CONSEQUÊNCIAS DO LOCKDOWN GERADO PELA PANDEMIA DO COVID-19 NOS ÍNDICES DE SUICÍDIO REGISTRADOS NO INSTITUTO DE MEDICINA LEGAL DE PETROLINA/PE

CONSEQUENCES OF THE LOCKDOWN GENERATED BY THE COVID-19 PANDEMIC ON SUICIDE RATES RECORDED AT THE INSTITUTE OF FORENSIC MEDICINE IN PETROLINA/PE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8408781


Júlio César Eugênio Pereira Freire1
Marcela Vasconcelos Montenegro1
Izabella Carvalho de Oliveira1
José Miguel Francisco de Souza1
Tagllyanna Renata da Silva Sá2
Reginaldo Inojosa Carneiro Campelo1


RESUMO

A pandemia do Sars-CoV-2, iniciou-se na província de Wuhan, na China e difundiu-se a nível mundial em escala exponencial, provocando mudanças drásticas no estilo de vida da sociedade. Para debelar o processo infeccioso, medidas sanitárias foram instituídas, dentre elas, o isolamento social, popularmente conhecido como lockdown, o qual trouxe consequências econômicas, ambientais e sociais. Dentro desse contexto, discussões acerca do impacto do distanciamento social na saúde mental dos seres humanos é importante. A partir disso, o presente estudo teve como objetivo analisar as consequências do isolamento social instituído durante o período pandêmico nos índices de suicídio, a partir da coleta de dados de um instituto de medicina legal em uma cidade do sertão pernambucano. Foi observado então, que, contrariando as estimativas, não foi visto aumento na incidência dos casos de suicídio durante a pandemia quando comparado ao período pré-pandêmico. Dentre os óbitos por tal causa, o público mais afetado foi do sexo masculino entre a terceira e quinta décadas de vida, ademais o meio mais utilizado nas práticas suicida foi mediante asfixia por enforcamento.

PALAVRAS-CHAVE: Isolamento Social; COVID-19; Suicídio; Registros de Mortalidade

ABSTRACT:

The SARS-CoV-2 pandemic began in Wuhan province in China and spread worldwide on an exponential scale, causing drastic changes in society’s lifestyle. In order to curb the infectious process, sanitary measures were instituted, including social isolation, popularly known as lockdown, which had economic, environmental and social consequences. Within this context, discussions about the impact of social distancing on the mental health of human beings are important. The aim of this study was to analyze the consequences of the social isolation instituted during the pandemic period on suicide rates, based on the collection of data from an institute of forensic medicine in a city in the hinterland of Pernambuco. It was then observed that, contrary to estimates, there was no increase in the incidence of suicide cases during the pandemic compared to the pre-pandemic period. Among the deaths from this cause, the most affected were males between the third and fifth decades of life, and the most common means of suicide was asphyxiation by hanging.

KEY-WORDS: Social Isolation; COVID-19; Suicide; Mortality Registries

INTRODUÇÃO:

A pandemia do COVID-19, decretada em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), alterou a realidade da humanidade a nível global, devido à disseminação exponencial do Sars-CoV-2 (RODRIGUES, COSTA, 2021). No Brasil, país que ocupa segundo lugar entre os com maior taxa de mortalidade associada ao vírus, atualizações do mês de Setembro de 2023 evidenciaram uma taxa acumulada de 37.783.855 casos confirmados, dentre os quais 705.172 indivíduos evoluíram ao óbito (PAINEL CORONAVÍRUS, 2023; GUEDES, 2023). A partir disso, fica claro que o impacto da pandemia extrapolou o campo da saúde, trazendo também desdobramentos sociais às diversas comunidades ao redor do mundo.

Em se tratando da infecção pelo Sars-CoV-2, estudos indicam que a população idosa, bem como portadores de múltiplas comorbidades, sexo masculino, além de indivíduos de classe econômica baixa compunham o estrato social mais afetado pelo coronavírus em território brasileiro (GALVÃO, 2021). Nesse contexto, a disseminação desse vírus ocorre, principalmente, por contato direto ou indireto com pessoas infectadas mediante gotículas de saliva e secreções do trato respiratório, além de partículas dispersas no ar (WHO, 2020).

Devido ao risco iminente de infecção, pela forma de disseminação do vírus, e visando coibir a transmissão de tal agente, uma medida de saúde pública adotada durante a pandemia foi o isolamento social, popularmente conhecido como lockdown (RASMUSSEN, KHOURY, DELO RIO, 2020). Tal estratégia sanitária foi indispensável para contenção da pandemia, mas trouxe consequências humanitárias aos indivíduos, visto que tal experiência psicossocial suspendeu repentinamente o estilo de vida comunitário e modificou a rotina das sociedades (DANESE, 2009).

Ainda nesse cenário, o distanciamento social quando associado à atmosfera de incerteza gerada pela pandemia, aos números crescentes de óbitos pelo vírus, inclusive dentro do núcleo familiar, foram fatores que contribuíram para o adoecimento psíquico dos seres humanos durante a pandemia do COVID-19. Tal impacto foi descrito por Ornell e colaboradores (2020) como uma verdadeira “pandemia de medo e estresse”, concomitante ao adoecimento fisiológico pelo SARS-CoV-2. Sentimentos como tristeza, raiva, irritação, além de labilidade emocional, alterações no ciclo sono-vigília e o abuso de medicamentos e drogas marcaram as consequências trazidas pelo contexto de quarentena à saúde mental (BROOKS et al., 2000). Fatores que contribuíram nesse cenário foram: a limitação do acesso a serviços de saúde mental, dificultando o apoio a esses indivíduos, a suspensão da realização de cultos religiosos, uma vez que a fé é um meio de resiliência, e a restrição a realização de funerais, impedindo uma despedida simbólica a entes queridos falecidos pela pandemia. (ZORTEA, 2020). Em casos mais graves, esse adoecimento psíquico culminou em tentativas suicidas.

Ao realizar uma análise dos índices de suicídio no período pré-pandêmico, observa-se que, em nível mundial, houve redução em cerca de 36% das taxas de sucicídio entre os anos 2000-2019. Esse padrão, contudo, não foi observado em território americano, o qual vivenciou aumento dos índices, no mesmo período, em 17%. Nesse cenário, o Brasil ganhou destaque como um dos países com maior índice de suicídios (WHO, 2019), com elevação nos óbitos de etiologia suicida em 43%, afetando epidemiologicamente 6,7 pessoas por 100 mil habitantes (BRASIL, 2021). As características que predominavam ao considerar a população que cometeu suicídio foram: sexo masculino, origem indígena, idade avançada. Ademais, os índices foram mais altos na região Sul quando comparada às demais regiões do Brasil (SOARES, STWANKE, LEWANDOWSKI, 2023).

Por sua vez, não há uniformidade entre os estudos quanto ao panorama das taxas de óbitos de origem suicida durante a pandemia pelo SARS-CoV-2, havendo variação entre aumento, estabilidade e redução. Dados indicam que o índice de suicídio em 2020 foram de 6,68 por 100 mil habitantes no Brasil, não apresentando o crescimento estimado a nível nacional nem regional. Houve manutenção da estabilidade do número de suicídios ao longo desse ano, havendo maior incidência na região Sul e menores taxas no Nordeste (SOARES, STWANKE, LEWANDOWSKI, 2023). Outro estudo com dados internacionais, porém, indica aumento dos índices de tentativas de suicídios e suicídios durante os meses iniciais da pandemia, o que confirma a não uniformidade de resultados acerca do tema (NOMURA, 2021). A partir disso, pode-se teorizar que os impactos advindos da pandemia do COVID-19 nos índices de suicídio possam ser a longo prazo, devido aos desdobramentos do período pandêmico na saúde mental da ppopulação, como transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão (REGER, 2020).

Assim, sabendo dos impactos psicossociais provocados pela pandemia do COVID-19, o presente estudo tem como objetivo avaliar a influência da isolamento social durante o período pandêmico nos índices de suicídio a partir da análise de registros periciais coletados Instituto de Medicina Legal de Petrolina/PE.

METODOLOGIA:

O presente trabalho diz respeito a um estudo descritivo, transversal e retrospectivo. A pesquisa foi realizada no Instituto de Medicina Legal Antônio Persivo Cunha Regional Petrolina – PE, no Sistema de Gestão de Documentos e Laudos (GDL) das Perícias Médico-Legais do Estado de Pernambuco.

O IML Antônio Persivo Cunha Regional Petrolina – PE é o maior instituto de perícia oficial responsável por exames médico-legais do sertão pernambucano, sendo o único instituto apto a realizar exames necroscópicos da referida região. Segundo a Portaria da Secretaria de Defesa Social Nº 1976/2019, é o instituto de referência para realizar perícias necroscópicas de interesse criminal nas Áreas de Segurança Integrada (AIS) 22 a 26, prestando assistência a uma população de um milhão de habitantes, segundo estimativa do IBGE de 2020. O período da pesquisa foi de agosto a outubro de 2022.

             A  amostra  foi  constituída   por  21.069  laudos   periciais no Sistema de Gestão de Documentos e Laudos (GDL) das Perícias Médico-Legais do Estado de Pernambuco Petrolina/PE entre os anos de 2018 a 2019, e 2020 a 2021. Adotou-se como critérios de elegibilidade todos os laudos relacionados às perícias necroscópicas realizadas entre os anos de 2018 a 2019 e 2020 a 2021, no Sistema de Gestão de Laudos (GDL) das Perícias Médico-Legais do Estado de Pernambuco/Petrolina/PE.

Excluíram-se os laudos periciais necroscópicos em ossadas humanas que não tiverem a causa da morte estabelecida, corpos de morte natural que porventura sejam encaminhados ao IML e corpos que a causa da morte permaneça como indeterminada. Foram estudadas as seguintes variáveis socioeconômicas: Idade e sexo; Variáveis específicas: laudos periciais traumatológicos, sexológicos e necroscópicos. Causa da Morte.

Quanto ao processamento e análise dos dados coletados, foi construído um novo banco de dados no Excel do Windows 2016®, posteriormente transferido para processamento de análises no Statistical Package for the Social Sciences – SPSS® com as variáveis necessárias para atingir os objetivos propostos.

Para avaliação descritiva foram calculadas medidas de tendência central e dispersão para avaliação das variáveis numéricas, e, frequência para variáveis categóricas. Os dados foram analisados através do teste de Correlação de Pearson e o T de Student e aceitando-se níveis de significância estatística acima de 95%. Foi aplicado o teste de Fisher ou Qui Quadrado, para as variáveis categóricas, e, para as variáveis numéricas foram aplicados o Teste T de Student ou Mann Whitney, quando houve ou não distribuição normal; e para saber se há distribuição normalmente foi aplicado o teste Kolmogorov–Smirnov. Para nível de significância foi considerado o P<0,05.

Quanto às questões éticas, ressalta-se que estudo considera a Resolução Nº 466 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a qual preconiza os postulados bioéticos que norteiam as pesquisas envolvendo seres humanos de forma direta ou indireta ao enfatizar a necessidade de valorizar “o respeito pela dignidade humana e pela especial proteção devida dos sujeitos de pesquisa”, em território nacional, assegurando beneficência, não maleficência, justiça e autonomia aos envolvidos na pesquisa.

Ademais, este estudo foi submetido para apreciação e aprovado pelo sistema CEP/CONEP através do comitê do Complexo Hospitalar HUOC/PROCAPE, sob o CAAE 61403122.0.0000.5192, com o parecer favorável Nº. 5.643.578.

RESULTADOS:

Foram avaliados 21.069 laudos periciais no Sistema de Gestão de Documentos e Laudos (GDL) das Perícias Médico-Legais do Estado de Pernambuco – Petrolina/PE entre os anos de 2018 a 2019, e 2020 a 2021, estudando-se as seguintes variáveis: idade e sexo, laudos periciais traumatológicos, sexológicos e necroscópicos e causa da morte, com enfoque nos casos de suicídio.

Em uma primeira análise socioeconômica, apesar da prevalência de perícias necrológicas no sexo masculino, foi evidenciado aumento do índice de mortalidade em pessoas do sexo biológico feminino (p = 0,0024). Em 2018, por exemplo, estes correspondiam a 0,88% dos exames necroscópicos. No ano de 2021, já em contexto pandêmico, o número de exames correspondeu a 2,82%.

Gráfico 1. Comparativo da quantidade de perícias necrológicas por sexo realizadas entre 2018 e 2021.

No que diz respeito às necropsias decorrentes da ação suicida, houveram 232 casos registrados entre os anos de 2018-2021, sendo 116 no biênio 2018-2019 e 116 no biênio 2020-2021. Os dados avaliados não demonstraram diferenças significativas entre a quantidade de suicídios entre o período pandêmico e pré pandêmico, visto que, proporcionalmente, o número de suicídios entre os anos de 2018 e 2019 foi de 3,75% e entre o biênio 2020 e 2021 foi de 3,74%, do total das necropsias realizadas.

Em números absolutos, dos 232 casos de suicídio, 194 envolveram indivíduos do sexo masculino e 38 indivíduos do sexo feminino (83% vs 17%, respectivamente), com prevalência na faixa etária entre 30-50 anos. No biênio 2018-2019, 8,6% das mortes por suicídio ocorreram em indivíduos entre 12 e 18 anos, 29% entre 18 e 30 anos, 41% entre 30 e 50 anos e 15% entre 50 e 70 anos com 6% correspondendo a outra faixa etária. Já no período pandêmico, entre 2020-2021, esses valores corresponderam, respectivamente, a 6%, 32%, 32,7%, 21,5% e 8%. Na análise comparativa entre o período pré e pós pandêmico, não foram evidenciadas alterações de prevalência entre as faixas etárias e sexo.

Gráfico 2. Comparativo do número de óbitos por suicídio ao longo do quadriênio 2018-2021.

A análise dos laudos de necrópsia identificaram, de acordo com o mecanismo do óbito: 3 mortes por arma branca, 180 por asfixia, 22 por energia química, 22 por instrumento perfuro contuso e 5 por outros meios, sem diferenças estatísticas nos meios utilizados entre os biênios estudados.

Gráfico 3. Comparativo da frequência e mecanismo de óbitos de origem suicida a partir de perícias realizadas entre os anos de 2018-2021.

A asfixia por enforcamento foi o principal meio utilizado para o suicídio em ambos os sexos, representando 68,42% das ocorrências de suicídio entre mulheres e 78,35% ente os homens. Por sua vez, o uso de instrumento pérfuro-contudente, no qual se encaixa projéteis de arma de fogo, predominaram no sexo masculino quando comparados ao sexo feminino, com 11,85% dos casos vs zero casos nas mulheres. O segundo meio mais utilizado para suicídio nas mulheres foi pelo uso de energia de ordem química, correspondendo a 29% dos casos.

Gráfico 4. Análise da distribuição do mecanismo do óbito de acordo com o sexo.

DISCUSSÃO:

A pandemia do COVID-19 gerou efeitos psicológicos e sociais profundos na população em decorrência do estresse e ansiedade inerente ao período, medo de contágio, isolamento social, incertezas e dificuldades econômicas. Diversas linhas de estudo apontam para uma sequela emocional que tende a persistir pelos próximos anos, apresentando um pico tardio. Tal fato culmina com o aumento do risco de suicídio, especialmente em populações com transtornos psiquiátricos pré existentes ou indivíduos que residiam em áreas de alta prevalência do coronavírus (SHER L., 2020).

Ao avaliar o panorama dos problemas emocionais mais frequentes durante a pandemia do coronavírus, uma meta-análise envolvendo 173 estudos entre fevereiro e julho de 2020 (n = 502,261 idade= 34.4 anos, sexo feminino = 63%) evidenciou maior prevalência de sintomas em mulheres jovens e indivíduos acometidos pelo vírus. Ao destrinchar os problemas que acometeram a saúde mental no período, identificou-se estresse pós traumático em indivíduos infectados pelo COVID- 19 (94%), problemas comportamentais em indivíduos com quadros psiquiátricos prévios (77%), medo em profissionais de saúde (71%) e ansiedade nos cuidadores (42%) (DRAGIOTI et al., 2022).

A análise epidemiológica da faixa etária com maiores índices de suicídio durante a pandemia, feita no presente estudo, evidenciou uma maior prevalência entre jovens adultos entre 30-50 anos. Tal dado é corroborado por análises epidemiológicas pré-pandêmicas, que evidenciaram prevalência de suicídio em indivíduos entre 20-59 anos de idade (65,6%) em 2018, especialmente do sexo masculino (na proporção de 8:2 comparando ao sexo feminino), apesar da maior parte de tentativas de suicídio ser atribuída a mulheres (SILVA E MARCOLAN, 2021).

O segundo grupo etário mais acometido correspondeu a jovens entre 18 e 30 anos. Durante e Lau (2022) discorreram sobre esse impacto ao abordar a grande disrupção no estilo de vida dos jovens após as medidas do lockdown, culminando em maiores índices de depressão, ideações e tentativas de suicídio em adolescentes. As medidas restritivas aumentaram a vulnerabilidade do grupo pelo menor suporte social e menor acesso aos serviços de saúde.

É possível fazer um paralelo entre os resultados de prevalência desse estudo com o perfil epidemiológico de suicídio no Brasil pré pandêmico. Nesse contexto, Dubé e colaboradores (2021) conduziram uma meta-análise incluindo 54 estudos e 308,596 participantes para avaliar os comportamentos suicidas no contexto pandêmico. Os dados demonstraram aumento nas taxas de ideação suicida (10,81%), de tentativa de suicídio (4,68%) e de auto-lesão (9,36%) durante a pandemia do COVID-19 em comparação aos anos anteriores, com predominância em mulheres jovens. Tais dados se contrapõem aos evidenciados nesse estudo, que não demonstrou mudanças significativas nas taxas de suicídio ao comparar o biênio 2018-2019 (3,75%) e 2020-2021 (3,74%).

Uma tendência a estabilidade ou decréscimo nas taxas de suicídio após o surto inicial do coronavírus também foi observada por Alés et al. (2023), demonstrando índices heterogêneos entre os diferentes grupos sociodemográficos (aumento nas minorias raciais dos EUA, homens mais velhos no Brasil e Alemanha e mulheres jovens no Japão). Essas variações podem ser influenciadas pelos diferentes riscos de contágio, morte e vulnerabilidade socioeconômica.

Tal redução também foi evidenciada em cidades da Alemanha, na qual os indices de suicídio foram menores em períodos com severas restrições da pandemia em comparação com períodos sem restrição (7,2% vs 16,8%, respectivamente). Uma comparação com os anos anteriores demonstrou, contudo, que a diferença foi causada por um índice incomumente alto nas taxas de suicídio antes das restrições, de modo que as taxas durante a pandemia seguiram as tendências normais dos anos prévios (RADELOFF et al.., 2021).

É importante ressaltar, contudo, que a ausência de diferença estatisticamente significante nas taxas de suicídio pré e pós pandêmica não significa que não houve impacto, visto que foi relatado uma redução na taxa de suicídio após a deflagração da pandemia, seguida de aumento nos índices durante período de seguimento na Itália (CALATI et al., 2021).

Ademais, é válido realizar uma análise acerca dos meios utilizados nos óbitos decorrentes de práticas suicidas. Em território brasileiro, culturalmente, o enforcamento representa a principal técnica, como demonstrou Rosa e colaboradores (2017) em uma pesquisa realizada no estado do Paraná, que evidenciou prevalência de suicídio por enforcamento na maioria das Macrorregionais de saúde do Estado para ambos os sexos, especialmente no sexo masculino e em idade superior a 45 anos.

Perpassando o contexto brasileiro, percebe-se que esse cenário epidemiológico compactua com os dados achados internacionalmente. Um estudo realizado nos Estados Unidos entre 2017-2019, com mais de 94.000 indivíduos, objetivou analisar os três meios mais utilizados em práticas suicidas. Tais dados evidenciaram que o uso de métodos letais, como armas de fogo e estrangulamento, vem aumentando entre adultos jovens em ambos os sexos nas últimas décadas. Em todos os grupos etários, 55% dos homens e 30% das mulheres utilizaram armas de fogo, incidência estatisticamente aumentada em comparação com o presente estudo, que evidenciou seu uso em 11,85% dos homens e em nenhuma mulher. Já com relação ao estrangulamento, a prevalência encontrada no contexto brasileiro foi superior ao achado nos Estados Unidos ( 28% e 29% nos EUA Vs. 78,35% e 68,42% no presente estudo). Observou-se maior prevalência de intoxicação em mulheres (32%), corroborando com a prevalência de 29% no presente estudo.

Percebeu-se que na primeira tentativa de suicídio prevalecia a intoxicação em ambos os sexos. Transtornos mentais, financeiros e de trabalho foram mais associados à asfixia/ estrangulamento, enquanto problemas de saúde física e no relacionamento estiveram mais vinculados ao uso de arma de fogo (CHOI et al., 2022). Um estudo conduzido na Sérvia analisou as mortes por suicídio/ enforcamento dentro de um período de 30 anos (N= 24.340), evidenciando tendência de queda nos índices em ambos os sexos, especialmente nas mulheres. A única exceção foi o subgrupo de homens de meia idade, entre 40 e 49 anos, no qual houve um pequeno aumento nas taxas de 0,3% ao ano (ILIC; ILIC 2022).

Com relação ao uso de armas de fogo mundo afora, um estudo conduzido entre 1990 e 2019 mostrou prevalência seis vezes maior de suicídio por arma de fogo em homens do que em mulheres, com maiores taxas na Groenlândia e Estados Unidos, países que apresentam política armamentista mais flexibilizada e maiores índices de posse de arma de fogo (ILIC et al., 2022). Tal correlação também é evidenciada pelas maiores taxas de suicídio em indivíduos com menos de 24 anos que possuiam acesso a armas, demonstrando maiores porcentagens de suicídio em estados com maiores índices de posse de arma, retratando a importância de limitar acesso de jovens a armas de fogo, a fim de reduzir os riscos de suicídio (GUNN e BOXER, 2022).

CONCLUSÃO:

A pandemia do SARS-CoV-2 alterou drasticamente a realidade humana, em especial durante os anos de 2020 e 2021. O isolamento social foi necessário durante o auge da disseminação viral, sendo importante para controlar as taxas de infecção, mas ao mesmo tempo, trouxe desdobramentos negativos no campo social. Até a atualidade as entidades de saúde lidam com as consequências geradas pela pandemia na saúde mental da população, incluindo as flutuações dos índices de suicídio na sociedade.

O presente estudo não identificou alteração estatisticamente significante ao comparar os índices de suicídio entre o período pandêmico e pré-pandêmico, contudo, a partir da análise acima realizada, é indiscutível o impacto psicossocial gerado pela pandemia.

AGRADECIMENTOS:

Ao Programa de Mestrado em Perícias Forenses FOP/UPE. Aos orientadores. À equipe de pesquisa. À SDS PE pela disponibilização dos dados.

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1Universidade de Pernambuco (UPE), Recife – Pernambuco.
2Faculdade Estácio de Juazeiro, Juazeiro – Bahia.