DERMATITE ATÓPICA: UMA DOENÇA CUTÂNEA OU SISTÊMICA?

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8374035


Ana Carolina Campos Moraes Guimarães1
Gabriella Giuliana Pereira Neto Pegolo2
Gabriela Belini Baraldi3
Rubia Lopes Rodrigues4
Fernanda Moreira Ribeiro5
Brenno Kristiano Soares dos Santos6
Yasmim Santos da Silva7
Felipe Kennedy Sousa Gonçalves8
Amanda Florêncio Alves SIlva9
Eduardo da Silva Camargo10
Letícia Corrêa Soares Suzart11
Tainá Rodrigues Toqueton12
Rodrigo Daniel Zanoni13


RESUMO

A dermatite atópica é doença inflamatória cutânea associada à atopia, predisposição a produzir resposta IgE a alérgenos ambientais, constituindo uma das manifestações das doenças atópicas, junto com a asma e a rinite alérgica. A dermatite atópica é caracterizada por episódios recorrentes de eczema associado a prurido, acometendo superfície cutânea geneticamente alterada, induzindo, por fenômenos imunológicos, a presença de inflamação. Trata-se de doença multifatorial, com enfoque nas alterações sistêmicas e alérgicas ou nas manifestações cutâneas, de acordo com diferentes visões da doença. A conceituação da dermatite atópica é importante, porque a conduta terapêutica pode variar segundo essas duas formas diferentes de analisá-la. Autores modernos discutem extensivamente esses aspectos sem, contudo, alcançar uma conclusão sobre a dermatite atópica como doença sistêmica ou cutânea. A procura dos conceitos sobre a doença, desde os primeiros relatos, associada à evolução do pensamento na dermatologia, poderia esclarecer a origem dessas dúvidas. Uma análise histórica demonstra que a dermatite atópica tem seus conceitos atuais oriundos dos estudos de diversos pensadores, que, em diferentes momentos históricos, descreveram a doença, e que muito do que acreditamos atualmente tem, nesses escritos, seus fundamentos.

Palavras chave: Dermatite atópica. História da medicina. Suscetibilidade à doença.

ABSTRACT

Atopic dermatitis is an inflammatory disease associated to atopy, which is a predisposition to produce an IgE response to environmental allergens and considered one of the manifestations of the atopic diseases, including asthma and allergic rhinitis. Atopic dermatitis is characterized by recurrent eczema flares, associated to pruritus, affecting a genetically disrupted skin surface, inducing, by immunological phenomena, the onset of inflammation. It is a multifactorial disease, with an emphasis on systemic and allergic alterations or skin manifestations, according to different concepts. The definition of atopic dermatitis is important, since its management may vary according to these two different points of view. Modern authors have extensively discussed these concepts, though with no conclusion as to its nature  systemic or cutaneous disease. The search for concepts about the disease, since its first descriptions, associated to the evolution of the dermatology rationale through history, may help understand the origin of these doubts. A historical analysis demonstrates that the currently accepted concepts of atopic dermatitis have their background from different researchers, who, at different historical moments, described the disease, and a great part of our beliefs about atopic dermatitis are related to these ancient writings.

Keywords: Dermatitis atopic. Disease Susceptibility. History of medicine.

INTRODUÇÃO

Dermatite atópica ou eczema atópico são termos que designam as manifestações inflamatórias cutâneas associadas à atopia. Segundo uma visão atual, a atopia seria predisposição hereditária do sistema imune a privilegiar reações de hipersensibilidade mediada por IgE, em resposta a antígenos comuns na alimentação, no ambiente intra e extradomiciliar, conceito esse situando a dermatite atópica como uma das manifestações das doenças da tríade atópica – dermatite atópica, asma, rinite alérgica (RANCÉ, 2005).

Em outra forma de conceituação, a dermatite atópica seria definida como doença inflamatória cutânea crônica, de caráter genético, caracterizada pela presença de episódios recorrentes de eczema associado a prurido, muita vezes intenso, apresentando como substrato alterações imunológicas cutâneas que produzem inflamação, podendo estar eventualmente associada a doenças respiratórias, como a asma e a rinite alérgica (LEUNG E BIEBER, 2003).

A primeira definição citada apresenta a dermatite atópica como uma das manifestações clínicas da “síndrome atópica”, a segunda como doença cutânea, eventualmente associada a doenças respiratórias. Essa dualidade de visões sobre a doença tem, aparentemente, caráter mais filosófico do que clínico. Contudo, a classificação da dermatite atópica como doença sistêmica (alérgica) ou cutânea acarreta conceitos diferentes sobre seu manejo, tendo em vista que a visão mais holística apresenta a doença como uma das diversas manifestações inflamatórias da atopia, com fatores desencadeantes alérgicos em sua essência, enquanto o conceito cutâneo, sem desprezar as manifestações respiratórias eventualmente associadas, tende a focalizar as condutas terapêuticas em ações sobre a pele alterada pela doença. Tais diferenças são de especial importância para o paciente que dela sofre.

A literatura científica atual, apesar de rica em relação ao tema dermatite atópica e ambiente, não responde à questão do papel real de fatores extrínsecos na dermatite atópica. Os dados existentes sobre o tema são extensos, mas controversos.

Não satisfeitos, os autores optaram por procurar respostas analizando diversos escritos sobre a dermatite atópica desde os primórdios da história da medicina, confundindo se com a história da dermatologia e, mais amplamente, com a história evolutiva do próprio pensamento científico do homem. Essa procura talvez possa esclarecer a origem das dúvidas que norteiam o pensamento de tantos estudiosos no assunto até os dias de hoje.

A DEFINIÇÃO DO TERMO DERMATITE ATÓPICA

O primeiro aspecto histórico em relação à dermatite atópica refere-se à definição do termo “atopia”, cuja primeira utilização na literatura científica se deve a Wise e Sulzberger, em artigo publicado em 1933. Discutem se diversas alterações cutâneas descritas na época como subtipos do grupo das “neurodermites”, com suas variáveis de nomenclatura, como neurodermite generalizada, prurido generalizado com liqüenificação e muitos outros. Segundo esses autores, a melhor denominação dessas entidades dermatológicas seria a de “dermatite atópica”  “This is probably best called atopic dermatitis” (WISE E SULZBERGER, 1933).

Os textos de Wise e Sulzberger, contudo, não finalizam as discussões sobre o diagnóstico da dermatite atópica. Basta relatar que somente em 1980 foram criados critérios diagnósticos de aceitação universal sobre a doença (HANIFIN E RAJKA, 1980).

A DERMATITE ATÓPICA NOS PRIMÓRDIOS DA MEDICINA

Quanto à origem da dermatite atópica, motivo desta pesquisa, a história da evolução dos conhecimentos científicos sobre a doença demonstra a dualidade entre ser a entidade local ou sistêmica, estar ou não associada a fatores ambientais em relação ao desenvolvimento da doença.

Desde a Antigüidade, descrições de dermatite atópica são encontradas, assim como relatos de sua relação com fatores pessoais, familiares e ambientais.

Nos textos de Hipócrates, datados do período entre os séculos IV e V antes de Cristo, o prurido, um dos sinais diagnósticos mais importantes da dermatite atópica, já é citado. No Livro V das “Epidemias de Hipócrates” observa se a descrição de um paciente acometido por uma doença cutânea, passível do diagnóstico de dermatite atópica: “Em Atenas, um homem era acometido por um prurido que afetava todo o seu corpo (…). A afecção tinha bastante intensidade, e a pele era engrossada por todo o corpo (…). Ele se mantinha na Ilha de Melos, onde os banhos quentes lhe melhoraram o prurido e o espessamento da pele (…)”.

O texto demonstra como características da dermatite atópica, além do prurido, o espessamento geral da pele e o alívio do prurido com banhos quentes. E cita, dentro dos conceitos hipocráticos, que a cura da doença cutânea poderia levar o paciente à morte (WALLACH E TILLES, 2005).

A visão da pele como órgão de “eliminação dos humores”, mecanismo vital para a cura de muitas morbidades, entre os autores do Mundo Antigo, é comum. Dessa forma, surge a ideia de que as doenças cutâneas não devem ser tratadas. Essa é a visão da época sobre a dermatite atópica, por meio da qual poderia ser eliminada a “linfa viciada” que atinge os enfermos com a dermatose. Era então a doença cutânea um mal necessário e, portanto, não deveria ser tratada. A ideia da pele como forma de eliminação de humores persistirá por muito tempo, até o fim do século XIX, e no inconsciente de muitos contemporâneos, ainda impregnados pelo pensamento hipocrático (TAJEB, 2005).

Atribui Se a Aetius d’Amida, no ano 543 da era cristã, a primeira menção ao nome “eczema”. Hebra traduziu a definição de eczema de Aetius como “flictemas quentes e dolorosos que não se transformam em ulceração” (SUTTON, 1986). 

No século seguinte, Paulo d’Egine emprega o termo “eczema”, da palavra grega εκζειν significando “ferver” e divide o eczema em dois subtipos: o primeiro seria erupção líquida nem purulenta e nem ulcerosa, própria do “eczema vesiculoso”, e o segundo, outra variedade, também vesicular, aguda, bolhosa, comparável ao herpes. Na medicina da época, os critérios evolutivos das doenças se sobrepõem aos critérios morfológicos, fato que persistirá até o século XIX (WALLACH et al., 2005).

A DERMATITE ATÓPICA E O SURGIMENTO DA DERMATOLOGIA

Só no século XVI podemos falar a respeito de especialização em doenças cutâneas, o que no futuro viria a ser denominado “dermatologia”. O primeiro livro consagrado ao estudo das doenças cutâneas: De morbis cutanei et omnibus humani corporis excrementis, publicado em Veneza em 1572, é a transcrição das lições orais do sábio Girolamo Mercurialis. Mercurialis expõe seus conhecimentos sobre os conceitos da medicina da época, cita constantemente os autores antigos, com permanente vinculação a Hipócrates, Aristóteles e Galeno, sendo o autor fiel à então consagrada “teoria dos humores”. Contudo, Mercurialis foi um inovador, por ter individualizado as doenças cutâneas, pela primeira vez, em um tratado médico. Ele as distingue em doenças da cabeça e doenças do corpo, e as subdivide em doenças por modificação da cor da pele e doenças por modificação do relevo da pele. No Capítulo nove de seu livro, o autor descreve o que denomina “achore et favus“. O termo “achore” aproxima- se a uma lesão supurante do couro cabeludo. Ele afirma que as crianças são particularmente sensíveis ao “achore” (WALLACH et al., 2005).

Citando Marcellus, o Médico da Antigüidade, Mercurialis afirma que a sensibilidade dessas crianças estaria relacionada ao período de sua vida intrauterina, no qual os fetos seriam banhados por excreções que a natureza expulsaria depois do nascimento. O essencial dessas exceções seriam eliminadas pela cabeça da criança, por ser a região “mais úmida e (…) mais plena”. Encontramos, então, considerações do autor que demonstram ser comum naquela época essa dermatose pruriginosa e mais comum no inverno da infância. No capítulo de etiologia, ele indica que as crianças são atingidas pela doença a partir do leite de suas mães. O autor argumenta que a má alimentação de suas mães renderia um leite “infeccioso” e suscetível de causar a doença. Advoga atenção ao regime da nutriz, com o objetivo de melhorar os humores.

Turner, considerado o fundador da dermatologia inglesa, em 1714, escreveu Morbus Cutanei: A Treatise of diseases incident to the skin, livro dividido em duas grandes partes: uma primeira relativa às doenças que atingem todo o tegumento, e uma segunda parte em que são tratadas doenças de regiões particulares do corpo, dentro da visão atual do que denominamos dermatologia segmentar. O Capítulo IV da primeira parte é consagrado às crostas e erupções cutâneas da criança. A descrição das lesões cutâneas dos lactentes é bastante precisa. Contudo, em seus relatos, não é possível distinguir a dermatite atópica do eczema seborréico infantil, também comum nessa faixa etária. O autor defende a ideia de seus antecessores de que não se deve tratar a enfermidade, mas deixar “que a natureza o faça”, e propõe também, como havia feito Mercurialis, a relação do aleitamento materno com a doença. Turner recomenda que “deve se agir sobre a alimentação da mãe nutriz, evitando se todo tipo de “excitante” e eventualmente “realizando se o desmame da criança” (TURNER, 2023). 

Astruc, estudioso francês, em 1759, descreveu em seu livro Traité des tumeurs et des ulcères, uma doença própria das crianças, consagrando o Capítulo nove à descrição do que denominou “croûtes de lait” (crostas lácteas). Para o autor, as crostas lácteas teriam origem nas glândulas sebáceas e surgiram devido à má qualidade do leite das nutrizes dessas crianças. A troca de nutriz ou o desmame da criança levaria à cura da doença. Astruc acreditava que fatores próprios da criança teriam algum papel na doença, pois “a mesma nutriz não causava crostas lácteas a todas as crianças que ela amamentava” e acreditava que a qualidade do leite “muito gorduroso, muito amanteigado, muito velho” decorria de condição sangüínea mais gordurosa e mais “grossa”, sendo diretamente responsável pela abundância de “humor sebáceo” (ASTRUC, 1759).

Ele distinguiu duas formas de crostas lácteas: as grossas, com pouco prurido (démangeaisons médiocres) e as úmidas, com prurido intenso (démangeaisons vives).O autor não faz alusão à associação com outras doenças ou caráter familiar. Contudo, sua descrição é uma boa diferenciação entre dermatite seborréica e dermatite atópica do lactente (ASTRUC, 1759).

Boissier de Sauvages define em seu livro Nosologie méthodique, publicado em 1772, uma doença que denomina “teigne” (tinha) e define como crostas e úlceras que aparecem na face e na cabeça, podendo ser secas ou úmidas. Atribui a localização das lesões na face e no couro cabeludo às glândulas sebáceas da pele. O autor distingue diversas variedades da doença: o primeiro tipo é denominado “tinea láctea” e descrito como doença que atinge crianças de um ano que ainda são amamentadas no peito: “essa espécie, que é a mais benigna de todas, aparece na face […], mas ela só atinge crianças até um ano de idade que ainda mamam no seio, sendo então denominada crosta láctea”. Ele refere uma segunda forma, a “teigne muqueuse” (tinha mucosa), que se associaria a bastante prurido, obrigando as crianças a se coçar a ponto de se arranhar. Para o tratamento, indica a troca do regime alimentar, sobretudo a troca de nutriz, recomendando nutriz mais nova, com leite mais “doux” (WALLACH et al., 2005).

Alibert, pai da dermatologia francesa, em 1832 descreve cinco espécies de “teignes” (tinhas), chamando atenção para a distinção da “teigne muqueuse” (tinha mucosa) ou “achore muqueux” e do “achore lactmonieux” ou “croûtes de lait” (crostas lácteas). Esta última é considerada banal e salutar, resquício das idéias dos humores hipocráticos, específica do período de amamentação ao seio, não merecendo maiores preocupações. A “teigne muqueuse”, contudo, ao contrário da primeira, poderia persistir ao curso dos dois primeiros anos de idade, destacando que além do papel do aleitamento, a dentição poderia ser fator causal, assim como condições emocionais da mãe e da criança, tendo essa doença, de acordo com Alibert, “grau de violência considerável”. A tinha mucosa com lesões úmidas certamente corresponderia à dermatite atópica (WALLACH et al., 2005).

O SURGIMENTO DA ERA CLÍNICA

Uma revolução na forma de pensar da medicina se deu em torno de 1800. Até aquele momento a medicina era baseada nos ensinamentos dos livros antigos. A partir desta doutrina revolucionária chamada “clínica”, do grego κλινζ (estar deitado), o médico passa a procurar o conhecimento no campo dos sinais e dos sintomas. A dermatologia sofreu as consequências desse novo modo de pensar. Willan, em On cutaneous diseases, de 1808, e Bateman, que lhe deu continuidade, propuseram uma nomenclatura dermatológica diferente das anteriores, baseada na clínica e em trabalhos anteriores de Plenck e composta de oito ordens do que foi denominado “lesões elementares”: pápulas, escamas, exantemas, bolhas, pústulas, vesículas, tubérculos e máculas (SHARMA, 1983).

Darier , em 1935, comparou o método de Willan a um alfabeto, referindo as lesões elementares como o alfabeto da dermatologia. Com a utilização do método, houve uma normatização que permitiu descrever de forma quase uníssona as diversas alterações da pele. A presença do eczema na obra de Willan & Bateman é de grande importância. Sua definição para a doença que hoje conhecemos como dermatite atópica é: “uma erupção não contagiosa com pequenas vesículas agrupadas, que, após absorção do líquido que elas contêm, evolui para formar escamas e crostas”. Bateman acrescenta: “Essa erupção é geralmente devida a uma irritação, de origem interna ou externa, e pode ser produzida por uma grande variedade de irritantes, em pessoas com a pele constitucionalmente muito irritável”. Contudo, nas obras de Willan & Bateman, não existe uma doença com os critérios decisivos para o diagnóstico da dermatite atópica, que são o predomínio infantil e o prurido. Entretanto, no capítulo referente às pápulas, chama atenção a descrição de uma patologia denominada strophulos intertinctus, descrita como uma erupção papulosa específica das crianças jovens, que coexiste com bom estado geral de saúde. As bochechas, a fronte e os dedos das mãos são os sítios de predileção, mas todo o tegumento pode ser atingido. A falta da descrição de prurido e da cronicidade da doença dificulta, contudo, o diagnóstico de dermatite atópica. Willan cita, porém, a relação do quadro descrito com “perturbações alimentares”, preferindo abster-se do julgamento do fato e deter se na descrição das lesões. Observa Se, subentendida no texto, a crença de que fatores locais (cutâneos) e fatores ambientais (alimentos) tenham relação com a doença. Nas ordens das pústulas, os autores também descrevem os prurigos. O prorigo larvaris é descrito como o antigo quadro de crosta láctea, referindo como lesão elementar a pústula, que se rompe em ciclos, produzindo as lesões crostosas em toda a superfície da face, à exceção de nariz e pálpebras (SHARMA, 1983).

O método “willanista” postula que todas as doenças são diagnosticadas a partir de um tipo de lesão elementar, imutável com o decorrer do tempo. A dermatite atópica se modifica de acordo com a idade do doente, a localização das lesões, o tempo de cada lesão, e não é uma doença essencialmente papular, vesiculosa, pustulosa, ou escamosas, além de possuir critério subjetivo de diagnóstico, que é o prurido; portanto, não é perfeitamente adaptável ao método “willanista” de avaliação das doenças de pele.

Rayer, em 1826, define o eczema como uma erupção microvesicular não contagiosa, e propõe sua divisão em eczema agudo e crônico, fato então inédito e importante para o diagnóstico de dermatite atópica. O eczema agudo de Rayer é sempre de causa externa. O eczema crônico é apresentado como a repetição ou o prolongamento do eczema agudo. O prurido é intenso, descrito pelo autor como “um suplício”. Apesar disso, o autor não refere uma forma infantil da doença, se restringindo a uma forma no adulto. No capítulo referente às dermatoses papulosas, Rayer cita em seus capítulos o strophulos (estrófulo), dermatose papular infantil que atinge crianças amamentadas por suas mães, que, segundo ele, na idade de dois meses, sofrem de discreta inflamação gastrointestinal e strophulos, cuja duração varia de quatro a cinco meses. O prurido é importante, causando insônia. O autor cita um paciente em particular que apresentou laringite dois anos depois e, seis meses mais tarde, bronquite, um dos primeiros relatos de associação da dermatite atópica com a asma (RAYER, 1835).

Ferdinand Hebra, professor de dermatologia em Viena no final do século XIX, classificou os eczemas e prurigos entre as dermatoses exsudativas crônicas. Destacou que “as flexões das articulações são muitas vezes os sítios do eczema crônico, que se produz comumente de uma maneira simétrica”. Entre as áreas de localização do eczema, situamse a face e o couro cabeludo, permitindo supor que o que se denominava eczema impetiginosum facei Hebra fosse provavelmente o que denominamos hoje “dermatite atópica” (CRISSEY et al., 2002).

Hebra tornouse célebre por ter sido o primeiro autor a descrever com precisão uma doença denominada prurigo. O problema essencial estava na confusão da definição de prurido e da lesão pruriginosa. Hebra, contudo, refuta que causas externas possam influenciar o prurigo, relacionando o processo a características locais da pele, como seria a visão comum da escola dermatológica germânica. Kaposi, seu sucessor, apoiado nas idéias da dermatologia experimental, acreditava que os eczemas seriam uma doença de causa local (CRISSEY et al., 2002).

O CONCEITO DE DIÁTESE ATÓPICA

Diátese é palavra originária do grego e significa “predisposição”. O conceito de diátese atópica surge com Besnier, que, em 1892, apresentou à Sociedade Francesa de Dermatologia o tema “Première note et observations préliminaires à l’étude des prurigos diathésiques”, referindo se ao prurigo de Hebra e afirmando que existiriam outras formas de dermatite que não se comportariam da forma descrita por Hebra. Essas dermatites teriam evolução crônica, apresentando, em um momento particular de sua evolução, uma eczematização e liqüenificação. O prurigo de Besnier é uma doença multiforme, sem lesão elementar única. Os pacientes têm como primeiro sintoma o prurido, no conceito então denominado “diátese do prurido”. Os sintomas surgiram na infância, determinando o surgimento de lesões polimórficas. Besnier insiste no prurido como provocador do surgimento das lesões cutâneas. O autor considera a doença, por seu plano de diátese, associada a sintomas sistêmicos, referindo as síndromes respiratórias como parte da doença. Sua ideia da cronicidade da doença ligava-se à suposição do prurido como “primeiro sintoma”. Besnier considerava também que “o fenômeno muitas vezes abandonava a pele momentânea ou decisivamente, para localizar se em vísceras através do enfisema, da asma brônquica, da febre do feno e, mais raramente, das manifestações gastrointestinais”. Coube a Civatte, e só em 1929, diferenciar o prurigo de Hebra do de Besnier, este último o precursor do que conhecemos hoje como dermatite atópica (CIVATTE, 2005).

Sabouraud, em torno de 1900, destaca novamente o conceito de diátese. Ele acredita que a diátese deve ser pesquisada em seu âmago para entendêla. Defende a ideia da criação de um “serviço médico de eczematosos”, em que, conforme o pensamento científico da época, deveriam ser estudados esses pacientes. Afirma o autor que “problemas dietéticos, ou seja, problema químicos” devem ser pesquisados nas excreções dos indivíduos e deve se também mostrar a presença de ” liqüenificação e eczematização sem micróbios para concluir se a idéia de diátese é passível de realização experimental”. Observa-se, de acordo com o mecanicismo do início do século XX, a tentativa de tornar palpável a ideia da predisposição, em um momento anterior ao desenvolvimento da imunologia.

Brocq, reconhecendo a importância de uma tendência individual, afirmava que “o eczema era o espelho da vida, o reflexo, na pele, das constituições e da predisposição do momento do indivíduo”. Ele, em 1907, cria o conceito de neurodermite, dentro da concepção materialista de sua época, em que “os fenômenos observados externamente necessitam de uma explicação à biópsia”, de acordo com sua idéia de uma etiologia neural para a explicação. O autor defende o conceito de “lesão visível sobre sintoma invisível”, o prurido. Brocq, em sua divisão das doenças cutâneas, descreve que o prurigo de Besnier “coexiste ou alterna se com as bronquites ou com as crises de asma” demonstrando crença na associação sistêmica da doença, o que é comum na visão da Escola Francesa de dermatologia. Esses prurigos iniciam-se entre os seis e os 12 meses e desaparecem ao fim do décimo ano, ou mais tarde (BROCQ, 1907).

Albert Czerny, pediatra de origem tcheca, cria na mesma época o conceito de “diátese exsudativa”, com que designa uma doença ao mesmo tempo hereditária e sistêmica, associada a anormalidades metabólicas, notadamente das gorduras, e que inclui o eczema infantil, junto com as idiossincrasias alimentares, a urticária e a asma. Tal fato tem interesse especial, tendo em vista ser Czerny um autor da Escola Germânica, em um momento histórico no qual os autores alemães privilegiam a idéia de um fator local na gênese do eczema, ao contrário dos autores franceses, que defendem a concepção de uma doença constitucional e sistêmica (FESTSCHNFT, 1933).

O grande pediatra Marfan, no final do século XIX, refere que as crianças acometidas por eczema são mais freqüentemente as usuárias de mamadeiras, “alimentadas com leite de má qualidade e muitas vezes ingerido em grande quantidade” (WALACH et al., 2005).

Jacquet, em 1906, insiste na necessidade de se prolongar o tempo de aleitamento materno e de se evitar o fornecimento de leite de vaca até os seis meses de idade e de não fornecer à criança nenhum outro alimento, “nem mesmo o álcool”, prática comum na época, até os nove ou 10 meses de idade, demonstrando a crença da associação da alimentação com a doença (JAQUET, 2005).

A DERMATITE ATÓPICA NO SÉCULO XX

A visão de dermatologistas do início do século XX é contrária às idéias como a de Marfan, demonstrando de forma mais clara as duas correntes de pensamento sobre que tipo de doença (cutâneo ou sistêmico) é a dermatite atópica. Sabouraud, dermatologista, afirma não acreditar em relação da doença com fatores externos, como o aleitamento materno, associando, contudo, o desmame precoce das crianças com dermatite atópica do lactente (SABORAUD, 1906).

A comunicação que Arthur Coca e Robert Cooke apresentaram à Associação Americana de Imunologistas em 1922 constitui a certidão de nascimento da “atopia” e da história moderna da dermatite atópica.

O termo, proposto por sugestão do professor e filólogo Edward Perry, derivado da palavra grega ατοΠια, foi utilizada com o sentido de “doença estranha”. Os autores, contudo, denominaram doenças estranhas apenas a asma e a febre do feno, nelas não incluindo o eczema (COOKSON, 2002).

A atopia teria duas características especiais: a hereditariedade e a natureza particular dos antígenos, que seriam aqueles de contato diário com todos os indivíduos, como os inaláveis e os alimentos (COCA, 1923). Só em 1931 Coca e colaboradores acrescentam o eczema e as idiossincrasias a drogas e alimentos, como parte integrantes de seu conceito de atopia (COCA, 1931).

Em 1921, Prausnitz e Küstner já conheciam o conceito de anticorpos, substâncias detectadas por imunoprecipitação, responsáveis por reações de hipersensibilidade. Os autores desenvolveram o conceito de transferência passiva de soro sobre pele humana, com o objetivo de melhor caracterizar os mecanismos das sensibilidades alérgicas. Küstner, alérgico a peixe, injetou 0,1ml de seu soro intradérmico no antebraço de Prausnitz. A sensibilidade cutânea ao peixe pôde ser transmitida a Prausnitz, que antes não apresentava sensibilidade a peixe. Após 24 horas de injetado o antígeno, apareceu pápula urticariana no local.36 Coca e Grover concluem que o que era denominado reaginas atópicas estava presente no soro de todos os pacientes com asma e febre do feno (COCA, 1925).

Haxthausen, em 1925, relata que provas cutâneas com alérgenos em pacientes com prurido diathésique demonstram reação positiva em pacientes que apresentam associação de eczema e febre do feno e/ou asma, sem, contudo, poder reconhecer a influência possível de uma substância em particular (HAXTHAUSEN, 1925).

Bloch e Gay Prieto, em 1929, em experimentos com testes intradérmicos e reação de Prausnitz Küstner realizados em paciente com eczema infantil com reação à clara do ovo, demonstram a natureza alérgica dos eczemas. Esse conceito foi então bastante estudado por Pierre Woringer, que, realizando testes intradérmicos e reação de PrausnitzKüstner com clara de ovo em crianças com eczema infantil, postula que o soro dessas crianças possuiria um “anticorpo anti ovo, que se fixa às células dérmicas do indivíduo receptor”. Woringer acreditava que essas crianças poderiam se sensibilizar intraútero e destaca que “se essas crianças tomam somente leite materno, então poderia haver componentes do ovo no leite materno que justificariam a sensibilidade de algumas dessas crianças”, fato comprovado algumas décadas após com a descrição dos anticorpos da classe IgE. Contudo, o autor descreve o fato de que a supressão do ovo não melhora os quadros eczematosos dessas crianças, afirmando que, ao contrário da urticária avaliada em alguns de seus pacientes testados em seus procedimentos, elas “não têm um eczema por ovo” (BAER, 1946).

O conceito de diátese ou constituição atópica é novamente realçado por estudos de Baer na década de 1940, referindo que uma constituição específica predisporia indivíduos e seus pais à doença atópica (BAER, 1946).

Em 1971, Sulzberger e Frick, em capítulo sobre dermatite atópica, revisando os aspectos analisados sobre a doença desde a criação de sua denominação na década de 1930, parecia dar fim a essa discussão secular, inicialmente afirmando que a expressão dermatite atópica surgiu em meio a uma nomenclatura confusa. Os autores referem não ser a dermatite atópica uma doença meramente imunológica. “A relação entre os anticorpos sensibilizantes e as manifestações cutâneas não é clara, e certos autores negam a existência de tal relação. “Eles citam o papel da infecção na dermatite atópica, os estigmas associados, como os fenômenos vasculares, imunológicos e epidérmicos e os fatores desencadeantes ou agravantes da doença, como clima, aero alérgenos, irritantes cutâneos, estresse e alimentos, valorizando fatores ambientais no desencadeamento ou agravamento da doença. Entretanto, as bases lançadas por Sulzberger e Frick não foram ponto final nessa intensa discussão (WUTHRICH, 2002).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se então que, na história da dermatologia, as condutas em relação a fatores externos à pele no tratamento da dermatite atópica são bastante citadas, principalmente aquela relativa à dieta do paciente, e se diversificam entre a manutenção do aleitamento materno, a suspensão do aleitamento materno e a sua substituição por outros leites e alimentos, além de diversas restrições alimentares para as nutrizes e para as crianças com a doença. Da mesma forma, alguns autores com enfoque na terapêutica cutânea da doença nem sequer acreditam em qualquer relação dos fatores externos com a dermatite atópica. Tais dúvidas têm origem na evolução do conhecimento científico, semelhante, ainda que com particularidades, entre as diversas escolas em que a dermatologia foi concebida como ciência. As descobertas e observações de diversos pensadores, em um momento passado, dividiram o conhecimento da dermatite atópica em duas linhas de pensamento: uma primeira consubstanciada na reação do indivíduo a um ambiente hostil, repleto de agentes externos e com foco nas diferentes formas de o corpo humano interagir com esse ambiente, em conjunto com a asma e a rinite alérgica; e uma segunda linha de pensamento na qual os fenômenos macro e microscópicos da estrutura cutânea são a base para a doença, com menor importância para fatores externos, da mesma forma que os outros tipos de eczema.

No início do século XXI, todas essas dúvidas alimentadas por tantos estudiosos ainda persistem, notadamente porque a dermatite atópica é uma doença complexa e multifatorial. Curiosamente, os conceitos sobre a dermatite atópica ainda permanecem bastante mutáveis. Descrições recentes questionam a existência de duas formas de dermatite atópica: uma extrínseca ou alérgica, associada a doenças respiratórias e suscetível a fatores ambientais, como a dieta; e outra denominada intrínseca (ou não alérgica), sem associação com as doenças atópicas respiratórias e não relacionada a fatores ambientais, como a alimentação. Essa subdivisão da dermatite atópica, baseada em critérios científicos clínicos e imunológicos rígidos, parece ser enfim um caminho de consenso para as dúvidas milenares a respeito da dermatite atópica.

Teríamos então duas doenças e não apenas um tipo de dermatite atópica: uma cutânea, associada primariamente a defeitos intrínsecos da barreira cutânea, e uma variedade sistêmica, associada a fatores extrínsecos e parte de um complexo de doenças, constituindo, junto com as alergias respiratórias, uma síndrome atópica.

Quanto à realidade ou verdade desses novos conceitos de dermatite extrínseca e intrínseca, revolucionários na história da dermatite atópica e que parecem explicar a dualidade de pensamentos sobre a doença que atravessa os séculos, podemos certamente afirmar que, se por um lado a verdade é libertadora, como afirmou o revolucionária Lênin, por outro, “a necessidade faz a verdade”, como escreveu o sábio Cervantes.

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1 Formação acadêmica: Médica pela Universidade de Rio Verde campus Rio Verde
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2 Formação acadêmica: Médica
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3 Formação acadêmica: Graduanda em Medicina pela Universidade Brasil
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4 Formação acadêmica: Graduanda em Medicina pela UNIFADRA
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5 Formação acadêmica: Graduanda em Medicina pela Unieuro
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6 Formação acadêmica: Médico pela Universidade do Estado do Amazonas
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7 Formação acadêmica: Médica pela Universidade do Estado do Amazonas
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8 Formação acadêmica: Graduando em Medicina pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE
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9 Formação acadêmica: Graduanda em Medicina pela Faculdade Nova Esperança
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10 Formação acadêmica: Médico pela UNIEVANGÉLICA
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11 Formação acadêmica: Graduanda em Medicina pela UNIGRANRIO Caxias. Pós Graduação em UTI e Emergência – Celso Lisboa.
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12 Formação acadêmica: Graduanda em Medicina pela UNICID SP
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13 ORIENTADOR:Formação acadêmica: Graduado em Medicina pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas) (1997 – 2002) Endereço Av. John Boyd Dunlop, s/n | Jd. Ipaussurama Campinas – SP | CEP: 13060-904 Telefone: (19) 3343-6800

-Pós Graduado em Dermatologia /Pós Graduado em Cirurgia Dermatológica pelo Instituto BWS (2012 – 2015) Endereço: Rua São Domingos, 69 – Bela Vista, São Paulo – SP, 01326-000, Telefone (11) 3111-2048

-Mestre em Saúde Coletiva pela Faculdade São Leopoldo Mandic Campinas (2018 – 2022). Endereço: Dr. José Rocha Junqueira, 13, Swift, Campinas-SP, CEP: 13045-755 Telefones: (19) 3211-3600 / (19) 3518-3600
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