A BIOPIRATARIA NA ÉPOCA DAS CIÊNCIAS ÔMICAS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202409191249


Cássia Carneiro Santos1;
Luzimar Gonzaga Fernandez1,*


RESUMO 

A apropriação dos recursos naturais do Brasil por outras nações ocorre desde a chegada dos portugueses em terras brasileiras. Ao longo da história, foram inúmeros exploradores que aqui chegavam com o objetivo de se apropriar das riquezas do Brasil, especialmente da sua biodiversidade. Com os avanços da engenharia genética e das ciências ômicas, houve uma mudança na forma como a biopirataria é praticada, passando do tráfico de espécies da fauna e da flora, para a apropriação das informações genéticas de espécies pertencentes ao patrimônio genético natural com potencial biotecnológico. Tal mudança traz repercussões importantes no sistema global de registro de patentes e impõe novos desafios às ações de fiscalização e proteção do patrimônio genético brasileiro.

Palavras-chave: biodiversidade, engenharia genética, patrimônio genético, patente.

ABSTRACT

Other nations have appropriated Brazil’s natural resources since the arrival of the Portuguese on Brazilian soil. Throughout history, countless explorers have arrived here to appropriate Brazil’s riches, especially its biodiversity. With advances in genetic engineering and omics sciences, there has been a change in how biopiracy is practiced, moving from the trafficking of fauna and flora species to the appropriation of genetic information from species belonging to the natural genetic heritage with biotechnological potential. This change has important repercussions on the global patent registration system and poses new challenges to monitoring and protecting Brazil’s genetic heritage.

Keywords: biodiversity, genetic engineering, genetic heritage, patent.

1. INTRODUÇÃO

A apropriação das riquezas naturais do Brasil por nações estrangeiras ocorre desde o descobrimento do país pelos portugueses. O marco desse processo é o ciclo do Pau-Brasil, que durou de 1500 a 1530. A exploração desordenada dessa madeira teve impactos significativos na vegetação original da mata atlântica, resultando na quase extinção desse bioma (MAGNI, 2020).

Ao longo do tempo, vários outros ciclos econômicos foram desenvolvidos tendo como base a exploração das riquezas brasileiras por outras nações, atraindo todos os tipos de exploradores e até mesmo missionários religiosos e missões diplomáticas oficiais interessados na apropriação e exploração das riquezas biológicas para obtenção de lucro (ALVES, 2002).

Entre o final do século XIX e início do XX destacou-se o ciclo da borracha, no qual havia a extração do látex das seringueiras e comercialização da borracha. Na ocasião, houve o furto de 70 mil sementes de seringueira por um inglês para cultivo em colônias asiáticas com consequente domínio do mercado pelos ingleses, sendo este o primeiro caso de biopirataria ocorrido no Brasil, o que resultou em uma vantagem econômica no comércio mundial da borracha para a Inglaterra, com consequente desastre econômico na Amazônia (ALVES, 2002; MAGNI, 2020).

Durante a era Vargas, a comunidade científica demonstrou preocupação em relação a exploração da zoologia e da botânica, devido a atividade de coleta de dados e materiais científicos, vinculado em 1934 ao Ministério da Agricultura (CORDEIRO, 2015).

Em 2001, a MP nº 2.186-16/2001 representou mais uma tentativa de apropriação estrangeira dos recursos genéticos brasileiros, por meio da qual a empresa suíça Novartis Pharma buscou obter direitos de uso exclusivo dos recursos genéticos da região amazônica. A exploração irrestrita desses recursos gerou abalos financeiros e danos ambientais irreversíveis, especialmente em países menos desenvolvidos, que sofreram impactos irreversíveis na sua diversidade biodiversidade, com consequências negativas para a fauna, flora, como também para a diversidade cultura dos diferentes povos (MENUCHI, 2016). 

Os interesses econômicos e exploração da biodiversidade foi mudando ao longo do tempo, historicamente ocorreu a exploração dos recursos biológicos, com o início da engenharia genética, o foco da exploração passou a ser os recursos genéticos dessa biodiversidade. Dessa forma, o patrimônio genético (PG) passou a ter uma dimensão virtual ou informacional. Ao mesmo tempo que é um recurso natural, passa a ter uma dimensão informacional, cujo controle exige uma adequada gestão (BARBOSA, 2017).

Essa vertente informacional está presente na definição de patrimônio genético trazida pela Lei 13.123/2015, que o conceitua como: “informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos”. Enquanto a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) define material genético como “todo material de origem vegetal, animal, microbiana ou outra que contenha unidades funcionais de hereditariedade.” (ONU, 1992)

Tanto a Lei 13.123/2015 quanto a MP 2.186-16/2001 definem o patrimônio genético como informação. Chama a atenção que essa informação não está restrita às moléculas de ácido desoxirribonucleico (DNA) ou ácido ribonucleico (RNA), responsáveis pela hereditariedade, mas envolve também a sua expressão, por meio de moléculas, metabólitos etc.

Dessa forma, o patrimônio genético não deve ser compreendido apenas em seu sentido material, não se trata de uma molécula em si, mas sim das “informações de origem genética oriundas dos seres vivos de todas as espécies, seja animal, vegetal, microbiano ou fúngico” (CORDEIRO, 2015). Essa compreensão torna-se relevante no combate à apropriação indevida do patrimônio genético por empresas e nações. A identificação de remessas do patrimônio genético passa a ser cada vez mais complexa, uma vez que tais remessas podem ser transmitidas por meio de canais virtuais, na internet, ou mesmo pelo envio de frações microscópicas de matéria orgânica, sendo de difícil identificação (CORDEIRO, 2015).

A CDB constitui um marco no reconhecimento da soberania dos estados em relação aos seus recursos naturais ao atribuir a eles o direito de exploração. 

“Os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de Direito internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.” (ONU, 1992).

Neste contexto, este trabalho teve como objetivo analisar as transformações na forma como a biopirataria ocorre em razão do desenvolvimento da engenharia genética e das ciências ômicas.

2. METODOLOGIA

Procedido levantamento de leis, resoluções, instruções normativas, convenções e protocolos internacionais, e outros atos normativos que tenham como objetivos a regulação do uso do patrimônio genético e sua correlação com a biopirataria, a fim de identificar possíveis lacunas destes para o efetivo cumprimento da legislação.

Realização de revisão de literatura relacionada ao uso do patrimônio genético brasileiro, da biopirataria e dos mecanismos de sistema de registro de patentes, de trabalhos publicados nos últimos cinco anos, e a correlação destes trabalhos com os dados oficiais obtidos e com a legislação correlata.

A coleta de dados foi realizada por meio de consultas da legislação em endereços eletrônicos oficiais e de trabalhos científicos publicados durante o período de 2018 a 2023, em português, no Google School. Trabalhos de períodos anteriores foram considerados, devido à sua relevância para o tema e/ou por refletir mudanças da legislação.

Feita análise qualitativa e descritiva dos trabalhos e legislação com o objetivo de compreender o contexto da biopirataria do ponto de vista legal, social e técnico, correlacionando com o desenvolvimento da engenharia genética e das ciências ômicas.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS

3.1. Ciências Ômicas

Dentre os recentes e importantes avanços na área de biotecnologia, aliada ao uso da bioinformática, destaca-se o desenvolvimento das ciências ômicas, divididas em suas subáreas:  genômica, transcriptômica, proteômica e metabolômica. A genômica ocupa-se do estudo de dados relacionados ao genoma, ou seja, da sequência do material genético dos organismos (CARLOS et al., 2014). A transcriptômica analisa a expressão gênica a partir da identificação de moléculas de RNA atuantes na célula durante o processo de transcrição (VONREUMONT, 2018).  A proteômica permite estudar as proteínas expressas por uma determinada célula em condições específicas (CIFANI et al., 2017), enquanto a metabolômica é definida como um “conjunto de dados qualitativos e quantitativos sobre todos os metabólitos de uma determinada matriz de origem biológica” (FUNARI et al, 2013).

Por meio da aplicação de diversas tecnologias e ferramentas, as ciências ômicas permitem identificar, caracterizar e quantificar componentes celulares, e compreender seus processos intra e extracelulares (GUIO, 2015). Sua aplicação possibilita avanços importantes em diversas áreas, tais como desenvolvimento de novos tratamentos, vacinas e medicamentos; melhoramento genético de plantas e animais; diagnóstico de doenças etc., proporcionando inúmeros benefícios à sociedade.

Diversos trabalhos têm se dedicado à aplicação das ciências ômicas para melhor caracterização de plantas e animais, possibilitando melhoramentos genéticos, descoberta de novos fármacos e vacinas, controle de pragas e patógenos, análise de toxicidade de plantas, entre outras. Estudos a partir da metabolômica de plantas têm permitido a caracterização de espécies mutantes, o estabelecimento de relações taxonômicas e ecológicas, avaliação e comparação de plantas geneticamente modificadas, dentre outros (FUNARI et al., 2013).

Do ponto de vista do patrimônio genético, ao mesmo tempo que a aplicação das ciências ômicas permite identificação de importante componentes celulares de interesse para a biotecnologia, também torna as espécies pertencentes ao PG mais vulneráveis à biopirataria, sendo necessário, portanto, a adoção de mecanismos de fiscalização e controle que considerem essas novas tecnologias e sejam capazes de proteger o PG brasileiro. 

3.2. Engenharia Genética

A definição legal de engenharia genética é dada pelo inciso IV, do Art. 3, da Lei 11.105/2005, segunda a qual engenharia genética é a “atividade de manipulação de moléculas ADN/ARN recombinante.” (BRASIL, 2005). 

Cordeiro (2003), por sua vez, conceitua engenharia genética como “um conjunto de técnicas de análises moleculares que permitem estudos de caracterização, expressão e modificação do material genético (DNA e RNA) dos seres vivos.”.

Ao decifrar a estrutura do DNA e defini-lo como molécula que carrega a informação genética dos caracteres hereditários, em 1953, os cientistas James Watson e Francis Crick proporcionaram uma série de novas descobertas científicas, levando a desenvolvimento de biotecnologias, diagnóstico de doenças genéticas, novos tratamentos, dentre outras aplicações.

Na década de 80, surgiram os primeiros produtos oriundos da engenharia genética, tais como hormônio de crescimento humano e insulina recombinante produzidos em bactérias transgênicas, e os primeiras vegetais transgênicos foram criados em 1983 (ARAGÃO, 2019).

Nas últimas décadas houve um grande desenvolvimento da engenharia genética e da biotecnologia, provocando novas formas de perceber e se relacionar com a biodiversidade. Essa tecnologia tem o grande potencial de difusão, comparada a qualquer outra tecnologia do passado, uma vez que tem a capacidade de transformar os genes em recurso a ser usado para criação de novas formas de vida (SHIVA, 2003). 

Atualmente, são inúmeras as aplicações da engenharia genética. Na saúde humana, destaca-se o seu potencial uso na construção de uma medicina preditiva e terapia gênica, com melhoria no diagnóstico de doenças e adoção de prevenção e cuidado antes da sua manifestação; tratamentos personalizados a partir do conhecimento sobre o código genético do paciente e da sua resposta aos diversos tratamentos disponíveis (BARTH, 2005). Na agricultura, auxilia na seleção de plantas superiores e no melhoramento genético para produzir plantas mais resistentes a pragas, doenças e fatores abióticos; maior conhecimento da fisiologia das pragas e patógenos, proporcionando melhor controle; seleção de genótipos com características desejadas comercialmente; e a produção de plantas transgênicas, com maior resistência a pragas, doenças e características adversas do ambiente. Na pecuária, a engenharia genética vem sendo aplicada para estudos genéticos e moleculares de patógenos que afetam rebanhos, a fim de propiciar melhores estratégias de controle biológico e imunização; seleção de animais com características genéticas desejadas e promoção do melhoramento genético dos rebanhos; e produção de animais transgênicos (CORDEIRO, 2003). Além da sua aplicação em diversos outros setores, tais como para realização de exames de paternidade e criminal.

As potencialidades de aplicação da engenharia genética tendem a aumentar vertiginosamente com a difusão da aplicação da técnica de edição de genomas CRISPR-Cas9 (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats cujo tradução significa Repetições Palindrômicas Curtas, Agrupadas e Regularmente Interespaçadas). Trata-se de uma ferramenta útil para o estudo de tratamentos para doenças como HIV, câncer e doenças monogênicas; possibilitar avanços na criação de organismos resistentes a pragas na agropecuária e animais com genes nocautes, contudo ainda apresenta muitos dilemas éticos.

Além dos dilemas éticos e, por vezes, religiosos, envolvidos no uso da engenharia genética, há ainda grandes desafios. Do ponto de vista ambiental, entre as grandes preocupações estão o impacto sobre a biodiversidade pelo uso disseminado de transgênicos; as dificuldades de fiscalização e controle da biopirataria e limitações normativas nacionais e internacionais.

O arcabouço normativo parece não se alinhar com a realidade prática dos laboratórios de pesquisa e não acompanhar as evoluções tecnológicas, como, por exemplo, o desenvolvimento das ciências ômicas (genômica, proteômica, metabolômica e transcriptômica) que impõem um novo paradigma na concepção do que pode ser considerado patrimônio genético e da engenharia genética. A informação genética, por exemplo, além do seu aspecto enquanto matéria que compõe a vida e, portanto, concreta e real, passa a ter uma dimensão virtual ou informacional para a ciência e a tecnologia (BARBOSA, 2017).

A descoberta da molécula do DNA deu início a uma busca intensa por princípios ativos presentes nas espécies naturais e de interesse para o desenvolvimento de biotecnologias. Tal busca foi liderada por países desenvolvidos e empresas transnacionais, com alta capacidade científica e técnica, cujo objetivo era a obtenção de lucro a partir dessa exploração (BARBOSA, 2017)

Dessa forma, a engenharia genética trouxe mudanças no perfil do tráfico de recursos naturais, substituindo caçadores de plantas por exploradores de genes e da busca por combustíveis fósseis e de metais raros pelos recursos genéticos e biológicos (ALVES, 2002). A engenharia genética e as novas tecnologias das ciências ômicas, portanto, demandam, além do debate científico e discussões éticas, um arcabouço legal, tanto em âmbito nacional, quanto internacional, capaz de lidar com todas as transformações provocadas por essas tecnologias.

3.3. O valor econômico da biodiversidade

A dimensão econômica do patrimônio genético é algo que não pode ser ignorado e, cada vez mais, ganha uma magnitude maior e pode ser utilizada como um instrumento para garantir a proteção da biodiversidade. Ganha voz o discurso valorativo construído a partir da ideia de que o desenvolvimento de pesquisas e tecnologias com a biodiversidade será capaz de erradicar diversas doenças, melhorar a qualidade de vida das pessoas, propiciar a descoberta de novos materiais etc. (MENUCHI, 2016). Dessa forma, o patrimônio genético constitui uma das maiores riquezas do país, do qual poderão ser extraídos princípios ativos para as indústrias de fármacos, cosméticos, biocombustíveis etc., que proporcionam benefícios que vão além do fornecimento de recursos a atingem a sociedade como um todo (SANTOS, 2018), e as regiões ricas em biodiversidade passaram a ser percebidas como fonte de prospecção genética (CORDEIRO, 2015).

Atividades que têm como base elementos oriundos da biodiversidade e/ou do patrimônio genético desempenham importante papel na economia brasileira. Destaca-se, por exemplo, a venda de medicamentos no Brasil, que gerou um faturamento de R$ 131,2 bilhões em 2022 (CMED, ANVISA, 2023); e o segmento de higiene pessoal, perfumaria e cosmético, com faturamento de R$ 22,9 bilhões em 2022 (ABIHPEC, 2023); A participação da agroindústria no PIB é de cerca de 40%, do setor florestal 4% e do setor pesqueiro por 1%; além disso, os produtos da biodiversidade representam 31% das exportações. 

A biodiversidade exerce protagonismo na agricultura, e nas indústrias de cosméticos e de fármacos. “Dos 120 princípios ativos atualmente isolados de plantas superiores, e largamente utilizados na medicina moderna, 75% têm utilidades que foram identificadas pelos sistemas tradicionais. Menos de doze são sintetizados por modificações químicas simples; o resto é extraído diretamente de plantas e depois purificado” (SHIVA, 2001: 101). Enquanto “três quartos de todas as drogas utilizadas pela indústria farmacêutica derivam de plantas antes utilizadas na medicina indígena.” (ALVES, 2002).

É necessário, contudo, o fortalecimento de mecanismos que garantam que parte desse faturamento seja investido em ações de preservação e renda para as comunidades locais. A despeito de a biodiversidade ser vista como recursos para indústrias farmacêuticas e de biotecnologia, com a geração de grandes lucros, a sua manutenção é feita por comunidades locais (SHIVA, 2001).

Os números expressivos desses faturamentos não refletem o potencial de geração de riqueza da biodiversidade brasileira. A fabricação de medicamentos provenientes de plantas tem aumentado em todo o mundo, movimentando bilhões de dólares anualmente em países como Alemanha, França e Itália (CORDEIRO, 2015). Contudo, a biodiversidade brasileira é subutilizada no país, sendo o Brasil extremamente dependente da tecnologia dos países desenvolvidos. O mercado farmacêutico no Brasil, por exemplo, é composto principalmente por empresas multinacionais, enquanto as indústrias nacionais, pouco capitalizadas e com pouca capacidade de inovação, desempenham etapas de menor valor agregado (TEIXEIRA, 2014).

3.4. O sistema internacional de registro de patentes e a biopirataria

Existe um sistema jurídico internacional que possibilita a apropriação dos recursos pertencentes ao patrimônio genético, uma vez que não há no sistema jurídico de propriedade industrial a obrigação de indicação do aproveitamento e/ou apropriação dos recursos genéticos naturais da biodiversidade brasileira ou do conhecimento tradicional associado (FERES, 2020).

A apropriação indevida dos recursos genéticos naturais constitui a biopirataria, definida por Barbosa (2017) como o “acesso não autorizado às informações genéticas e ao conhecimento popular associado ao patrimônio genético. Como o uso pretendido com as informações genéticas da biodiversidade são a pesquisa, inovação e desenvolvimento de novos produtos e processos”.

Para Alves (2002), a biopirataria é uma consequência da transformação da biodiversidade em fonte de recursos, “consubstanciada na exploração predatória, indevida ou clandestina da fauna e da flora, sem qualquer pagamento da matéria prima. É, em outras palavras, a usurpação de um conhecimento sem o retorno respectivo.”

O conceito trazido por Cordeiro (2015): “consiste na coleta de materiais para fabricação de medicamentos no exterior sem o pagamento de royalties ao Brasil”. 

Chama a atenção o fato de não haver uma definição jurídica para a biopiratatia, nenhum dos principais dispositivos legais sobre o patrimônio genético definem a biodiversidade, assim, tanto a Lei da Biodiversidade, a CDB, quanto o Decreto 8.776/2016 são omissos em relação à essa conceituação.

O termo biopiratatia foi lançado em 1993, pela Fundação Internacional para o Progresso Rural ONG RAFI (hoje ETC-Group), para descrever o registro de patentes, por empresas multinacionais e instituições científicas, contendo elementos do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado (CORDEIRO, 2015).

Apesar de ser uma terminologia recente, trata-se de uma prática antiga, com suas raízes na colonização, caracterizada pela busca de territórios para povoar e ter domínio, explorar os recursos naturais e o conhecimento dos povos tradicionais (ALVES, 2002). A biopirataria, atualmente, nada mais representa do que a insistência dos países ricos em explorar os recursos naturais de países que outrora foram suas colônias. O instrumento das patentes e a engenharia genética são usados como meio de proteção da pirataria das riquezas de outros povos e do estabelecimento de novas colônias (SHIVA, 2001).

No mundo atual, a biopirataria constitui a continuidade do processo de colonização, usurpação e exploração das riquezas biológicas iniciado pelas grandes expedições exploradoras de Portugal e Espanha e continuada pelo colonialismo agrícola praticado pelas nações europeias (ALVES, 2002).

O Decreto 8.776/2016 traz a tipificação das infrações envolvendo o patrimônio genético e o CTA e suas respectivas sanções. Contudo, a eficácia da legislação brasileira é limitada, uma vez que seus efeitos tendem a permanecer restritos ao território brasileiro (BARBOSA, 2017). Um sistema de ordenamento limitado no tempo e no espaço tem se mostrado inadequado em um mundo globalizado, de forma que os mecanismos processuais de controle de conflitos não são suficientes para solucionar tensões, antagonismos e disputas (ALVES, 2002).

Nesse contexto, ao mesmo tempo que o registro de patente cumpre com o papel de assegurar a proteção legal à propriedade industrial, servindo também como instrumento de divulgação da informação tecnológica e estudos métricos da informação relacionados à produção e o desenvolvimento tecnológico, demonstra sinais de apropriação dos recursos naturais brasileiros pelos países desenvolvidos (CORDEIRO, 2015), uma vez que o sistema internacional de propriedade intelectual (TRIPS) estabelece que, para a concessão de patentes sobre produto ou processo biotecnológico, devem ser cumpridos os requisitos de inovação, aplicação industrial, resultar de atividade inventiva realizada pelo requerente, sem qualquer referência à origem do patrimônio genético. (BARBOSA, 2017). Ademais, é questionável a aplicabilidade desses requisitos no patenteamento de espécies biológicas, tendo em vista que as sequências genéticas não constituem uma criação oriunda do trabalho humano, tratando-se, nesses casos, apenas da sua decodificação (ALVES, 2002).

A CDB, por sua vez, não dispõe de mecanismos que obrigue a comprovação de autorização de acesso ao patrimônio genético e CTA emitida pelo país provedor para a obtenção de patente, nem prevê a aplicação de sanções aos Estados desafiantes, que concedem patentes aos biopiratas (BARBOSA, 2017).

A biopirataria está intimamente relacionada à apropriação indevida do CTA. Além do uso das espécies pertencentes ao patrimônio genético, os registros de patentes geralmente também estão associados à apropriação dos saberes dos povos tradicionais. A utilização dos conhecimentos dos povos tradicionais pela indústria para registro de patentes sobrepõe-se aos saberes dessas comunidades e criam monopólios legalmente permitidos (FERES, 2020).

Não são raros os casos de registros de patentes por empresas estrangeiras relacionadas a espécies pertencentes ao patrimônio genético nacional, tais como curare, jaborandi, andiroba, jararaca, cupuaçu, copaíba, açaí, castanha-do-pará, a ayahuasca, o cunaniol, a espinheira santa, o jambu e a unha de gato. A despeito de casos conhecidos, não há como precisar a quantidade e o valor de tudo que é retirado da biodiversidade brasileira, sendo os prejuízos gerados pela biopirataria algo difícil de mensurar (CORDEIRO, 2015). 

O açaí gerou um caso de grande repercussão, ao ser registrada patente de açaí pela empresa japonesa K.K Evyla Corporation em 2003, sendo a empresa obrigada a cancelar a patente após intervenção do governo brasileiro. Esse resultado, porém, não é alcançado pela maioria das patentes registradas por empresas estrangeiras a partir das espécies nativas, trazendo o Babaçu como exemplo, verifica-se que os maiores depositantes de patentes são empresas estrangeiras, sendo questionável se, a despeito da Lei do Patrimônio Genético, empresas e países estrangeiros estão tendo livre acesso patrimônio genético brasileiro e procedendo ilegítimos registros de patentes (CORDEIRO, 2015).

Em um estudo de revisão acerca de registros de patentes no Reino Unido, entre 1976 e 2010, envolvendo recursos genéticos e o conhecimento tradicional associado de outras nações, os autores identificaram 567 documentos que continham referência a espécies provavelmente pertencentes ao patrimônio genético brasileiro, porém sem que houvesse referência na patente quanto à sua origem (OLDHAM; BARNES; HALL, 2015). 

Tal fato pode ser decorrente de uma baixa proteção de tecnologias derivadas de extratos vegetais nacionais, sendo os principais depositantes de patentes que utilizam derivados de recursos vegetais brasileiros empresas, muitas vezes oriundas de outros países, especialmente dos Estados Unidos e da China (TENÓRIO, 2019).

Essas práticas são de difícil controle pelo fato de haver uma limitação territorial de atuação dos órgãos de Estado e de aplicação da legislação, enquanto há uma rede de associação ilegal composta por centros de pesquisa e empresas no exterior, detentora de ferramentas para obtenção de amostras, manipulação de informações genéticas e remessa (BARBOSA, 2017). 

4. CONCLUSÃO

A engenharia genética e as ciências ômicas trouxeram mudanças no perfil do tráfico de recursos naturais, substituindo caçadores de plantas e animais por exploradores de genes e da busca por combustíveis fósseis e de metais raros pelos recursos genéticos e biológicos. Além dos ganhos econômicos obtidos a partir dos registros de patentes, vários fatores contribuem para que a biopirataria seja vista como um empreendimento vantajoso, tais como falta de regulamentação, facilidade da prática, fiscalização e vigilância de difícil controle, sendo difícil ou raramente detectada. 

A luta contra a biopirataria requer a atuação de diversos atores e a ruptura do processo de “colonização”, que perdura por séculos, e que desagrada os países desenvolvidos, sendo necessário mudanças no sistema internacional de propriedade intelectual a fim de impedir registros de patentes de produto biotecnológico sem autorização do Estado detentor da biodiversidade. Internamente, os desafios são proporcionais à dimensão territorial e à biodiversidade do país e incluem a vulnerabilidade social impostas aos povos tradicionais no processo de biopirataria; a falta de consciência acerca do valor real e inestimável da biodiversidade; as dificuldades de controle e fiscalização da informação genética, tanto em sua dimensão física, como virtual e microscópica. Enquanto isso, os órgãos e entidades de controle vão atuando em um contexto de “reserva do possível”.

REFERÊNCIAS

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1 Laboratório de Bioquímica Biotecnologia e Bioprodutos, Departamento de Bioquímica e Biofísica, Instituto de Ciências da Saúde, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia – Brasil;
*Autora correspondente: luzimargonzaga@gmail.com; luzimar@ufba.br