A EFICÁCIA DO USO DO ÁCIDO TRANEXÂMICO EM PACIENTES VÍTIMAS DE TRAUMA COM HEMORRAGIA AGUDA: REVISÃO SISTEMÁTICA

EFFECTIVENESS OF THE USE OF TRANEXAMIC ACID IN PATIENTS VICTIMS OF TRAUMA WITH ACUTE HEMORRHAGE: SYSTEMATIC REVIEW

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8360388


ISABELA MACIEL BRAGA DE SOUZA
LAVINIA CAVALCANTE LYRA
ÁLVARO BULHÕES DA SILVA NETO


RESUMO

 Introdução: Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o trauma é uma das principais causas de morte, sendo responsável por 5,8 milhões de mortes no ano na última década. Isso ocorre, principalmente, devido ao processo de choque hemorrágico e coagulopatia que é desencadeado, acarretando na dissolução do coágulo para manter os vasos pérvios. Essa fibrinólise é uma resposta normal ao trauma, porém, em alguns casos, pode levar o paciente a um estado de hiperfibrinólise. O ácido tranexâmico (ATX) é um antifibrinolítico que age impedindo a quebra do coágulo, reduzindo a perda sanguínea, e, consequentemente, diminuindo a taxa de mortalidade relacionada ao choque hemorrágico. As pesquisas sobre a administração do ácido ainda são limitadas, no entanto, mostram benefícios com o seu uso precoce. Objetivos: Avaliar se o uso do ácido tranexâmico é capaz de melhorar o prognóstico e reduzir as taxas de mortalidade em pacientes com hemorragia aguda traumática. Metodologia: Trata-se de uma revisão sistemática realizada através de pesquisa nas bases de dados MEDLINE via PubMed e Scielo, guiada pelos descritores “tranexamic acid”, “trauma”, “mortality”, “bleeding”. Foram selecionados estudos de coorte e ensaios clínicos randomizados. Resultados e discussão: A revisão utilizou 4 artigos, sendo eles: 2 ensaios clínicos randomizados e

controlados e 2 estudos observacionais. Devido à escassez e limitações de estudos, os resultados não foram animadores estatisticamente, porém, em relação a morbimortalidade absoluta, houve uma redução significativa. Conclusão: Após a implementação do uso do ácido tranexâmico como protocolo em grandes traumas, evidenciou-se uma melhora nas taxas de mortalidade em pacientes traumatizados com sangramento significativo. Em paralelo, mais pesquisas são necessárias para delinear o alvo ideal dos pacientes que irão receber o ácido e para esclarecer sobre o prognóstico desses pacientes, já que, até o momento, esse ponto é incerto e alguns estudos chamam a atenção para as possíveis complicações mais frequentes resultantes do uso indiscriminado do ATX.

PALAVRAS-CHAVE: ácido tranexâmico, trauma, mortalidade,  hemorragia.

ABSTRACT

 Introduction: according to the World Health Organization (WHO), trauma is one the main causes of death, being responsible for 5,8 millions deaths per year over the last decade. This occurs mainly because of the process of hemorrhagic shock and coagulopathy that is triggered, entailing in the blood clot dissolution in order to maintain the pervious vessels. This fibrinolysis is a normal response to trauma, however, in some cases, it can lead the patient to a state of hyperfibrinolysis. The tranexamic acid is a antifibrinolytic that operates by preventing the clot break, reducing the mortality rate related to hemorrhagic shock. The researches on the acide administration still are limited, nonetheless, they show benefits with a early administration. Objectives: To evaluate if the usage of the tranexamic acid is capable of improving the prognosis and of reducing the mortality rates of patients with acute traumatic hemorrhagia. Methodology: It is a systematic revision performed through research of the data base MEDLINE via PubMed and Scoelo, guided by the following descriptors “tranexamic acid”, “trauma”, “mortality”, “bleeding”. Randomized clinical trials and cohort studies were selected. Results and discussion: The revision used four articles, been: 2 randomized and controlled trials and 2 observational studies. Because of the shortage and limitation of studies, the results were not statistically uplifiting, however, in relation to absolute morbimortality, there was a significant reduction. Conclusion: After the implementation of tranexamic acid usage as protocol in large traumas, it was identified an improvement of the mortality rates on trauma patients with significant bleeding. Alongside, more researches are needed to delineate the ideal target of the patient who will receive the acid and to clarify about these patients prognosis, since, so far, this point is uncertain and some studies raise awareness about the possible complications caused by indiscriminate  use of ATX.

KEYWORDS: tranexamic acid, trauma, mortality, bleeding.

1.   INTRODUÇÃO

O trauma é uma das principais causas de morbimortalidade no Brasil e no mundo, sendo considerado um verdadeiro e abstruso problema de saúde pública, uma vez que os óbitos decorrentes de trauma correspondem a 10% de todas as causas de morte, de acordo com a OMS1. A principal consequência desse feito é a hemorragia que, quando associada a coagulopatia, gerada pelo próprio trauma, resulta no aumento do sangramento e, consequentemente, da mortalidade, visto que induz a um estado de hiperfibrinólise2.

O ácido tranexâmico (ATX), é um derivado sintético do aminoácido lisina com ação antifibrinolítica e, por isso, é capaz de bloquear a conversão do plasminogênio em fibrina, promovendo maior estabilidade do coágulo. Tradicionalmente, o ATX é amplamente utilizado na prática clínica com o objetivo de diminuir a perda sanguínea, especialmente em condições perioperatórias e alterações relacionadas à menstruação; no entanto,  recentemente vem ganhando importância no controle de sangramentos em casos de traumatismos graves e situações de emergência. Foi publicado em 2010 o Clinical Randomisation of an Antifibrinolytic in Significant Haemorrhage 2 (CRASH-2), onde demonstrou que a administração intravenosa de ácido tranexâmico impactou significativamente na redução da mortalidade em pacientes com hemorragia. Com isso, após o lançamento de seus resultados favoráveis, o principal protocolo de tratamento em trauma do mundo mudou, para incluir a administração de ATX².

Nesse contexto, vários estudos foram realizados com o intuito de analisar a efetividade do uso do ATX, delinear o perfil de paciente que mais se beneficia e definir qual é o tempo ideal para iniciar a administração da droga com segurança3.

Atualmente, nos principais centros de departamento de emergência adota-se as recomendações do “Advanced Trauma Life Support – ATLS®” do “American College of Surgeons – ACS” como protocolo de atendimento no manejo da hemorragia em vítimas de trauma. Conforme o ATLS, a correção é feita com reposição de fluidos e hemocomponentes, a depender da gravidade e dimensão4. Contudo, sabe-se que a própria ressuscitação volêmica, se em excesso, é prejudicial e pode piorar a disfunção no processo de coagulação desses pacientes, tornando um ciclo vicioso e aumentando de maneira independente a mortalidade5 .

Diante do exposto, em sua 10ª e última edição o ATLS recomenda a utilização do ATX em pacientes com quadro de hemorragia grave em até 3 horas após o trauma, como parte do protocolo de transfusão maciça e, como cerca de 30% dos pacientes com sangramento importante já chegam ao serviço de emergência com o quadro de coagulopatia estabelecido, o uso do preventivo do ATX está sendo mensurado cada vez mais4, 5.

O objetivo deste estudo é avaliar a eficácia do uso do ácido tranexâmico no trauma em pacientes com hemorragia aguda, tendo como pergunta norteadora: O uso do ácido tranexâmico no pré e/ou intra-hospitalar melhora o prognóstico do paciente e reduz a mortalidade quando usado no contexto de hemorragia traumática? 

2.   METODOLOGIA

Trata-se de uma revisão sistemática da literatura baseada na pergunta estruturada conhecida pelo acrônimo PICOS: Paciente, Intervenção, Comparação, “Outcomes” (desfecho), “Study” (tipo de estudo), preconizada pela diretriz PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses)6, cujos componentes estão apresentados no quadro 1.

A revisão foi realizada nas bases de dados MEDLINE via PubMed e Scielo e guiada pelos descritores “tranexamic acid”, “trauma”, “mortality”, “bleeding”, que serão combinados entre os termos com o conector “AND”; incluindo os estudos do tipo estudo clínico, ensaio clínico randomizado e controlado, estudos comparativo e observacional, selecionando artigos dos últimos 11 anos e sem restrição de idioma.  Outras pesquisas foram realizadas utilizando listas de referência de estudos selecionados para selecionar artigos relevantes.

Os critérios de inclusão foram os estudos que obtiveram resultados sobre o uso do ácido tranexâmico em pacientes vítimas de trauma com hemorragia aguda, que estivessem disponíveis integralmente de forma gratuita. 

Foram excluídos os artigos que fugiram do objetivo da revisão, os quais focaram o uso do ATX em cirurgias obstétricas e cardíacas; e sangramentos gastrointestinais. Quando encontrar artigo repetido, ele será incluído apenas uma vez e os demais serão excluídos.

Quadro 1. Descrição da estratégia PICOS.

PopulaçãoPacientes com hemorragia aguda vítima de trauma
IntervençãoUso do ácido tranexâmico no pré-hospitalar e/ou intra-hospitalar
ComparaçãoPacientes que receberam ATX no pré-hospitalar e/ou intra-hospitalar ou que não receberam a droga
OutcomesVerificar a eficácia do uso do ácido tranexâmico, pré e intra-hospitalar, na redução da mortalidade e no prognóstico de pacientes vítimas de trauma
StudyEnsaio clínico randomizado e estudo observacional
Fonte: elaborada pelos autores, 2023
3.   RESULTADOS

A busca obteve 28 resultados, dentre eles foram excluídos inicialmente 15 artigos, que fugiam da proposta inicial, focando em aspectos que diferem do trauma. Entre os 13 restantes, foi feita a leitura na íntegra de todos os textos e, durante a análise, foram eliminados 8 artigos, pois não eram relevantes para o desfecho da revisão e 1 artigo que não avaliava mortalidade. Uma análise crítica fomentou a presente revisão com 1 estudo de coorte, encontrado nas fontes de referência. Por fim, foram utilizados 4 artigos, sendo eles: 2 ensaios clínicos randomizados e controlados e 2 estudos observacionais, conforme representado na figura 1.

Figura 1.  Fluxograma da busca de artigos

Fonte: elaborada pelos autores, 2023

Os estudos de coorte abrangeram 1.620 pacientes no total; destes, 655 receberam uma dose do ATX e o restante não recebeu nenhuma dose.

O primeiro estudo, MATTERs (Military Application of Tranexamic acid in Trauma Emergency Resuscitation), foi um estudo de coorte observacional retrospectivo, feito em militares do Reino Unido e EUA,  que compara o uso do ATX com o não uso e incluiu um total de 896 pacientes com lesão de combate, que receberam pelo menos uma unidade de sangue, dos quais 293 receberam o ATX. Um subgrupo que recebeu transfusão maciça também foi analisado. O estudo tinha o objetivo de avaliar o impacto da administração do antifibrinolítico não só na mortalidade, como também na necessidade do uso de hemoderivados e complicações tromboembólicas. Foi relatado uma redução da mortalidade nos pacientes que receberam administração de ATX com trauma de guerra: na coorte geral o grupo do TXA obteve menor taxa de mortalidade intra-hospitalar não ajustada do que o grupo sem ATX, com redução absoluta de 6,5% (17,4% vs 23,9%, respectivamente; P = 0.03) apesar de apresentarem lesões mais graves; enquanto o grupo que recebeu transfusão maciça a redução absoluta da mortalidade foi de 13,7% (14,4% vs 28,1%, respectivamente; P = 0.004) e essa grande redução se manteve mesmo após o ajuste da mortalidade para outros fatores prognósticos na análise de regressão logística, onde TXA foi independentemente associado com sobrevida (odds ratio = 7,228; 3.016 – 17.322; p<0.01) e menos coagulopatia. Foi notório também que o grupo que recebeu ATX necessitou de uma quantidade maior de transfusão do que o grupo placebo e teve maiores taxas de TEP e TVP7, 12.

O segundo estudo, Califórnia Prehospital Antifibrinolytic Therapy (Cal-PAT), foi um estudo de coorte observacional, prospectivo, com comparação retrospectiva realizado nos Estados Unidos da América, com o objetivo de analisar o impacto da mortalidade, bem como eficácia e segurança da administração do ácido tranexâmico (ATX) no pré-hospitalar em  pacientes civis com choque hemorrágico traumático. O estudo foi realizado com 724 pacientes vítimas de trauma, sendo 362 no grupo intervenção e 362 no controle. O protocolo de intervenção foi a administração em duas doses seguindo o protocolo usado no estudo CRASH-2, sendo a primeira dose administrada por paramédicos ou enfermeiros no ambiente pré-hospitalar.

Teve como desfechos clínicos: redução estatisticamente significativa na mortalidade em 28 dias (3,6% para intervenção e 8,3% controle, OR=0,41 com IC 95% [0,21 a 0,8]), menos hemocomponentes transfundidos e menor tempo de internação hospitalar e de UTI, sem aumento de eventos tromboembólicos8.

O terceiro estudo, foi um ensaio clínico randomizado e controlado, em um Centro de Trauma Médico Sem Fronteiras no Haiti, um centro com poucos recursos, onde foi implementado um protocolo padronizado nos pacientes vítimas de trauma. Foi feito uma comparação entre antes do protocolo ser implementado e depois dele, nos mesmos meses e períodos, mas com intervalo de um ano entre eles. 116 pacientes foram incluídos no estudo, sendo 52 do grupo antes do protocolo e 64 do grupo após sua implementação, e, dos que receberam o protocolo de hemorragia maciça, que também incluía a administração do ácido tranexâmico, 70% deles tiveram menor risco de morte no intra-hospitalar (OR ajustado 0,3, IC 95% 0,1–0,8). No grupo “antes” foram observados 18 óbitos, sendo 16 por sangramento (89%, OR 0,5 95% CI 0,0–7,6), 1 por sepse e 1 por traumatismo cranioencefálico grave. No grupo “depois”, 10 mortes foram observadas, 9 por sangramento (90%, OR 0,3, IC 95% 0,0–23) e 1 por lesão cerebral grave associada com trauma contuso. Além disso, o grupo antes obtiver um tempo de internação significativamente menor comparado com o grupo depois, 6 dias contra 8 dias9.

O segundo ensaio clínico randomizado e controlado, realizado no Catar, sobre a Eficácia e segurança da segunda dose intra-hospitalar de ácido tranexâmico após receber a dose pré-hospitalar, incluiu 220 pacientes adultos, vítimas de trauma, onde todos receberam dose inicial de 1g de ATX em bolus no pré-hospitalar e, após isso, foram divididos em dois grupos iguais: um grupo que recebeu o ATX intra-hospitalar e outro grupo que recebeu placebo. O desfecho primário foi avaliar a mortalidade precoce (24h) e tardia (28 dias). Em ambos os grupos, a mortalidade precoce foi de 0,9%, já na mortalidade tardia, o grupo que recebeu a segunda dose do ácido teve 9,1% de mortalidade contra 4,5% do grupo placebo, sendo a maioria dos óbitos por TCE grave e apenas 3 mortes por falência múltipla de órgãos. O desfecho secundário foi baseado em: transfusão de sangue (em menos de 24h), transfusão sanguínea em geral, uso de protocolo de transfusão maciça, tempo de alta hospitalar e eventos tromboembólicos. A necessidade de transfusões de sangue nas primeiras 24h não teve diferença significante entre os grupos TXA e placebo [OR 1,090 (0,612–1,942), p  = 0,76], apesar do número médio de unidades de sangue utilizados ser maior no grupo TXA [5,1 (3,1–7,0) vs. 1,92 (1,14–2,7); p  = 0,13]. Por sinal, o grupo TXA intrahospitalar apresentou menor número de transfusão maciça [OR 2,154 (IC 95% 0,579– 8,011), p  = 0,25] do que o placebo. Não houve discrepância entre os dois grupos em relação ao tempo de internação (> 7 dias) [OR 0,814 (IC 95% 0,464–1,429), p =  0,47], falência múltipla de órgãos ( p  = 0,50) e eventos tromboembólicos [OR 0,660 (95 % 0,108–1,032), p = 0,65]10

4.   DISCUSSÃO

Desde o século XX o ácido tranexâmico é utilizado para melhorar o prognóstico de pacientes, porém, sua utilização iniciou em cirurgias eletivas para prevenir a perda excessiva de sangue e melhora dos resultados cirúrgicos. A partir disso, pesquisadores começaram a investigar o seu uso em pacientes com hemorragia aguda em outras situações, como o trauma2

Essa hipótese motivou o estudo CRASH 2, um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, com 20.211 pacientes vítimas de trauma, com quadro de hemorragia significativa. Os resultados evidenciaram que o tratamento com ATX em vítimas de trauma com hemorragia melhorou significativamente a mortalidade quando comparado ao grupo placebo11 . No entanto, esse ensaio não foi isento de controvérsias e outros estudos foram surgindo para debater e resolver as lacunas existentes sobre o uso do ácido nas situações de hemorragia no trauma; da mesma forma, alguns deles também apresentam limitações e possuem risco de viés8, 12.

No estudo MATTERs, por exemplo, a administração intravenosa de ATX era baseada em um protocolo de hemorragia ou diretriz de prática clínica para pacientes que necessitavam de hemoderivados de emergência ou pacientes com evidência de hiperfibrinólise. No entanto, possivelmente ocorreu variações na prática durante o período do estudo (janeiro de 2009 até dezembro de 2010), visto que antes de 2010 a administração do ATX, bem como suas indicações e doses utilizadas eram embasadas no senso crítico do cirurgião, o que torna uma limitação na interpretação dos resultados do estudo. Além disso, não foi dirigida nenhuma análise de sensibilidade para o efeito do tempo entre o trauma e a administração do ATX e esse tempo para iniciar a administração pode ter sugestionado os resultados. Por outro lado, os autores do estudo tiveram o cuidado para manter a igualdade entre os grupos, utilizando uma análise estatística ajustada (regressão logística múltipla). O estudo propõe que o efeito do ATX após lesão de combate pode resultar em melhores medidas de sobrevida do que as já conhecidas, já que os pacientes selecionados para receberem o ATX tinham piores fatores prognósticos, como ISS (Injury Severity Score) mais elevado, uma maior proporção de pacientes com nível de consciência significativamente reduzido e mais pacientes com hipotensão arterial. Essa melhora da sobrevida corrobora os achados do CRASH-2, que demonstrou redução da mortalidade por hemorragia e expande a uma população de pacientes com lesões em tempos de guerra. Ademais, foi observado no estudo que não houve diferença na mortalidade entre os grupos TXA e não-TXA até o ponto de 48 horas, o que insinua que o ATX desempenhe um papel importante no benefício da sobrevida para além da hemostasia, resultado do seu efeito anti-inflamatório. É importante frisar que tanto na coorte geral como na de transfusão maciça, o grupo que recebeu TXA e o que não recebeu tiveram a ressuscitação baseada em componentes sanguíneos semelhantes e na mesma relação CH:PFC, indicando que a melhora da coagulopatia não se restringiu ao uso de hemoderivados. Esses achados também sugerem que o aumento da necessidade de transfusão nos grupos de ATX não está relacionado à piora da coagulopatia e sim à gravidade da lesão, assim como as maiores taxas de TVP e TEP em que a maior carga da lesão pode estar associada a eventos trombóticos7,12.

No estudo Cal-PAT, da Califórnia, os resultados apontam uma redução da mortalidade aos 28 dias em casos de lesão traumática com sinais de choque hemorrágico, o que fortalece os achados do estudo CRASH-2 e do estudo MATTERs. No entanto, os resultados do CRASH-2 sugeriram que TXA levou a uma diminuição na mortalidade por todas as causas em 1,5% em 28 dias e no presente estudo a redução da mortalidade foi de 4,7% aos 28 dias; a grande diferença entre os dois estudos foi o momento da administração do ATX e o local em que foi administrado, pois quando administrado no ambiente pré-hospitalar houve uma redução significativa no tempo para a primeira dose. Assim como no estudo MATTERs é possível que a redução da mortalidade observada em mais de 48 horas seja decorrente do efeito do ATX para além de 24 horas, momento em que o risco de sangramento é menor, consistindo na tese de que a droga tem a capacidade de diminuir os níveis de plasmina, reduzindo a magnitude do efeito pró-inflamatório exercido por ela. Nesse estudo, houve uma redução estatisticamente significativa no uso total de hemoderivados após a administração de ATX, corroborando um efeito antifibrinolítico imediato, o que confronta o estudo MATTERs, que mostrou um aumento nos hemoderivados usados; no entanto, sob outra perspectiva, essa diminuição na quantidade de hemoderivados usados observada no estudo Cal-PAT pode estar relacionada a diferença na gravidade da lesão entre os grupos ou, até mesmo, ser decorrente da prática mais restrita do uso de hemoderivados observada nos últimos tempos em pacientes vítimas de trauma. Além disso, deve ser levado em consideração o fato de que o ATX foi administrado no ambiente pré-hospitalar, em oposição ao estudo MATTERs que foi administrado principalmente dentro do ambiente hospitalar. Em relação aos eventos adversos, não houve diferenças na incidência de eventos tromboembólicos, infarto do miocárdio ou neurológicos entre os grupos TXA e controle e nem aumento no tempo de permanência hospitalar, apoiando um curso relativamente não complicado entre os pacientes que receberam TXA. A principal limitação desse estudo foi o delineamento, pois o desenho de coorte prospectivo em relação com um delineamento controle randomizado não permitiu que os médicos participantes estivessem cegados e, por isso, estavam a par do uso do ATX, o que pode ter induzido a um viés no atendimento8.

Visto que, nos primeiros estudos, em sua maioria, a discussão era apenas sobre o uso do ATX ser benéfico ou não; foi feita uma análise de subgrupo do estudo CRASH-2, mesmo que secundária e insuficiente, que mostrou que o ácido pode ser uma droga benéfica no uso pré-hospitalar, ou em até 3 horas após o trauma; após esse tempo o risco de eventos adversos se tornou maior, podendo ser mais prejudicial que eficaz7,13. Ligado a isso, foi criado um guia, Guia de Uso do Ácido Tranexâmico, pelo Prehospital Emergency Care, que é citado e sugerido sua leitura no ATLS, onde é dito que o uso do ácido em até 3 horas do trauma, com a dose de 1g em bolus, seguida de infusão contínua durante 8 horas, pode ser benéfico para pacientes com hemorragia aguda, no entanto, isso não deve substituir ou atrasar o transporte e controle da hemorragia, ou até mesmo a necessidade de transfusão maciça14.

Após a análise do subgrupo do CRASH-2, de acordo com o Anais de Medicina de Emergência, em sua edição de abril de 2014, onde fora publicado um artigo que avaliava se o ATX reduzia a mortalidade no trauma, baseado apenas em pesquisas publicadas, foi ratificado o que já estava em discussão: “se administrado em até 3h do trauma, principalmente em pacientes com necessidade de hemotransfusão maciça, reduz significativamente a mortalidade, sem significativas repercussões trombóticas graves”. Porém, além disso, também foi avaliado o uso nos pacientes que apresentavam TCE, simultaneamente ou não ao trauma de base, e não foi evidenciado nenhum benefício com o uso do ácido, seja administrado no pré ou intrahospitalar15. Acresce a isso, um estudo observacional de 2020, na Holanda, que fala sobre a Associação entre Administração Pré-hospitalar de Ácido tranexâmico e Resultados de Lesão Cerebral Traumática Grave; onde foi visto que o uso do ATX no pré-hospitalar em pacientes com TCE grave isolado não foi benéfico, pelo contrário, a taxa de mortalidade subiu neste grupo. Esse dado demonstra que existe uma associação entre coagulopatia, fibrinólise e hipercoagulabilidade nos distúrbios de coagulação após TCE e, por isso, drogas que atuam interferindo no equilíbrio entre coagulação e fibrinólise podem não ser vantajosas para esses pacientes, já que são mais propensos a terem eventos tromboembólicos e teoricamente possuem maior risco de ter implicações prejudiciais para os resultados. Assim, é sugerida a não administração do ATX em pacientes com TCE grave isolado; ou seja, quando não há suspeita ou risco de trauma hemorrágico extracraniano importante16.

O estudo feito no Haiti, apesar de ser um artigo limitado, por ser realizado em apenas um hospital, mostrou que houve um atraso significativamente maior entre o momento do trauma até a chegada no centro hospitalar naqueles pacientes que receberam a dose do ácido no pré-hospitalar, mas também demonstrou benefícios no uso do ATX: além de reduzir a mortalidade no grupo que recebeu o ácido, também reduziu o tempo de internamento e a necessidade de intervenção cirúrgica. Todavia, foi utilizada uma dose diferente da recomendada no Guia de Uso do Ácido Tranexâmico, pela falta de recursos no hospital onde foi feita a pesquisa, pois era inviável a infusão contínua de ATX durante 8h, sendo feita em bolus de 1 g durante 10 minutos até 3h do trauma e a mesma dose no intra-hospitalar9.

Já o ensaio clínico randomizado e controlado que foi feito no Catar, em 2021, apesar de algumas limitações, como por exemplo, também ser feito em um único centro de trauma – Hamad General Hospital Trauma Surgery, demonstrou que a segunda dose de ácido tranexâmico, feita no intra-hospitalar, não apresentou nenhum benefício e/ou malefício. Não houve alteração na taxa de mortalidade, no tempo de internação, na abertura do protocolo de transfusão maciça e nem no tempo de internação. Não sendo indicado/necessário o uso da segunda dose de ATX no intra-hospitalar10.

5.   CONCLUSÃO

Apesar da literatura científica, até o momento, não fornecer dados suficientes para garantir total segurança na administração e evitar os efeitos adversos que podem acontecer; após a introdução do ATX como parte de um protocolo, evidenciou-se a eficácia da utilização do ácido tranexâmico na redução da mortalidade em pacientes gravemente feridos, principalmente quando administrado de forma precoce. Em contrapartida, fica claro que ainda não há uma definição se a administração do ATX está associada a uma melhora no prognóstico. Assim, conclui-se que a utilização do ATX deve ser feita de forma seletiva e cuidadosa, na medida em que estudos adicionais são necessários para delinear o alvo ideal dos pacientes com trauma.

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