CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E TRIBUNAL DE CONTAS: A SUBSISTÊNCIA DA SÚMULA 347 DO STF À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988*

Judicial review and court of auditors: the suitability of the Supreme Court’s Precedent 347 in the light of the 1988 Constitution

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8358929


Raíssa Falcão Spencer Hartmann2


RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar a subsistência da Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal, editada em 1963, no panorama constitucional contemporâneo. O verbete atribui legitimidade ao Tribunal de Contas, órgão administrativo, para apreciar a constitucionalidade de leis e atos normativos. O debate tem como pano de fundo a evolução do sistema de controle de constitucionalidade no direito brasileiro, que culmina no fortalecimento do modelo de fiscalização abstrata das leis, consagrado na Constituição de 1988. O referido modelo, além de ampliar o catálogo de legitimados para propor as ações diretas de inconstitucionalidade, expandiu o protagonismo do Poder Judiciário na declaração de inconstitucionalidade das leis. Assim, discute-se a pertinência da Súmula 347 frente à conformação constitucional vigente, que estatuiu um sistema de constitucionalidade muito mais robusto do que aquele que existia em 1963. Outrossim, traz-se ao debate recente acórdão do STF, exarado em sede da Petição 4.656. O decisum delimitou a competência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de natureza administrativa tal como o Tribunal de Contas, e consolidou importante distinção entre controle de constitucionalidade, competência exclusivamente jurisdicional, e afastamento de lei inconstitucional no caso concreto, atribuição que pode – e deve – ser exercida por todos aqueles que participam do processo de interpretação da Constituição. Por fim, conclui-se que tanto a existência de decisões monocráticas pendentes de apreciação plenária no STF, no tocante ao TCU, quanto o posicionamento firmado pela Corte referente ao CNJ, sinalizam a tendência de reavaliação da súmula. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, com esteio em revisões bibliográficas.

Palavras-chave: Súmula 347. Tribunal de Contas. Constituição de 1988.

ABSTRACT

The present work aims to analyze the subsistence of Precedent 347 of the Supreme Federal Court (STF), edited in 1963, in the contemporary constitutional panorama. The precedent gives legitimacy to the Court of Auditors, an administrative corporatin, to assess the constitutionality of laws and normative acts. The debate has as a backdrop the evolution of the constitutionality control system under Brazilian law, which culminates in the strengthening of the abstract law enforcement model, enshrined in the 1988 Constitution. The referred model, in addition to expanding the catalog of legitimates to propose the direct actions of unconstitutionality, enlarged the role of the Judiciary in the declaration of unconstitutionality of laws. Thus, it is discussed the relevance of Precedent 347 in view of the current constitutional conformation, which established a system of constitutionality much more robust than the one that existed in 1963. Furthermore, the debate brings along recent judgment by the Supreme Court, delivered in the Petition 4.656. The decision delimited the competence of the National Council of Justice (CNJ), an administrative agency such as the Court of Auditors, and consolidated an important distinction between judicial review, an exclusively jurisdictional competence, and departure of a unconstitutional law in the concrete case, an assignment that can – and must – be exercised by all those who participate in the process of interpreting the Constitution. Finally, the conclusion is that both the existence of monocratic decisions pending plenary consideration in STF, with regard to the TCU, and the position taken by the Court regarding the CNJ, signal the tendency to reassess the Precedent. For that, the deductive method was used, supported by bibliographic reviews.

Keywords: Precedent 347. Court of Auditors. Constitution of 1988.

1 INTRODUÇÃO

O controle de constitucionalidade tem como finalidade precípua a análise de compatibilidade formal e material de leis e atos normativos emanados do Poder Público à luz da Constituição. Busca, assim, resguardar a supremacia do texto constitucional sobre todo o ordenamento jurídico e, em última análise, proteger os direitos e garantias fundamentais (MORAES, 2018, p. 972)

Disciplinado desde a promulgação da Constituição Republicana de 1891, o instituto passou por diversas modificações normativas até o advento da Constituição Cidadã, em 1988, e mesmo após, com a publicação de emendas constitucionais (BULOS, 2014, p. 201). A evolução no entendimento sobre o tema, naturalmente, também alcançou as searas doutrinária e jurisprudencial, em constante aperfeiçoamento do processo fiscalizatório das normas infraconstitucionais e da verificação de sua higidez e adequação aos ditames do Texto Maior.

Nesse contexto é que se justifica a escolha do tema, uma vez que assume especial relevância a análise da subsistência ou não da Súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal, editada no ano de 1963, ainda sob a égide da Constituição de 1946, modificada pela Emenda Constitucional nº 16/65. O verbete, que confere aos tribunais de contas a competência para apreciar a constitucionalidade das leis e atos do Poder Público, parece não se coadunar com a opção do legislador constituinte de 1988, que decidiu atribuir ao Poder Judiciário, com exclusividade, a função de declarar a inconstitucionalidade de leis e atos normativos (MORAES, 2018, p. 609).

Noutro giro, a aplicabilidade da súmula também parece encontrar óbice no atual posicionamento do Pretório Excelso, exarado em dezembro de 2016, na Petição nº 4.656. Na ocasião, foi reconhecida a ilegitimidade do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para exercer o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, não obstante a possibilidade de afastamento de normas inconstitucionais no caso concreto (LENZA, 2019, p. 1441).

A presente pesquisa tem viés bibliográfico e se desenvolveu, quanto à abordagem, de forma qualitativa, na medida em que se propôs a perquirir sobre as particularidades de um fenômeno (a aplicabilidade da Súmula 347 sob a égide da Constituição de 1988), sua razão de ser e possíveis formas de lidar com esse problema (HAGUETTE, 2013, p. 59). O método científico dedutivo foi escolhido para que fosse possível chegar a um resultado específico a partir de premissas verdadeiras, quais sejam, o advento de uma nova ordem constitucional e a jurisprudência iterativa do STF. Nesse panorama, a revisão de literatura se fez preponderantemente a partir de julgados do Supremo Tribunal Federal e de obras doutrinárias correlatas. 

Diante desse contexto metodológico, o presente estudo tem por objetivo debater sobre eventual insubsistência do verbete editado em 1963, e analisar uma possível necessidade de revogação expressa da súmula, ou mesmo a sua releitura ou revisão, a fim de que o entendimento nela contido seja readequado à atual conformação constitucional, em estrita consonância com a vontade do legislador constituinte de 1988 e com a melhor interpretação do Texto Maior. Para desenvolver esse objetivo, foi preciso perpassar por três eixos fundamentais.

Na primeira seção, tem-se a incursão acerca do tratamento jurídico dado ao controle de constitucionalidade nas Constituições brasileiras, desde o Império até a Constituição Cidadã. Por meio desse escorço histórico, são identificados pontos-chave, no contexto evolutivo do instituto, que denotam a mudança de paradigmas e a necessidade de remodelação do entendimento firmado na Súmula 347.

Na segunda seção, faz-se uma abordagem sobre a definição do Tribunal de Contas, nos termos constitucionais e doutrinários, trazendo suas características, algumas de suas funções primordiais e a sua natureza jurídica.

Por fim, na terceira seção, traz-se a decisão exarada no âmbito da Pet. 4.656, julgada pelo STF em 2016, que definiu a ilegitimidade do CNJ para declarar a inconstitucionalidade de leis. Nesse contexto, traça-se um paralelo com os tribunais de contas, em razão da similaridade da natureza jurídica de ambos os órgãos. Ademais, é analisada a possibilidade de aplicação do mesmo entendimento quando do julgamento de alguns mandados de segurança, ainda pendentes de apreciação plenária, quanto aos tribunais de contas, o que pode indicar a tendência de revisão ou releitura da Súmula 347 do Supremo.

2 BREVE ESCORÇO HISTÓRICO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL

A primeira Constituição brasileira, outorgada no ano de 1824, ainda nos idos do Império, não deu margem para o controle de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017, p. 1057). Segundo Pedro Lenza (2019, p. 391), tanto o Poder Moderador como o dogma da soberania do Parlamento inviabilizaram a existência de um sistema de fiscalização jurisdicional da compatibilidade das leis e atos normativos em face da Constituição.

Diferentemente, a Constituição de 1891, inspirada no modelo norte-americano, foi pioneira ao consolidar o controle de constitucionalidade pela via difusa, consagrando a competência de juízes e tribunais para apreciar, incidentalmente, e legitimidade de leis e atos normativos em face do Texto Maior (MORAES, p. 985). Vale ressaltar, todavia, que essa sistemática foi inicialmente prevista em sede infraconstitucional, no bojo da “Constituição Provisória da República” (Decreto nº 848/1890), como lembram Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2015, p. 1057).

A Constituição de 1934, por sua vez, mantendo o modelo difuso implementado pela ordem constitucional anterior, inovou no tocante à disciplina da representação interventiva, de competência do Procurador-Geral da República, nos casos de violação aos princípios elencados no art. 7º, I, alíneas a a h, do Texto Magno (LENZA, 2019, p. 393). Nesse sentido, assinalam Mendes e Branco (2012, p. 1516) que a Lei Maior inaugurou a ação direta, como procedimento preliminar do processo de intervenção.

Em 1937, foi outorgada uma nova Constituição, denominada Polaca, de forte influência do autoritarismo polonês (Carta ditatorial de 1935). Segundo Lenza (2019, p. 393), embora tenha mantido o sistema difuso introduzido pelo Texto de 1891, a Constituição de 1937 conferiu amplos poderes ao Executivo, na medida em que o Presidente da República ficava autorizado a levar ao Parlamento a reapreciação de qualquer lei. Assim, as decisões de juízes e tribunais, em controle judicial difuso, podiam, a juízo discricionário do Chefe do Executivo, ser revistas pelo Congresso Nacional, por meio do voto de 2/3 dos seus membros.

A Constituição de 1946, por seu turno, foi marcada pelo processo de redemocratização do País. Segundo Mendes e Branco (2012, p. 153), “exprime o esforço por superar o Estado autoritário e reinstalar a democracia representativa”. No que tange ao panorama do controle de constitucionalidade, a Lei Maior restaurou o sistema difuso anterior, minimizando a hipertrofia do Poder Executivo (LENZA, 2019, p. 394).

Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 16/1965, pela primeira vez pôde-se falar, no Brasil, de fiscalização abstrata de constitucionalidade das leis. Nessa senda, ensinam Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2017, p. 1064):

A primeira e verdadeira manifestação de controle abstrato, na história do direito brasileiro, ocorreu mediante a EC 16, de 26.11.1965. Esta emenda constitucional alargou a competência originária do STF – tal como definida pela Constituição de 1946 –, conferindo nova redação à alínea k do art. 101, I, e, assim, passando a atribuir ao STF competência para processar e julgar “a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República”. Além do mais, inseriu novo inciso (XIII) no art. 124, dando ao legislador o poder de “estabelecer processo, de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato de Município, em conflito com a Constituição do Estado”.

No mesmo sentido é a lição de Mendes e Branco (2012, p. 1516): “E, somente em 1965, com a adoção da representação de inconstitucionalidade, passou a integrar nosso sistema o controle abstrato de normas (Emenda n. 16/65 à Constituição de 1946)”.

Ainda sobre o advento da fiscalização abstrata no ordenamento jurídico pátrio, discorre Bulos (2014, p. 203):

A Constituição de 1946 foi modificada pela Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1.965, que inaugurou oficialmente em nosso país a fiscalização abstrata de normas. Nisso, conferiu ao Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar originariamente ações diretas de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou federal, propostas pelo Procurador-Geral da República.

A importância de identificar o marco histórico do controle abstrato de constitucionalidade no Brasil guarda estreita relação com a ordem constitucional durante a qual foi editada a Súmula nº 347 do STF. Conforme será melhor explicitado e desenvolvido adiante, em momento oportuno, o referido enunciado foi publicado no ano de 1963, ainda sob a égide da Constituição de 1946, antes mesmo da publicação da EC nº 16/65, que efetivamente instaurou a fiscalização abstrata das leis em face da Constituição. Dessa forma, como somente havia, à época, o sistema difuso de constitucionalidade, a Suprema Corte outorgou a competência de apreciar a compatibilidade das leis e atos normativos aos tribunais de contas, cuja intervenção se justificava diante da inexistência de um sistema de controle abstrato a cargo do Poder Judiciário, tal como vigora nos dias de hoje. Nessa esteira, confira-se o excerto abaixo: 

Súmula 347: “Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”. A aplicabilidade dessa súmula foi disputada pelo Ministro Gilmar Mendes, em decisão monocrática concessiva de liminar em mandado de segurança (MS 25.888-MC, DJ de 29-3-2006). O relator lembrou que a súmula foi aprovada em 1963, quando não havia sistema de controle abstrato de constitucionalidade e admitia-se como “legítima a recusa, por parte de órgãos não jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional”. (sem grifos no original) (MENDES; BRANCO, 2012, p. 276):

Já a Constituição de 1967 não promoveu grandes mudanças, tendo preservado os controles difuso e abstrato, nos termos da Constituição de 1946 e da Emenda nº 16/65 (BULOS, 2014, p. 203). Insta salientar, contudo, que a Emenda nº 01/69 restaurou o controle de constitucionalidade de leis municipais em face da Constituição do Estado, que não havia sido albergado pela redação originária de 1965 (LENZA, 2019, p. 394).

Por fim, a Constituição de 1988 alargou significativamente o rol de legitimados para propor a ação direta de inconstitucionalidade, pela via do controle concentrado, em nível federal, eliminando a exclusividade do Procurador-Geral da República (LENZA, 2019, p. 394), e incluindo, entre outros, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e partido político com representação no Congresso Nacional (art. 103, CF/88). Como aponta Moraes (2018, p.1071-1072), a Carta de Outubro ainda estabeleceu a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, bem como facultou a criação da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Ademais, estatuiu, por meio da Emenda Constitucional nº 03/93, a ação declaratória de constitucionalidade – ADC (art. 102, § 1º, CF/88).

Ao perpassar pelo arcabouço evolutivo do controle de constitucionalidade ao longo da história das Constituições brasileiras, é possível identificar pontos relevantes, notadamente a inauguração da fiscalização abstrata, com a Emenda nº 16/65, e o radical alargamento do rol de legitimados para propor as ações diretas, em sede de controle concentrado, na Constituição de 1988. 

Nesse cenário, discute-se se é justificável a subsistência da Súmula 347, nos moldes em que foi editada em 1963, e se o verbete precisa ser readequado diante da ordem constitucional contemporânea.A esse respeito, confira-se a lição de Gilmar Mendes (apud LENZA, 2019, p. 426):

(…) A própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988.

No mesmo sentido é a análise de Moraes (2018, p. 609-610):

Observe-se, por fim, que, o STF, em entendimento anterior ao texto constitucional de 1988, passou a permitir ao Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, “apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público” (Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal, de 1963), em momento em que inexistia o controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, que de maneira tímida somente foi introduzido pela EC nº 16/65, tendo, finalmente, sido consagrado na Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, e reforçado pelas emendas constitucionais 03/93 e 45/2004, tornando-se juntamente com o amplo e renovado controle difuso (repercussão geral das questões constitucionais, Súmulas vinculantes) o sistema jurisdicional mais complexo e abrangente de garantia da supremacia do texto constitucional do Direito comparado.

Desse contexto histórico de expansão e fortalecimento do sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade é que emerge o debate acerca da posição dos tribunais de contas ante esse novo arranjo. Discute-se, portanto, se os referidos órgãos ainda detêm a competência, conferida pela Súmula 347, de apreciar a constitucionalidade de leis e atos normativos do poder público. 

3 O TRIBUNAL DE CONTAS: CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

Segundo Uadi Lammêgo Bulos (2014, p. 1235), “promulgada a Carta de 1988, o Tribunal de Contas soergueu-se com enorme galhardia, jamais vista antes”. Embora institucionalizado desde a Carta Republicana de 1891 (art. 89), é somente com o advento da Constituição Cidadã que a Corte de Contas recebe tratamento jurídico de especial relevância, ante o reconhecimento da essencialidade de seu papel institucional.

Sua ampliação foi uma “consciente opção política feita pelo legislador constituinte, a revelar a inquestionável essencialidade dessa instituição surgida nos albores da república. A atuação dos tribunais de contas assume, por isso, importância fundamental no campo do controle externo e constitui, como natural decorrência do fortalecimento de sua ação institucional, tema de irrecusável relevância” (STF, Pleno, ADin 21 5/PB, Rei. Min. Celso de Mello, D] de 3-8-1 990, p. 7234, apud BULOS).

Consoante determina a Constituição Federal de 1988, os tribunais de contas são órgãos que auxiliam o Poder Legislativo no controle externo da Administração Pública. Na esfera federal, o Tribunal de Contas da União (TCU) auxilia e orienta o Congresso Nacional no controle externo dos gastos públicos (BULOS, 2014, p. 1236). Nesse sentido, determina a Lei Maior:

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. (BRASIL, 1988)

Ademais, cabe ressaltar o teor do art. 71 do texto constitucional, segundo o qual “o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União” (BRASIL, 1988).

Dentre as atribuições dos tribunais de contas, no seio da função precípua de fiscalização externa, destacam-se a de realizar inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial (art. 71, IV, CF/88), bem como a de fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União, mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, ao Estado, ao Distrito Federal ou a Município (art. 71, VI, CF/88).

Nessa esteira, esclarece Walber Agra:

O objetivo principal do controle externo é a fiscalização financeira dos recursos estatais. A fiscalização orçamentária (tarefa de verificar se a previsão de receita e a fixação de despesa, para determinado exercício financeiro, se ajustam ao que fora estipulado no orçamento) e a fiscalização patrimonial (que incide nos bens pertencentes ao Estado) estão compreendidas na fiscalização financeira. (AGRA, 2018, p. 554)

No tocante à sua natureza jurídica, a doutrina majoritária possui entendimento de que se trata de órgão administrativo, eminentemente técnico e de controle (TAVARES, 2017, p. 1016).

Partindo desse pressuposto, não é forçoso concluir que, se tais órgãos são de cunho administrativo, também o serão as decisões por eles proferidas.

Nesse diapasão, assinala Pedro Lenza que, não obstante a literalidade da Constituição da República atribuir pretensa função jurisdicional ao TCU (art. 73, CF/88), o termo foi erroneamente empregado, senão vejamos:

Malgrado tenha o art. 73 da CF falado em “jurisdição” do Tribunal de Contas, devemos alertar que essa denominação está totalmente equivocada. Isso porque o Tribunal de Contas é órgão técnico que, além de emitir pareceres, exerce outras atribuições de fiscalização, de controle e, de fato, também a de “julgamento” (tanto é que o Min. Ayres Britto chega a falar em “judicatura de contas” — ADI 4.190). Porém, o Tribunal de Contas não exerce jurisdição no sentido próprio da palavra, na medida em que inexiste a “definitividade jurisdicional”. É por esse motivo que reputamos não adequada a expressão “jurisdição” contida no art. 73. (LENZA, 2019, p. 730)

No mesmo sentido é a lição de Odete Medauar (2018, p. 387 apud SILVA):

Os vocábulos “tribunal” e “julgar as contas”, usados ao se tratar desse agente controlador, não implicam a natureza jurisdicional de suas funções. O Tribunal de Contas se apresenta como órgão técnico, não jurisdicional, como ensina José Afonso da Silva (Direito constitucional positivo, 40. ed., 2017, p. 773). (grifou-se)

Ainda em relação à índole marcadamente administrativa de sua atuação, arremata Pedro Lenza:

No caso de auxílio no controle externo, os atos praticados são de natureza meramente administrativa, podendo ser acatados ou não pelo Legislativo. Em relação às outras atribuições, o Tribunal de Contas também decide administrativamente, não produzindo nenhum ato marcado pela definitividade ou fixação do direito no caso concreto, no sentido de afastamento da pretensão resistida. O Tribunal de Contas, portanto, não é órgão do Poder Judiciário (não está elencado no art. 92), nem mesmo do Legislativo. (LENZA, 2019) (grifo nosso)

Outro não é o entendimento de Ferreira (apud Azevedo Júnior, 2013):

A doutrina majoritária e a jurisprudência uníssona conferem aos julgamentos dos Tribunais de Contas natureza administrativa. O Brasil adotou o sistema de jurisdição única, também chamado de monopólio da tutela jurisdicional pelo Poder Judiciário, de sorte que as decisões administrativas das Cortes de Contas, enquanto atos administrativos, sujeitam-se necessariamente ao controle jurisdicional pelo Poder Judiciário, a quem compete, com exclusividade, resolver definitivamente os conflitos e fazer coisa julgada material. Assim, pelo princípio da inafastabilidade do judiciário, o entendimento dominante é o de que inexiste no Brasil o chamado sistema do contencioso administrativo. As decisões das Cortes de Contas, portanto, possuem natureza administrativa. (FERREIRA, 2013) (grifou-se).

Ademais, embora tenha a função de auxiliar o Poder Legislativo, sua autonomia institucional descaracteriza qualquer espécie de subordinação hierárquica. Nesse sentido, leciona Pedro Lenza, citando o Ministro Celso de Mello:

Segundo asseverou o Min. Celso de Mello, “os Tribunais de Contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem hierárquica, ao Poder Legislativo, de que não são órgãos delegatários nem organismos de mero assessoramento técnico. A competência institucional dos Tribunais de Contas não deriva, por isso mesmo, de delegação dos órgãos do Poder Legislativo, mas traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição da República” (ADI 4.190, j. 10.03.2010). (LENZA, p. 1118, 2019)

Nessa senda, alerta Rafael Oliveira que nem a inserção topográfica do Tribunal dentro do capítulo do Poder Legislativo, nem a atribuição constitucional de auxílio têm o condão de torná-lo órgão subordinado (OLIVEIRA, 2019, p. 838-839). Assim, “em virtude da sua forte independência, devem ser considerados órgãos constitucionais independentes que não estão inseridos na relação hierárquica dos três Poderes” (OLIVEIRA, 2019 apud MEDAUAR, 2008; MOREIRA NETO, 2001).

Nota-se, portanto, que os tribunais de contas ocupam especial posição no esquema organizacional do Estado. São, pois, órgãos sui generis, administrativos, detentores de autonomia institucional, não pertencentes a uma estrutura própria de Poder. Sua atribuição precípua tem natureza técnica e consiste em auxiliar o Poder Legislativo na fiscalização externa dos gastos públicos, e cujos deslindes e competências são diretamente extraídos da Constituição Federal.

4 SÚMULA Nº 347 DO STF E PET. 4.656: OS TRIBUNAIS DE CONTAS PODEM EXERCER CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE? 

Inicialmente, é oportuno tecer as diferenças entre controle de constitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais. Tais distinções, já encampadas por parte da doutrina, foram endossadas pelos Ministros do STF em dezembro de 2016, quando do julgamento da Petição (PET) nº 4.656. Na ocasião, o Supremo julgou válida decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que anulou a nomeação de comissionados no Tribunal de Justiça da Paraíba.

No caso concreto, o Tribunal aprovou lei estadual junto à Assembleia Legislativa, “para manter em serviço agentes admitidos sem concurso público, sob o escudo jurídico de serem ocupantes de cargos de livre provimento em comissão”. O CNJ declarou irregulares as nomeações, sob o fundamento de que haviam sido destinadas a múltiplas atribuições, para operações meramente burocráticas. Com isso, a lei estadual violou o art. 37, V, da Constituição, segundo o qual os cargos comissionados destinam-se, exclusivamente, às funções de direção, chefia e assessoramento. Para o Conselho, a legislação também afrontou o inciso II do mesmo artigo, que institui a regra do concurso público para investidura nos cargos e empregos públicos.

Cumpre esclarecer, conforme será aprofundado adiante, que a relevância prática das lições dos Ministros no bojo da PET 4.656 também vem a calhar no tocante à natureza jurídica administrativa autônoma do CNJ – órgão de controle administrativo, financeiro e orçamentário do Poder Judiciário (art. 103-B, CF/88) –, tal como se observa em relação aos tribunais de contas – órgãos auxiliares do Poder Legislativo no controle externo da Administração Pública (art. 71, CF/88).

Ao apreciar a decisão ora impugnada, o Supremo não enxergou qualquer ilegalidade, concluindo o Pretório Excelso que a atuação do CNJ se deu em estrita consonância com sua competência constitucional de zelar pela validade dos atos administrativos praticados pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, sustentou a Ministra Carmen Lúcia:

Concluo, entretanto, ter atuado o órgão de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura nacional nos limites de sua competência, afastando a validade dos atos administrativos e, para tanto, a aplicação de lei estadual como seu fundamento e que ele reputou contrária ao princípio constitucional de ingresso no serviço público por concurso público, pela ausência dos requisitos caracterizadores do cargo comissionado. Não há declaração de inconstitucionalidade da qual resulte a anulação ou revogação da lei discutida, com exclusão de sua eficácia. (grifou-se) (p. 27)

Com efeito, a declaração de inconstitucionalidade e a não aplicação de leis inconstitucionais não se confundem. Aquela está sujeita à reserva de jurisdição, e implica anulação da norma maculada, com supressão de sua eficácia no mundo jurídico. Diferentemente, esta última consiste, tão somente, no afastamento da lei inconstitucional no caso concreto. A esse respeito, confira-se o entendimento da Ministra Carmen Lúcia, exarado na Pet. 4.656:

Quanto à natureza da decisão impugnada, há de se ter em conta a distinção entre a conclusão sobre o vício a macular lei ou ato normativo por inconstitucionalidade, adotada por órgão jurisdicional competente, e a restrição de sua aplicação levada a efeito por órgão estatal sem a consequência de excluí-lo do ordenamento jurídico com eficácia erga omnes e vinculante.

 Destarte, os órgãos autônomos, a exemplo do CNJ, CNMP e do próprio Tribunal de Contas da União, são incumbidos de zelar pela validade dos atos administrativos e, em última análise, pela rigidez e supremacia constitucional. Assim, embora não possam declarar a inconstitucionalidade, quer pelo meio difuso ou concentrado, porquanto despidos de função jurisdicional, podem – e devem – negar aplicação a lei ou ato normativo que, no caso concreto, reputem dissonante do Texto Magno. 

A defesa da integridade da ordem constitucional pode resultar, legitimamente, do repúdio, por órgãos administrativos (como o Conselho Nacional de Justiça), de regras incompatíveis com a Lei Fundamental do Estado, valendo observar que os órgãos administrativos, embora não dispondo de competência para declarar a inconstitucionalidade de atos estatais (atribuição cujo exercício sujeita-se à reserva de jurisdição), podem, não obstante, recusar-se a conferir aplicabilidade a tais normas, eis que – na linha do entendimento desta Suprema Corte – ‘há que distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos Poderes do Estado’ (RMS 8.372/CE, Rel. Min. PEDRO CHAVES, Pleno – grifei) (Medida Cautelar no Mandado de Segurança n. 31.923/RN, Relator o Ministro Celso de Mello, decisão monocrática, DJe 19.4.2013, grifos no original).

Nessa mesma linha posiciona-se Pedro Lenza, senão vejamos:

Dessa forma, os ditos “órgãos administrativos autônomos” (CNJ, CNMP e TCU), com a função constitucional de controlar a validade de atos administrativos, poderão afastar a aplicação de lei ou ato normativo violador da Constituição. Mas que fique claro: isso não é controle de constitucionalidade! (LENZA, 2019, p. 428)

E enfatiza o eminente autor:

Em razão da importância e atualidade do tema, reforçamos a distinção entre a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo e a sua não aplicação. Os referidos “órgãos administrativos autônomos” não realizam controle de constitucionalidade, pois não possuem funções jurisdicionais.

Não obstante a incompetência para declarar a inconstitucionalidade das leis estatais, os órgãos administrativos autônomos estão legitimamente autorizados a negar aplicação a norma que considerem inconstitucional no caso concreto, e a relevância dessa atribuição pode ser demonstrada em diversos aspectos.

Além de não usurpar a competência dos órgãos jurisdicionais, tal atuação consiste em verdadeiro instrumento de participação do processo de interpretação da Constituição. Nessa esteira se posicionou o Ministro Luiz Fux, em sede do julgamento da Pet. 4.656:

De fato, a possibilidade de a Administração Pública afastar o cumprimento de normas consideradas inconstitucionais desvincula o crivo de constitucionalidade da função jurisdicional, representando mera interpretação da Constituição. Nesse sentido, não há que se cogitar de usurpação de competência, que ocorreria apenas na hipótese em que o Conselho Nacional de Justiça declarasse inconstitucional a Lei 8.223/2007, realizando controle de constitucionalidade. (sem grifos no original)

Nessa senda, tal abertura viabiliza o fortalecimento do princípio hermenêutico da força normativa da Constituição e o aperfeiçoamento das instituições democráticas. A esse respeito, veja-se o seguinte excerto do voto do Ministro Luiz Fux, na Pet. 4.656: “(…) o princípio da força normativa da Constituição é potencializado, sobremaneira, quando, não apenas o Judiciário, mas também o Estado-Administração exerce o controle dos seus atos administrativos em conformidade com a Carta Maior” (p. 69).

Outro não foi o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, que sustenta: “(…) quem quer que tenha que aplicar lei, sem ser um órgão subalterno, deve interpretar a Constituição e, se entender que a lei é incompatível com a Constituição, tem que ter o poder de não a aplicar, sob pena de estar violando a Constituição”.

Dessa forma, não pode a presunção de constitucionalidade das normas – que não é absoluta – servir de empecilho à atuação dos órgãos públicos, jurisdicionais ou não, no sentido de zelar pela compatibilidade com a Constituição, e deixar de aplicar lei ou ato normativo que entenda inconstitucional.

De fato, a possibilidade de a Administração Pública afastar o cumprimento de normas consideradas inconstitucionais desvincula o crivo de constitucionalidade da função jurisdicional, representando mera interpretação da Constituição. Nesse sentido, não há que se cogitar de usurpação de competência, que ocorreria apenas na hipótese em que o Conselho Nacional de Justiça declarasse inconstitucional a Lei 8.223/2007, realizando controle de constitucionalidade. (sem grifos no original)

Tampouco a preponderância da palavra final do Poder Judiciário pode conduzir ao monopólio da interpretação da Constituição. Conforme Luís Roberto Barroso, “todos os Poderes da República interpretam a Constituição e têm o dever de assegurar seu cumprimento. O Judiciário, é certo, detém a primazia da interpretação final, mas não o monopólio da aplicação da Constituição”.

Para o doutrinador, a possibilidade de todos os Poderes, e mesmo os sujeitos particulares, afastarem a incidência concreta de lei inconstitucional é legítima e decorre da própria supremacia constitucional, na medida em que impedir a recusa de aplicação de norma inconstitucional é negar a própria eficácia da Lei Maior:

Mas o principal fundamento continua a ser o mesmo que legitimava tal linha de ação sob as Cartas anteriores: o da supremacia constitucional. Aplicar a lei inconstitucional é negar aplicação a Constituição. A tese é reforçada por outro elemento: é que até mesmo o particular pode recusar cumprimento à lei que considere inconstitucional, sujeitando-se a defender sua convicção caso venha a ser demandado. Com mais razão deverá poder fazê-lo o chefe de um Poder.

Como bem apontou a Ministra Carmen Lúcia, esse entendimento harmoniza-se com o ideal de sociedade aberta dos intérpretes, formulado por Peter Häberle, segundo o qual a interpretação da Constituição está aberta a uma multiplicidade de atores sociais, e não apenas aos intérpretes clássicos (juízes e tribunais). Em seu voto, trouxe a doutrina de Gilmar Mendes:

Segundo essa concepção, o círculo de intérpretes da Lei Fundamental deve ser alargado para abarcar não apenas as autoridades públicas e as partes formais nos processos de controle de constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos sociais que, de uma forma ou de outra, vivenciam a realidade constitucional.

Para Fux, esse ideal “contribui para uma interpretação pluralista da Constituição da República”.

Ademais, alerta o Ministro sobre a instabilidade das relações jurídicas decorrente de eventual restrição do processo de interpretação da Constituição aos órgãos de natureza jurisdicional. Assim, assinalou que admitir eventual exclusividade ao Poder Judiciário seria “admitir que determinado ato flagrantemente inconstitucional continuasse produzindo efeitos jurídicos até que sobrevenha intervenção jurisdicional, podendo causar intensa e intemporal insegurança jurídica.”

Noutro giro, não se pode olvidar que, também para resguardar a segurança jurídica, o afastamento concreto de leis e atos normativos com fundamento em sua inconstitucionalidade deve obedecer à cláusula de reserva de plenário, tal como prevê o art. 97 da CF/88. Assim, somente pela maioria absoluta de seus membros podem os órgãos administrativos deixar de aplicar a lei considerada inconstitucional. Nesse sentido, argumentou o Ministro Luiz Fux:

A exigência de observância do postulado da reserva de plenário pelos órgãos colegiados de controle administrativo também decorre da necessidade de se conferir maior segurança jurídica à conclusão sobre o vício, pois somente com a manifestação da maioria absoluta dos seus membros ter-se-á entendimento inequívoco do colegiado sobre a inadequação constitucional da lei discutida como fundamento do ato administrativo controlado.

Por derradeiro, é necessário esclarecer que, na atribuição de controle da validade dos atos administrativos realizado pelos órgãos autônomos, sua atuação está adstrita ao afastamento da norma no caso concreto, não se confundindo com a não incidência abstrata da lei, o que implicaria sua exclusão do ordenamento jurídico.

A eventual não aplicação de lei em um caso concreto não deve ser confundida com o afastamento da norma em abstrato. Referidos órgãos não podem afastar do mundo jurídico a norma. Referidos órgãos podem, tão somente, não considerar a lei no caso concreto, prestigiando a Constituição. (LENZA, 2019)

Feita a distinção entre controle de constitucionalidade e afastamento de norma inconstitucional no caso concreto, à luz do atual posicionamento do STF sobre o tema (Pet. 4.656), cumpre agora analisar a pertinência do julgamento ao caso dos tribunais de contas e, por conseguinte, a plausibilidade jurídica da Súmula 347 do Pretório Excelso à luz do sistema constitucional contemporâneo.

Como visto, o Tribunal de Contas, similarmente ao CNJ, é órgão de natureza administrativa, dotado de autonomia e cuja atribuição primordial é o controle da validade dos atos administrativos, zelando pela sua consonância com os mandamentos constitucionais. Dada a semelhança institucional de suas atribuições, espera-se que haja um alinhamento jurisprudencial para enquadrar os limites da atuação do TCU nos mesmos moldes delineados para o CNJ, em sede da Pet. 4.656, e, assim, sedimentar o entendimento de que os tribunais de contas não podem exercer controle de constitucionalidade. Nessa senda, sustenta Pedro Lenza:

(…) A Corte vem fazendo uma profunda releitura da referida súmula, prescrevendo que os ditos “órgãos administrativos autônomos”, sendo o CNJ um exemplo, assim como o CNMP e o TCU, não realizam controle de constitucionalidade, na medida em que não exercem jurisdição, estando esse entendimento consagrado no julgamento da Pet 4.656 (Pleno, j. 19.12.2016, DJE de 04.12.2017).

Nesse sentido, embora estejam pendentes de apreciação plenária mandados de segurança que questionaram a competência do TCU (a exemplo do MS 25.888 e MS 28252), as decisões monocráticas dos Ministros no bojo dos referidos processos, em sintonia com o acórdão exarado na Pet. 4.656, indicam a necessidade de reavaliação do teor da Súmula nº 347 do STF. Diante disso, discorre Pedro Lenza:

Alertamos, inclusive, que a subsistência da S. 347 em seu sentido original está em discussão no STF e vem sendo criticada a partir de decisão proferida pelo Min. Gilmar Mendes em mandado de segurança impetrado pela Petrobras, atacando ato do TCU que determinou à impetrante e seus gestores que se abstivessem de aplicar o Regulamento de Procedimento Licitatório Simplificado, aprovado pelo Decreto n. 2.745/98, devendo ser observadas as regras da Lei n. 8.666/93 (MS 25.888-MC, j. 22.03.2006 — mérito pendente). (LENZA, 2019, p. 425)

Interessante notar que o caso do TCU chegou a ser citado no próprio acórdão da Pet. 4.656. A referência foi ao julgamento do plenário realizado em 1962, quando o relator, Ministro Pedro Chaves, distinguiu a declaração de inconstitucionalidade do afastamento de lei inconstitucional.

Desse modo, a partir da decisão impugnada, fica claro que não se trata de declaração de inconstitucionalidade, prerrogativa do Poder Judiciário, mas do afastamento da norma tida por inconstitucional, tal qual facultado a toda a administração pública. A distinção foi realçada, há muito, pelo Plenário desta Corte no julgamento do RMS 8.372, Rel. Min. Pedro Chaves, DJ 26.04.1962, in verbis: (…) entendeu o julgado que o Tribunal de Contas não poderia declarar a inconstitucionalidade da lei. Na realidade essa declaração escapa à competência específica dos Tribunais de Contas. Mas há que distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do Estado. Feita essa ressalva, nego provimento ao recurso.” (RMS 8372, Relator Min. PEDRO CHAVES, Tribunal Pleno, julgado em 11/12/1961, DJ 26-04-1962).

Na apreciação da Pet. 4.656, também foi trazida à baila a lição de Hely Lopes Meirelles, para quem o Poder Executivo não está obrigado a aplicar leis incompatíveis com a Constituição:

Os Estados de direito, como o nosso, são dominados pelo princípio da legalidade. Isso significa que a Administração e os administrados só se subordinam à vontade da lei, mas da lei corretamente elaborada. Ora, as leis inconstitucionais não são normas jurídicas atendíveis, pela evidente razão de que colidem com mandamento de uma lei superior, que é a Constituição. Entre o mandamento da lei ordinária e o da Constituição deve ser atendido o deste e não o daquela, que lhe é subordinada. Quem descumpre lei inconstitucional não comete ilegalidade, porque está cumprindo a Constituição” (Direito Municipal Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 538-539)

Nesse sentido, entendeu a relatora, Ministra Carmen Lúcia, que a referida concepção é também aplicável aos órgãos administrativos autônomos, entre eles o TCU, senão vejamos:

Embora o enfoque desse entendimento dirija-se à atuação do Chefe do Poder Executivo, parecem ser suas premissas aplicáveis aos órgãos administrativos autônomos, constitucionalmente incumbidos da relevante tarefa de controlar a validade dos atos administrativos, sendo exemplo o Tribunal de Contas da União, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça.

Conforme sustentou a magistrada, a legitimidade de negar aplicação a normas vigentes “cuida-se de poder implicitamente atribuído aos órgãos autônomos de controle administrativo para fazer valer as competências a eles conferidas pela ordem constitucional. Afinal, como muito repetido, quem dá os fins, dá os meios”.

Assim, restou consignado que o exame de validade do ato administrativo é indispensável à atuação dos órgãos administrativos autônomos, que envolve, necessariamente, a análise de constitucionalidade da norma que fundamenta o ato. Portanto, “se o órgão de controle concluir fundar-se o ato objeto de análise em norma legal contrária à Constituição da República, afastar-lhe-á a aplicação na espécie em foco”.

Em suma, ficou sedimentado, em julgamento plenário, que se insere entre as atribuições constitucionais do CNJ “a possibilidade de afastar, por inconstitucionalidade, o fundamento legal de ato administrativo objeto de controle”. Ademais, ficou registrada a necessidade de que tal competência seja exercida “por ato expresso e formal tomado pela maioria absoluta de seus membros”.

O posicionamento teve como importantes fundamentos a abertura do processo interpretativo da Constituição a múltiplos agentes, bem como a segurança jurídica e a duração razoável do processo. Foi esclarecido, ainda, que a competência em tela não representa usurpação da função do STF de guardião da Constituição.

Esse parece o entendimento que contribui para uma interpretação pluralista da Constituição da República e homenageia os postulados de segurança jurídica e duração razoável do processo administrativo, não significando tal comportamento desrespeito à atuação deste Supremo Tribunal como guardião da Constituição da República.

Com efeito, a ideia de superação da Súmula, além de se coadunar com o entendimento do STF sobre o CNJ, remonta ao ano em que o verbete foi editado, ainda em 1963, quando inexistia, no Brasil, um sistema de fiscalização abstrata das normas, o que, à época, justificava a legitimidade dos tribunais de contas. Esse mesmo fundamento foi sustentado, em diversas ocasiões, por Ministros em suas decisões monocráticas sobre o tema. A esse respeito, discorrem Gilmar Mendes e Paulo Branco (2012):

Súmula 347: “Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”. A aplicabilidade desta súmula foi disputada pelo Ministro Gilmar Mendes, em decisão monocrática concessiva de liminar em mandado de segurança (MS 25.888-MC, DJ de 29-3-2006). O relator lembrou que a súmula foi aprovada em 1963, quando não havia sistema de controle abstrato de constitucionalidade e admitia-se como “legítima a recusa, por parte de órgãos não jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional”. Esse quadro não mais subsiste hoje, após o advento da Constituição de 1988, que ampliou sobremaneira o âmbito do controle abstrato. O controle por órgão alheio ao Judiciário seria de mais difícil justificativa sob o atual sistema. Essa decisão embasou outras tantas, em igual direção, como a cautelar no MS 27.743 (decisão monocrática da Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ de 15-12-2008), em que anota estar seguindo o precedente pioneiro do Ministro Gilmar Mendes e outros que nele se espelharam, como as liminares concedidas pelos relatores dos Mandados de Segurança ns. 25.986, Rel. Min. Celso de Mello; 26.783, Rel. Min. Marco Aurélio; 26.808, Rel. Min. Ellen Gracie; 27.232, Rel. Min. Eros Grau; 27.337, Rel. Min. Eros Grau; e 27.344, Rel. Min. Eros Grau.

Diante disso, para além do julgamento plenário da Pet. 4.656, é oportuno ressaltar que, no âmbito do STF, há algumas decisões monocráticas em mandado de segurança, pendentes de apreciação plenária, no que tange especificamente à atuação do TCU. Dentre elas, cumpre destacar a proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes, em sede do MS 35.410/DF. Publicado em fevereiro de 2018, o decisum reiterou o entendimento de que não cabe ao TCU o exercício de controle de constitucionalidade, eis que despido de função jurisdicional. A esse respeito, confira-se excerto do julgado, in verbis:

É inconcebível, portanto, a hipótese do Tribunal de Contas da União, órgão sem qualquer função jurisdicional, permanecer a exercer controle difuso de constitucionalidade nos julgamentos de seus processos, sob o pretenso argumento de que lhe seja permitido em virtude do conteúdo da Súmula 347 do STF, editada em 1963, cuja subsistência, obviamente, ficou comprometida pela promulgação da Constituição Federal de 1988.

De outra banda, é relevante mencionar que, embora a decisão coincida com a do plenário na Pet. 4.656, no tocante à impossibilidade de declaração de inconstitucionalidade, os julgados divergem especificamente quanto a um aspecto.

Trata-se da distinção entre controle de constitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, consagrada no âmbito da Pet. 4.656, mas repudiada pelo ministro Alexandre de Moraes no MS 35.410. O magistrado, seguindo a linha do ministro Gilmar Mendes (MS 25.888), sustentou não haver a referida diferenciação, de modo que ao TCU, tal como ao CNJ, descabe não só a declaração de inconstitucionalidade, como também o afastamento concreto de lei inconstitucional, sob pena de usurpação da competência do Poder Judiciário. Nessa toada, Moraes realça a similaridade dos órgãos, sendo seu entendimento do CNJ, mutatis mutandis, ao TCU:

Com efeito, os fundamentos que afastam do Tribunal de Contas da União – TCU a prerrogativa do exercício do controle incidental de constitucionalidade são semelhantes, mutatis mutandis, ao mesmo impedimento, segundo afirmei, em relação ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ (DIREITO CONSTITUCIONAL. 33. Ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 563 e seguintes).

Nessa esteira, Moraes traz à baila trecho de sua obra doutrinária, senão vejamos:

A Constituição Federal não permite, sob pena de desrespeito aos artigos 52, inciso X, 102, I, “a” e 103-B, ao Conselho Nacional de Justiça o exercício do controle difuso de constitucionalidade, mesmo que, repita-se, seja eufemisticamente denominado de competência administrativa de deixar de aplicar a lei vigente e eficaz no caso concreto com reflexos para os órgãos da Magistratura submetidos ao procedimento administrativo, sob o argumento de zelar pela observância dos princípios da administração pública e pela legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, pois representaria usurpação de função jurisdicional, invasão à competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal e desrespeito ao Poder Legislativo. (DIREITO CONSTITUCIONAL. 33. Ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 563 e seguintes). (sem grifos no original)

Daí por que merece ser delimitada a competência do TCU também neste ponto, a fim de fulminar qualquer obscuridade no tocante aos exatos limites de sua atuação.

Entretanto, a apreciação plenária do STF na Pet. 4.656 tende a prevalecer sobre as decisões exaradas isoladamente pelos citados ministros, reconhecendo a legitimidade da não aplicação de normas inconstitucionais e, assim, culminando em um posicionamento mais ponderado do que o preconizado por Gilmar Mendes. Nesse contexto, defende Pedro Lenza que “essa perspectiva extrema lançada por Gilmar Mendes parece ter se enfraquecido em apreciação pelo STF de decisão do CNJ que considerou irregular a contratação, pelo TJ da Paraíba, de 100 assistentes de administração nomeados sem concurso público” (LENZA, 2019, p. 426).

Cabe anotar, por derradeiro, que o próprio Ministro Gilmar Mendes, em 2016, chegou a reconhecer a possibilidade de não aplicação de leis válidas e eficazes quando houver jurisprudência pacífica do STF nesse sentido.

Ao que tudo indica — e explicaremos melhor a seguir —, o STF vem fazendo uma releitura da referida súmula, tendo chegado, o próprio Min. Gilmar, em um primeiro momento, a admitir a possibilidade de os órgãos da administração deixarem de aplicar normas vigentes quando essa determinação decorrer de interpretação já estabelecida na Corte (cf. MS 26.739, 2.ª T., j. 1.º.03.2016). (LENZA, 2019, p. 426)

Diante do exposto, extrai-se que tanto a conformação constitucional vigente como o julgamento da Pet. 4.656 rechaçam a plausibilidade jurídica da Súmula 347 do Supremo, que permite ao Tribunal de Contas a apreciação de leis e atos normativos. Como abordado, a Constituição de 1988 atribuiu, com exclusividade, ao Poder Judiciário a declaração de inconstitucionalidade das normas. Logo, não mais se justifica o exercício, por órgãos administrativos autônomos, tal como autoriza o verbete sumular, do controle de constitucionalidade das leis.

Assim, tomando como base não só o emblemático julgamento plenário da Pet. 4.656, como também de algumas decisões monocráticas, em relação ao TCU, exaradas nos últimos anos, parece haver forte tendência jurisprudencial de revogação da Súmula, ou de sua revisão. O intuito é definir claramente os parâmetros daquilo que os tribunais estão legitimados a fazer quando se depararem com norma incompatível com a Constituição e, ao que parece, a declaração de inconstitucionalidade não se insere nesse rol.

A importância de que se sedimente definitivamente tal entendimento reside na urgente necessidade de uniformização da jurisprudência, a fim de garantir a estabilidade das relações jurídicas e evitar decisões conflitantes. Por conseguinte, é imprescindível que “o STF se posicione de forma contundente e consolide sua jurisprudência a fim de fulminar eventuais inconsistências nas suas próprias decisões, afastando qualquer margem para insegurança jurídica no âmbito das Corte de Contas”. (MORAIS; ARANALDE, 2018)

Lado outro, calha ressaltar que, embora haja certo consenso sobre o cerne da questão, qual seja, a impossibilidade de o TCU exercer controle de constitucionalidade, parece existir uma pontual divergência entre alguns ministros do STF quanto à distinção entre declaração de inconstitucionalidade e afastamento da norma inconstitucional no caso concreto.

É preciso salientar que esse aspecto foi enfrentado pelo Ministro Luiz Fux, quando do julgamento da Pet. 4.656. Em seu voto, o membro da Suprema Corte aduziu que o alargamento do rol de legitimados para propor ações diretas não tem o condão de obstar à interpretação da Constituição por outros agentes, uma vez que “a ampliação dos legitimados se refere, tão somente, ao controle por via de ação direta”.

Quanto ao argumento sustentado por Gilmar Mendes (MS 26.739), pelo qual os órgãos administrativos autônomos podem afastar concretamente norma inconstitucional, desde que haja interpretação prévia na Corte, o Ministro Fux sustentou ser prescindível tal pressuposto. Para o eminente jurista, a pré-existência de entendimento no âmbito do STF apenas há de ser considerada para robustecer a viabilidade do afastamento.

Ademais, entendo que o fato de haver manifestação prévia desta Suprema Corte a respeito da inconstitucionalidade da matéria posta a exame pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ não deve ser visto como necessidade exclusiva para possibilitar o afastamento da norma, mas, sim, servirá de ônus argumentativo sólido para potencializar a fundamentação analítica do necessário afastamento da incidência da norma no caso concreto. (Grifou-se)

Corroborando com o posicionamento da relatora, Ministra Carmen Lúcia, o magistrado também fez referência à doutrina do alemão Peter Häberle, para refutar o condicionamento da interpretação da Constituição por múltiplos atores à existência de jurisprudência no âmbito da Corte. 

Nesse sentido, sustentou que “verdadeiramente, restringir a interpretação constitucional difusa à execução da jurisprudência dominante infantiliza os demais atores constitucionais, opondo-se à tão propagada ideia de sociedade aberta de intérpretes da Constituição”.

Diante disso, concluiu o Ministro: “possibilita-se, portanto, o afastamento da norma tida por inconstitucional, sendo vedado, por óbvio, a declaração de inconstitucionalidade, que, como visto, possui eficácia geral muito mais ampla que o mero afastamento da norma”.

Por fim, o jurista ponderou para reconhecer que a dita legitimidade do CNJ está circunscrita às hipóteses de indiscutível afronta à Constituição, a fim de que não se amplie indiscriminadamente a competência do órgão. A esse respeito, confira-se excerto do julgado:

Porém, para não vulgarizar e alargar de maneira ilimitada a competência do Conselho Nacional de Justiça, assento, como premissa teórica, que o afastamento de leis ou atos normativos somente deve ocorrer nas hipóteses de cabal e inconteste ultraje à Constituição – certamente potencializada por precedentes deste Supremo Tribunal Federal sobre a matéria –, de maneira que, nas situações de dúvida razoável a respeito do conteúdo da norma adversada, deve-se prestigiar a opção feita pelo legislador, investido que é em suas prerrogativas pelo batismo popular (THAYER, James Bradley. The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitutional Law. Harvard Law Review. Vol.7 (3), 1893, p. 129/156, disponível em ).

No bojo do mesmo processo, o Ministro Marco Aurélio referiu-se a precedente relacionado ao TCU e seguiu o posicionamento firmado no acórdão:

Reporto-me a precedente da lavra do ministro Victor Nunes Leal, no qual envolvido ato do Tribunal de Contas da União. Partindo dessa premissa, o Conselho Nacional de Justiça, órgão estritamente administrativo, atuou à luz do disposto no artigo 37 da Constituição Federal e procedeu a glosa, não em processo objetivo, alusivo a controle de constitucionalidade de certa lei, mas de nomeações realizadas pelo Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. Atuou em sintonia com o Diploma Maior.

O entendimento jurisprudencial em comento também encontra guarida na doutrina de Uadi Lammêgo Bulos (2009, p. 815), citado por Lenza (2019, p. 425), senão vejamos:

Conforme anota Bulos, embora os Tribunais de Contas “… não detenham competência para declarar a inconstitucionalidade das leis ou dos atos normativos em abstrato, pois essa prerrogativa é do Supremo Tribunal Federal, poderão, no caso concreto, reconhecer a desconformidade formal ou material de normas jurídicas, incompatíveis com a manifestação constituinte originária. Sendo assim, os Tribunais de Contas podem deixar de aplicar ato por considerá-lo inconstitucional, bem como sustar outros atos praticados com base em leis vulneradoras da Constituição (art. 71, X). Reitere-se que essa faculdade é na via incidental, no caso concreto, portanto”.

Nessa conjuntura, tanto a doutrina ora colacionada como a orientação atual do STF apontam para o reconhecimento da legitimidade dos órgãos administrativos autônomos de repudiar a aplicação concreta de normas inconstitucionais, a fim de preservar a higidez constitucional e resguardar a força normativa da Lei Maior. Isso porque, conforme ensina Cavalcante (2017), “as leis inconstitucionais não são normas atendíveis, porque colidem com mandamento de uma lei superior, que é a Constituição Federal”. 

E finaliza o insigne autor, ao pontuar que ao Poder Executivo é dada a prerrogativa de recusar o cumprimento de lei inconstitucional, sendo esse mesmo entendimento aplicável, pelo STF, aos órgãos administrativos autônomos, como é o caso do TCU.

Em virtude desse entendimento, a doutrina defende que é possível que o chefe do Poder Executivo se recuse a cumprir uma lei se ela for claramente inconstitucional. O STF afirmou que esse mesmo entendimento pode ser aplicado para órgãos administrativos autônomos, como o TCU, o CNMP e o CNJ. Assim, tais órgãos, ao realizarem controle de validade dos atos administrativos, podem determinar a não aplicação de leis inconstitucionais. (CAVALCANTE, Márcio André Lopes)

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, verifica-se que o Tribunal de Contas ostenta posição de destaque na ordem constitucional vigente e possui relevante função de controle da validade dos atos administrativos, para fins de concretização de sua atribuição precípua, que é auxiliar o Poder Legislativo na fiscalização externa dos gastos públicos.

Em consonância com sua incumbência constitucional, foi outorgada a esses órgãos, além da autonomia, a legitimidade para deixar de aplicar, no caso concreto, leis e atos normativos que entendam inconstitucionais. Como visto, trata-se de atribuição implícita que instrumentaliza a efetivação de seu papel de controle, bem como consagra a concepção da sociedade aberta dos intérpretes, preconizada por Peter Häberle, segundo a qual o processo de interpretação da Constituição é plural e cabe aos cidadãos, grupos sociais e órgãos públicos, sejam estes jurisdicionais ou administrativos.

Assim, com vistas a resguardar a força normativa e a supremacia da Constituição, a presunção de constitucionalidade das normas é colocada à prova também perante núcleos despidos de natureza jurisdicional, sob pena de se monopolizar o processo interpretativo da Constituição pelo Poder Judiciário e de se perpetuar a insegurança jurídica até que sobrevenha decisão judicial concluindo pela inconstitucionalidade do ato impugnado. 

Todavia, o robusto sistema de constitucionalidade consagrado na Lei Maior de 1988, mormente com a ampliação do rol de legitimados ativos para propor ação direta de inconstitucionalidade, restringiu a atuação dos órgãos administrativos autônomos, como o TCU, o CNJ e o CNMP. Dessa forma, diz-se que, embora estejam autorizados a afastar uma norma que considerem inconstitucional no caso concreto, estão impedidos de afastá-la abstratamente do ordenamento jurídico, ou mesmo declará-la inconstitucional. Isso porque essa atribuição sujeita-se à reserva jurisdicional, de modo que somente o Poder Judiciário pode fazê-lo, e o fortalecimento do modelo de constitucionalidade sacramentado pela Carta de 1988 não mais justifica o controle de constitucionalidade por parte de órgãos não jurisdicionais.

Nesse contexto, o atual posicionamento do STF sobre a temática, tal como evidenciado no julgamento da Pet. 4.656 e em decisões monocráticas, sinaliza a necessidade de reavaliação da Súmula 347. Editado antes de haver, no Brasil, um sistema de controle abstrato da constitucionalidade das normas, o verbete confere aos tribunais de contas a legitimidade para apreciar a constitucionalidade de leis e atos normativos do poder público.

Com efeito, há iterativa jurisprudência reconhecendo a ilegitimidade dos órgãos administrativos autônomos, entre eles os tribunais de contas, de declarar a inconstitucionalidade das normas, em controle de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado. Essa linha de entendimento foi reiteradamente assentada pelo Supremo, notadamente em sede da Pet. 4.656, e indica uma releitura dos termos da Súmula 347.

A despeito de haver certo consenso sobre o foco da temática, e sem desviar do cerne do presente estudo, cumpre assinalar que há um aspecto divergente entre alguns Ministros do STF. O ponto dissonante é a distinção entre controle de constitucionalidade e afastamento de lei inconstitucional no caso concreto. A diferenciação foi considerada em sede de apreciação plenária na Pet. 4.656, embora tenha sido enjeitada em algumas pontuais decisões monocráticas, notadamente dos Ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes. Assim, entendem os referidos juristas que os órgãos administrativos autônomos estão impedidos não só de declarar a inconstitucionalidade, como também de negar aplicação de norma inconstitucional no caso concreto.

Entretanto, conforme apontado, tal perspectiva peremptória tende a sucumbir diante do entendimento firmado majoritariamente em apreciação plenária da Pet. 4.656, que consagrou a importância da distinção. Na ocasião, foram consignadas a atribuição constitucional de controle da validade dos atos administrativos e a concepção aberta e plural do processo de interpretação da Constituição, que não implicam usurpação da competência do Poder Judiciário.

De todo o modo, caso acatada e perspectiva ponderada dos ministros na Pet. 4.656, notadamente Carmen Lúcia, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, também há de ser clarificado o teor do verbete em tela, no sentido de esclarecer que cabe aos tribunais de contas não a declaração de inconstitucionalidade, mas a mera recusa de aplicação de leis inconstitucionais no caso concreto. Assim, espera-se que o STF, em apreciação plenária de mandados de segurança ainda pendentes, consolide o mesmo entendimento, mutatis mutandis, exarado na Pet. 4.656 no tocante ao CNJ.

Portanto, além de esperada, é também urgente e necessária a delimitação clara e precisa do tema pela Corte Suprema do País. A finalidade é que se afaste a insegurança jurídica de decisões conflitantes e que se revogue expressamente, ou mesmo se revise  o teor da Súmula 347, para adequá-la à atual conformação constitucional, à luz do Texto Maior de 1988, e consolidar definitivamente o entendimento de que os tribunais de contas estão autorizados a recusar a aplicação concreta de lei inconstitucional, mas não a exercer o controle de constitucionalidade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, 1824.

BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1891,

BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro 1934.

BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1946.

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*1Artigo apresentado ao Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS) como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Direito Constitucional, Recife, 20 abr. 2020
2Bacharel em Direito. E-mail: raissa.hartmann@hotmail.com