REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202503191742
Bruno Calado de Araújo1
Resumo: Os crimes contra as instituições democráticas, artigos 359-L e 359-M (abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado), estão previstos no Título XII do Código Penal, que abriga os crimes contra o Estado Democrático de Direito. Tais crimes são autônomos, prevêem lesões diferentes ao bem jurídico tutelado, conforme demonstrado a partir da análise oriunda dos métodos de interpretação clássicos da Hermenêutica Jurídica (gramatical, lógico, sistemático e histórico), que aprofundam a classificação penalista tradicional dos referidos delitos. Além da autonomia dos dois tipos, concluiu-se também pela incorreção da previsão normativa de tais tipos penais no Código Penal, pois o Título XII do CP deveria constituir um diploma legal próprio, inclusive com suas próprias normas gerais. Metodologicamente, a pesquisa é bibliográfica e documental, de caráter descritivo.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Instituições democráticas. Abolição violenta. Golpe de Estado. Métodos de interpretação.
INTRODUÇÃO
A recente alteração do Código Penal brasileiro, que revogou a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983) e inseriu o Título XII no referido Código (Crimes contra o Estado Democrático de Direito), trouxe ao debate acadêmico uma questão importante a ser respondida: qual a relação que existe entre os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado (artigos 359-L e 359-M, respectivamente), do Código Penal? Seriam eles crimes semelhantes, praticamente idênticos?
Ou são dois crimes diferentes, com semelhanças, mas que implicam em formas diversas de lesão ao bem jurídico tutelado?
A hipótese deste texto é a de que os dois crimes são autônomos, independentes e que realmente guardam relação de semelhança, não havendo consunção entre ambos.
Nesse sentido, o objetivo geral é diferenciar os artigos 359-L e 359-M e, de forma específica, analisá-los a partir da perspectiva dogmática penal e interpretá-los a partir dos métodos de interpretação considerados como clássicos pela Hermenêutica Jurídica (métodos de interpretação gramatical, lógica, sistemática e histórica).
Metodologicamente, quanto às fontes, a pesquisa foi bibliográfica e documental.
Quanto ao seu objetivo de pesquisa, seu caráter é descritivo.
1. CLASSIFICAÇÃO PENALISTA TRADICIONAL
Neste primeiro momento, faremos uma análise dos crimes previstos nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, a partir da abordagem tradicional do Direito Penal, que possui – via de regra – os seguintes elementos, para a classificação dos delitos:
a) Bem jurídico tutelado;
b) Sujeito passivo;
c) Sujeito ativo;
d) Tipo objetivo;
e) Tipo subjetivo.
Depois de analisar cada um desses elementos, passaremos a uma abordagem interpretativa pautada nos métodos clássicos de interpretação, orientados pela Hermenêutica Jurídica, para aprofundar a análise dos dois crimes. Esta análise preliminar está amparada pelas lições do “Tratado de Direito Penal” revisado, de autoria do Prof. Cezar Roberto Bitencourt2, para darmos os primeiros passos na caracterização dos delitos3.
1.1 Bem Jurídico Tutelado
Preliminarmente, o Título XII do Código Penal (CP) já aponta para o “Estado Democrático de Direito”, como objeto de proteção da esfera penal. Ou seja, podemos aferir que se trata da proteção do próprio Estado – qualificado pelo regime democrático e submetido ao império das leis. Os crimes previstos no referido Título, então, agridem imediatamente o próprio Estado Democrático de Direito (EDD).
Porém, de forma mediata, os crimes previstos nos artigos 359-L e 359-M do CP atingem diretamente as “instituições democráticas”, ou seja, agridem de maneira o EDD a partir de condutas lesivas aos seus pilares. Mais adiante, quando tratarmos da interpretação a partir dos métodos clássicos da Hermenêutica Jurídica, torna-se-á perceptível a diferença das ofensas ao bem jurídico EDD, pelos dois tipos mencionados.
1.2 Sujeito Passivo
O Estado em si é o sujeito passivo dos delitos ora analisados. Porém, de acordo com afirmação anterior, não é um Estado qualquer: é o reconhecidamente democrático e pautado pelas leis. De forma mediata, o sujeito passivo é o elemento “povo” que constitui esse mesmo Estado – uma vez que o regime democrático, as leis e a própria Constituição são conquistas históricas e, de forma mais abrangente, a afirmação histórica dos Direitos Humanos duramente reconhecidos e conquistados ao longo dos séculos.
Lembrando que o conceito de povo é o de “um conjunto de indivíduos que, através de um momento jurídico, se unem para constituir o Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico de caráter permanente, participando da formação da vontade do Estado […]”4.
Por outro lado, podemos entender a democracia como “o regime em que o povo se governa a si mesmo, quer diretamente, quer por meio de funcionários eleitos por ele para administrar os negócios públicos e fazer as leis de acordo com a opinião geral”5
Atentar contra o EDD, então, é atentar imediatamente contra o Estado (enquanto ente jurídico, com personalidade jurídica) regido por leis e com a democracia representativa assegurada pelo voto universal. Mediatamente, é atentar contra o povo (elemento constitutivo), através do atentado contra as decisões desse mesmo povo, ou seja: atentar contra o voto exercido de forma livre e universal; contra a dignidade da pessoa humana, com o exercício de juízos inquisitórios sem os freios e a garantia da lei.
Em outros termos, é pugnar contra a decisão soberana, popular e histórica da opção pelo Estado Democrático de Direito, vez que este é realizado pelas normas previstas na Constituição justamente com a “perspectiva de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana”6
1.3 Sujeito Ativo
Não há qualquer especificidade para o cometimento do delito, na perspectiva do sujeito que pratica a conduta punível. Pode ser praticada por qualquer pessoa ou grupo de pessoas, integrantes de grupos civis ou paramilitares. Também não há distinção entre pessoas integrantes ou não da estrutura estatal e, dessa forma, agentes do próprio governo e mesmo órgãos, membros ou integrantes dos Três Poderes estão abarcados como possíveis sujeitos ativos dos dois delitos.
Nesse sentido, os próprios agentes públicos integrantes das Forças Armadas ou das forças policiais podem figurar como sujeitos ativos dos crimes aqui estudados.
Dessa forma, discordamos, com a devida vênia, da doutrina consultada, que entende o crime de golpe de Estado como obrigatoriamente praticado pelas Forças Armadas7.
1.4 Tipo Objetivo e Tipo Subjetivo
De início, cumpre esclarecer que a doutrina adotada para a elucidação dos elementos constitutivos dos delitos analisados percebe-os como idênticos8 e, dessa forma, suas conclusões acerca do tipo objetivo e do tipo subjetivo de cada um dos crimes são coincidentes. Ou seja, em que pese reconhecer uma “pequena distinção no que se refere à legitimidade ativa”9 – vez que a abolição violenta pode ser praticada por qualquer organização revolucionária ou forças armadas e o golpe de Estado necessariamente pelas forças armadas (crime próprio) – trata-os como idênticos.
Dessa forma, o tipo objetivo dos delitos é “tentar depor governo legitimamente constituído10 e o tipo subjetivo dos dois é “constituído pelo dolo direto representado pela vontade consciente de ‘tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído’, com a finalidade de assumir o poder pela força, ilegitimamente, portanto11. Perceba-se, então, que o tratamento dado aos dois delitos é o da profunda semelhança, com os respectivos tipos objetivo e subjetivo sendo iguais. Mais à frente, demonstraremos que tal raciocínio, com as devidas escusas, é incorreto.
1.5 Síntese da Classificação
Para facilitar a compreensão articulada e dialogada dos elementos até aqui analisados, apresentamos o seguinte quadro-resumo:
Quadro 1 – Síntese da classificação penalista tradicional
Elemento | Art. 359-L | Art. 359-M |
Bem Jurídico | Estado Democrático de Direito | Estado Democrático de Direito |
Sujeito Passivo | Estado (imediato) Elemento “Povo” (mediato) | Estado (imediato) Elemento “Povo” (mediato) |
Sujeito Ativo | Forças Armadas Organização Revolucionária | Forças Armadas |
Tipo Objetivo | Tentar depor governo legitimamente constituído | Tentar depor governo legitimamente constituído |
Tipo Subjetivo | Dolo direto | Dolo direto |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Mas esse quadro não nos apresenta todas as características próprias de cada um dos tipos aqui analisados. Apresenta, certamente, algumas pistas, mas a essência de cada uma das condutas (principalmente quando trata do tipo objetivo) não é desvelada e tem-se a falsa impressão de que não passam de mero jogo de palavras, para uma mesma conclusão: golpe de Estado.
Por esse motivo, precisamos aprofundar a análise e lançar mão dos métodos clássicos de interpretação que a Hermenêutica Jurídica nos legou e que, em momentos de obscuridade ou suposta contradição na percepção do conteúdo normativo, trazem a luz do esclarecimento.
2. INTERPRETAÇÃO PELOS MÉTODOS TRADICIONAIS
A Hermenêutica Jurídica clássica, a partir de Savigny, possui métodos de interpretação que são integrados e devem ser utilizados conjuntamente e de forma escalonada. Seguiremos rigorosamente essa metodologia e, para fins desta análise, utilizaremos 4 desses métodos:
a) Interpretação gramatical;
b) Interpretação lógica;
c) Interpretação sistemática;
d) Interpretação histórica.
A partir desses métodos, aprofundaremos a análise realizada anteriormente, destacando as principais diferenças e similitudes entre os crimes contra as instituições democráticas.
2.1 Interpretação Gramatical
O primeiro método tem por escopo identificar o sentido da norma a partir de seus elementos gramaticais, ou seja, é uma verdadeira interpretação a partir de cada elemento literal. Há que se ter o devido cuidado com a temporalidade (e historicidade) do texto normativo a ser esquadrinhado – em função da época e contexto em que foi produzido. Porém, no caso aqui tratado, não estamos diante de um texto medievo ou de outro período histórico, ao contrário, é um texto de lei recente e contemporâneo.
Dessa forma, este método “busca o significado literal das palavras que são examinadas isoladamente ou no contexto da oração, mediante o emprego de meios gramaticais ou etimológicos”12
Temos a consciência de que a interpretação gramatical, por si mesma, não é suficiente13 para interpretarmos com precisão uma norma jurídica, porém, no caso dos crimes contra as instituições democráticas, é o método crucial para verificarmos as diferenças entre os dois tipos.
Vamos, assim, decompor a redação de cada um dos artigos, apontando os seus respectivos elementos e definições, para, na sequência, buscar a sua interpretação lógica.
2.1.1 Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Eis a redação do preceito primário, do artigo 359-L, do CP: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.
Vamos analisar cada elemento que compõe esse delito, a partir do quadro abaixo:
Quadro 2 – Análise do art. 359-L, do CP
AÇÃO | impedir ou restringir / o exercício dos poderes constitucionais |
QUALIDADE DA AÇÃO | violenta ou com grave ameaça |
OBJETIVO | abolir o Estado Democrático de Direito |
Fonte: Elaborado pelo autor.
As ações (ou condutas) previstas para a abolição dos Estado Democrático de Direito são impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais.
A partir desses elementos, podemos questionar: quais são os “Poderes constitucionais”14?
Estão previstos expressamente no artigo 2º, da Constituição brasileira: Legislativo, Executivo e Judiciário15.
Dessa forma, para abolir o EDD não é necessário abolir um mais Poderes: basta que qualquer impedimento ou restrição ao exercício desse(s) Poder(es) ocorra – com o intuito de aboli-lo, ou seja, alijá-lo de um ou mais de seus Poderes constitucionalmente constituídos.
Um exemplo prático: diante de uma situação de comoção nacional, criada com a notícia de um suposto esquema criminoso desbaratado pelo Departamento de Polícia Federal, um grupo de pessoas organiza a invasão do edifício sede do Supremo Tribunal Federal, com o intuito de impedir o funcionamento da referida Corte. Alega o grupo, em suas redes sociais, que “o STF é o problema do Brasil e deve acabar” e efetua a invasão de forma violenta, agredindo funcionários. Dessa forma, impede os trabalhos do referido Tribunal Superior, impõem um verdadeiro caos jurídico no país, com a perda de dados e com o sobrestamento por tempo indeterminado das audiências a serem realizadas pela referida Corte. De fato, não conseguem “acabar” com o STF, mas restringem o exercício da jurisdição pelos(as) Ministros(as), impedindo também os serviços prestados pelos auxiliares da Justiça.
Ora, não há menção alguma ao “Estado Democrático de Direito” mas, como vimos, o exercício – sem impedimentos ou restrições – de todos os Poderes constitucionalmente constituídos fomenta a existência do Estado Democrático de Direito.
Logo, a conduta dos invasores não apenas está enquadrada como crime contra as instituições democráticas (no exemplo dado, contra a instituição democrática “Poder Judiciário”, encarnado no Supremo Tribunal Federal), bem como está adequada tipicamente como crime contra o Estado Democrático de Direito – justamente por impedir o exercício da jurisdição da Suprema Corte brasileira.
Perceba-se que o exemplo não tem relação alguma com os tipos previstos na Lei 13.260/2016 (que disciplina o terrorismo), justamente porque a finalidadde desta última Lei, conforme seu art. 2º, é “provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. Poder-se-ia perguntar se o crime de terrorismo não seria um passo, no sentido da progressividade criminosa, que poderia culminar no crime de abolição do EDD. Acreditamos que não, pois a gênese de ambos os crimes é completamente diferente: no caso da abolição, a ação é dirigida contra os Poderes constituídos – e apenas contra eles. No caso do terrorismo, o alvo da provocação do terror é a sociedade como um todo. Dessa forma, ainda que difícil a caracterização do tipo subjetivo, não há correlação alguma no sentido de crime-meio, crime-fim e progressividade criminosa.
Outro ponto a ser anotado é a possibilidade da participação dos agentes do Estado (sejam militares, forças policiais ou demais órgão de segurança pública), bem como da sociedade civil como um todo. Ou seja, realmente qualquer pessoa ou grupo de pessoas pode figurar como sujeito ativo do delito – não necessariamente integrantes das Forças Armadas.
2.1.2 Golpe de Estado
Seguindo em nosso estudo, passaremos à análise do outro crime contra as instituições democráticas: o golpe de Estado.
Eis a redação do preceito primário, do artigo 359-M, do CP: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.
Da mesma forma que fizemos com o crime de abolição violenta, vamos separar cada elemento do crime em destaque:
Quadro 3 – Análise do art. 359-L, do CP
AÇÃO | Depor (ainda que de forma tentada) governo legitimamente constituído |
QUALIDADE DA AÇÃO | violenta ou com grave ameaça |
OBJETIVO | deposição do governo legitimamente constituído |
Fonte: Elaborado pelo autor.
A essência desse crime está justamente na ação nuclear “depor”. Na verdade, o verbo “depor” não apenas distingue esse crime do crime de “abolição violenta”, como também lhe atribui maior gravidade. Senão, vejamos.
Depor é destituir do cargo16 ou deixar o cargo ou função, por imposição17. O afastamento do cargo não ocorre de forma voluntária.
Por outro lado, o nomen iuris desse crime, no Código Penal, é “golpe de Estado”.
De forma geral, o golpe de Estado ocorre por meio de funcionários do Estado e também pode abarcar elementos que também fazem parte do aparelhamento estatal. Seu primeiro objetivo é “ocupar e controlar os centros de poder tecnológico do Estado, tais como as redes de telecomunicações, o rádio, a TV, as centrais elétricas, os entroncamentos ferroviários e rodoviários. Isso permitirá o controle dos órgãos do poder político”18.
Porém, antes de avançarmos, cumpre esclarecer um conceito importante.
A palavra “governo” pode suscitar diversas dúvidas quanto à sua precisão. De que governo estamos falando, uma vez que a Ciência Política se ocupa em estabelecer diversas classificações? Em outras palavras: o governo se restringe, no crime de golpe de Estado, ao
Poder Executivo ou abarca os Três Poderes, compreendendo “governo” como sinônimo de “exercício dos Poderes”?
Historicamente, não se trata de golpe de Estado com a deposição dos membros do Poder Judiciário, por exemplo. O golpe é justamente em cima do Poder que tem o maior alcance burocrático e que tem por finalidade a administração do Estado. Apesar de executar as ordens normativas do Legislativo e acatar as decisões do Judiciário, o Executivo é o responsável pelo governo e pelos negócios do Estado.
No presidencialismo, o Presidente da República assume, inclusive, as funções de chefe de Estado e chefe de governo. É o “comandante supremo” das Forças Armadas. Nesse sentido, em que estamos diante da separação dos poderes, a doutrina classifica o governo como presidencialista, parlamentarista ou convencional19. E o governo presidencialista está calcado justamente na rígida separação entre os poderes.
Portanto, quando o tipo penal do golpe de Estado trata de governo, está tratando exclusivamente do Poder Executivo. Com a adequação típica, pode haver como resultado a deposição de órgãos do Poder Judiciário ou membros do Legislativo – mas são apenas efeitos decorrentes, que em nada concorrem para a tipificação (a não ser para a caracterização do preceito secundário, ou seja, responsabilização pela violência e/ou grave ameaça a esses agentes do Estado, em decorrência da tentativa ou consumação do golpe de Estado).
2.2 Interpretação Lógica
A interpretação lógica é “aquela que se leva a efeito mediante a perquirição do sentido das diversas locuções e orações no texto legal, bem assim através do estabelecimento da conexão entre os mesmos”20.
Dessa forma, este método de interpretação é oriundo necessariamente dos elementos fornecidos pelo método gramatical21.
Além disso, essa forma de interpretação “constitui o principal meio para a descoberta do exato mandamento que o poder estatal prescreveu ao estabelecer a norma jurídica”22. Na seara penal, a precisão dos tipos e da própria norma que estabelece os crimes é condição essencial do Direito Penal moderno.
O espaço para a discricionariedade e subjetividade (inclusive de quem julga) é amparada no terreno sólido da redação descritiva de uma conduta punível, com seus contornos precisados na própria lei. É importante destacar também que “o hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática”23. E a finalidade dos artigos previstos no capítulo dos crimes contra as instituições democráticas é exatamente punir duas condutas diferentes, tanto no aspecto descritivo quanto na gravidade do resultado de suas ações.
Se na interpretação gramatical analisamos e detectamos os elementos de cada um dos tipos, agora vamos compará-los, para traçar-lhes o sentido e as respectivas diferenças.
Para tanto, comecemos utilizando os dois quadros utilizados – entretanto, neste momento, os utilizaremos de forma simultânea e comparativa, com a adoção de outros elementos diferenciadores:
Quadro 4 – Comparação dos elementos, na interpretação lógica
ELEMENTOS | ABOLIÇÃO VIOLENTA | GOLPE DE ESTADO |
AÇÃO | Impedir ou restringir | Depor (ainda que de forma tentada) |
ALVO DA AÇÃO | o exercício dos poderes constitucionais | governo legitimamente constituído |
QUALIDADE DA AÇÃO | violenta ou com grave ameaça | violenta ou com grave ameaça |
SUJEITO ATIVO | Qualquer pessoa ou grupo de pessoas | Qualquer pessoa ou grupo de pessoas |
OBJETIVO | Impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais (qualquer um dos Poderes) | depor governo legitimamente constituído (apenas Poder Executivo) |
CONSEQUÊNCIA MEDIATA | manutenção do “corpus” dos Poderes constituídos, porém impedidos ou restringidos | retirada forçada do “corpus” do governo legitimamente constituído |
CONSEQUÊNCIA IMEDIATA | abolição do Estado Democrático de Direito, com a manutenção do “corpus” dos Poderes constitucionais. | abolição do Estado Democrático de Direito, com a retirada do “corpus” do Poder Executivo. |
PENAS | Reclusão, de 4 a 8 anos E a pena correspondente à violência | Reclusão, de 4 a 12 anos E a pena correspondente à violência |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Se no crime de “abolição violenta” basta o impedimento ou a restrição da ação dos poderes constituídos – que, logicamente, não prevê a retirada de qualquer órgão ou membro de Poder, o golpe de Estado prevê exatamente a deposição, a retirada à força.
Em outras palavras: o crime de abolição violenta pode ocorrer sem o afastamento do Presidente da República e de seus Ministros de Estado, sem o afastamento dos parlamentares federais ou mesmo do corpo de magistrados e magistradas dos Tribunais Superiores. Diversamente, o crime de golpe de Estado somente pode ocorrer (tentado ou não) com o afastamento do governo (cujo alvo é encarnado no Poder Executivo).
A conditio sine que non do crime de abolição é o impedimento ou a restrição, tão somente. A conditio do golpe de Estado, é a retirada das lideranças do Poder Executivo, personificadas no Presidente da República, Vice-Presidente (núcleo da ação) e Ministros (por decorrência).
Por esse motivo, o legislador diferenciou o preceito secundário de cada uma das duas normas penais em questão. Restringir ou impedir a atuação do “corpus” de um ou mais dos
Poderes, mediante violência ou grave ameaça, é menos grave do que depor ou retirar à força o “corpus” de um dos Poderes – o Executivo – também mediante violência ou grave ameaça.
Quanto à progressividade criminosa, entendemos que não é possível, uma vez que o Poder Executivo pode ser inicialmente alvo do crime de abolição violenta, com a restrição ou impedimento de seu exercício e, na sequência, ser alvo da deposição. Impedir e restringir são uma conduta – depor é outra. Logo, poder-se-ia estar diante de um concurso material de crimes, com duas condutas autônomas e diferentes. Lembramos que as penas dos dois crimes, inclusive, são desiguais. Por decorrência, não entendemos o crime de abolição violenta (pena menor) como crime-meio, justamente pelo caráter autônomo dos dois delitos: não há golpe de Estado, ou seja, deposição de governo necessariamente passando pelo impedimento ou restrição ao exercício do poder desse mesmo governo.
Por fim, não poderíamos deixar de mencionar um último apontamento, a partir da própria Lógica Clássica, onde o princípio da identidade, graficamente, é representado por “a=a”24 e “b=b” – ou seja, uma bola é igual a uma bola e uma cadeira é igual a uma cadeira.
Dessa forma, se temos um crime contra as instituições democráticas, onde o Estado Democrático de Direito é atacado em função de um ou mais de seus poderes constituídos serem impedidos ou restringidos (mas com a manutenção de seu “corpus”), mediante violência ou grave ameaça, temos o crime de abolição violenta, ou seja, “a”. Por outro lado, se temos outro crime contra as instituições democráticas, onde o Estado Democrático de Direito também é abolido, mediante violência ou grave ameaça, porém através da troca forçada do “corpus” do Poder Executivo (“governo”), temos “b”.
Pelo princípio da identidade, então, se a abolição violenta é igual a “a” e o crime de golpe de Estado é “b”, não podemos afirmar que “a=b”, justamente pelas características próprias de cada um deles.
2.3 Interpretação Sistemática
O primeiro passo, deste percurso interpretativo, foi identificar os elementos e as peculiaridades de cada um dos crimes até aqui analisados; num segundo momento, para compreender as suas finalidades e a sua própria lógica, comparamos os elementos essenciais e traçamos suas diferenças. E, a partir das diferenças, demonstramos que se tratam de duas condutas diferentes, autônomas e com gravidade diferenciada (a partir das penas a elas cominadas).
Porém, esses artigos não existem per si, mas integrando um corpo normativo ou, melhor dizendo, um diploma legal.
Dessa forma, a interpretação sistemática pesquisa uma norma em “conexão com as demais do estatuto onde se encontra”25
A interpretação sistemática busca a interpretação da norma de forma articulada com o sistema em que está inserida. Na forma mais ampla possível, o sistema jurídico pode ser considerado o sistema global de um país, do Direito Internacional ou mesmo a totalidade de cada um dos sistemas de direito positivo tutelados pelos respectivos Estados.
Contudo, nosso recorte é em sua menor expressão e compreenderá o sistema contido no Título XII do Código Penal brasileiro26. Em outras palavras, compreendemos o referido Título como subsistema inserido no CP, que trata de um conjunto de crimes que atentam contra o mesmo bem jurídico.
Assim, temos o seguinte sistema, a partir de seus capítulos (elementos desse sistema):
a) Capítulo I – Dos crimes contra a soberania nacional;
b) Capítulo II – Dos crimes contra as instituições democráticas;
c) Capítulo III – Dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral;
d) Capítulo IV – Dos crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais;
e) Capítulo VI – Disposições comuns,
Com exceção do Capítulo VI, que apresenta as disposições comuns a cada um dos capítulos anteriores, temos 5 capítulos com crimes relacionados à lesão ao EDD. Nesse sentido, podemos compreendê-los também como 5 formas de ofender o EDD ou, de forma ainda mais articulada (compreensão de sistema, ou articulação entre os respectivos elementos), como os “pilares fundamentais” do EDD.
A perspectiva de pilares fundamentais do EDD é justamente por conta do caráter fragmentário do Direito Penal. Não estamos excluindo outros elementos que porventura constituam o EDD – estamos apenas concatenando os elementos previstos no sistema do Título XII do CP com a própria essência do Direito Penal, “ultima ratio” na proteção de determinados bens jurídicos selecionados.
Reduzindo os elementos a categorias, temos a soberania, as instituições democráticas, o processo eleitoral e os serviços essenciais.
Dessa forma, sistematicamente, podemos compreender o EDD, a partir do sistema previsto no CP, como o Estado soberano, com instituições democráticas – atuantes inclusive no processo eleitoral – e que presta serviços essenciais.
Assim, quando focamos na questão das instituições democráticas, percebemos que é um dos elementos do caráter sistemático do EDD, previsto no CP, que pode ser ainda mais pormenorizado, a partir das conclusões obtidas na interpretação gramatical: o EDD pode ser entendido como Estado soberano, com instituições democráticas (Poderes Constitucionais e governo legitimamente constituído atuantes em sua plenitude – inclusive no período eleitoral) e que presta serviços essenciais.
Portanto, da perspectiva sistemática, os artigos 359-L e 359-M tutelam os Poderes constitucionais e o governo legitimamente constituído, componentes das instituições democráticas, que são pilares do Estado Democrático de Direito – ao lado da soberania e dos serviços essenciais.
2.4 Interpretação Histórica
A última forma de interpretação é a histórica. Na verdade, complementa os três métodos anteriores, indicando a gênese, o processo de formação e – dependendo da temporalidade da norma – o seu percurso ao longo do tempo.
Nesse sentido, “baseia-se na investigação dos antecedentes da norma. Pode referir-se ao histórico no processo legislativo, desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, discussão, emendas, aprovação e promulgação”27. Ou, ainda aos “antecedentes históricos e condições que a precederam”28
Assim, “são consideradas as condições específicas do tempo em que a norma incide e as condições em que ocorreu a sua gênese, de modo que ambos os sentidos se interpenetram, ajudando o primeiro sentido a aclarar o segundo”29.
Buscando os antecedentes histórico-legislativos da Lei nº 14.197/2021, que alterou o Código Penal e acrescentou o Título XII – que ora estamos analisando – encontramos duas informações pertinentes.
A primeira é a revogação da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983), que previa dois tipos penais muito similares aos que estamos analisando: No art. 17, da referida Lei revogada, temos o seguinte tipo: ”Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, com pena de reclusão, de 3 a 15 anos. Este crime é similar ao previsto no art. 359-M.
Por outro lado, o art. 18, também da lei revogada, possuía a seguinte redação: “Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados”, com pena prevista de reclusão de 2 a 6 anos.
Observe-se que são duas condutas diferentes, inclusive com diferença nas quantidades máxima e mínima de pena previstas.
A segunda constatação é a existência de dois projetos de lei (PL nº 4783/1990 e PL 2462/1991), de autoria do Deputado Federal Hélio Bicudo, que são os antecedentes legislativos da inserção do Título XII no CP.
O primeiro PL continha, em sua redação, a previsão do crime de “Insurreição” a ser inserido no Código, como art. 364, com a seguinte descrição típica: “Tentar, com emprego de grave ameaça ou violência, impedir ou dificultar o exercício de Poder legitimamente constituído. Não há previsão expressa do crime de golpe de Estado.
Na mesma linha, o segundo PL também previa o crime de “insurreição”, porém, com redação diferente, em seu art. 5º:
Tentar, por movimento armado ou não, alterar ou modificar efetivamente a Constituição, em desobediência ao processo legislativo que ela encerra, com o fim de romper a forma federativa de governo; eliminar o voto direto e secreto; promover o desequilíbrio entre os Poderes e atentar contra os direito e garantias individuais.
Perceba-se que o tipo não apenas está redigido de forma diversa daquela prevista no PL anterior, como aglutina uma série de condutas consideradas como insurreição.
Interessante também o posicionamento do autor dos dois PL’s, na justificativa do PL 2462/1991, afirmando que os crimes previstos no respectivo Projeto deveriam ser objeto de especial – tal qual apresentou ao Parlamento federal. Isso porque são crimes que não são crimes “comuns” e, consequentemente, próprios das relações individuais, sem caráter supra individual.
O legislador, de forma diferente, preferiu inserir os crimes contra o EDD no Código Penal e, o ponto mais significativo, dissociou as duas condutas previstas nos artigos 359-L e 359-M, provando, com isso, que são tipos autônomos e provocam lesão ao mesmo bem jurídico (EDD) de formas diferentes.
A título de comparação – com o aprofundamento na questão histórica – quanto ao crime de golpe de Estado, se levarmos em consideração a redação do tipo do art. 359-M, podemos considerar o episódio de 1964 (derrubada do governo e instalação de uma ditadura cívico militar) com a adequação típica? Ou, de forma diversa, se esse mesmo crime estivesse previsto à época do Golpe Militar, estaríamos diante da prática de tal delito?
A questão é espinhosa e requer uma leitura acurada dos estudos elaborados por algumas gerações de historiadores, para termos noção dos fatos e sua respectiva concatenação. Talvez seja mesmo impossível fazer tal comparação, porém, façamos uma tentativa e vejamos seu resultado.
Para a caracterização do crime de golpe de Estado, como vimos, é necessária a deposição do governo legitimamente constituído, através da violência ou grave ameaça.
Pois bem. O governo do Presidente João Goulart (Jango) era legitimamente constituído e o exercício da Presidência da República, em conformidade com a Constituição vigente à época.
Mas como ocorreu a deposição? Houve algum ato violento, havia alguma grave ameaça?
Thomas Skidmore, em sua consagrada obra no meio historiográfico, nos dá as pistas para desvendar esses questionamentos.
De início, o governo de Jango já sofria ameaças veladas e carregava em seu seio discórdias internas com os militares, principalmente no que diz respeito à disciplina militar. Seu alinhamento político com a esquerda radical contribuiu para o reforço do medo à “ameaça comunista”30. Já havia turbulência social, fomentada inclusive por décadas de processos conspiratórios31. Após o comício presidencial televisionado e realizado no Automóvel Clube, em 1964, o General Mourão Filho mobiliza parte do Primeiro Exército, em Minas Gerais, para marchar rumo à capital federal. Dias depois, O General Kruel adere à marcha, dando ordens para que seus tanques em São Paulo rumassem também para o Rio de Janeiro32. O Primeiro Exército, localizado no Rio de Janeiro e comandado pelo general Âncora, “não encontrava” as forças revoltosas, que deveriam ser rechaçadas por ordem de Jango – ou seja, aderiu à revolta cruzando os braços. Ao general Âncora, o general Assis Brasil deixou claro que o presidente não queria conflito militar. Jango viajou para Brasília, para oferecer resistência – e depois da mensagem de Assis Brasil a Âncora, o Primeiro e o Segundo Exércitos se congraçavam. Ato contínuo – após a fuga de Jango de Brasília para Porto Alegre – o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declara a vacância da presidência – mesmo sem amparo constitucional algum33. Está consumada a deposição do Presidente da República.
Obviamente, esse recorte sintetiza um momento histórico rico em detalhes, porém, nosso intuito é o de identificar as condutas e verificar se é possível correlacioná-las (ou não) ao crime de golpe de Estado capitulado hoje no Código Penal.
Primeiramente, não houve violência alguma. O que percebemos é um processo conspiratório que, aos poucos, foi eliminando as possibilidades de resistência do governo constituído. Todavia, a conduta dos generais Mourão Filho e Kruel assumem papel decisivo, pois representaram grave ameaça não apenas à integridade física do Presidente João Goulart, como grave ameaça contra a ordem pública e um prenúncio de guerra civil (basta lembrar que o governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, no mesmo final de semana da mobilização militar, entrincheirou-se no palácio e permanecia nele, armado com duas metralhadoras portáteis e uma pistola34.
Mas a grave ameaça está caracterizada. Todavia, essa grave ameaça somente tornou-se concreta quando Jango percebeu que o Primeiro Exército, sediado no Rio de Janeiro, não ofereceria resistência às forças revoltosas. O ato de vacância, por outro lado – mesmo inconstitucional – apenas confirmou a deposição do presidente, ocorrida horas antes.
Dessa forma, os generais Mourão Filho e Kruel concretizaram a deposição do Presidente da República, com a grave ameaça da utilização de suas tropas e tanques – oferecendo ameaça à integridade do Presidente e da população civil. Quanto ao general Âncora, a questão da autoria torna-se complexa, afinal, é coautor ou apenas partícipe? Nesse sentido, a doutrina mais autorizada nos esclarece que a participação, em suas duas formas (instigação e cumplicidade) é “a contribuição dolosa que se faz ao injusto doloso de outro.”35
Em princípio, não há apenas uma contribuição dolosa – a omissão do general Âncora concretizou a deposição do Presidente. Além disso, o tipo subjetivo está caracterizado, vez que a intenção do referido general golpista é muito clara: agir concorrentemente na deposição do governo.
Portanto, o golpe cívico-militar ocorrido em 1964 – em princípio – poderia ser compreendido também como a ocorrência do crime de golpe de Estado, nos moldes do artigo 359-M, do Código Penal.
CONCLUSÕES
A classificação penalista, da própria norma penal em seu preceito primário, constitui patrimônio inviolável do avanço dogmático desse ramo do Direito. Cada um dos seus elementos (bem jurídico tutelado, sujeito ativo e passivo do delito, tipicidade objetiva e subjetiva) tem sua própria historicidade e representam, em última análise, uma proteção frente ao direito de punir do Estado e a afirmação dos Direitos Humanos.
Porém, conforme demonstrado, diante da análise dos crimes contra o Estado Democrático de Direito – no que diz respeito ao ataque às instituições democráticas – necessitamos perquirir, analisar, esmiuçar a norma penal de forma mais profunda. E essa análise não demanda necessariamente métodos de interpretação complexos ou sofisticados (por exemplo, os modernos métodos de interpretação do Direito Constitucional), mas tão somente a submissão aos métodos de interpretação clássicos. Estes, observados de forma conjunta, podem desvelar e elucidar com precisão o conteúdo da norma penal – principalmente no que diz respeito à ação estatal em incriminar qualquer cidadão, cidadã ou grupos destes.
Acreditamos, em “ultima ratio”, que este tipo de interpretação é corolário do próprio princípio da legalidade. Afinal, a que tipos penais podem estar submetidos o povo, quando se trata de crimes contra as instituições democráticas?
E, nesse sentido, pudemos demonstrar a existência de 2 crimes autônomos, que prevêem duas condutas lesivas completamente diferentes em sua execução e em sua concretização – ainda que de forma tentada.
Além disso, demonstramos também que o nomen iuris adotado pelo Código Penal, de cada um dos crimes analisados, está tecnicamente incorreto quanto ao crime do art. 359-M, pois o tipo objetivo prevê a hipótese de deposição do governo para além do historicamente considerado “golpe de Estado” – justamente por não prever em sua redação a descrição do sujeito ativo do delito (militares ou forças policiais). E, por derivação, a abolição violenta é uma verdadeira inovação legislativa na seara penal, autônoma quando comparada ao crime de golpe de Estado.
Uma última conclusão, própria da análise sistemática, é a de que o Tìtulo XII do Código Penal não deveria estar abrigado pelo referido diploma legal. Esta afirmação é amparada em duas constatações simples:
a) A essência do Código Penal, mesmo no momento em que nos encontramos na Modernidade (e com a possibilidade normativa da responsabilização penal de pessoas jurídicas), não é a de guardião do Estado Democrático de Direito. Longe de querermos debater os crimes que deveriam compor ou não o Código (sem esquecer que há muito é conhecido como o “Estatuto do Delinquente”), entendemos que o Título XII envolve delitos diferenciados, que demandam – inclusive – normas gerais específicas, inerentes à complexidade de cada um dos tipos previstos;
b) Em decorrência da constatação anterior, o Título XII deveria estar previsto em uma lei ordinária própria, tal qual a Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei nº 1.079/50).
Por fim, surge uma última questão. Os Poderes constituídos estão constitucionalmente previstos em artigo próprio da Lei Maior. Mas de que âmbito tratam os crimes contra as instituições democráticas? Aparentemente, não há dificuldades para uma adequação típica desses delitos frente aos Poderes da União – vez que o artigo 3º da Constituição o declara de forma expressa. Mas e o impedimento ou restrição das atividades das Assembléias Legislativas, mediante violência ou grave ameaça, poderiam ser compreendidos como abolição violenta do EDD? Ou a deposição de governador, mediante violência ou grave ameaça, poderia ser considerado como crime de golpe de Estado – mesmo sendo este um governo constitucionalmente constituído, porém em outro nível (estadual), no âmbito da repartição de competências efetuada pela Constituição?
À primeira vista, tais questionamentos poderiam ser considerados como ingênuos mas, diante do diálogo entre o Direito Constitucional, o Direito Penal e a Ciência Política – amparado pela Hermenêutica Jurídica clássica – pode haver relações muito significativas para a construção da dogmática penal e, consequentemente, para a percepção de outras formas de proteção ao próprio EDD.
Entretanto, tais indagações serão objeto de pesquisas futuras e, neste momento, cumprem apenas o papel de semear novas investigações a respeito dos crimes contra as instituições democráticas, previstos no Código Penal brasileiro.
2BITENCOURT (2024).
3Não desconhecemos outras fontes bibliográficas a respeito dos delitos aqui analisados (por exemplo, o “Curso”
do Prof. Luiz Regis Prado, ou as análises contidas nas obras de Carlos Eduardo Ferreira dos Santos ou de Diego
Nunes), porém, não temos como objetivo apresentar as nuances e diferenças de posicionamentos eminentemente
penalistas neste momento. O que pretendemos é uma apresentação, na perspectiva da dogmática penal tradicional,
para avançarmos na interpretação em momento posterior. Portanto, essa abordagem singela inicial é apenas um
marco referencial para uma análise mais acurada dos dois crimes em questão.
4DALLARI (2010, p. 99-100)
5AZAMBUJA (2008, p. 253)
6SILVA (1997, p. 121).
7BITENCOURT (2024, p. 354).
8Ibid, p. 343.
9Ibid., p. 343.
10Ibid., p. 345.
11Ibid., p. 349.
12ANDRADE (1992, p. 30).
13MONTORO (2000, p. 373).
14Michel Temer entende que a expressão “tripartição de Poderes” é incorreta, pois o poder é uno e inerente ao
Estado – o que de fato ocorre é uma separação de funções, no exercício desse mesmo poder estatal (TEMER, 2001,
p. 118). Contudo, optamos pela classificação tradicional e ao longo do texto, trataremos dos três poderes como
“poderes constitucionais”, em conformidade com a redação da Constituição.
15SILVA (1997, p. 107).
16DINIZ (2008), palavra “depor”.
17SILVA (2016), palavra “depor”.
18BOBBIO (2002, p. 546).
19BONAVIDES (2014, p. 213).
20FRANÇA (2011, p. 24).
21Ibid., p. 24
22Ibid., p. 24.
23MAXIMILIANO (2011, p. 125).
24HEGENBERG (1995, p. 99).
25FRANÇA (2011, p. 25).
26Ibid., p. 25.
27MONTORO (2000, p. 373-374).
28Ibid., p. 374.
29ANDRADE (1992, p. 38).
30SKIDMORE (1982, p. 352-361).
31Ibid, p. 359.
32Ibid, p. 363
33Ibid, p. 364-365
34Ibid, p. 363
35ZAFFARONI (1997, p. 685).
REFERÊNCIAS
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1Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.