REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8347130
Juliana das Neves Cruz1
É realmente um desafio falar sobre a literatura de um país, esse desafio se duplica quando se fala da literatura em África, não somente pela complexidade do tema, mas também por se tratar de um continente cujos países enquanto “nação” são muito jovens e consequentemente sua literatura também.
Moçambique é um país cuja história de sua produção escrita remonta a fase colonial, suas primeiras manifestações ocorreram principalmente em periódicos na primeira metade do século XX. A necessidade de falar sobre o percurso das mulheres na literatura se deu por dois motivos o primeiro é para combater o isolamento que a literatura de países colonizados ainda sofrem diante da literatura dos países europeus, em se tratar de mulheres esse isolamento se torna mais pungente na literatura de qualquer país, considerando que ao sexo feminino historicamente a subalternidade e a dificuldade de estarem em carreiras e espaços que eram maioritariamente ocupadas por homens não era algo facilmente alcançado por diversos motivos, entre eles a divisão social do trabalho na qual as mulheres durante séculos só podiam almejar por imposição da sociedade a condição de escravas domésticas.
Um outro aspecto é o analfabetismo das massas cujos países sofreram com a colonização típica da fase pré-capitalista. De acordo com Aimé Césaire, “no que se refere às funções intelectuais não existe nenhum país colonizado cuja característica não seja o analfabetismo e o baixo nível de instrução política” (CÉSAIRE, 2011, p. 263)
Um segundo motivo que nos leva a falar sobre essas autoras é também uma forma de resistir ao sectarismo do mercado editorial que elege autores x e y em detrimento de outros. Não nos cabe aqui traçar uma linha que estabelece o valor de cada um deles, mas apontar que elas existem, produzem ou produziram, que seus nomes estão na história, seus trabalhos formam cânone inquestionável de uma literatura que surgirá diante dos acontecimentos que abalaram a ordem social de um país que conquistou sua independência no final do século XX. Sendo assim é imprescindível que iniciemos por Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares, ou como é conhecida no circuito literário dos PALOP, Noémia de Sousa.
Nascida em 20 de setembro de 1926, em Catembe. Moçambique e a autora viveu a maior parte de sua vida na Europa até sua morte na região de Cascais, Portugal em 2002. Noémia é precursora da literatura escrita por mulheres em Moçambique, atuou como poeta, tradutora e jornalista da agência noticiosa portuguesa, em Lisboa.
Figura 1. Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares
Sangue negro [organização e fixação dos textos por Nelson Saúte, Francisco Noa e Fátima Mendonça]. publicado post mortem em 2001 pela AEMO – Associação de Escritores Moçambicanos, no Brasil só em 2016 surge pela editora Kapulana. Noêmia de Sousa é um dos exemplos mais claros da vida das escritoras no mundo falocêntrico pois:
Temos com clareza a visão histórica da importância de algumas escritoras dentro de suas séries literárias, como por exemplo, Noêmia de Souza, sem livro publicado durante a vida, mas extremamente cultuada como grande escritora moçambicana, e mesmo assim, ainda figura em alguns lugares como sendo portuguesa, pois nasceu em Maputo, estudou no Brasil, morando em Portugal teve que exilar-se na França, após o 25 de abril voltou a morar em Portugal onde morreu. (MONTEIRO. 2016. p. 325)
A autora escreveu poemas que expressavam a luta contra a política colonial, entre 1948 e 1951 sua lírica circulava de forma esparsa nos jornais de resistência africana, como o periódico O Brado Africano.
Seu primeiro poema publicado foi escrito precocemente quando Noémia tinha apenas 22 anos: trata-se do antológico “Canção Fraterna”, publicado no dia primeiro de dezembro de 1948, no jornal O Brado Africano, o qual foi assinado apenas com as iniciais N. S. À época, O Brado Africano era dirigido pelo poeta Virgílio de Lemos, que solicitou, através de Nuno de Sousa (irmão do poeta), uma contribuição de Noémia de Sousa, para ser publicada no jornal. (ALÓS, 2012, p. 229-230).
Noémia era mestiça, seu pai descendente de uma família luso-afro-goesa e sua mãe tinha descendência afro-germânica, o histórico familiar da autora traz importantes elementos, o primeiro deles é a posição que ela ocupou na esfera social no que diz respeito aos [2] assimilados, e o segundo seria o capital cultural que sua família lhe proporcionou considerando que possuíam status que os configuravam como parte da burguesia local de seu país.
De acordo com Noemi Alfieri:
António Paulo Abranches de Gama e Sousa, seu pai, tinha ascendência goesa, portuguesa e africana, enquanto a sua mãe, Clara Brüheim Abranches de Sousa (descrita pela própria Sousa como a “perfeita mestiça”), era filha de uma mulher da África do Sul e de um alemão. As origens do casal, assim como a profissão de António, fizeram com que os seus filhos tivessem, desde muito cedo, contacto com as mais diversas personalidades que animavam aquele Moçambique ainda colonial. Tanto a profissão do pai, alto funcionário do Governo colonial, empregado no Banco Ultramarino, como as tradições da família da mãe tornaram a casa de estacas dos Sousa num lugar de encontro em que funcionários públicos, chefes tradicionais, pescadores goeses, intelectuais e comerciantes se encontravam e conviviam informalmente. Quando Sousa tinha seis anos de idade, a família mudou-se para Lourenço Marques. (ALFIERI, 2019, p.219-220)
Após a morte de seu pai a autora se muda para Lourenço Marques, aos 16 anos trabalhou e estudou no curso pós-laboral de Comércio na Escola Técnica da então Lourenço Marques. Sousa atuou politicamente no movimento de unidade democrática MUD – Juvenil de Moçambique, organismo de oposição a política salazarista e em 1951 ela se exila em Portugal, permanecendo no país até 1964, entretanto foge da ditadura e fica na França até 1973 quando retorna novamente para Lisboa.
Devido a sua obra poética e à sua militância no MUD Juvenil de Moçambique, mas também por causa de um artigo que a autora tentou publicar no Brado sobre Eduardo Mondlane, a poeta já se encontrava sob a vigilância apertada da PIDE, como testemunha o processo em seu nome, número 2756 CI (2). (ALFIERI, 2019 p. 03)
A poesia de Noémia de Sousa compreende através de seu eu lírico a dor não só dos moçambicanos, porém de todos os negros africanos massacrados pelo colonialismo o que coloca sua lírica panafricanista associada com o movimento da Negritude inaugurado por Aimé Césaire e Léopold Sédar Senghor. A seguir colocaremos o fragmento de um de seus poemas, intitulado de súplica:
Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadoria,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos;
e mesmo mortos, viveremos.
E no nosso lamento escravo
estará a terra onde nascemos,
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá o pão!
(SOUSA, 2016)
A poesia política de Noémia foi um aríete de combate para os ideais políticos da luta anticolonial, as temáticas dos seus poemas protagonizam um papel único na história de Moçambique por deflagrar temas como preconceito, injustiça social, opressão entre outros.
O jornalista, escritor e professor de Ciências da Comunicação em Maputo, Nelson Saúte prefaciou duas edições de Sangue Negro pela AEMO e pela Kapulana. Nas palavras de Saúte (2016)
…esta mulher escrevera apenas durante três anos, o bastante para incendiar o rastilho da poesia que reivindicava a personalidade dos oprimidos, que fundava a literatura dos marginalizados. (s/p)
Reconhecer o legado da primeira mulher autora de Moçambique é a pedra angular para legitimar o percurso das mulheres escritoras de Moçambique e entender sobre quais condições essas mulheres puderam produzir arte escrita num país que passou a maior parte do século XX na efervescência das mudanças sociais das revoluções em África.
Outro importante nome da literatura africana é a de Lília Momplé, autora nascida na província de Nampula, no norte de Moçambique, em 19 de março de 1935. para fins de dados biográficos, Momplé atuou como assistente social em Lisboa, Lourenço Marques (Maputo) e em São Paulo, Brasil entre 1960 e 1970.Também lecionou dando aulas como professora de língua portuguesa e inglesa, ela também dirigiu a AEMO de 1991-2001.
Figura 2: Lília Maria Clara Carrière Momplé
Sua bibliografia é composta por contos e romances, sendo a primeira obra publicada foi o livro de contos, Ninguém Matou Suhura (1988), em ordem de lançamento a autora assina o romance Neighbours (1995) e a coletânea de contos chamado Os olhos da cobra verde (1997), todos seus trabalhos foram editados pela AEMO.
Assim como Noémia de Sousa, Lília Momplé também de família mestiça e com recursos o que também lhe garantiu a oportunidade de ter acesso aos estudos, salientamos aqui essa informação porque na história da literatura de Moçambique na tese de Ubiratã Roberto Bueno de Souza, intitulada A gravitação das formas: gêneros literários e vida social em Moçambique (1977-1987) ao falar da formação dos periódicos críticos e de cunho anticolonial coloca como uma tarefa executada inicialmente por intelectuais da época.
…gravitam um número de intelectuais de atuação intensa, responsáveis pelo desenvolvimento de uma consciência social, cultural e política local consolidada através da escrita em gêneros jornalísticos e literários. (SOUZA, 2018 p. 25)
Lília Momplé assim como Paulina Chiziane protagonizam uma geração de autoras que iniciam suas publicações na fase pós-colonial na década de 80 e suas produções possuem temáticas semelhantes ao falar de como os papéis tradicionais das mulheres e questões relacionadas à raça, classe e gênero.
Em Ninguém matou Suhura, Lília Momplé apresenta contos que irão descrever acontecimentos que ilustram a história recente de Moçambique, promovendo uma reflexão sobre o colonialismo português e suas consequências para a história de Moçambique. O livro está organizado em cinco contos: Aconteceu em Saua-Saua, Caniço, O baile de Celina, O último pesadelo e Ninguém matou Suhura. Embora possam ser lidos em qualquer ordem, ainda estão conectados pelo tema central, por meio de uma representação e de como ela ilustra a violência colonial dos povos de Moçambique e Angola no século XX.
O conto Ninguém matou Suhura que dá título à obra é ambientado na Ilha de Moçambique e se passa em novembro de 1970. É dividido em três partes: “O dia do Senhor Administrador”; “O dia de Suhura” e “O fim do dia”.
Suhura é uma jovem vítima de estupro causado pelo personagem conhecido como, Senhor Administrador. Um português que vive em Moçambique na função de Administrador de Distrito e Presidente da Câmara. Essa personagem representa a elite branca vinda de Portugal que chefiava altos cargos públicos na fase colonial. Casado com D. Maria Inácia com quem tem uma filha chamada Manuela. Neste conto Lília Momplé nos entrega uma crítica impecável no que diz respeito à falsa moral cristã da classe média ao descrever o Senhor Administrador e sua esposa.
Juntos vieram de Portugal e subiram sem desânimo as escadas da fortuna. Quando ele era ainda um simples aspirante ao quadro administrativo, a mulher acompanhara-o por esse mato fora. Juntos humilhavam os negros e incutiam-lhes o desprezo por si próprios. Juntos exploravam os camponeses pobres e bajulavam os donos das plantações, juntos tinham breves rebates de consciência que acalmavam prontamente com obras de caridade. (MOMPLÉ, 1988, p. 80)
E aqui caracterizamos como representação classe média porque como a própria autora expõe, “subiram sem desânimo as escadas da fortuna” justamente para ilustrar que vieram de uma posição não tão confortável e que agora numa relação de correlação de forças diante dos povos locais. Suhura por sua vez é uma jovem negra, virgem e que acaba por se tornar mais um dos objetos de violência do senhor administrador que ordena que a órfã criada pela avó durma com ele. A contragosto Suhura é levada, mas chegando lá ela tenta resistir aos abusos e acaba morrendo durante o estupro.
Os contos de Lília Momplé se cruzam com os temas que Paulina Chiziane também aborda, como opressão sobre as mulheres, o negro assimilado, costumes, falso moralismo entre outros. Contemporâneas elas figuram a mesma geração que irão contar através de suas narrativas a Moçambique colonial, ao passo que também irão denunciar em seus textos o período da guerra civil. Essas mulheres autoras que citamos até aqui são a representação das mulheres de seu tempo e que com seu trabalho deram voz aos oprimidos ao colocá-los num local de destaque, seja na lírica de Noémia de Sousa ou na narrativa de Momplé.
Essas autoras estão ligadas ao que Antonio Candido chama de busca tradição literária dessa busca ele nos trará luz à hipótese de perceber quando surge o sistema: língua, tema e imagem, esses três elementos que serviriam de pedra angular para o que Candido irá chamar de “tradição literária”.
Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária, – espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. É uma tradição, no termo completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se impõe ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização (CANDIDO, 2000, p. 24).
Para o professor Antonio Candido, quando surge um conjunto de autores conscientes de uma nacionalidade, com o empenho de produzir uma literatura nacional voltada a um público leitor capaz de entender aquela literatura como brasileira/nacional e produzindo corpo de textos que são nacionais, temos um sistema em funcionamento. Cândido irá nos mostrar que quando essas gerações irão sucedendo uma à outra, essa ideia de nacionalidade está configurada na transmissão dessas gerações, existindo a configuração do que ele chamará de tradição. Nesta seção não é nosso foco construir uma linha teórica, estética ou histórica de uma literatura tão jovem quanto a de Moçambique. Buscaremos aqui apontar importantes trabalhos de autoria feminina de Moçambique.
A ousadia das escritoras Noémia de Sousa e Lília Momplé sedimentam o caminho que será adotado pela maior voz feminina das letras moçambicana Paulina Chiziane, as precursoras quebram a espinha dorsal da história que geralmente é contada no masculino e patriarcal, não importando se homem branco ou negro, se português ou moçambicano, fato é que são vozes patriarcais e falocêntricas que possuem e possuíam desde sempre o acesso a uma educação mais apurada, e portanto, maiores oportunidades de ocuparem os espaços no mercado editorial, assim esses textos produzidos por essas mulheres se tornam uma importante contribuição histórica para a compreensão das relações de gênero no mundo em geral e em Moçambique especificamente, pois não há como entender o caminho trilhado por Paulina Chiziane. Essas mulheres planificaram o caminho que serviria de esteio para o percurso literário moçambicano de autoria feminina que hoje conta com nomes importantes como Fátima Langa, Sónia Sultuane, Hirondina Joshua, Virgília Ferrão e Lina Magaia, somente a título de exemplos pois em MONTEIRO (2019, p. 96) são elencadas 66 escritoras moçambicanas, número bastante inferior aos apresentados por Cabo Verde com 93 escritoras e Angola com 378 nomes, porém como aponta o crítico são sistemas literários com características diferentes e com incrementos ao avanço das mulheres também bastante diferentes, sobretudo no caso angolano em que há políticas específicas para a promoção da mulher escritora e do acesso ao meios editoriais. Em resumo, as literaturas dos PALOP’s ainda são séries nacionais extremamente jovens e que não precisam e nem estão obrigadas a apresentarem números de escritoras comparáveis às séries centenárias de Brasil ou milenar como a de Portugal. Essas escritoras encerram os primórdios históricos e literários que formam o caminho para o surgimento da escritora Paulina Chiziane.
Paulina Chiziane, atualmente, é a escritora moçambicana mais relevante em sua série literária, quer seja por sua biografia pessoal, quer seja por seus escritos que decisivamente impactam a literatura de seu país, ao lado do escritor Mia Couto, cuja posição no panorama mundial já está absolutamente consolidada, contribui também para essa presença das letras moçambicanas no mundo, ainda as letras em língua portuguesa sofrem com um certo ostracismo quando comparadas às séries anglófonas ou francófonas, haja visto o sucesso de escritoras como Chimamanda Ngozi Adichie ou mesmo Nadine Gordimer a sul africana ganhadora do Prêmio Nobel de 1991, portanto se mesmo dentre os homens lusófonos apenas Saramago em toda a história conseguiu esse feito, podemos compreender que para as escritoras alcançar tal distinção é uma tarefa hercúlea, mas certamente, o nome de Paulina Chiziane deverá ser considerado num futuro talvez não muito distante.
Figura 3. Paulina Chiziane
Em 1992, dois anos após seu romance de estreia, Paulina Chiziane escreveu um testemunho publicado em meados de 1994, por iniciativa da UNESCO, devido aos preparativos da Conferência Internacional sobre a Mulher, Paz e Desenvolvimento, realizada em Pequim, em 1995. Nesse texto, ela faz um breve relato de sua vida pessoal e sua relação com a militância anticolonial, momento de guerra civil da pós-revolução e seu ofício de escritora, relatando que escreveu as primeiras páginas de seu primeiro romance sob os sons de uma guerra civil.
Várias vezes abandonamos a casa interrompendo os meus escritos porque tinha que procurar abrigo, a guerra era quente. Vezes sem conta vi-me na obrigação de despertar a altas horas da madrugada e retomar o trabalho porque a essa hora é que os combates cessam. Escrevi a minha primeira obra debaixo de estrondos e ameaças de morte. Publiquei-a. Escrevi a segunda debaixo do mesmo ambiente. Está no prelo. Trabalhar numa atmosfera de morte é minha forma de resistir. Ninguém tem o direito de interromper os meus sonhos. Mesmo que a maldita guerra não termine, se a morte não me ceifar, escreverei o terceiro (CHIZIANE, 2013, p. 204- 205)
A persistência não só gerou um terceiro livro, como também uma fortuna crítica e reconhecimento internacional. Na atualidade, Paulina Chiziane já conta com uma bibliografia e fortuna crítica bem desenvolvida e bastante divulgada por meios eletrônicos, o que ratifica a sua posição de importância no cenário internacional das letras escritas por mulheres e que a coloca como uma das mais importantes vozes das literaturas africanas contemporâneas, tendo a sua biobibliografia publicada em vários veículos da web, artigos e teses, sendo também encontrada no site Templo Cultural Delfos, sob organização de Elfi Kürten Fenske, sendo que este veículo, em suas páginas da web, divulga uma seleção das melhores escritoras em língua portuguesa e mantém uma das melhores fontes de fortunas críticas sobre as principais escritoras africanas, fonte bastante atualizada e eficiente no que se propõe a fazer.
Na atualidade, encontramos no site uma fortuna crítica sobre Paulina Chiziane já muito desenvolvida e bem-organizada, situação que facilita muito a vida dos pesquisadores, pois o nível de atualização das informações encontradas ali é excelente, portanto, fazemos uso frequentemente dessa fonte dada a sua qualidade e atualidade informativa.
A autora tem em seu histórico os prêmios José Craveirinha de 2003, pela obra Niketche: uma história de poligamia; e recentemente o prêmio Camões em 20 outubro de 2021. No mesmo ano foi lançado o documentário “Paulina Chiziane: no mar que nos separa à ponte que nos liga”. Abaixo transcrevemos o anúncio feito da prefaciada feita pela ministra portuguesa da cultura, Graça Fonseca.
O júri decidiu por unanimidade atribuir o Prémio à escritora moçambicana Paulina Chiziane, destacando a sua vasta produção e recepção crítica, bem como o reconhecimento académico e institucional da sua obra. O júri referiu também a importância que dedica nos seus livros aos problemas da mulher moçambicana e africana. O júri sublinhou o seu trabalho recente de aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e outras formas de arte” (REPÚBLICA PORTUGUESA, 2021)
Mesmo com tantas obras lançadas e importantes prêmios é sabido por parte de seu público que a autora recusa o rótulo de romancista, pois prefere se definir como contadora de histórias, fruto de uma tradição oral da qual fez parte de sua infância, em volta da fogueira. Paulina Chiziane escreve romances, e este gênero literário moderno por sua conjuntura que possui enredo, espaço, tempo e personagens consegue comportar os elementos que caracterizam o texto oral.
Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apóie nessa herança de conhecimentos de toda a espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes depositários, de quem se pode dizer que são a memória viva da África. (HAMPATÉ BÂ: 2010, p.167, apud Freitas, 2012, p.46)
Paulina Chiziane convoca para sua escrita a tradição oral que nas sociedades africanas essa forma de narrativa é um dos alicerces que sustenta os costumes, crenças e valores transmitidos de uma geração para a outra. Por se tratar de países que em sua origem eram parágrafos a tradição oral representa uma forma de preservação da memória e do conhecimento, nesse sentido, a tradição oral foi e ainda é uma importante ferramenta cultural. Os textos orais nos países do continente africano são transmitidos através da contação de histórias exercida pelos mais velhos das aldeias e pelos griots. Os Griots é como são chamados homens e mulheres contadores de história na África, na forma feminina griote. Sobre a origem do termo griot:
É uma corruptela da palavra “Creole”, ou seja, Criolo, a língua geral dos negros na diáspora africana. Foi uma recriação do termo gritadores, reinventado pelos portugueses quando viam os griôs gritando em praça pública. Foi utilizado pelos estudantes afrodescendentes franceses para sintetizar milhares de definições que abarca (GRÃO DE LUZ E GRIÔ – s/d, Apud, Nascimento, 2021 p.53)
Se direcionarmos nosso olhar para a produção literária de autoria feminina em Moçambique, em especial na prosa, é inevitável que encontremos traços da memória e da tradição oral em Moçambique. Essa forma de narrar histórias, partilhando por meio da oralidade, é abordada por Paulina Chiziane em sua obra Ventos do Apocalipse, lançada originalmente em 1993, onde pode ser observado o uso da expressão em língua bantu “Karingana wa karingana”, que pode ser entendido como “era uma vez”.
Escutei os lamentos que me saíram da alma. Vinde, sentai-vos no sangue das ervas que escorre pelos montes, vinde, escutai repousando os corpos cansados debaixo da figueira enlutada que derrama lágrimas pelos filhos abortados. Quero contar-vos histórias antigas, do presente e do futuro porque tenho todas as idades e ainda sou mais novo que todos os filhos e netos que hão de nascer. Eu sou o destino. A vida germinou, floriu e chegamos ao fim do ciclo. Os cajueiros estão carregados de fruta madura, é época de vindima, escutei os lamentos que me saem da alma, KARINGANA WA KARINGANA (CHIZIANE, 1999, p. 15).
Mas por que se reivindicar como contadora de histórias mesmo sendo suas obras enquadradas na prosa como um romance? Essa resposta para essa pergunta foi dada pela própria Paulina Chiziane em entrevista para a jornalista brasileira Luana Assis. Abaixo faremos a transcrição:
[3]Luana Assis: Essa expressão que você usa para se colocar digamos de contadora de estórias, é também uma forma de se livrar e afastar qualquer tipo de patrulhamento ou regras literárias?
Paulina Chiziane: Eu sou africana e venho de uma sociedade tradição oral que tem a sua estética. À volta da fogueira as coisas se passam mesmo assim, portanto há uma pessoa que fala duma forma muito informal e conta estórias e usa as palavras mais simples e transmite uma grande mensagem. Essa é a tradição africana que eu tenho comigo e o romance faz parte da tradição europeia, faz parte da academia, então eu como autora eu sou originária de duas tradições, agora se eu digo: “Sou romancista” estou a adentrar fora de minha tradição africana, e se eu digo que sou apenas “contadora de estória” também estou a adentrar fora o outro lado da tradição que eu aprendi a partir das academias, portanto a este aspecto que defendo. Por outro lado, o romance definitivamente é de tradição europeia, então tem seus guardas, seus polícias e estão a toda hora a espera de dizer “é um bom romancista”, “é um mau romancista”, e seu eu digo “sim, sou romancista!” imediatamente eu não sirvo porque “um romance não é assim, tem que ser desta ou daquela maneira”, e eu não estou para isso.
Paulina não reivindica uma posição estética porque permeia entre elas, ao mesmo tempo que mostra não estar interessada em ter seu trabalho medido por uma régua acadêmica. Quando a autora fala sobre ser de um continente em que a tradição oral tem sua estética ela traça o perfil identitário de seu país e de sua literatura. Essa grande autora e contadora de histórias do sul de Moçambique, consegue extrapolar os limites fronteiriços fazendo com que sua literatura e sua tradição cruze o oceano.
REFERÊNCIAS
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ALÓS, Anselmo Peres. Uma voz fundadora na literatura moçambicana: a poética negra pós-colonial de Noémia de Sousa. In: Todas as Letras – Revista de Língua e Literatura, Revista digital da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, vol. 13, nº 2, janeiro de 2012.
CANDIDO, Antonio. A formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750 – 1836). Rio de Janeiro: Itatiaia Ilimitada, 2000.
CÉSAIRE, Aimé. Cultura e civilização. In SANCHES, Manuela Ribeiro (Org.) Malhas que os impérios tecem: Textos anticoloniais, contextos póscoloniais. Lisboa: Edições 70, 2011.
CHIZIANE, Paulina. Eu, Mulher… Por uma nova visão de mundo. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 5, n° 10, Abril de 2013.
________________.CHIZIANE, Paulina. Ventos do apocalipse. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
FREITAS, Sávio Roberto Fonseca de. A condição feminina em Balada de amor ao vento, de Paulina Chiziane. Tese de Doutorado em Letras Dissertação – UFPB – Paraíba, João Pessoa, 2012.
MONTEIRO, Pedro Manoel. Revisão do percurso histórico da participação da literatura feminina PALOP: de 1940 a 2009. Assis: Miscelânea, v. 19. 2016, p. 319-335.
_________. Escritoras africanas no mercado editorial nos séculos XX e XXI. Lisboa: Faculdade de Letras. Universidade de Lisboa, 2019.
MOMPLÉ, Lilia. Ninguém matou Suhura. Moçambique, Colecção, Edição Associação dos escritores moçambicanos, 1988.
NASCIMENTO, Márcia Helena do. O Griot e as Narrativas de Tradição Oral na Sala de Aula: na tessitura da memória e ensino. Dissertação de Mestrado em Letras do Instituto Federal do Espírito Santo, 2021.
SAÚTE, Nelson. A mãe dos poetas moçambicanos. In: SOUSA, Noémia. Sangue negro. São Paulo: Kapulana, 2016.
SOUZA, Ubiratã Roberto Bueno de. A gravitação das formas: gêneros literários e vida social em Moçambique (1977-1987). Tese de Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
[1] Mestranda no Programa em PPG\MEL Pós Graduação em Mestrado em Estudos Literários da Universidade Federal de Rondônia
[2] Os assimilados seriam os moçambicanos mestiços que, por viverem nas cidades, estariam mais próximos de um modo de vida português, por meio do uso da língua, na aceitação da vida cristã e na obediência às leis do governo. A condição de assimilado seria a fase intermediária na qual um indivíduo africano transitava da condição de indígena e de cidadão.
[3] Transcrição da entrevista:Tradição oral na literatura”, feita para o Canal Vrá!!!. Disponível em:
1 Mestranda no Programa em PPG\MEL Pós Graduação em Mestrado em Estudos Literários da Universidade Federal de Rondônia
2 Os assimilados seriam os moçambicanos mestiços que, por viverem nas cidades, estariam mais próximos de um modo de vida português, por meio do uso da língua, na aceitação da vida cristã e na obediência às leis do governo. A condição de assimilado seria a fase intermediária na qual um indivíduo africano transitava da condição de indígena e de cidadão.
3 Transcrição da entrevista:Tradição oral na literatura”, feita para o Canal Vrá!!!. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zRNJTw_nzHk