalhada de tais casos, percebemos uma forte correlação entre tutores de resiliência e a mobilização de alunos de origem popular, no processo de construção de relação ao saber. Enfim, ancoramos nossa fundamentação teórica na articulação de duas teorias que até hoje se cruzavam: a relação ao saber e a teoria da resiliência. Desse modo, este texto será estruturado da seguinte forma: primeiro trazemos uma abordagem teórica da relação ao saber e da resiliência: em seguida, apresentamos a metodologia utilizada na pesquisa; posteriormente a narrativa actancial da professora investigada, intercalada por nossos comentários pessoais enquanto pesquisadores.

2.  Referencial teórico

 Pesquisas sobre o estudo de casos de alunos pobres e que conseguiram a individuação através da busca pelo sentido alcançado no êxito pelos estudos e, em particular, a história de Valentina, convenceram-nos de que a complexidade de sua narrativa não dá para ser explicada por uma única teoria. Entretanto, o arcabouço teórico que serve a interpretação da narrativa autorreflexiva actancial descrita neste capitulo trará uma teoria interdisciplinar, a partir dos estudos de Bourdieu e Passeron (1964, 1970), Bernard Charlot (2005), Boris Cyrulnik (2004) e Viktor Frankl (2021).

2.1.  Sujeito e sua origem social

 Os sociólogos Bourdieu e Passeron demonstraram que, em âmbito macrossociológico, existe uma correlação estatística entre o desempenho escolar e a origem social familiar do sujeito, através das publicações de Herdeiros (1964; 2014) e da Reprodução (1970; 2008). Nessa perspectiva, alunos de classe média tendem a ser exitosos, enquanto filhos de classes populares estão predestinados ao fracasso.

Desse modo, segundo a sociologia de Bourdieu e Passeron (2014, 2008), o sucesso ou insucesso depende principalmente da educação que pais dão aos seus filhos. Essa herança seria oriunda da transmissão de capital cultural (aquilo que é recebido da família pelo nível de instrução de um dos pais ou parente, que, por exemplo, estudou em um curso superior). Nesse sentido, a herança também decorreria da transmissão de habitus (disposições inconscientes, tais como comportamento e valores, os quais são estimados pela escola) e ainda da transmissão de um ethos de ascensão social (incentivo de alguém da família, que instigue o aluno a se mobilizar). Essas predisposições, embora válidas, acabam atribuindo o sucesso escolar apenas a fatores externos e desconsideram o esforço individual dos estudantes, bem como, a existência de ascensão social, por meio dos estudos.

Com base nos estudos de transmissão de comportamento – capital cultural, habitus e ethos de ascensão social – os sociológos Bourdieu e Passeron (2014; 2008) compreendem que esses movimentos inconscientes, demandados estruturalmente pela família, corroboram com um sistema escolar que reforça a reprodução das classes sociais, de forma a perpetuar as desigualdades.

As pesquisas de Bourdieu e Passeron (2014, 2008), representam um avanço, no que diz respeito à sociologia do sujeito. Contudo, foram construídas tomando como base pesquisas desenvolvidas no cenário francês, em que as escolas públicas e privadas não se diferenciam como nas escolas brasileiras. Nesse sentido, o cenário brasileiro necessita de novas pesquisas, como um país em desenvolvimento, em que “existe, ao lado da reprodução social, outra realidade social: a ascensão social pelos estudos de gente oriunda de classe popular” (Xypas, 2017, p.3). Ora, por essa constatação, torna-se evidente que a teoria bourdieusiana deve ser estudada, lavando em consideração a realidade de alguns alunos brasileiros que conseguiram, apesar dos poucos capitais culturais, serem exitosos. São esses casos improváveis, ao qual esse trabalho se dedicará em analisar.

2.2.Êxito e fracasso escolar

 Bernard Charlot (2000) defende que o sucesso e o fracasso escolar não se podem explicar unicamente a partir de transmissão do comportamento que os filhos herdaram dos pais, antes é preciso considerar a individualidade do sujeito e considerar que eles têm desejos e vontades próprias, capazes de lhe conferir êxito ou não nos estudos. 

No artigo Relação com a escola, relação com o saber e ensino da matemática, Charlot e Bautier (1993) demonstram uma insatisfação com a teoria da reprodução e, apesar de considerarem válida a correlação estatística entre a origem social e o êxito ou o fracasso escolar do sujeito, consideram:  

igualmente que existem casos atípicos: crianças de famílias humildes tem sucesso na escola, contra toda probabilidade estatística, e crianças de família favorecidas, fracassam. Contudo não há nenhuma fatalidade nesse domínio: a origem social não determina o sucesso ou o fracasso escolar (Charlot; Bautier, 1993, p.2).

Como visto, não se trata de determinismo, mas das particularidades inerentes a cada sujeito. Charlot (1993; 2000; 2005; 2009) é um estudioso acerca da problemática do fracasso escolar em meios populares, defendendo a ideia de que “o “fracasso escolar” não existe; o que existe são alunos fracassados, situações de fracasso, histórias escolares que terminam mal” (Charlot, 2000, p. 16). Nesse sentido, a singularidade das histórias do sujeito se faz presente, e muitas vezes são orientadas por conflitos sociais e subjetivos. 

Do ponto de vista de Charlot (1997) “as teorias da reprodução não dão muita importância às práticas de ensino nas salas de aula e as políticas especificas dos estabelecimentos escolares” (Charlot, 1997, p. 49). Nesse sentido, é difícil pensar que a escola não tenha qualquer envolvimento com o sucesso ou o fracasso dos estudantes. Quando na visão de Charlot, é justamente a relação que o aluno tem com o saber que determinará o seu crescimento.

2.3.  Relação ao saber: um olhar no caminho da individuação

 A noção da relação com saber é definida como sendo “a relação de sentido, e então de valor, entre um indivíduo e o saber como produto ou processo” (Charlot, 1996, p. 3). 

 O sentido e o valor atribuídos ao “saber” e ao “aprender” foram estudados por Charlot (1993), em termos de compreender a relação entre o ensino. Nesse sentido o sociólogo também se propõem em estudar a relação ao saber onde afirma que: é a relação de sentido e de valor de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender. “A questão do saber deve, primeiramente, ser posta em termos de sentido: o sentido dos conteúdos e das atividades propostas pela escola, o sentido que o saber e o fato de aprender apresentam aos alunos, o sentido mesmo de suas presenças na escola”
(Charlot; Bautier, 1993, p. 3) 

Nessa perspectiva, o aproveitamento escolar do aluno é pensado em termos de sentido – desejo – mobilização – atividade: quanto maior for o sentido atribuído ao saber, maior será o desejo de aprender e, consequentemente, maior a mobilização do estudante pelo saber, de modo a culminar em uma atividade intelectual.

Charlot (2005), ao realizar pesquisas com estudantes franceses identifica quatro ideal-tipos de relação ao saber, de sorte que quanto maior a mobilização do aluno, maior será sua relação ao saber. Logo mais, o ideal-tipos são categorizados por Xypas e Cavalcanti (2020) como níveis de mobilização da relação ao saber, são eles: 

  1. Completamente perdidos na disciplina escola – O primeiro nível da relação ao saber corresponde aos alunos perdidos na escola, os quais são aqueles que estão matriculados, mais não encontram razão de estar na sala de aula, estudando conteúdos que não tem interesse em aprender.
  2. Sobreviventes na escola – Nesse nível são classificados os alunos que se importam apenas com a nota, para eles é suficiente passar de ano e ir para a série seguinte, conseguindo, por fim, o tão esperado diploma. 
  3. Muito bem sucedidos na escola – Nesse nível, encontram-se os alunos dedicados, com uma boa mobilização nos estudos, contudo, estudar é uma motivação gerada pela nota que conseguiram. 
  4. Intelectuais – São aqueles cujo processo de estudar e aprender se tornaram uma segunda natureza, por tanto, não conseguem parar de fazê-lo. Estão sempre em busca de mais conhecimento e encontram prazer nisso. “encontram-se na classe média e raramente na classe popular”

A compreensão do que leva um aluno a atribuir sentido ao saber, o que lhe causa desejo de aprender e, ainda mais, o que lhe motiva a mobilizar-se, nas teorias de reprodução não se trata apenas de determinismo social, por exemplo, trata-se de levar em consideração que o sujeito é também uma história de singularidade e a história escolar não é uma simples ilustração de probabilidade estatística, “ela é uma história no sentido pleno dos termos, com encontros, acontecimentos inesperados e imprevisíveis”. (Charlot; Bautier, 1993, p. 3). Apesar de toda probabilidade estatística, o sujeito consegue ter êxito e ascensão social, é o que desvela os aspectos positivos dessa história.

Os casos de alunos que, embora advindos de condições desfavoráveis, conseguem ter êxito e ascensão social pelos estudos são vistos por Charlot como igualmente reais, apesar de ser consciente da correlação estatística entre o sucesso ou fracasso escolar. Como é possível que filhos de pais semiletrados, com pouco ou nenhum de capital cultural, habitus, e ethos de ascensão social, consigam alcançar êxito por meio dos estudos e tornarem-se ser bem sucedidos? 

Alguns pontos precisam ser refletidos, acerca dos questionamentos a partir da narrativa de Valentina. Desse modo, a partir de uma leitura “em positivo” da sua história, buscamos saber: como uma menina multirrepetente filha de pais semiletrados, construiu sua relação ao saber, chegando a tornarse professora de enfermagem? Para tanto, objetivamos proceder uma leitura em positivo das histórias e das situações escolares, bem como tentar identificar os processos que as estruturaram e estruturam.

É necessário analisar quais elementos conferem mobilização e contribuem para que, apesar das adversidades da vida, alguns alunos consigam ser exitosos. 

Acreditamos que essa mobilização, conferida ao sujeito, é uma resposta ao estimulo de alguém – pai, mãe, parente, vizinho, e/ou professor – responsável(is) por incentivar o(a) jovem a vencer na vida. Ao considerarmos a participação do outro, como fator importante na mobilização do sujeito, evidenciamos que existe uma correlação entre a noção da relação ao saber e a teoria da resiliência.

2.4.  Resiliência: a opção do filho de semiletrados

 Visto que a teoria da resiliência é um subsídio à noção da relação ao saber, através dela podemos analisar como o incentivo de um agente externo (pai, mãe, irmãos, professores) permite a construção do sentido atribuído ao saber pelo sujeito. A partir do contributo da resiliência à noção de relação ao saber, consegue-se analisar como alunos de origem popular que viveram em situações de trauma, como de uma vida extremamente sofrida na infância, com poucas ou nenhuma condições econômicas, conseguem atribuir sentido e valor ao saber escolar, e alcançar êxito pelos estudos.

Contudo, esse trabalho não é uma reformulação da noção da relação ao saber e muito menos um tratado da teoria de resiliência, mais sim, uma contribuição a ambos os estudos, que contribuirá sobre um melhor entendimento sobre o que permite os alunos de origem popular se tornarem resilientes. Afinal, do que se trada a resiliência?

Segundo Cyrulnik, a resiliência é uma resposta de superação de um indivíduo que sofreu um trauma e traumatismo na sua vida (apud Condorelli; Guimarães; Azevedo, 2016). Existem pessoas cuja realidade do trauma ou traumatismo configuram-se como um único acontecimento da vida, como por exemplo: um acidente trágico ou uma agressividade física. Para algumas pessoas o trauma e traumatismo se configuram como uma sucessão de fatos que marcam a passagem de uma infância de dificuldades financeiras e de trabalho infantil para uma vida adulta resiliente, ou seja, uma vida de superação. 

Mas o que vem ser um traumatismo? Aqui não se refere ao momento do choque, da cena ou do acontecimento. O trauma só se transformará em traumatismo conforme a representação posterior que o sujeito elabora.

Condorelli, Guimarães e Azevedo afirmam que “o primeiro golpe provoca a dilaceração do sentido, mais o que realmente dói e ameaça o desenvolvimento do indivíduo, é um segundo golpe: da representação que se faz do acontecimento traumático, o significado que lhe atribui e as emoções que isto gera” (2011, p. 8).

Nesse sentido, Cyrulnik critica todas as ideias que pretendem reduzir o homem a uma única das suas dimensões, como as que pretendem estabelecer uma relação determinista entre condições socioeconômicas e sofrimento psíquico. Para ele, é no entrelaçamento de fatores bioquímicos, psíquicos, sociais, culturais etc. que se produzem o trauma e a resiliência, e promover esta última, avivar as brasas que permitem aos seres humanos transformar seus sofrimentos em poesia, música, narrativa, pensamento, ciência, engajamento social significa, necessariamente, agir também sobre as condições do ambiente, sobre os discursos culturais e as relações sociais, sem cair, porém, na crença ingênua e dogmática de que uma simples mudança destas últimas levaria a uma transformação do homem na sua inteireza. A imensa plasticidade do ser humano, a impossibilidade de qualquer redução dos processos de resiliência a causas únicas e lineares e a faculdade do sujeito de construir o sentido da própria existência representam, a nosso ver, a essência da perspectiva cyrulnikiana sobre a capacidade humana de retomar o próprio desenvolvimento após um trauma.

Outro fator importante para que o sujeito se torne resiliente é o apego. O apego é desenvolvido entre o sujeito e uma figura na primeira infância que pode ser o pai, a mão ou um parente que esteja presente na vida do indivíduo.

No estudo a respeito da teoria do apego, Rodrigues e Chalhub (2009) falam sobre a falta de amor, afeto e apego na primeira infância e suas possíveis consequências na vida adulta. Os autores identificam a existência de três tipos de apego: apego seguro, inseguro e ambivalente.

No estabelecimento do modelo de apego seguro, há uma vinculação afetiva, tranquila na infância, com a principal figura de apego, enquanto que no apego inseguro, geralmente, ocorre uma ameaça continua a acessibilidade da figura de vinculação, e por fim, no modelo de apego ambivalente, existe uma dificuldade de manter relacionamentos duradouros e comprometidos por conta da baixa autoestima em detrimento da deficiência de continuidade na relação de apego, o que por sua vez, produzirá um sentimento de solidão (Rodrigues; Chalhub, 2009, p. 3).

Com base nas ideias de Cabral e Cyrulnik (2015), a respeito dos tutores de resiliência, e de Rodrigues e Chalhub (2009), com relação a teoria do apego, acreditamos que, mesmo quando uma criança de origem popular tenha um apego seguro com os seus pais, a realidade de algumas vidas, marcadas por traumas, diariamente vivenciadas pelo trabalho infantil e as condições econômicas desfavoráveis podem interferir também na história dessa criança, o apego seguro. No em tanto, quando essa criança encontra na escola um professor que lhe incentive e lhe ajude, ela pode desenvolver para com ele um apego seguro. Esse professor é chamado, segundo Cabral e Cyrulnik (2015) de tutor de resiliência.

Com esse estudo, pretendemos apresentar narrativas que são constatadas através das teorias de Cabral e Cyrulnik (2015). Buscamos esclarecer que a noção de relação ao saber e a teoria de resiliência podem explicar aspectos subjetivos, psíquicos e sociais da vida do sujeito, que explicam os fatores que contribuem para que, apesar das adversidades, o sujeito possa atribuir sentido e valor ao saber. Dessa maneira concordamos com Xypas e Cavalcanti (2022) quando evidenciam mostrar as dificuldades encontradas, o sofrimento vivido, os esforços necessários para ultrapassá-los, como também a força psíquica (mobilização e resiliência) dos alunos mobilizados na luta escolar e na mobilização pelo saber e ascensão social. 

Souza e Almeida (2009) destacam que todo relato de experiência é uma interpretação, uma construção, uma interpretação. Nesse sentido, a memória expressa através da fala trata de “esquecer” determinados eventos traumáticos e de ressaltar outros, com novas tintas e misturas de cores, fazendo uma nova leitura dos acontecimentos.

2.5.O educador como tutor de resiliência  

 Somos seres globais onde necessitamos de vínculos para construir uma história coerente e sensata de nós mesmos. Os tipos de apego que construímos nas nossas interações precoces nos impregnam determinadas sensibilidades e estilos relacionais. Mas a construção da nossa resiliência ou do nosso desmoronamento psíquico é um processo que se gesta ao longo de toda a nossa existência. Desde muito cedo, ao afastar-nos da nossa família e da bolha sensorial que esta estruturou ao nosso redor, vivenciamos novos encontros, interagimos com novos ambientes, mergulhamos em novas ecologias de relações e os vínculos que estabelecemos ao longo dessas aventuras afetivas podem reforçar ou modificar profundamente as tendências adquiridas nos nossos primeiros anos. E a partir do momento em que os adultos familiares não preenchem mais a totalidade do mundo da criança, a criação de novos estilos relacionais, de novas maneiras de pensar a si mesmo e de enxergar o mundo tornam-se possíveis. 

Esta “antropologia do vínculo” que Cyrulnik propõe, nos leva a refletir sobre o papel central que o educador, enquanto figura significativa em diversas etapas do desenvolvimento de um indivíduo na sociedade ocidental contemporânea, pode desempenhar na construção da resiliência. Se o encontro é a condição estruturante da nossa identidade, das narrativas sobre nós mesmos, do nosso universo de representações, do nosso mundo emocional e dos nossos estilos relacionais, o educador transmitirá muito mais ao educando, seja ele uma criança, um adolescente ou um adulto, por meio do seu modo de estar no mundo, da sua forma de construir e alimentar relações intersubjetivas que abrangem, necessariamente, todas as dimensões humanas: a cognitiva, a afetiva, a corporal, do que por meio de seus conhecimentos. 

Muitas crianças têm no seu professor favorito um modelo de identificação e fazem de sua escola seu lugar de referência, seu lar, aquele lugar onde “sabem” que possuem fontes de apoio e compreensão, aquele lugar onde o riso e a alegria podem estar presentes, aquele lugar seguro. Neste aprendizado de ser professor, olhar cada aluno como único no desafio do encontro com o novo e permitir a esta criança descobrir(se), construir(se), aceitando-a e sendo fonte de apoio às suas descobertas, confirmando-a na aceitação de si, na descoberta de si e de um autorrespeito que possibilitará uma convivência segura e flexível, permitindo uma transformação permanente a cada desafio, transformação que a torne resiliente. No entanto, os professores não sabem que têm muito mais poder do que imaginam.

Nesse cenário, Cyrulnik (2005) fala que é espantoso constatar o quanto os professores subestimam o efeito da sua pessoa e superestimam a transmissão de seus conhecimentos. Ele escreve que em seus atendimentos psicoterapêuticos, muitas crianças explicam o quanto um professor modificou a trajetória de suas existências por uma simples atitude ou por uma frase, anódina para um adulto, mas perturbadora para a criança. 

2.6.  Sociologia do êxito improvável 

 A sociologia do êxito improvável vem com um olhar lançado a historicidade e subjetividade do sujeito, derivadas de estudos de Bergier e Xypas (2013), surge como uma nova perspectiva de pesquisa que ganha espaço em países em desenvolvimento como o Brasil, onde é comum encontra casos de estudantes de origem popular que conseguiram ascensão social.

Assim, concordamos com Costa e Xypas (2013) quando dizem que “não são raras as trajetórias sociologicamente improváveis no âmbito da educação brasileira” (Costa; Xypas, 2013, p. 25).

 Na perspectiva de Charlot e Bautier (1993), podemos indagar: porque alguns alunos socialmente desfavorecidos atribuem sentido e valor ao saber, enquanto outros que compartilham das mesmas condições sociais não se mobilizam? O que justificam esses casos improváveis?

Partindo desse contexto, trazemos nesse capítulo, a história de Valentina, de origem popular, filha de pais semiletrados, que desde jovem teve que aprender a conciliar estudos e trabalho e, apesar de todas as adversidades encontradas no seu caminho, consegue se tornar professora de enfermagem.

3.  Metodologia 

 Mediante o nosso objeto de estudo de compreender o que explica o êxito de uma professora filha de pais semiletrados, buscaremos também compreender a importância dos tutores de resiliência no êxito, a partir dos estudos. Nesse sentido, vale destacar que a presente pesquisa se trata de uma narrativa autobiográfica, utilizando o processo autorreflexivo actancial, onde o narrador estudou a teorização e ele mesmo irá elaborar a construção do sentido, enquanto parte da dissertação. Com o intuito de evitarmos a “Ilusão Biográfica”, denunciada por Bourdieu (2011)  

 Diante desse pressuposto, salientamos ainda que nossa pesquisa tem natureza qualitativa e exploratória. A pesquisa qualitativa: 

Trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores, e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como sendo parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mais por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes (Miayo, 1993, p. 21).

 Ademais, é exploratória por buscarmos explorar o mundo subjetivo da nossa participante. Como recurso metodológico, utilizamos a Narrativa Autorreflexiva Actancial, criada por Bergier e Xypas (2013), com inspiração do semioticista Greimas e Courtés (1986), a partir da teorização da sociologia do Êxito Improvável e situada no âmbito da sociologia clínica de Gaulejac (2004; 2005). Tal sociologia busca compreender o sujeito pela sua integridade como um sujeito completo.

A sociologia clinica tem por tarefa compreender a dialética entre a história e a historicidade, entre indivíduo que é a história e indivíduo que faz a história, entre os fatores sócio psíquicos que fundam a sujeição e aqueles que servem de suporte ao indivíduo para que ele advenha como sujeito (Gaulejac, 2004, p. 73).

A Narrativa Autorreflexiva Actancial é uma metodologia consciente e direta, e uma vez que a história do sujeito pode ser contada a partir de diferente metodologias, ela deve ser utilizada apenas por pessoas que tiveram contato com a teorização ou que são orientadas por um pesquisador que tem conhecimento da metodologia. Tal narrativa convida o sujeito a tomar consciência da sua história e permiti-lhe revisitar fatos de sua vida antes não investigados, contudo, decisivos na sua construção enquanto sujeito. Esse processo de tomada de consciência proporcionará ao narrador uma descoberta de si, um reconhecimento das adversidades da sua vida e poderá lhe conferir um novo olhar, capaz de compreender o presente, a partir de novas perspectivas.

É importante falar, que embora nos utilizemos dos estudos da relação ao saber de Charlot (1993, 1996, 2000, 2005, 2009), a metodologia que será utilizada pela narradora não terá qualquer relação com a metodologia utilizada por Charlot (2009), nos balanços do saber, haja vista que pesquisador estudou casos de alunos em situação de fracasso escolar. Nessa perspectiva, a nossa metodologia busca compreender o êxito improvável de pessoas de origem popular, através da narrativa contada pela própria sujeita da pesquisa.

Em nossa análise, também utilizamos como metodologia o Esquema Narrativo de Algirdas Greimas e Courtés (2012 apud Xypas; Cavalcanti, 2020).

Tal metodologia:

Permite construir a evolução da relação com o saber de cada narrador a partir do cenário inicial na roça, na favela, no quilombo etc., até a colocação de grau, acompanhando suas lutas e desvelando as circunstancias que favoreceram sua ascensão social (Xypas; Cavalcanti, 2020, p. 43). 

Desse modo, o esquema narrativo proposto Greimas e Courtés (2012) permite ser roteiro tanto de entrevista como de análise de narrativa. A seguir apresentamos, um conjunto de Actantes, adaptado do esquema do referido autor e que consideramos importantes para nossa análise narrativa.

Quadro 1 – Actantes segundo Greimas e Courtés

(2012 apud Xypas; Cavalcanti 2020)

ActantesFunção
DestinadorQuem confia a missão (mãe, pai, irmão, professor);
Sujeito/destinatárioQuem aceita o desafio;
Objeto desejadoO que é desejado pelo sujeito;
ContratoO que indica a missão confiada pelo destinador (fazer estudos universitários, ter um bom emprego);
OponentesOs obstáculos surgidos na trajetória, que podem ser um acontecimento, uma pessoa ou algum trauma ou traumatismo;
AdjuvantesPessoas (tutores de resiliência) ou circunstancias favoráveis na vida;
CompetênciaTudo aquilo que o sujeito aprende para conquistar o objeto;
PerformanceComo o sujeito vence os obstáculos e adversidades da vida. Em que pontos se tornou resiliente;
SançãoA conclusão da narrativa, quando o sujeito recebe a sansão prevista (diploma, cargo, etc.).

Fonte: Elaboração própria

Através dessas metodologias, esperamos encontrar, na narrativa que segue conforme modelo proposto por Greimas e Courtés (2012), regularidades da construção da relação ao saber e do processo de resiliência, onde podem ser comuns a outras pessoas de origem popular que tiveram um êxito considerado improvável, por meio dos estudos. 

4.  Narrativa

 Nossos comentários teóricos dentro da narrativa contada em primeira pessoa, objetiva contar fatos importantes dessa trajetória com a noção da relação ao saber e a resiliência. Apresentaremos nas linhas subsequentes, detalhes de uma vida marcada pela luta, pela constância, pelo trabalho, pelo protagonismo e acima de tudo, pela resiliência. 

5.  O cenário

Primogênita do casal João e Josefa, sou a Valentina, a mais levada e travessa quando comparada a minha irmã. Em minha casa éramos eu e ela, minha mãe e meu pai. Minha mãe não trabalhava fora de casa, porém o trabalho doméstico era algo sem fim. A diferença de idade entre eu e minha irmã eram de 03 anos. Minha mãe sempre cuidou muito bem de nós, era como se eu estivesse protegida com ela, e que nada de ruim iria me acontecer. No entanto, meu pai sempre trabalhou muito, para nos dá o mínimo de conforto que poderia ofertar diante das nossas condições financeiras.

Painho sempre trabalhou como caminhoneiro de carro pipa e era um trabalho muito braçal. Lembro-me, quando pequena, que adorava subir no seu caminhão e também sair para acompanhá-lo no trabalho. Fui criada com muito zelo e carinho pelos meus pais, estes não tinham uma boa condição financeira, porém, sempre fez muito sacrifício para educar eu e minha irmã. Meus pais também não tiveram muito estudo, só sabem ler e escrever poucas palavras.

Apesar dos meus pais não terem tido muito estudo, eles sempre me incentivavam a estudar e sempre que meu pai podia ele me auxiliava nos deveres de casa. Foi com meu pai que aprendi a divisão dos numerais, e ele sempre foi muito paciente e sempre me incentivava muito nos estudos para que pudesse ter um bom emprego e uma boa estabilidade financeira no futuro.

Comentário 1: No cenário, é possível, através da narração de Valentina, ver que seus pais tinham pouca escolaridade e baixo capital social, pois tinham poucos estudos. No entanto, tinham para seus filhos ethos de ascensão social. São os pais de Valentina, seus primeiros destinadores e o primeiro contrato era ter êxito nos estudos e logo um bom emprego na busca da estabilidade financeira. A mãe de Tereza reforça muito a ideia da figura de apego seguro. Na visão de Cabral e Cyrulnik, “a relação de apego, que se manifesta por um desejo de proximidade, permite tecer, em condições favoráveis, um vínculo afetivo durável, seguro e estimulante” (2015, p.43).

5.1.Infância

A casa em que morava com meus pais, era bem apertadinha, lembro-me que tinha apenas uma sala, uma cozinha com quintal lá atrás, bem pequenininho, e um quarto apenas, para eu, minha irmã e meus pais. E lá vivi muitas lembranças boas, tinha vários primos e brincava bastante com eles, meus tios moravam ao lado, e minha avó paterna era bem presente, morava na casa de baixo. 

Como tudo na vida, sempre temos um lado bom e um lado ruim. Na minha infância sempre tive vontades, como toda criança, em possuir alguns brinquedos, como por exemplo, uma “boneca bebê”, para chamar de minha. No entanto, meus pais não tinham condições de me presentear com uma “boneca bebê”, eles sempre diziam que era muito dinheiro, eu ficava triste, mais acabava entendendo no final. Esses momentos estavam guardados em minha memória, porém ao escrever essa narrativa elas revivem como se fossem ontem.  

Recordo com emoção que no período de férias minha mãe sempre separava um tempinho para fazer a tão esperada “contação de histórias”, essas memórias afetivas se fazem presentes até os dias de hoje. Uma das histórias que eu sempre gostava era a tão famosa “branca de neve e os sete anões” por inúmeras vezes foi contada para mim, que logo, eu mesma conseguia identificar as cenas nas folhas do livro, e eu mesma já fazia a “contação de histórias” para minha irmã.

Comentário 2: Nesse sentido, a mãe de Valentina já assume um papel de destinadora, quando começa a guiar a filha, mesmo inconsciente, na valorização e no caminho da leitura. Além disso, mostra-se também como adjuvante, por estar sempre acompanhando de perto a filha, desenvolvendo com ela, um apego seguro. Em um modelo de “apego seguro há uma vinculação afetiva, tranquila na infância com a principal figura de apego” (Rodrigues; Chalhub, 2009, p. 3).

Diante desse fato, minha mãe começou a utilizar mesmo empiricamente, a leitura como processo de alfabetização para mim. Desse modo, me foi introduzido o universo da leitura, onde eu consegui tomar gosto pelos livros, e recordo-me que comecei a frequentar a biblioteca da minha escola, para escolher o livro que iria levar para casa. Tia Mônica sempre me acompanhava nas escolhas dos livros, e minha jornada com ela, se perdurou por alguns anos, visto que ela seria minha tia do ano seguinte, a terceira série. Tia Mônica sempre foi muito afetuosa e sempre me auxiliava nas atividades, ela sempre falava “você consegue minha querida, você vai longe” e eu acreditei.

Comentário 3: A professora assume um papel de tutora de resiliência, ao estimular a criança com frases de incentivo e encorajando-a. Praticando “uma pedagogia que estimula a relação afetiva entre educador e o educando, incluindo o contato, a carícia a ternura e qualquer manifestação espontânea de afetividade” (Condorelli; Guimarães; Azevedo, 2011, p. 15).

5.2.  Primeira dobradiça dramática: o ensino fundamental e a reprovação

 Durante a escolaridade, cada vez mais eu trazia indícios de um bom desempenho nas atividades escolares, no entanto, em um determinado período eu era bastante tímida e não socializada muito com os colegas de sala. Porém esse jeito de ser, gerava alguns cenários doloridos para mim, uma vez que eu era um pouco acima do peso, sempre tinha alguns alunos que por vezes, faziam questão de reforçar que eu era “gordinha”. Essa realidade me desmotivava. Até que na segunda série do ensino fundamental, veio a reprovação. Os momentos vividos naquela escola foram momentos terríveis, estes contribuíram para que eu pudesse enxergar que aquela realidade vivenciada não era aonde eu queria permanecer. Definitivamente, não queria mais ser aquela menina! Minha mãe resolveu me mudar de escola. O momento em que eu sairia de uma escola pública estadual enorme para uma escola menor, particular.

Comentário 4: O fato de Valentina estar na condição de desmotivada, não a limitou em seus objetivos, ela tem claro que aquela situação seria passageira e que logo, se tornaria “alguém na vida” bem sucedida economicamente. Charlot (2009, p. 77) frisa que a mobilização acontecerá na escola quando “o próprio saber (a formação, a cultura) surja enquanto chave do futuro desejável antecipado”. Nessa perspectiva, Valentina tinha desejo em um futuro promissor que lhe mobilizava. A decisão da mãe de tirá-la de uma escola de referência do estado para uma escola menor representa um grande divisor de águas na vida de Valentina. Isso porque, caso ela tivesse sido mantida na escola grande poderia ter sido desmotivada e até desistir dos estudos.

A decisão da minha mãe de transferência para outra escola me motivou bastante, lembro-me que fiquei super animada.  Nessa escola tinha uma professora chamada tia Claudia, ela era considerada uma ótima professora e muito exigente, isso certamente, foi muito bom, me fazia incentivar mais pelo saber. Mesmo com pouco estudo, minha mãe sempre observava se estávamos estudando direito e sempre comparecia nas reuniões da escola. E eu ficava superfeliz por ela se importar com meus estudos, essas e demais atitudes me faziam ver que eu era amada e que ela torcia pelo meu sucesso.

A professora Claudia teve um papel muito importante no meu desenvolvimento escolar. Ela era bem séria, muito exigente e cobrava nosso esforço. Lembro de passar muito tempo estudando para fazer suas provas e ter boas notas. 

Comentário 5: Nesse período da vida, Valentina evidencia uma mobilização ao saber fraca, portanto, estava no nível I da relação ao saber, o dos ‘alunos completamente perdidos na escola’- “Há aqueles que não entendem por que estão na escola, alunos que, de fato, nunca entraram na escola; estão matriculados, presentes fisicamente, mais jamais entraram nas lógicas especificas da escola” (Charlot, 2005, p. 51-52). Como a reprovação certamente constituiu um divisor de águas na vida escolar de Valentina, pode ser caracterizada como adjuvante, pois Valentina poderia ter pensado que a escola não era para ela e ter perdido o interesse pelos estudos. Contudo, é justamente o contrário que acontece, Valentina encontra naquele trauma um motivo para se dedicar aos estudos. Apesar de ter reprovado, era uma aluna comportada, tratava bem sua professora e seus colegas. Ela tinha, por tanto, um habitus compatível com a escola o que lhe favoreceu superar a reprovação com mais facilidade.  Sua mãe como adjuvante, contribuiu para que ela tenha uma retomada de desenvolvimento e se dedique mais aos estudos. A professora Claudia também se enquadra como adjuvante, por ajudar Valentina e lhe exigir bons resultados na escola. Com a motivação de ser uma boa aluna, Valentina passa para o nível 2 da relação ao saber e dos “sobreviventes na escola” e depois para o nível 3 “alunos muito bem sucedidos na escola”. Existem aqueles para os quais estudar é uma conquista permanente do saber a da boa nota” (Ibid); são caraterísticas dos alunos que estão nesse nível da relação ao saber: dedicação/mobilização/luta/ esforço/ desejo e prazer em aprender.

5.3.  Segunda dobradiça dramática: a separação dos meus pais

 Ao mesmo tempo que lutava em ter boas notas e me esforçava na nova escola, meus pais estavam prestes a se separar, e foi tudo muito rápido. Lembro-me que meus pais vera e meche, estavam discutindo e geralmente pelo motivo do meu pai ter muito ciúmes da minha mãe, as vezes ciosas bobas. E foi bem inesperado, minha mãe após uma discussão com meu pai, resolveu ir embora de casa, estava decidida. Tenho a lembrança que foi nos levar na escola e comprou vários doces no caminho para eu e minha irmã, e no momento que nos deixou na portaria da escola, nos deu um abraço forte e disse que nos amava muito. 

Por um momento achei estranho, mais não saberia o que estava por vir. No final da aula, por volta de 17:30 ninguém veio nos buscar na escola, todos os coleguinhas indo embora, e eu e minha irmã ficamos lá, aguardando “mainha”, que sempre ia nos buscar. E logo, meu pai quem foi nos pegar na escola, onde ele procurava palavras para nos explicar que minha mãe tinha ido embora! Eu e minha irmã muito pequenas não entendemos muito toda situação. A separação foi muito dolorosa para todos nós, e a sobrecarga de responsabilidades me fez amadurecer antes do tempo.

Durante esse período eu e minha irmã tivemos muitas dificuldades de concluir o ano letivo, e acabamos perdendo o ano, meu pai deixou que ficássemos em casa, e minha tia e minha avó paterna cuidava de nós. Fiquei triste, por toda situação, pelos meus pais, e por meus estudos. Porém no ano seguinte, meu pai nos colocou em uma nova escola e conseguimos com algumas dificuldades de adaptação finalizar o ano letivo.

Tive oportunidade de frequentar um grupo de estudos para reforçar as matérias em sala de aula, tinha uma professora chamada, Lene que estava montando um grupo e vendo os alunos que estavam com dificuldades, para confirmar com os pais os dias e horários, essa professora me transmitia relação de segurança, e confiança, a maneira como ministrava o conteúdo me fez enxergar com mais simplicidade os meus estudos. Logo, meu pai permitiu que eu participasse, e fiquei muito feliz. 

Foi uma ótima oportunidade para eu retomar meus estudos, embora, sentisse muita falta de mainha. De certa forma, o despertar no interesse em ministrar aulas, se deu a partir daquele momento em minha vida. 

Comentário 6: A professora Lene, nesse momento, demonstra um nível 3 de mobilização. O convite para frequentar o grupo de estudos já atuou como um incentivador, para retomar o interesse nas aulas. Nessa perspectiva Bourdieu (2017) define como Illusio, assistir essas aulas alimentava o encantamento de permanecer no jogo, de saber mais sobre esse mundo novo e de como se estabelecer nele.

5.4.  Terceira dobradiça dramática: a conquista da graduação

 Diferentemente da minha irmã, sempre tive o desejo de realizar um curso superior, sempre tive essa vontade de fazer uma faculdade. Sempre gostei muito da área da saúde e diante dos cursos que tinham em minha cidade, optei por fazer vestibular para enfermagem. Na primeira tentativa não obtive aprovação. Foi onde incentivada pelo meu esposo, resolvi fazer minha matricula em um curso preparatório para vestibular. Era muito cansativo, pois eu trabalhava o dia inteiro, e a noite ia para as aulas.

 Passado o tempo de adaptação dessa rotina, eu consegui dar conta das aulas, achei interessante me matricular em um curso de matérias isoladas na disciplina de química. Essa disciplina tinha peso auto no vestibular, e eu estava disposta a passar naquele ano de 2007. Esse professor chamava-se Marco Aurélio, era muito atencioso, ele nos dava muitas dicas de questões que cairiam em prova. Recordo-me de suas aulas ter em média 7 a 8 alunos, todos com o mesmo objetivo, cursos na área de saúde. Por ter a turma reduzida, ele nos dava muita atenção, conseguia tirar as dúvidas de todos, além de nos incentivar e compartilhar as suas experiências enquanto acadêmico. 

Ele sempre falava que ter um curso superior era como receber um grande prêmio, era a chance de mudar de vida, e proporcionar melhores condições financeiras para nossa família, isso sempre esteve comigo, até os dias de hoje.

Comentário 7: O incentivo do esposo em orientar a esposa a se matricular no cursinho preparatório, demostra que ele entende a importância de buscar o conhecimento para uma aprovação. A esposa nesse momento apresenta um nivel 4 de mobilização de relação ao saber, para ela, está sempre em busca de mais conhecimento e encontra prazer nisso. A obra de Frankl (2021) revela e descreve que a atitude de resiliência em diferentes instâncias na vida de uma pessoa, por mais que condições sociais possam influenciar a capacidade de desenvolvimento de um indivíduo, tais condições não são determinantes para o sucesso ou insucesso profissional.  Nesse sentido, aponta que: “sempre e em toda parte a pessoa está colocada diante da decisão de transformar a sua situação de mero sofrimento numa produção interior de valores”.

Quadro 2 – Actantes da terceira dobradiça dramática

Quem?

O dia tão esperado da prova chegou. Lembro-me que no dia anterior, o cursinho fez um aulão de revisão e eu estava muito tensa, com muito medo da prova. Mas os professores deram um show de aula. Ainda me recordo da aula do professor Menelau, de português e redação, que aula meu Deus! Boa parte do que ele deu em sala de aula, caiu na prova. Professor Menelau, era um grande mestre, ele realmente tem o dom de passar o conteúdo de forma didática e sem enrolação. Ele sempre tinha um momento durante a aula de passar uns vídeos de músicas e depois ia debater o texto com a turma. Ele sempre foi um grande incentivador da turma e sempre muito atencioso e afetivo conosco, sempre me dizia “você vai longe”.

Fui fazer a prova e consegui a aprovação com ótima colocação. Meu esposo quem foi pegar o resultado para mim, pois eu estava trabalhando, e pedi para ele ir olhar a lista que ficava fixada na parede da faculdade. Quando ele chegou com o resultado e falou: “você passou, parabéns” eu dei pulos e pulos de alegria, parecia que tinha tirado um peso das costas e que realmente todo esforço tinha valido a pena.

Quadro 3 – Relação de vínculo afetivo na terceira dobradiça dramática

  Tipo de apego  Quem?  Como?
  Seguro  Professor Menelau       EsposoAo incentivar a narradora, com apoio e suporte emocional, a seguir a caminhada nos estudos até a graduação, e até mais além.   O esposo mostra-se sempre como um ponto de apoio, sempre incentivando e acreditando no potencial da narradora.

Fonte: Elaboração própria

5.5.  Quarta dobradiça dramática: ensino superior e gestação

 Quando iniciei minha vida como discente em uma faculdade de tempo integral, logo vieram os desafios. O primeiro deles seria a questão financeira, uma vez que, tive que abrir mão do meu emprego para me dedicar exclusivamente a graduação de enfermagem. Essa decisão foi muito difícil, teria que abrir mão da minha independência financeira, para ficar totalmente dependente do meu esposo. O primeiro semestre foi muito desafiador, era uma mistura de sentimentos, e emoções que eu queria viver e aproveitar intensamente. No entanto, meu esposo me apoiava bastante, isso me ajudava a seguir em frente. 

Algumas disciplinas da graduação exigiam mais dedicação, como por exemplo, epidemiologia, era uma disciplina bastante numérica e de muitos dados estatísticos, e me exigia mais dedicação e horas de estudo por apresentar um grau maior de dificuldade. Em algum momento do curso, pensei que iria reprovar essa cadeira, no meu ponto de vista, eu não estava sendo boa aluna. Eu pensava que caso viesse reprovar naquela disciplina não teria capacidade de terminar a graduação. Foi ai então, que fiz amizades que nunca esquecerei – Nayara, Mayara, Juliert – sem elas, confesso que a permanência na graduação seria mais difícil. Juntas nos motivávamos, estudávamos e nos alegrávamos com as conquistas umas das outras.

 Algo que me marcou muito no primeiro semestre, foi a notícia que estava grávida, isso mesmo, gravida no primeiro período da graduação! Aquele momento para mim foi delicado, não sabia se conseguiria dar conta de filho, marido, casa e faculdade tudo ao mesmo tempo, lembro-me que batia um desespero e sempre me pegava chorosa e pensativa, imaginando meus dias cuidando de um recém- nascido. Minha mãe me ajudou muito no início, com meu filho, para que eu pudesse passar o dia todo na faculdade. E meu esposo também, pois corria sempre de um lado para o outro com meu filho.

Ao final do segundo ano de graduação, resolvi me candidatar a aluna bolsista, para obter desconto nas mensalidades. Me inscrevi por três vezes e na terceira fui aprovada. Era uma alegria imensa, pois iria contribuir financeiramente com minhas mensalidades. No entanto, era muito cansativo, pois passava o dia todo na faculdade e as 18:00 horas assumia meu cargo de recepcionista dentro da clínica de odontologia da faculdade. Morria de medo de reprovar em alguma disciplina, pois perderia a bolsa, então sempre me esforcei até a finalização do curso. Dormia depois de 02:00 da madrugada, pois sempre tinha que estudar para as provas do dia seguinte.

Consegui ser aprovada em várias disciplinas como monitora, eu sempre gostei de participar e contribuir de alguma forma com outros alunos, ensinando o que eu aprendia. Mas as conquistas não paravam por aí. No terceiro ano da faculdade resolvi me candidatar a aluna de projetos de extensão e tive o resultado deferido. Uma professora me marcou muito, que foi Nayale, ela era uma profissional incrível, e ministrava a disciplina de obstetrícia em saúde da mulher, área que eu sempre fui apaixonada.

Comentário 8: Os desafios a serem vencidos no ensino superior colocaram a prova o desejo que Valentina tinha em vencer, seu esposo, as colegas (Nayara, Mayara e Juliert), e a professora Nayale são caracterizados como adjuvantes. A sanção é alcançada quando ela consegue se graduar em Enfermagem.

5.6.  Quinta dobradiça dramática: aprovação em um concurso público

 A escolha em trabalhar com saúde da mulher se dá desde pequena. Aos 8 anos de idade tive uma enfermidade e fiquei bem doente e uma senhora muito simpática cuidava de mim, fazendo minhas medicações, acho que a partir daquele momento eu já saberia que iria cuidar de outras pessoas também. A escolha pela enfermagem já fazia parte da minha vida, cuidar de pessoas era sempre um prazer para mim. Lembro-me que uma das minhas brincadeiras quando pequenina era brincar de levar as bonecas ao médico para que eu pudesse cuidar delas, fazendo as medicações e os curativos que na minha cabeça a boneca iria precisar, eu achava aquilo um máximo!

Também tinha uma boneca gestante com um bebe dentro do seu ventre, eu sempre fazia os partos dessa minha boneca, e mesmo que inconsciente, cuidava muito bem delas, e hoje me vejo como enfermeira obstetra, não foi por a casso que tudo se alinhou. Eu pequena achava lindo quando as pessoas se admiravam em me ver cuidar tão bem de minhas bonecas. Quando eu fiquei um pouco mais velha passei a entender o propósito que Deus tinha dado para mim, de cuidar de pessoas. Sempre fui uma menina sonhadora e adorava me desafiar.

Assim que terminei a graduação, fui logo fazer especialização em obstetrícia, e me apaixonei ainda mais. Foram dois longos anos, e mais uma vez, foi muito difícil realizar a especialização, pois ainda não havia conseguido emprego em minha área. Fazia tudo isso porque queria sempre mais. Ficava muito alegre quando via um colega de sala conseguir um emprego, no entanto, eu ficava triste por mim, pois foram dois longos anos até surgir uma oportunidade para atuar em um hospital de uma cidade vizinha. Recebi a ligação de uma professora chamada Ana Cristina da especialização que dizia: você quer trabalhar como enfermeira obstetra? estão precisando, e eu te indiquei. Eu na hora disse sim, e fiquei muito agradecida. Ela me incentivou muito e me deu coragem para seguir em frente.

Comentário 9: Nesse momento Valentina escolheu atuar como enfermeira obstetra, mesmo não tendo tido experiências hospitalares na área, mais teve coragem a seguiu em frente. Essa decisão pode ter sido considerada um divisor de água na vida dela, já que um novo caminho foi trilhado.

 Lembram da menina sonhadora que adorava se desafiar, e que mesmo com todos os obstáculos conseguiu vencer os dragões no decorrer de sua vida? Pois bem, em suas orações sempre pedia a Deus um emprego e nunca passou pela sua cabeça ser aprovada em um concurso público. Um certo dia abriu um edital do estado de Pernambuco pra os profissionais de saúde e algumas vagas para enfermeiro obstetra, eu na hora pensei, quero uma vaga. E já fui logo lendo edital e fazendo minha inscrição e iniciando os estudos. Confesso que quando vi o quadro de vagas, fiquei desanimada, só tinham 7 vagas para Caruaru, e todos diziam que não iam fazer pelo número baixo de vagas.

Então, segui o meu coração e fui estudar, era muitas noites de estudos. Entrei até em um cursinho preparatório para a prova, e foi muito bom. Me lembro como se fosse hoje, um professor chamado Gilmar, que ministrava a disciplina de SUS, ele era muito maravilhoso, ensinava tudo maravilhosamente bem. Era muito atencioso e sempre estava disponível para tirar nossas duvidas em qualquer horário. Respondia questões de concurso em sala de aula e dava muitas dicas, ele foi primordial para minha aprovação.

Então o dia da prova chegou, e foi muito tranquilo, embora estivesse tensa, pois havia estudado muito e estava apostando tudo na aprovação. Logo saiu o resultado e eu estava na lista de classificados, foi uma emoção inexplicável, era como se tudo tivesse valido a pena sabe! Aguardei um ano até a tão esperada nomeação no diário oficial do estado de Pernambuco. Então tornei-me oficialmente servidora pública do estado de Pernambuco e fui nomeada em abril de 2016. Fiquei alocada na maternidade Jesus Nazareno na cidade de Caruaru, alegria e satisfação para mim e para meus pais, que nunca imaginaram que eu iria tão longe, eles sempre falam que sou um orgulho para eles.

Comentário 10: O vínculo afetivo estabelecido com o professor foi do tipo seguro. Tal vinculo proporcionou motivação e uma mobilização para que fosse rumo a aprovação no concurso público. Podemos reforçar essa colocação com o que afirma Rodrigues e Chalhub (2009), quando explicam que as pessoas desenvolvem melhor uma capacidade (nesse caso, seguir os estudos, mesmo tendo finalizado a graduação) quando estão seguros de que por traz delas existe alguém que está disposto a ajudá-la. Esses que figuram como ajuda, são os tutores de resiliência, que sempre incentivaram, motivaram estenderam a mão quando necessário

E não paro por aqui, no segundo semestre de 2022 matriculei-me como aluna especial do PPGECM da UFPE e vivenciei momentos de troca e experiências acadêmicas magnificas, éramos eu, e mais 4 alunos, juntamente com nosso professor Constantin, que todas as quartas feiras a tarde nos encontrávamos para várias discursões acadêmicas. Nosso tutor de resiliência nos ensinou muito e nos passou muito conhecimento, pudemos compartilhar vivencias e trocas de experiências acerca do bem estar profissional docente e vários autores fizeram parte dessas discussões. Ali já comecei amadurecer meu possível tema da dissertação para a próxima inscrição do mestrado em 2023, e já consegui um orientador (tutor de resiliência) que me ajudará na construção do meu projeto.

6.  Considerações finais 

Por meio da leitura desta narrativa autobiográfica actancial, nota-se que foi trilhado um caminho de individuação e ascensão social por intermédio dos estudos. O percurso descrito mostra como foi possível atingir as sanções estabelecidas, ou seja, aquilo que comprova a ascensão social, como por exemplo, concluir a graduação, pós graduação e aprovação em um concurso público.  E agora estabeleceu-se uma nova sanção, baseada nos sonhos da narradora, e em seu caminho, seguir em busca do mestrado.

Ao analisar a narrativa autorreflexiva actancial de Valentina, fica claro a importância da figura do professor como tutor de resiliência, no seu processo de crescimento. Constata-se que, graças aos professores, ela pôde acreditar nos seu potencial e ter uma perspectiva de carreira para além de uma assistência hospitalar. E mesmo que ela tenha escolhido ser enfermeira obstetra como profissão, ela foi além.

A relação de proximidade com os professores possibilitou a Valentina estar mais perto do saber e ver neles figuras de referênciase de apego seguro. Nesse sentido, os professores, tem grande importância no êxito de seus alunos, especialmente os de origem popular. Além do mais, acreditamos que a s relações de sentido e valor atribuídos ao saber permitiram a Valentina, gradativamente, chegar ao nível de alunos intelectuais.

Como consequência do incentivo dos pais, esposo e professores, e como consequência também de sua mobilização pelo saber, Valentina conseguiu desenvolver uma relação ao saber tão forte que conseguiu ter, apesar de suas condições sociais e sendo filha de pais semiletrados, sucesso frente aos estudos. Por conseguinte, torna-se especialista em obstetrícia e servidora pública do estado de Pernambuco. Valentina acredita que sua história e luta pelo saber ainda não cessou e pretende continuar avançando em sua carreira promissora.

Esperamos que este trabalho possa propiciar reflexões acerca da importância de analisar o sujeito a partir de sua integralidade e não como parte de uma história; ao mesmo tempo, desejamos despertar o interesse de novas pesquisas que visem enaltecer a trajetória de outros profissionais.

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[1] Pseudônimo da autora, que narra sua trajetória.