REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8342479
Vitor Pimenta Ribeiro1
Carlos Eduardo Cantisano do Nascimento2
Luiza Menezes Barroso Augustus de Sena3
Gabriel Salim Saud de Oliveira4
RESUMO
A tuberculose miliar é uma doença clínica descrita desde a década de 70 associada à disseminação hematogênica do bacilo Mycobacterium tuberculosis. Tem caráter progressivo e amplamente disseminado no organismo. O diagnóstico precoce e o tratamento amplo e específico contra o agente se tornam essenciais para sucesso terapêutico nesse espectro da tuberculose, cuja morbidade e mortalidade por si só são extremamente elevadas. O presente trabalho tem como objetivo relatar o caso de uma paciente imunocompetente com diagnóstico tardio da doença, que apresentou expressiva melhora clínica e laboratorial após terapêutica venosa com tuberculostáticos específicos, guiados conforme perfil de resistência do microrganismo em centro hospitalar de referência para a doença pelo Ministério da Saúde.
Palavras-chave: tuberculose miliar, disseminação hematogênica, Mycobacterium tuberculosis, tuberculose disseminada.
Introdução
A tuberculose ainda hoje é um dos principais problemas de saúde a nível mundial, são cerca de 100 milhões de pessoas infectadas por ano pela doença, desses também anualmente 8,8 milhões de pessoas adoecem. O Brasil está atualmente entre os 30 países de alta carga para TB (tuberculose) considerados prioritários pela OMS para controle da doença. No nosso país, os mais atingidos por essa doença são populações vulneráveis como detentos, moradores de ruas ou de conglomerados urbanos, imunossuprimidos e indígenas.
Formas graves de TB, como a miliar, que representam 1 a 2% dos casos de TB relatados globalmente, necessitam de internação hospitalar para seguimento terapêutico e apresentam alta mortalidade intra- hospitalar de cerca de 2-12%. Geralmente essas características evidenciam dificuldades de acesso à rede básica de saúde pelo paciente e/ou a baixa capacidade resolutiva dessa rede como, por exemplo, a demora no diagnóstico e consequentemente no início de tratamento.
O diagnóstico da TB militar é encarado como um desafio pelas sociedades de infectologia pelo mundo devido a sua apresentação na maioria das vezes como um quadro inespecífico, amplo e variável. Dessa forma, se torna imprescindível o uso de métodos diagnósticos complementares específicos e uma vasta investigação em busca de descartar outras doenças potencialmente fatais que podem mimetizar tais achados clínicos.
Além disso, durante a fase de tratamento dessa enfermidade, por serem necessários utilização de múltiplos fármacos, podemos nos deparar com diversas apresentações de efeitos colaterais clínicos e laboratoriais que também colaboram para um prolongamento e/ou dificuldade no manejo adequado dos casos.
Objetivo
Relatar o caso de uma paciente imunocompetente com tuberculose miliar e sua boa resposta à terapêutica aplicada, apesar do diagnóstico tardio.
Metodologia
Foi realizada entrevista com a paciente, revisão do prontuário da mesma durante sua internação hospitalar, acompanhamento ambulatorial posterior no serviço de Clínica Médica do HUCFF e revisão da literatura com busca eletrônica na base de dados do Pub Med (Medline), Uptodate e manuais do Ministério da Saúde sobre o manejo da Tuberculose.
Relato do caso
Anamnese:
Identificação: K.C.S.B., feminino, 22 anos, solteira, do lar natural do Rio de Janeiro, residente de Senador Camará – RJ, evangélica, ensino médio completo.
Queixa principal: “Aumento na barriga”
História da doença atual: Paciente relata que há cerca de 8 meses iniciou quadro de astenia, hiporexia, febre vespertina diária (não aferida), além de perda ponderal não intencional de mais de 20Kg no período. Refere também, aumento do volume abdominal associado a dor difusa em cólica em todo o abdome, de moderada intensidade, não relacionada à alimentação.
Relata internação há 1 mês em um hospital de emergências da rede municipal de saúde do Rio de Janeiro, onde foi feita tomografia computadorizada (TC) de abdome que evidenciou áreas de espessamento peritoneal difuso e volumosa ascite. Nesse contexto, foi referenciada ao serviço de Ginecologia do HUCFF para prosseguimento da investigação com biópsia peritoneal, quando então o serviço de Clínica Médica do hospital foi acionado para acompanhamento em conjunto do caso.
História patológica pregressa: Nega comorbidades ou cirurgias prévias. Não faz uso de nenhuma medicação de uso contínuo. Nega alergias.
História familiar: Nega casos de câncer na família. Seu pai é hipertenso e sua mãe é hígida, sem comorbidades conhecidas.
História fisiológica: Crescimento e desenvolvimento normais. Nega internações na infância. Menarca aos 13 anos, com ciclos menstruais regulares desde então. Sexarca aos 15 anos. G2P2A0, 2 partos vaginais. História social: Reside em casa com sua mãe e seus dois filhos, com saneamento básico adequado. É estilista social. Nega tabagismo. Não tem animais em casa. Nega viagens recentes.
Exame físico:
Sinais vitais – PA: 125x60mmHg | FC: 144bpm | FR 24irpm
Ectoscopia: fácies caquética, gordura de Bichat consumida, cova em região temporal. Hipocorada 3+/4+, hipohidratada, acianótica e anictérica. Aparelho Cardiovascular: Ritmo cardíaco regular em 2 tempos, bulhas normofonéticas, presença sopro sistólico pancardíaco 2+/6+
Aparelho respiratório: MV reduzido em bases, sem ruídos adventícios Exame abdominal: abdômen distendido, vascularização visível em parede abdominal com fluxo ascendente. Peristalse aumentada. Timpânico em região de epigástrio e mesogástrio, maciço em todo o abdome, com massa palpável em flanco D, de consistência endurecida e limites irregulares. Doloroso mesmo ao toque superficial, com dificultando a palpação pela distensão e pela dor.
Membros inferiores: Pulsos isócronos e isóbaros. Edema de membros inferiores simétricos bilateralmente (1+/4+), até a região maleolar.
Neurológico: Avaliação de marcha estática e dinâmica prejudica por não se sustentar em ortostase. Reflexos profundos e superficiais preservados. Sensibilidade preservada.
Exames complementares da investigação diagnóstica
-Laboratório de admissão
Hb 8,6 g/dL | Leuco 6.300/mm³ | TIBC 100mcg/dL | Ca² 10,3mg/dL |
Hto 26,5% | Bas 1% Eos 2% | IST 71% | Mg 1,9mg/dL |
VCM 84,4fL | Ptas 280mil/mm³ | Transf.42,4mg/dL | Na 138mEq/L |
CHCM 32,3g/dL | RDW 19% | Ferritina 47.952 | K 3,0mEq/L |
HCM 27,3pg | Fe 71mcg/dL | LDH 776 U/L | P 5,1mg/dL |
FA 83 U/L | GGT 64 U/L | ALT 10 U/L | AST 44 U/L |
BT 2.5mg/ dL | BD 1,8mg/dL | Pt 6g/dL | Alb 1,6g/dL |
Lactato63mg/dL | VHS 30mm em1h | Ur 53 mg/dL | Cr 0,8 mg/dL |
PCR 341,4 | Ác Úr 9,1mg/dL | INR 1,39 | PTT 33,3s |
TSH2,06uUI/mL | T4L 1,49ng/dL | Vit D 30,1 | Hemoculturas para mycobacterium tuberculosis: positivo |
AntiHIV NR | VDRL NR | HBsAg NR | HCV NR |
TC de tórax: Micro nódulos difusos pelo parênquima pulmonar, associado a alguns nódulos com ocupação do espaço aéreo. Pequeno derrame pleural loculado à esquerda, com espessamento pleural e foco de consolidação com broncograma aéreo de permeio no parênquima adjacente. Linfonodomegalias subcarinais e periesofagianas com interior hipodenso de centro necrótico.
TC de abdômen e pelve: Ascite loculada associada a espessamento liso do peritônio e espessamento difuso exuberante do grande momento – “Omental Cake”. Hepatoesplenomegalia. Espessamento da região ileocecal. Linfonodos periciais. Imagens císticas alongadas nas regiões anexiais bilateralmente, medindo 5,1×1,8cm à direita e 5,1×1,6cm à esquerda.
Sangue periférico: anisocitose, eritroblasto circulante, leucócito com desvio para a esquerda até mielócitos, plaqueta presente em número normal.
Líquido ascítico:
LDH 473 | Proteína 4,1 | Albumina 1,3 | Leucócitos 53 (90%PMN|10% Mono) |
Glicose 9 | BAAR Negativo | Cultura para germes comuns Negativa | GeneExpert para TB Positivo, sem resistência àrifampicina |
Hemoculturas:
Aeróbios: Negativo | Anaeróbios: Negativo | Fungos: Negativo | Micobactérias: Positivo |
Evolução:
Iniciado esquema venoso para Tuberculose (Moxifloxacino + Linezolida IV) e nutrição parenteral total. Avaliada pelo serviço de Hematologia do HUCFF, que devido a presença de reação eritroblástica em sangue periférico, inferiu provável invasão medular pelo bacilo. Entretanto, optou-se por não biopsiar a medula naquele momento devido à gravidade clínica da paciente associado à corticoterapia a terapêutica. Sem critérios para síndrome hematofagocítica, apesar de hiperferritinemia expressiva (47.952).
Evoluiu com melhora clínica progressiva após início do tratamento: ganho de peso corporal, recuperação de massa e força muscular, retorno de dieta oral e involução da ascite. Após 2 semanas foi trocado o esquema tuberculostático para via oral (RHZE- Rifampicina/Isoniazida/Pirazinamida/Etambutol).
Apresentou piora de função renal associada a febre, rash cutâneo e dor lombar durante a primeira semana de tratamento com RHZE. Após avaliação pelo serviço de nefrologia, inferiu-se que o quadro estava relacionado a provável nefrite intersticial aguda causada pela rifampicina. Paciente apresentou melhora evolutiva das escórias nitrogenadas após suspensão da droga, dando continuidade ao tratamento com as outras três medicações.
Seguiu acompanhamento clínico ambulatorial pelo serviço de Tisiologia do HUCFF, recebendo alta após um ano de seguimento, com recuperação completa da funcionalidade.
Discussão
A TB miliar atualmente é definida como um subtipo clínico da tuberculose caracterizado por disseminação linfohematogênica do Mycobacterium tuberculosis, com acometimento tanto pulmonar como dos demais órgãos e sistemas levando à formação de múltiplos nódulos (granulomas) nesses tecidos.
No nosso caso em questão, temos uma paciente jovem, sem comorbidades conhecidas, moradora de um grande conglomerado urbano com diagnóstico de Tuberculose Miliar. Esta doença possui apresentação clínica grave e, na maioria das vezes, ocorre em indivíduos com fatores de risco clássicos, por exemplo: alcoolismo, neoplasias, tratamentos com imunossupressores, HIV, cirrose hepática e outros estados de imunodeficiência congênita ou adquirida. A presença de um estado de imunossupressão prévio nesse caso foi amplamente pesquisada com os métodos complementares disponíveis sem achar indicadores de sua existência.
Concomitantemente, a paciente se apresentava durante a admissão no HUCFF com disfunção orgânica múltipla, que segundos os critérios do Sepsis-3 (infecção presumida + SOFA = 3) evidenciaram um quadro séptico em evolução. Apesar de extensa investigação radiológica e culturas tanto do sangue, como do líquido peritoneal, não foi encontrada evidência de processo infeccioso bacteriano subjacente, mas sim crescimento de Mycobacterium tuberculosis. A sepse do bacilo de Koch ( BK ) é rara e cursa com quadro em sua maioria das vezes fulminante. (1) Em um estudo multicêntrico de 28 instituição, chegou a ser observada mortalidade intra-hospitalar de 80%.(2) Além disso, o que temos descrito na literatura acerca do desenvolvimento de sepses por tuberculose é sua relação clara com um estado de imunossupressão conhecido, particularmente na AIDS – condição na qual sabe-se que 25% dos quadros sépticos são pelo bacilo de Koch. (5)
Outro dado interessante na história da nossa paciente foi o encontro de espessamento grosseiro difuso do grande omento, sinal radiológico denominado “omental cake”. Sua causa mais comum é a malignidade, mais especificamente o câncer de ovário. Porém, apesar de juntas não atingirem uma prevalência estatisticamente significativa, devemos sempre lembrar que causas benignas podem estar relacionadas a este achado, como por exemplo: histoplasmose, tuberculose, actinomicose, hematopoiese extramedular, dentre outras. No nosso caso, o bolo omental foi decorrente de uma TB miliar com acometimento peritoneal. (3) O uso de terapia endovenosa na tuberculose é exceção, normalmente é utilizada em formas graves e ameaçadoras à vida, casos de bacilos multirresistentes e/ou onde a via de administração oral/enteral não é possível. O uso de corticosteroides da mesma forma só possui benefícios claros em certas formas de acometimento raras da doença como a meningoencefálica e a osteocondral. Nossa paciente fez uso de terapia endovenosa pois apresentava má aceitabilidade de dieta via oral é possível disabsorção associada, que junto à gravidade do quadro como um todo, a não absorção do RHZE se tornou um risco a ser evitado. Assim que a via oral voltou a ser uma opção, convertemos para o esquemahabitual e a resposta seguiu excelente.
Por fim, é importante destacar a necessidade de se perseguir o diagnóstico de tuberculose quando há uma suspeita clínica. A paciente estava séptica, mas sem evidência de infecção bacteriana (causa habitual de septicemia no imunossuprimido). Ao perseguirmos o diagnóstico, nos deparamos com uma doença avançada, mas que obteve ótima resposta terapêutica e hoje está curada. (4)
Conclusão
Tuberculose miliar é uma forma fatal de TB disseminada. Após a pandemia global de HIV/AIDS e o uso crescente de drogas imunossupressoras a epidemiologia desta manifestação grave de uma doença crônica vem se tornando cada vez mais frequente. Porém, conforme apresentado neste relato de caso, o desenvolvimento de TB disseminada no imunocompetente é possível. Devemos então ter alto grau de suspeição, não só no imunossuprimido, e perseguir o diagnóstico, já que a cura só é possível através da terapêutica adequada.
Referências
- Kethireddy S, Light RB, Mirzanejad Y, et al. Mycobacterium tuberculosis septic shock.Chest 2013; 144:474–482
- Shah, M., and Reed, C. (2014). Complications of tuberculosis. Currente opinion in Infectious Diseases, 27(5), 403-410.
- Mamlouk, Mark Daniel, Eric vanSonnenberg, Sridhar Shankar, and Stuart G. Silverman. 2011. Omental cakes: Unusual aetiologies and CT appearances. Insights into Imaging 2(4): 399-408.
- Sharma SK, Mohan A, Sharma A. Miliary tuberculosis: A new look at an old foe. J Clin Tuberc Other Mycobact Dis. 2016 Mar 18;3:13-27.
- Jacob ST, Pavlinac PB, Nakiyingi L, et al. Mycobacterium tuberculosis bacteremia in a cohort of HIV-infected patients hospitalized with severe sepsis in Uganda–high frequency, low clinical sand derivation of a clinical prediction score. PLoS One 2013; 8:e70305.