THE ART OF CREATING HOME: NATURE ON JAPANESE ARCHITECTURE AND POETRY FROM THE PERSPECTIVE OF MIXING
REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.10096121
Júlia Ramalho Tierno1
Resumo: Este artigo será uma tentativa de traçar um paralelo entre dois aspectos pertencentes à cultura japonesa – sua arquitetura tradicional e os haicais – pensados sob a ótica da mistura e considerando a relação estabelecida entre o povo japonês e a natureza. Partindo da leitura do texto Em louvor da sombra, de Junichiro Tanizaki, e de três haicais escritos por autores diferentes, uma análise da ideia de imersão no outro será feita a partir do livro A vida das plantas – uma metafísica da mistura, de Emanuele Coccia. Seriam as construções arquitetônicas das casas e a composição dos versos meras decorrências da contemplação do externo ou um complexo mergulho naquilo que há de convergente?
Palavras-chave: Japão; natureza; arquitetura; haicai; mistura
Abstract: This article will be an attempt to draw a parallel between two aspects belonging to Japanese culture – its traditional architecture and haiku – thought from the perspective of mixture and considering the relationship established between the Japanese people and nature. Starting from the reading of the text In praise of shadows, by Junichiro Tanizaki, and three haiku written by different authors, an analysis of the idea of immersion in the other will be made from the book The Life of Plants: A Metaphysics of Mixture, by Emanuele Coccia. Would the architectural constructions of the houses and the composition of the verses be mere consequences of the contemplation of the external or a complex dive into what is convergent?
Keywords: Japan; nature; architecture; haiku; mixture
1 Introdução
Das cerejeiras que inspiram contemplação ao vento que simboliza purificação, a natureza japonesa pode ser observada como cerne de processos reflexivos que moldam parte da visão de mundo do povo nipônico – por isso torna-se vital buscar compreender um pouco a respeito da relação delineada entre ambos com o passar do tempo. De acordo com o professor Tooru Asamí em seu artigo “O japonês e o seu relacionamento com a natureza”, os japoneses aprenderam com o passar do tempo a buscar se integrar à beleza encontrada no mundo natural. (p. 11)
Em seu livro Leituras do Corpo no Japão e suas diásporas cognitivas, Greiner Christine afirma que “Há uma tendência na lógica cognitiva japonesa em borrar a identidade do si mesmo e, simultaneamente, criar uma identificação com o que não é o si mesmo (ambiente social e natural entendidos de maneira inseparável)”. (p. 38) Partindo de tal noção, os japoneses não tendem a ter uma percepção de si próprios como desligados de qualquer elemento ou fenômeno da natureza, apenas como observadores distanciados. Mais que entenderem sua existência como complementar à natureza – ao que a princípio é tido como outro, eles se têm como seres que a abarcam, convertendo-se em tudo aquilo que se incorpora a ela.
E como ocorre a influência de tal visão de mundo sobre a cultura japonesa? Será aqui compreendida a cultura como elemento essencial da existência humana, envolvendo toda e qualquer forma de manifestação e produção simbólicas, como o poema e a arquitetura. Ainda pensando o significado de cultura, vale observá-la como formadora de uma identidade social. De acordo com Zygmunt Bauman em seu livro Ensaios sobre o conceito de cultura, “A identidade pessoal confere significado ao ‘eu’. A identidade social garante esse significado e, além disso, permite que se fale de um ‘nós’ em que o ‘eu’, precário e inseguro, possa se abrigar, descansar em segurança e até se livrar de suas ansiedades.” (p. 34)
A partir da formação de uma cultura japonesa, o povo que nela se encontra submerso compreende ao mesmo tempo cada um a sua identidade individual, como seres unos, a sua identidade social, como seres coletivos, mas também a sua identidade que tem a capacidade de se diluir, fluidificando e sendo fundida à natureza. Tal movimento será observado a partir da escrita dos haicais, poemas próprios da cultura literária japonesa que têm os elementos da natureza como força inspiradora, e a arquitetura tradicional do país. É importante ressaltar que, mesmo que o processo de se consubstanciar às suas cercanias envolva tudo aquilo que os rodeia enquanto natureza, o enfoque por vezes será direcionado ao universo vegetal.
2 A poética japonesa como vivência sensorial
Poema que se apresenta de modo primário na tradição japonesa, o haicai é uma produção poética curta cuja composição apresenta ora cinco, ora sete sílabas. Para além de seu aspecto literário, a composição de um haicai consiste em uma forma de ver e de vivenciar o mundo, uma forma de exercício espiritual. É próprio de tais produções poéticas retratarem como temática os elementos da natureza. No artigo “O japonês e o seu relacionamento com a natureza”, Tooru Asamí afirma, a respeito da ligação estabelecida entre aqueles que pertencem à cultura japonesa e os elementos naturais, que:
Sentimos na pele a diferença dos ventos do outono e do verão: distingue-se o vento de ontem, de urna semana atrás e de hoje, e assim percebe-se os sinais do outono. Desde muito cedo nossos antepassados possuíam esse dom de distinguir as sensações mais sutis. Dentro daquilo que parecia algo contínuo, captavam a sutil diferença entre o inverno e a primavera, o verão e o outono, e tentavam apreender como símbolos diversos. (ASAMÍ, 1983, p. 8).
É curioso que, dentre todas as temáticas as quais costumam ser abordadas nas produções poéticas pertencentes às mais diferentes culturas, os japoneses tenham sentido a necessidade de escolher precisamente a natureza. O poema tem o poder de evocar em seu leitor uma experiência estética que é capaz de fazê-lo captar novas dimensões da realidade que o cerca. Observando por meio de tal perspectiva, os japoneses escolhem os elementos naturais como tema para que, desse modo, possam desvendar sua essência, alcançando o cerne da existência. Para se ter como exemplos, serão observados agora três haicais escritos por autores diferentes.
No perfume das flores de ameixa,
O sol de súbito surge
Caminho da montanha!
Como pode ser notado no haicai acima, pertencente ao autor Matsuo Bashô, não somente o aspecto humano se consubstancia aos elementos da natureza, mas também ocorre uma fusão entre tais unidades que compõem uma esfera natural. A construção sintática encontrada nos dois primeiros versos constiuintes do poema indica que o surgimento do sol não pode ser desassociado do perfume das flores de ameixa. Considerando o fato de qualquer flor, constituindo todas estas o cosmo vegetal, nutrir-se da luz do sol, sendo tecida desse modo uma teia que une ambos os elementos, o sol encontra-se presente nas flores de ameixa, misturando-se um elemento natural ao outro. Afinal, como afirma Emanuele Coccia, toda coisa se encontra entranhada em toda outra coisa. (p. 69)
Quando penso
Em partir em viagem,
O fim da primavera.
Observando agora o haicai de autoria de Kyoshi, há uma conexão costurada entre o ímpeto da partida que toma o eu-lírico e o findar da primavera – a própria intenção de ação desencadeia uma resposta por parte de toda a natureza, havendo portanto uma espécie de diálogo estabelecido entre os dois. Assim como na construção anterior, aqui o ser pensante confunde-se àquilo que determina o ritmo de toda existência natural: as estações do ano, sendo estas as potências que permitem a vida, assim como seu fim.
Murmúrio das ondas
A que os narcisos do campo
Não dão atenção.
Os atos de murmurar e de dar atenção a algo, características comumente atribuídas aos seres humanos, são aqui, no haicai pertencente à autora Teiko Inahata, direcionados a elementos da natureza que extrapolam a existência animal (as ondas, os narcisos). Uma espécie de diálogo de algum modo novamente se estabelece entre ambos e, desta forma, mais uma vez os dois elementos naturais se fundem em uma dinâmica de ação e reação possibilitada pela disposição inseparável, indissociável de tudo que existe.
É perceptível a partir da leitura dos poemas escolhidos uma característica contemplativa, sem que para isso haja a necessidade de reflexão aprofundada sobre o que se observa – o transcurso do atravessar algo e ser atravessado é orgânico, primordial e, como afirma Coccia, toda coisa pode ser atravessada por toda e qualquer outra coisa que compõe o mundo em suas configurações e nuances. (p. 71) Outro ponto de semelhança pode ser traçado mais uma vez entre o modo de manifestar em palavras o vínculo que o japonês identifica entre ele e o universo natural em que se encontra imerso e as ideias apresentadas por Emanuele Coccia. O autor afirma em seu texto que a pluralidade encontrada nos humanos é delineada pelo clima que engloba tudo que há de vivo. Coccia afirma que o que há de não-humano é a causa da multiplicidade de vidas. Citando Edme Guyot, é dito que “a natureza da terra, a qualidade de seus frutos e a diferença dos climas contribuíram para a variedade das cores e para a diversidade das figuras e dos temperamentos de todos os homens”.
3 O lar japonês e o ato de pertencer
Em seu texto chamado Em louvor da sombra, a estética das casas japonesas tradicionais e todas as sensações que são despertadas por seus muitos elementos são um ponto de centralidade na reflexão tecida por Junichiro Tanizaki, podendo ser considerado que o autor apresenta uma forma de arte – a arte de criar lar. De acordo com a etimologia da palavra, lar tem origem no nome em latim Lares, referente aos deuses da Roma Antiga protetores dos domicílios – locais onde era aceso o fogo para que pudesse aquecer. Se for considerado o quão primordial era o fogo em tempos remotos não apenas para a sobrevivência, mas também para o conforto, é possível compreender enfim ao menos um pouco o que as casas deveriam ofertar aos que ali vivem. De acordo com Coccia,
Todo lar é fruto desse movimento. Projetamo-nos no espaço mais próximo de nós e fazemos dessa porção de espaço algo de íntimo, uma porção de mundo que tem uma relação particular com o nosso corpo, uma espécie de extensão mundana e material do nosso corpo. A relação com nosso lar é justamente a de uma imersão: não estamos diante dele como diante de um objeto, vivemos nele como um peixe no mar, como as moléculas orgânicas originárias em sua sopa primordial. Na verdade, nunca deixamos de ser peixe. (COCCIA, 2018, p. 38).
Ao se observar a concepção arquitetônica dos japoneses, é possível perceber que os mesmos compreenderam bem o que significa misturar-se, assim como o que transfigura algo em lar e, tornando-se imprescindível, o que atribui sentindo ao ato de pertencer. Cada escolha exposta por Tanizaki em seu texto no que diz respeito ao processo de construção da sua casa emana algo devocional, uma necessidade de pertencimento – como um peixe pertence e se mistura ao mar. Da escolha entre o papel e o vidro para dar acabamento ao shoji até a visão sublime e bucólica de Tanizaki sobre o uso da latrina que é apresentada ao leitor, cada desejo e decisão tomada mostra uma dedicação ao ato de se fundir ao ambiente, de vivenciar uma imersão no universo que os circunda. Os japoneses compreendem o seu lar como um espaço que, muito além da mera utilidade e da estética como finalidade única, deve proporcionar aos que ali viverão um entendimento de fusão com tudo aquilo que compõe o cenário doméstico por meio de sensações profundas. Um momento em que tal ponto aparece no texto de maneira bastante nítida é quando Tanizaki explica a magnitude atribuída por ele à experiência de ir à latrina. Segundo suas palavras,
Construída invariavelmente longe do corpo da casa, à sombra de arbustos e em meio à folhagem e ao musgo de verde fragrância, quando então, acocorado em meio à baça claridade refletida pelo shoji, considero simplesmente indescritível a sensação de contemplar o jardim pela janela e me perder em pensamentos… cercado por sóbrias paredes de madeira de requintado veio, pode-se contemplar tanto o céu azul como o verdejante frescor das plantas. Além disso, volto a dizer, é imprescindível que o ambiente seja sombrio e absolutamente limpo, e esteja imerso em silêncio tão profundo que torne audível até o fino zumbido de um pernilongo. (…) Gosto de ouvir a chuva caindo mansamente enquanto estou em latrinas semelhantes. Sobretudo as da região de Kanto, providas de longas e estreitas aberturas similares a janelas ao rés do chão, possibilitam ouvir bem de perto o suave murmúrio da chuva que, gotejando de um beiral ou de folhas, lava a base da lanterna de pedra, umedece o musgo crescido em bordas de lajotas e quietamente desaparece terra adentro. Com efeito, são lugares propícios para se ouvir o cricrilar de grilos e o gorjeio de pássaros, propícios também para apreciar o luar: neles se sente com penetrante intensidade a passagem das estações e a transitoriedade das coisas terrenas, neles provavelmente poetas de antanho vislumbraram temas para seus haicais. Assim, não considero de todo impossível afirmar que a latrina é a dependência de maior valorização estética da arquitetura japonesa. Com sua ímpar capacidade de tudo transformar em poema, nossos antepassados acabaram por converter em ponto de extremo bom gosto o mais insalubre aposento da casa, unindoo a manifestações de incomparável formosura da natureza — flores, pássaros, brisa ou luar — e a uma cadeia de concepções poéticas repletas de nostalgia. (TANIZAKI, 2007, p. 22)
Outro exemplo da incessante busca do povo japonês por pertencimento total ao lar e ao local no qual se encontram inseridos é o espaço que os mesmos utilizam para o banho o qual nomearam onsen. Sendo utilizadas fontes termais naturais, das quais brota água quente da terra, a prática do onsen envolve uma imersão e uma vivência ao ar livre, estando a pessoa usualmente cercada por paisagens naturais. Ora, em tal prática cultural o ato de banhar-se deixa de ser um ato dotado apenas de uma funcionalidade prática e ganha outra nuance. Assim como ir à latrina, tomar um banho quente envolve também uma dedicação a um processo de fusão ao ambiente, de imersão em tudo aquilo que os cerca.
E como a arquitetura pode ser observada, considerando que se trata de uma produção humana? De acordo com a autora de Arquitetura pela arte, Mayra Simone dos Santos, as produções arquitetônicas são capazes de produzir um efeito transformador – tal qual a catarse – e manifestar o papel cultural e social do indivíduo a ela associado. Para ela, desde os primórdios, ou seja, desde os primeiros passos que possibilitaram ao ser humano transformar o território, iniciando dessa forma uma modificação do significado encontrado no espaço, os humanos buscam formas de se apropriar da terra. Enquanto para aquele que se movia o caminhar era seu modo de estar, de habitar o mundo onde estava inserido, aqueles que vivem nas cidades de modo fixo mergulham em uma atmosfera “representada por mapas e placas de identificação, resultante de um processo histórico e geográfico de reconhecimento de suas vias e passagens”. (p. 52) Há na cidade uma coleção de regras e percursos por onde transitar.
Ora, assim como cidades, povoados e vilas são formas de habitar o espaço natural desde o seu surgimento, tal qual era o caminhar para os nômades, podem as casas privadas ser vistas de forma semelhante? Espaço onde todos passam boa parte de seus tempos, habitando o espaço e transitando por cômodos, podem ser notadas similitudes – a casa é também uma maneira de existir e encontrar-se em um ambiente. Ao se pensar no que Tanizaki afirma a respeito dos lares japoneses, a sua forma de habitar o espaço envolve um processo de assimilação abrangente. A natureza não é tida como algo à parte da arquitetura da casa assim como a casa não é tida como algo à parte da própria existência humana. Tal ideia se traduz no conceito atribuído às sombras.
4 A penumbra como absorção da alteridade
Um ponto que se mostra importante no decorrer do texto – a começar pelo próprio título – é o jogo de palavras que trabalha as ideias de luz e escuridão. Há uma grande dimensão semântica e simbólica esculpidas em cada uma das duas concepções aludidas, e o passeio entre ambas as imagens permite uma perambulação em uma espécie de penumbra – a luz e a escuridão, como é intrínseco a todas as coisas, mesmo que possa não ser percebido muitas vezes, não podem fazer algo que não seja coexistir, existir simultaneamente em um processo de consubstanciação. Logo, considerando a busca dos japoneses por uma sensação de pertencimento ao todo, por uma estrutura de mescla entre aquele que habita e aquele que é habitado, há uma lógica no encanto encontrado por estes na penumbra descoberta nas sombras.
Onde está a chave desse mistério? Para dizer a verdade, na magia das sombras. Se a sombra originada em recessos e recantos fosse sumariamente banida, o nicho reverteria de imediato à condição de simples espaço vazio. A genialidade de nossos antepassados escureceu propositalmente um espaço vazio e conferiu ao mundo de sombras que ali se formou profundeza e sutilidade que superam qualquer mural ou peça decorativa. (TANIZAKI, 2007, p. 34-35).
De acordo com as palavras de Tanizaki acima citadas, o universo de sombras encontrado supera qualquer produção decorativa, ou seja, que dialoga com o espectador em um campo associado ao belo, ao estético. Ora, se o belo que suplanta a ornamentação e se vincula às artes, tal qual a arquitetura, pode cumprir uma função catártica, levando o observador a uma identificação com aquilo que contempla, sendo este levado a entrar em contato com emoções profundas, perscrutar as sombras poderia levar a uma experiência de maior profundidade – a uma sensação de pertencimento, tal qual a luz pertence à escuridão e as trevas pertencem à luminescência (assim como o ambiente natural e o lar japonês pertencem um ao outro e o morador e o espaço em que está imerso também se pertencem).
O jogo entre claro e escuro é, para Tanizaki, um dos pontos fortes da arquitetura artística como é a japonesa, sendo o shoji e o tokonoma as equivalências a ambas as tonalidades respectivamente. Para além de uma costrução de lar que abarca os elementos da natureza como constituintes da rotina dos moradores, mesmo nos feitos tidos como mais simples, as casas no Japão imergem as pessoas em um oceano sombreado repleto de mistérios. Como Coccia diz em seu livro, há um fundamento das ciências naturais que traz a ideia da precedência do meio sobre o ser vivente que o habita, “do mundo sobre a vida, do espaço sobre o sujeito.” (p. 12) Para o autor, as plantas desestruturam tal pressuposto, uma vez que elas são a cosmogonia em si e uma gênese contínua de todo o cosmo, possibilitando a presença de toda e qualquer vida. Ora, uma vez que o processo existencial imersivo ao qual se permitem os japoneses, seja por meio das suas produções poéticas ou por meio das suas construções de lar, é levado em conta, eles não apenas se permitem vivenciar a entidade da água, da lua e dos insetos, mas também do universo vegetal, compreendendo-se como, mais que parte integrante do todo, o todo constituinte da vida em si.
Como se as plantas vivessem simultaneamente duas vidas: uma aérea, banhada e imersa na luz, feita de visibilidade e de uma intensa interação interespecífica com outras plantas, outros animais – de todos os tamanhos; outra ctônica, mineral, latente, ontologicamente noturna, cinzelada na carne de pedra do planeta, em comunhão sinérgica com todas as formas de vida que a povoam. Essas duas vidas não se alternam, não se excluem: são o ser de um mesmo indivíduo, o único que chega a reunir em seu corpo e em sua experiência a terra e o céu, a pedra e a luz, a água e o sol, a ser imagem do mundo em sua totalidade. (COCCIA, 2018, p. 81)
Tal qual as plantas para Coccia, a união orgânica entre a luz e a escuridão abarca em sua existência a totalidade de todas as coisas. A sombra traduz a experiência de ser, sendo esta compreendida pelo povo japonês. Nela, tudo aquilo que Tanizaki afirma apreciar, da lua ao som da chuva caindo sobre a vegetação verdejante, pode ser encontrado em sinergia. Eis o motivo pelo qual o autor afirma sempre ter vislumbrado uma atmosfera de mistério na penumbra – trata-se do mistério da vida em sua plenitude.
5 Conclusão
A penumbra, como resultado da união entre a luz e a sombra, permite aos japoneses compreender a metafísica da mistura – o ato de absorver aquilo que os rodeia e ser ao mesmo tempo absorvido pelo mesmo, consciência expressa por eles no processo de composição de seus lares assim como na composição de seus haicais. Para eles, as camadas da existência não cabem em compartimentos, mas devem estar em constante integração e diálogo – desse modo eles aprenderam a arte de criar lar.
De acordo com Emanuele Coccia, o mundo onde cada ser humano se encontra imerso é uno, havendo o que ele chama de unidade cósmica. (p. 31) Os japoneses, atribuindo à natureza um papel essencial para o processo de compreensão a respeito das coisas – e de seu próprio estar-no-mundo, entendem a si próprios como o espaço onde estão inseridos, buscando fazer com que, em um processo de mescla com o ambiente, o meio também tome para si a identidade dele próprio, do ser humano que mergulha na estrutura cultural específica do Japão. No livro O poder do mito, Joseph Campbell diz:
Jamais esquecerei a experiência que tive no Japão, uma civilização que nunca ouviu falar na Queda e no Jardim do Éden. Um dos textos xintoístas diz que o processo da natureza não pode ser maléfico. Não se deve corrigir nenhum impulso natural, mas sublimá-lo, embelezá-lo. Há um interesse glorioso na beleza da natureza e na cooperação com ela, de modo que naqueles jardins você não sabe onde termina a natureza e onde a arte começa – essa é uma experiência esplendorosa. (CAMPBELL, 1990, p. 37)
A natureza artística dos haicais é facilmente perceptível. Como todo e qualquer outro poema, as composições japonesas aqui pensadas são repletas de poesia, sendo esta a responsável por causar no leitor as mais diversas sensações e reflexões. A arquitetura, por sua vez, sendo considerada uma forma de produção artística capaz de traduzir o pertencimento cultural e social dos indivíduos, ganha uma nova dimensão quando se trata das construções japonesas. Há em ambos os casos uma relação de interdependência, uma vez que o modo japonês de apreender a vida molda as suas concepções de arte e de modo concomitante estas delineam sua percepção da vida a partir das vivências catárticas acarretadas pela imersão no cosmo artístico.
Os haicais e lares japoneses são ambos expressões artísticas que traduzem a essência do povo. É por meio da vivência catártica que a população do Japão observa a metafísica da mistura, circundando sua arte de tal ideia, confundindo-se com a natureza em seus versos e envolvendo a mesma em suas casas, atribuindo significado a cada pormenor.
1Nas notas referentes ao capítulo 8, Emanuele Coccia acrescenta as seguintes informações a respeito da citação: Edme Guyot (pseudônimo: Sieur de Tymogue), Nouveau système du Microcosme ou Traité de la nature de l’homme, La Haye, M. G. de Merville, 1727, p. 246.
2Painel ou porta de correr composta em madeira e finalizada com papel translúcido.
3Espaço justaposto em sala de recepção japonesa onde são apresentados itens para observação e apreciação artística.
Referências
ASAMÍ, Tooru. O japonês e o seu relacionamento com a natureza. Revista USP, 1983.
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Editora Zahar. Rio de Janeiro, 2012.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés. Editora Palas Athena. São Paulo, 1990.
COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.
GOGA, Masuda. Os dez mandamentos do haicai, em KAKINET, disponível em < http://www. kakinet.com/caqui/dezmand.shtml>, acesso em 15 jul 2023.
GREINER, Christine. Leituras do Corpo no Japão e suas diásporas cognitivas. 2015. 180 f. Tese (Livre docência em Comunicação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.
SANTOS, Mayra Simone dos. Arquitetura pela arte. 2020. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.
TANIZAKI, J. Em Louvor da sombra. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.http://www.fisica.ufpb.br/~romero/port/ga_hkjaponeses.htm
1Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil juliartierno.unb@gmail.com