FUNCIONAMENTO E ESTRATÉGIAS DE DOAÇÃO DE ÓRGÃOS NO BRASIL: É POSSÍVEL REDUZIR LISTAS DE ESPERA?

Organ donation operations and strategies in Brazil: is it possible to reduce waiting lists?

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10014830


Rodrigo Matias Parente1
Eveline Silva Carvalho*
Jessica Barbosa Carvalho2


RESUMO

Objetivo: Investigar o funcionamento da doação de órgãos no Brasil e os efeitos que estratégias de políticas públicas podem causar nos índices de doações. Métodos: Pesquisa de opinião, de natureza quantitativa e transversal, que utiliza dados primários de questionário realizado com 463 participantes de diversos estados do país a respeito da opinião e conhecimento quanto à doação de órgãos. Os dados obtidos foram analisados por estatística descritiva, e a interpretação das variáveis qualitativas foi realizada através do teste qui-quadrado, tendo como base o estudo realizado por Eric Johnson e Dan Goldstein (2003). Resultados: O desconhecimento sobre o diagnóstico de morte encefálica influencia a decisão final da família quanto à doação de órgãos. 89% dos participantes afirmaram ser doadores porém apenas 40% converteram esse desejo em ação concreta. Os resultados obtidos estão em consonância com a revisão de literatura, que prevê forte influência da inércia da opção-padrão e dos fatores externos presentes no ambiente de escolha nas decisões humanas. Considerações finais: Com base nos resultados são propostas estratégias de políticas públicas a serem desenvolvidas respeitando as particularidades dos indivíduos e objetivando estimular escolhas que favoreçam a doação de órgãos no país.

Palavras chave: Doação de órgãos, Morte encefálica, Transplante de órgãos, comportamento na decisão, políticas púbicas.

ABSTRACT

Objective: To investigate how organ donation works in Brazil and the effects that public policy strategies can have on donation rates. Methods: survey research, quantitative and cross- sectional research, which uses primary data from a questionnaire carried out with 463 participants from different states of the country regarding their opinion and knowledge regarding organ donation. The data obtained were analyzed using descriptive statistics, and the interpretation of qualitative variables was performed using the chi-square test, based on the study carried out by Eric Johnson and Dan Goldstein (2003). Results: Lack of knowledge about the diagnosis of brain death influences the family’s final decision regarding organ donation. 89% of participants claimed to be donors, but only 40% converted this desire into concrete action. The results obtained are in line with the literature review, which predicts a strong influence of the inertia of the default option and the external factors present in the environment of choice on human decisions. Final considerations: Based on the results, public policy strategies are proposed to be developed respecting the particularities of individuals and aiming to encourage choices that favor organ donation in the country.

Palavras-chave: Organ donation, Brain death, Organ transplantation, decision-making behavior, public policy.

INTRODUÇÃO

A evolução da medicina tem trazido diversos benefícios para a sociedade e, entre estes, um dos que mais se destaca é a possibilidade de salvar vidas por meio da transplantação de órgãos. No entanto, acompanhada ao êxito que os transplantes têm tido, a demanda por órgãos no Brasil também vem crescendo, sendo esta última superior à oferta.

No Brasil, para que haja a doação de órgãos, a família precisa concordar com o ato após receber o diagnóstico de morte encefálica de seu ente querido. Nesse sentido, a problemática é evidenciada ao observar que existe um certo descompasso entre os desejos do eventual doador e a decisão final dos familiares.

Em virtude disso, a atual legislação, que já sofreu inúmeras alterações desde sua implantação em 1963, tem se mostrado pouco efetiva, visto que a recusa familiar é o principal empecilho para que um potencial doador se torne, de fato, um doador efetivo (RBT, 2019).

Entende-se que as recusas não significam puramente que as famílias entrevistadas são individualistas ou indiferentes ao tema, mas sim que, no momento em que foram notificadas sobre o diagnóstico de morte encefálica de seu familiar, por ainda estarem sob o forte impacto do luto, optaram pela recusa.

Nessa perspectiva, Johnson EJ e Goldstein D (2003), analisaram a discrepância nos indicadores de doação de órgãos em países europeus. Ao investigarem, perceberam que a principal razão para a diferença dos dados estava na opção-padrão do país, ou seja, os países que adotavam como norma-padrão ser doador possuíam índices mais elevados de doação de órgãos, enquanto os que adotavam como norma-padrão não ser doador tinham resultados inversos. No Brasil, a norma-padrão é não ser doador de órgãos. Logo, pode-se esperar que os índices de doação sejam, com efeito, abaixo do esperado.

A figura 1 mostra a cronologia da Legislação Brasileira acerca da doação de órgãos, a qual sofreu várias alterações significativas. De 1963 até 1992, por exemplo, a vontade do doador prevalecia em relação à da família. Já em 1997, houve uma mudança significativa devido a implantação do consentimento presumido, ou seja, caso o indivíduo não manifestasse seu desejo contrário à doação, o Estado entendia que havia intenção em doar, o que passou a ser a norma- padrão.

Figura 1: Linha do tempo da Legislação Brasileira acerca da doação de órgãos

Fonte: Legislação Brasileira. Elaboração própria.

Em 2000, no entanto, houve uma Medida Provisória invalidando a Lei de 1997 e, no ano posterior, lançou-se a última alteração. Nesta, que vigora atualmente, o indivíduo perde a autonomia sobre o destino de seus órgãos após a morte, sendo a família a única detentora do poder integral de decisão sobre a doação de órgãos.

Pode soar estranho falar sobre doação de órgãos em um tópico que aborde também o termo “mercado”, porém se há oferta e demanda, tem-se, dessa forma, um mercado. O que difere a doação de órgãos de outras transações é que o preço não a determina. Se o dinheiro não é decisivo para equilibrar oferta e procura, esse mercado é chamado de matching (ROTH, 2016). Nesse sentido, Roth A (2016) descreve que, ao incluir dinheiro em um mercado originalmente de matching, a transação se torna imoral para a maioria das culturas.

Elias JJ (2007) sugere a comercialização de partes do corpo humano para resolver a escassez. No Irã, uma das maneiras encontradas para superar essa escassez, tendo o rim como exemplo, foi permitir o seu comércio. Por consequência, a fila de espera por esse órgão praticamente não existe no país citado (ELER, 2019).

Sabe-se que esse método seria inviável e impopular no Brasil por dois principais motivos: primeiro, o valor moral, já que ao legalizar o comércio de órgãos, a solidariedade estaria sendo precificada, e isso foge dos princípios do altruísmo. O segundo motivo seria a opressão das classes financeiramente menos favorecidas, já que pessoas endividadas poderiam cogitar a venda de seus órgãos para sanar algum problema financeiro. Por isso, a legalização colocaria em risco uma parcela da população que necessita de proteção social (ROTH, 2016).

Embasados em experimentos científicos, Thaler R e Sustain C (2019) afirmam que é possível elevar os indicadores de órgãos simplesmente alterando a forma de se obter o consentimento.

Por isso, entender como os mercados funcionam esclarece a melhor alternativa de intervenção e propicia ideias para o melhor redesenho de políticas públicas de doação de órgãos, a fim de que as falhas de funcionamento sejam sanadas (ROTH, 2016).

Uma das formas eficientes de alavancar os índices de doação é colocando como padrão todos serem doadores de órgãos. Goldstein e Johnson (2003) descrevem em seu artigo, intitulado Do default save lifes, que a Alemanha, na qual o consentimento é explícito, os índices de cidadãos favoráveis à doação de órgãos eram em torno de 12%, enquanto na Áustria, em que a norma- padrão era justamente o inverso, com o consentimento implícito, os índices chegavam perto de 100%.

A política de consentimento implícito já foi implantada no Brasil em 1997, porém, o que se registra dela, sobretudo, era o pânico que as pessoas sentiam, pois ficavam receosas de que os órgãos de pacientes ainda vivos fossem extirpados (WEBER, 2020).

Em 2008, o estado de Illinois, nos Estados Unidos, implementou como política de doação de órgãos a prompted choice, traduzida como escolha ativa, pois é uma política de fácil implantação, podendo ser instituída diante de uma simples pergunta no momento de tirar a carteira de motorista. Destaca- se que os motoristas poderiam reconsiderar essa decisão a qualquer momento. Com isso, foi possível obter resultados bastante eficientes (SUNSTEIN; THALER, 2019).

Uma das principais críticas relacionadas ao atual regimento de doação de órgãos é que, além do falecido não poder assegurar que sua vontade será respeitada, as famílias ainda precisam enfrentar uma decisão complexa em um momento no qual seus recursos emocionais e cognitivos estão esgotados (FONSECA, 2016).

Esta pesquisa tem como principal objetivo examinar o comportamento e o conhecimento humano a respeito da doação de órgãos e, com base nas respostas obtidas, propor estratégias de políticas públicas alternativas à atualmente vigente, a fim de melhorar o cenário e, por consequência, alavancar os índices de doação de órgãos no Brasil.

MÉTODOS

O presente trabalho foi desenvolvido por intermédio de pesquisa exploratória, com o fito de oferecer um panorama do tema e torná-lo mais propício à formulação de hipóteses (GERHARDT; SILVERIA, 2009).

Vale ressaltar que esta pesquisa não está restrita a conhecimentos teóricos. Desse modo, a coleta da opinião e do conhecimento a respeito da doação de órgãos de 463 pessoas foi analisada por meio de um formulário contendo dez perguntas, o qual foi disponibilizado de forma online através de algumas redes sociais (WhatsApp, Instagram e e-mail) pela plataforma Google Forms durante os dias 25 de outubro de 2021 e 31 de outubro de 2021.

De acordo com o item I, parágrafo único, do artigo primeiro da Resolução no. 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde que dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em ciências humanas e sociais, não são registradas nem avaliadas pelo sistema CEP/ CONEP pesquisa de opinião pública com participantes não identificados, o que é o caso dos dados utilizados na presente pesquisa.

Foi utilizado na pesquisa, formulário composto por dez perguntas, sendo cinco relacionadas ao perfil do respondente (idade, gênero, escolaridade, área de conhecimento e religião) e cinco de questões específicas acerca da doação de órgãos. Todos os participantes tiveram a confidencialidade das informações obtidas garantidas, uma vez que não foi solicitado, nem coletado nenhum dado sensível deles.

O questionário buscou abranger toda a amplitude referente às opiniões acerca do tema com perguntas de múltipla escolha, verificando, principalmente, se os itens estavam suscetíveis a serem agrupados.

Este estudo é de natureza quantitativa e transversal, tendo sido os dados analisados e tabulados por estatística descritiva, que, conforme Guedes et al (2005), tem por objetivo básico sintetizar uma série de valores de mesma natureza, permitindo, dessa forma, que se tenha uma visão global da variação desses valores.

Ademais, a interpretação das variáveis qualitativas foi feita por meio do teste qui-quadrado, através do software Jamovi, o qual permite perceber se estas possuem associações estatisticamente significantes. Com o resultado do p-valor, é possível tirar conclusões precisas sobre a população por intermédio de uma probabilidade que varia de 0 a 1, tendo admitido o nível de significância menor ou igual a 5% (mais usual) para a análise das variáveis.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A primeira pergunta do questionário, tinha como fito identificar quais eram as atitudes dos participantes frente a doação de órgãos no Brasil, cuja política adotada é a de consentimento explícito. Esse tipo de consentimento sugere que se um cidadão tem interesse em ser doador de órgãos, é preciso que este converse com os seus familiares sobre tal desejo. Salienta-se que não há nenhum mecanismo legal que possa respeitar, de fato, a vontade do doador expressa em vida, cabendo a autorização somente à família.

Verificou-se que grande parcela dos respondentes mostraram-se inertes à temática, 49% dos participantes informaram nunca ter conversado com os familiares sobre o interesse em doar órgãos, mesmo tendo esse desejo. Tal resultado confirma o que foi defendido por Sunstein e Thaler (2019), os quais afirmam que muitas pessoas adotam a heurística do “ah, tanto faz” e acabam se mantendo no viés do status quo, que ocorre, sobretudo em situações que envolvem diversas variáveis complexas.

Ressalta-se que não conversar com a família sobre o interesse em ajudar o próximo pode dificultar ainda mais o processo de doação, pois no momento doloroso de perda de um ente querido, as emoções podem ser confusas, e a família pode optar por permanecer na opção- padrão (não doar), por medo de tomar uma decisão que vá contra os desejos do falecido. Os resultados indicam que 89% dos participantes têm interesse em doar, porém só 40%, de fato, transformou esse desejo em uma ação concreta: conversar com a família informando que deseja ser doador.

A análise descritiva apresentada na tabela 1 evidencia que o grupo gênero tem associação estatisticamente significante com as respostas dos participantes. Como expresso, do total de 315 participantes que se declararam mulheres, 91,7% são favoráveis à doação de órgãos sendo que destas, 145 (46%) são doadoras declaradas e 144 tem interesse, mas não se manifestaram para familiares com relação ao tema. Já os participantes do gênero masculino tendem a ser mais negativos em relação à doação de órgãos, tanto em declarar à família se tem interesse ou não de ser doador, como também em efetivamente se declarar doador já que dos 148 homens respondentes só 27% são doadores declarados.

Essa diferença observada entre os grupos (feminino e masculino) não é aleatória (p: <.001). O resultado do p-valor indica que apenas uma pequena probabilidade em cem sairia ao acaso, por isso, esta diferença é explicitamente significativa (FERREIRA, 2015).

Tabela 1 – Analítico das atitudes dos participantes frente à doação de órgãos

Fonte: Pesquisa sobre o conhecimento e a opinião das pessoas relacionado à doação de órgãos. Elaboração própria.

Tais resultados confirmam pesquisa realizada nos Estados Unidos, a qual revela que a cada 10 doadores de órgãos 6 são mulheres. Esse estudo também relata que em casais heterossexuais, as esposas geralmente se voluntariam mais à doação do que os seus parceiros, tanto na doação entre o casal, como também na doação para outros membros da família. Segundo o autor, as mulheres são induzidas a se doarem mais à sua família do que os homens, sendo essa a principal razão dessa disparidade (KENDRICK, 2018).

No que tange à idade, também foi possível deduzir que essa variável está associada às respostas dos participantes (p: 0.007), sendo o desejo de doação inversamente proporcional à idade. De fato, os respondentes acima de 40 anos são mais negativos à doação de órgãos do que os que estão abaixo dessa faixa etária, tanto em relação ao grupo que está entre 18 e 30 anos, como também o de 31 a 40 anos. Para os acima dos 40 anos, os não doadores declarados representam mais de 10%, já para as outras idades, esse percentual não chega a 2%. Observa- se também que os doadores declarados representam mais de 40% entre os entrevistados com menos de 40 anos, e menos de 31,6% entre os entrevistados com mais de 40 anos.

Em relação à escolaridade, pode-se observar que tal variável também está associada às respostas dos indivíduos (p: 0.013). Os participantes com níveis escolares acima da graduação são os mais favoráveis à doação. Inclusive, a maioria destes, conforme esta pesquisa, já transformou o seu interesse em alguma ação concreta (63,2%). Ainda sobre a escolaridade, é possível concluir que os respondentes com apenas o ensino fundamental completo ou incompleto são menos favoráveis à doação que os demais.

Ao realizar o teste relacionando a área de conhecimento dos participantes, também foi percebido que a diferença das porcentagens não é ao acaso, já que a probabilidade de haver alguma associação ficou exatamente na nota de corte adotada, 0,05. Os resultados mostraram maior percentual de doadores declarados entre os estudantes de Ciências Biológicas, Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Ciências da Saúde.

Quanto à religião, não há evidências estatísticas de associação entre as variáveis (p: 0,334), ou seja, não foi possível afirmar que a religião influenciou o posicionamento das pessoas.

A pergunta posterior teve como foco verificar se os respondentes sabiam o que significava morte encefálica, uma vez que a doação só pode ser concretizada após o diagnóstico desta. Na morte encefálica, o paciente ainda pode apresentar alguns sinais vitais por meio de medicamentos e aparelhos médicos, o que, por desinformação, faz com que algumas pessoas confundam com o estado de coma. Acontece que no coma, existem diversas histórias de pacientes que conseguiram reverter o quadro clínico, o que não ocorre quando se tem o diagnóstico de morte encefálica (ME) (AMIB, 2013).

No coma, o paciente está na verdade com baixo nível de consciência, mas o quadro pode ser revertido. Já na morte encefálica a reversão do quadro do paciente não é possível. A morte encefálica ocorre quando o paciente sofre algum dano irreversível no cérebro, ou seja, a pessoa diagnosticada não tem mais estímulo proveniente do cérebro, mas alguns sinais vitais devem ser preservados, ainda que artificialmente, para que seja possível realizar o transplante de órgãos.

Para que a morte encefálica seja diagnosticada, são realizados vários testes e uma série de exames. O primeiro desses testes é tirar toda sedação e o ventilador mecânico do paciente para ver se há respiração espontânea já que, se houver, a morte encefálica não é diagnosticada. Já não havendo respiração espontânea, fica comprovado que não existe fluxo cerebral e esse é apenas o primeiro de diversos outros testes que são realizados para que o diagnóstico de morte encefálica seja determinado.

Na verdade, a morte encefálica é a morte do cérebro, que é onde se localiza o centro de controle. Por isso, após o diagnóstico, é necessária a utilização de aparelhos para que os sinais vitais sejam mantidos.

Desse modo, foi questionado se na morte encefálica o paciente poderia apresentar sinais vitais. Os resultados obtidos foram: 163 ou 35% dos respondentes possuíam o devido conhecimento sobre o diagnóstico, enquanto 300 ou 65% dos entrevistados não tinham o devido conhecimento sobre o diagnóstico de morte encefálica, já que entediam que na morte encefálica o paciente não poderia apresentar sinais vitais.

Esse desconhecimento significa que, se uma pessoa que recebeu diagnostico de morte encefálica apresentar sinais vitais tais como frequência cardíaca, saturação respiratória, pressão arterial e temperatura preservados, em decorrência de medicamentos ou por estar ligado a aparelhos, um familiar, ao perceber tais sinais, pode discordar da doação de órgãos ainda que saiba da vontade de doação do paciente.

Ou seja, como a doação de órgãos e tecidos ocorre somente após a devida autorização de familiar da vítima, a desinformação pode ser um grande fator para a redução nos índices de doação de órgãos, visto que, visualizar o paciente apresentando sinais vitais, pode fazer com que os familiares acreditem na possibilidade de retorno à vida, o que não acontece.

De acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), em setembro de 2022, cerca de 59 mil pessoas se encontravam na lista de espera por um órgão. A mesma fonte afirma que em 2021, foram realizados cerca de 23,5 mil procedimentos incluindo diversos tipos de transplantes como de rim (4,8 mil), fígado (2 mil), coração (334), pulmão (840), entre outros. Muito mais transplantes capazes de salvar vidas poderiam ter sido realizados, já que no mesmo ano 43% das famílias recusaram a doação de órgãos de seus parentes com diagnostico de morte encefálica comprovada.

Ao associar os traços da amostra com as respostas do questionário sobre o conhecimento a respeito de morte encefálica, percebe-se, por intermédio do valor p, que as únicas variáveis categóricas que possuem associação estatisticamente significante com as respostas são a escolaridade (p: <0.001) e a área de conhecimento (p: 0.046).

Os participantes com apenas o fundamental completo ou incompleto (68,8%) e os que não possuem alguma área de conhecimento (46,3%) representaram a maior porcentagem de erros a respeito do conceito de morte encefálica. Enquanto os participantes com escolaridade acima da graduação (84,2%) evidenciaram a maior porcentagem de acertos. Essa discrepância em relação às demais variáveis não é aleatória.

As áreas de formação com maiores percentuais de conhecimento sobre o diagnóstico de morte encefálica foram: ciências biológicas e ciências da saúde, conforme esperado, além do grupo composto por linguística, letras e arte.

Tabela 2 – Analítico do conhecimento sobre morte encefálica

Fonte: Pesquisa sobre o conhecimento e a opinião das pessoas relacionado à doação de órgãos. Elaboração própria.

A pergunta seguinte estava focada em identificar o comportamento dos respondentes caso estivessem inseridos em um país cujo consentimento fosse implícito. Assim, foi perguntado o que os participantes fariam caso se mudassem para a Áustria, em que a política adotada é a de consentimento implícito. Quando questionadas, 416 pessoas (90%) afirmaram que não fariam nada, uma vez que tinham interesse na doação de órgãos, enquanto apenas 47 pessoas (10%) declararam que procurariam as autoridades responsáveis para expressar seu desejo contrário à doação.

De acordo com esta pesquisa, o consentimento implícito, embora pudesse não ser tão bem recebido pela população brasileira, como já ocorreu no passado, surtiria efeitos bem satisfatórios nos índices de doação de órgãos, sobretudo, devido às pessoas tenderem a permanecer na opção-padrão (SUNSTEIN; THALER, 2019).

Em relação às reações das pessoas frente ao consentimento implícito, ou seja, caso não haja o desejo contrário à doação formalizado, o Estado presume que há interesse em doar. Algumas variáveis tiveram associações estatisticamente significativas, como o gênero (p: 0,021), a faixa etária (p: 0,001) e a escolaridade (p: <.001).

Tabela 3 – Analítico da doação de órgãos sob consentimento implícito

Fonte: Pesquisa sobre o conhecimento e a opinião das pessoas relacionado à doação de órgãos. Elaboração própria.

Os participantes do gênero masculino demostraram ser mais desfavoráveis à doação nessas condições do que as do gênero feminino, uma vez que 14,9% dos homens e apenas 7,9% das mulheres declarariam às autoridades responsáveis o seu desinteresse em doar.

Quanto à faixa etária, os que possuem idade superior a 40 anos representaram a maior porcentagem de recusa (26,3%), bem como os respondentes com apenas ensino fundamental completo ou incompleto (43,8%). As demais variáveis tiveram probabilidades acima de 0,05, o que indica que a discrepância observada entre os outros grupos pode ter sido ao acaso.

A penúltima questão estava relacionada às situações de escolha obrigatória. Esse tipo de programa, além de vencer o comportamento inercial, ainda faz com que o desejo do falecido seja respeitado, visto que este estaria destacado em um documento que daria validade à vontade expressa durante a vida.

Tabela 4 – Analítica da doação de órgãos sob escolha obrigatória

Fonte: Pesquisa sobre o conhecimento e a opinião das pessoas relacionado à doação de órgãos. Elaboração própria.

Considerando esse tipo estratégia, as únicas variáveis categóricas que estão associadas de modo estatisticamente significante são a faixa etária (p: <.001) e a área de conhecimento (0.023) conforme evidencia o quadro 4.

Quanto à recusa de doação, foi constatado mais uma vez que as pessoas acima de 40 anos (31,6%) tendem a ser mais contrárias a doação do que os participantes com idades inferiores. Quanto às áreas de conhecimento, as maiores porcentagens de objeções estão com os pertencentes às áreas de Ciências Exatas e da Terra (17,5%), e também com aqueles que não possuem área de conhecimento (14,7%)

A utilização desse tipo de estratégia, conforme demonstram as respostas a esse questionamento na pesquisa, evidencia resultados ainda mais satisfatórios do que no caso de consentimento implícito. Por exemplo, 421 pessoas (91%) optariam por ser doadoras de órgãos nessa condição.

Por fim, a última questão propunha um exercício de se colocar no lugar de uma família que acabou de perder um ente querido. Sabe-se que a dor do luto é impossível de ser simulada, e que, em um momento real, no qual as emoções estão, de fato, afloradas, o posicionamento dessas pessoas certamente seria alterado. Ainda assim, foi pedido que os respondentes simulassem.

Quando confrontados com esse tipo de situação, 65% dos respondentes continuaram consentindo com a doação de órgãos, no entanto, a recusa cresceu consideravelmente. 35% das pessoas não aceitariam que a doação de órgãos fosse realizada caso precisassem tomar essa decisão no pós-luto, ainda por cima vendo seu ente querido apresentar sinais vitais.

Essa última análise constata algumas variáveis que estão associadas às respostas dos participantes, como a faixa etária (p: 0.007), a escolaridade (0.023) e a religião (0.002). A respeito da faixa etária, mais uma vez é verificado que as pessoas acima de 40 anos (52,6%) tendem a ser mais desfavoráveis à doação de órgãos, sobretudo, quando essa decisão é tomada em um momento difícil.

Nas condições em que funcionam as entrevistas com a família de potenciais doadores, no pós- luto e com um tempo de resposta dado às famílias bem curto, as recusas dos indivíduos nessa faixa etária representariam mais do que a metade dos participantes desse grupo.

Quanto à escolaridade, os indivíduos com superior completo (44,3%) se mostraram mais desconfortáveis em consentir com a doação de órgãos nessa situação, enquanto os participantes com escolaridade acima da graduação apresentaram a menor estatística de recusa (18,4%).

Por fim, a religião (p: 0.002) também pode ser considerada como um fator que influencia a resposta dos participantes. Até essa última questão (Q10), a religião ainda não tinha tido associação significativa a nenhuma resposta, ou seja, o p-valor era sempre superior a 0,05. Porém, ao tomar essa decisão em um momento em que o ente querido pode ainda estar apresentando sinais vitais, um fator para os indivíduos religiosos possivelmente surge: a fé.

Por exemplo, os participantes cristãos (católicos e evangélicos) representaram a maior porcentagem de recusa caso esse questionamento (35,8% e 48,8%, respectivamente) fosse feito conforme a situação expressa na pergunta. Provavelmente, esse resultado decorre de os fiéis terem como base a Bíblia Sagrada, a qual tem como um de seus principais objetivos a fomentação da fé.

Ora, se os indivíduos que seguem os ensinamentos da bíblia acreditam que a fé é capaz de mover montanhas, é natural esperar que eles também acreditem que é possível alguém que está respirando com ajuda de aparelhos possa retornar à vida. Além disso, a Bíblia também relata histórias de milagres, como a ressurreição de Lázaro.

Vale salientar que os ensinamentos cristãos, em si, não proíbem os fiéis de doarem os órgãos. Na verdade, é incentivado que sempre busquem o bem ao próximo (PET-RJ, 2015). Acontece que o fato da maioria dos fiéis acreditar na possibilidade de Deus operar um milagre na vida de alguém que foi diagnosticado com morte encefálica, bastando apenas ter fé, pode ocasionar uma recusa. Vale salientar que a crença em milagre está arraigada na cultura e educação religiosa recebida da familia principalmente se católica ou evangélica (IRFFI; CRUZ, CARVALHO, 2017).

Ainda sobre a religião, os indivíduos que pertencem à umbanda (100%) ficaram em primeiro lugar no ranking de religiões mais favoráveis à doação de órgãos, logo em seguida vêm os agnósticos (93,75%). Em relação à umbanda, que é uma religião afro-brasileira, tem-se como uma de suas premissas considerar que o espírito é bem mais importante que o corpo. Ademais, fazer o bem para outra pessoa colabora para o desenvolvimento espiritual do doador falecido (PET-RJ, 2015). Esses princípios confirmam o resultado logrado na pesquisa.

Já em relação aos agnósticos, como eles não acreditam totalmente na existência de um “Deus” e, na maioria das vezes, seguem o método empírico de comprovação científica, possivelmente desconsideram que algum milagre divino possa acontecer após receber o diagnóstico de morte encefálica do familiar, o que os faz acreditar no laudo médico recebido e concordam com a doação de órgãos.

Essas particularidades encontradas nas cinco últimas questões evidenciam que a atual política de doação de órgãos no Brasil requer bastante atenção. Portanto, identificar os detalhes de cada pessoa, a depender da situação, frente ao processo de doação de órgãos, é válido para fins de promoção da conscientização, do debate e, principalmente, para o redesenho de políticas públicas.

AGRADECIMENTOS

Agradecimento especial ao Programa de Extensão PROSPECTO-Estudos e Pesquisas em Economia Comportamental, da Universidade Federal do Ceará, que contribuiu para a realização da pesquisa.

REFERÊNCIAS

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  16. WEBER, F. Transplante de órgãos e tecidos post mortem e a autonomia da vontade do doador versus autorização da família do de cujus. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 24, n. 5883, 2017.

1Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza-Ceará.
*e-mail: evelinebsc@gmail.com
2Fundação Padre Albino (FPA), Catanduva-SP.
3Universidade Estácio de Sá (UNESA), Rio de Janeiro-RJ