A SOCIEDADE PÓS-COLONIAL: OPRESSÃO, DOMINAÇÃO E RACISMO NO CONTO NEGRINHA DE MONTEIRO LOBATO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8317573


Juliana das Neves Cruz


Resumo

Este artigo tem por objeto de estudo o conto “Negrinha”, do escritor brasileiro José Bento Monteiro Lobato. Mesmo não sendo um autor classificado dentro da crítica do pós-colonialismo, o conto analisado possui elementos típicos da crítica pós-colonial, como a opressão e o racismo que o negro sofre, junto a alienação e violência que é imposta pelo colonizador ao colonizado. O artigo vai demonstrar a representação da sociedade pós-colonial e a condição dos descendentes de africanos escravizados até o final do século XIX, e ao mesmo tempo pautar na teoria dos estudos pós-coloniais a análise literária. A pesquisa deste artigo demonstra que a representação na personagem central revela paradigmas de violência típicos da colonização e de relação de propriedade ao mesmo tempo que a falsa moral cristã introduzida pelo dominador é questionada pelo narrador.

Palavras-chaves: Pós-Colonial. Opressão sobre o negro. Negrinha. Monteiro Lobato

Considerações Iniciais

José Bento Monteiro Lobato é um dos escritores mais conhecidos da literatura brasileira. Nascido em Taubaté, cidade do Vale do Paraíba em São Paulo, região essa que vai servir como pano de fundo para suas criações literárias para o público adulto, e também para sua obra mais famosa, O Sítio do Pica-Pau Amarelo. Lobato, criado no interior, foi para São Paulo na juventude, e lá se formou em Direito. Foi fazendeiro, jornalista, empresário e escritor. Suas produções literárias para o público adulto publicadas em contos são: Urupês (1918), onde podemos encontrar um de seus textos mais famosos, em que ele cria a personagem do Jeca-Tatu; Cidades Mortas (1919) em que ele faz uma crítica sobre a decadência do Vale do Paraíba com o fim da produção do café na região, e Negrinha (1920) o livro em que se situa o conto que iremos analisar.

A obra Negrinha, do escritor pré-moderno brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948) foi publicada pela primeira vez em 1920. Originalmente, o livro em sua primeira edição era constituído por apenas seis contos (Negrinha, Fitas da Vida, O drama da geada, O Bugio moqueado, O jardineiro Timóteo e O colocador de pronomes). Em sua segunda edição, o livro foi reorganizado com a adição de novos textos, totalizando 22 contos ao todo.

Este artigo dará destaque ao conto “Negrinha”, cujo título dá nome à publicação. A história é ambientada após a abolição da escravatura no Brasil, e narra a vida de uma órfã de sete anos filha de uma escrava. A menina executa diversas tarefas domésticas, e mal tem um lugar para dormir a não ser uma esteira no chão da casa de Dona Inácia, uma mulher solteira e sem filhos, que lança a menina toda sorte de violência e opressão, ao mesmo tempo que se vangloria de dar um teto em nome da caridade. É na figura de Dona Inácia que podemos compreender uma crítica ferrenha de Lobato a sociedade de ex-escravocratas, sendo ela a fiel representante dos costumes do colonizador, que objetifica as coisas e as pessoas, e que estava inconformada com a abolição da escravatura.

A excelente D. Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos e daquelas ferozes, amigas de ouvir contar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regímen novo — essa indecência de negro igual a branco; e qualquer coisinha, a polícia!! “Qualquer coisinha”; uma mucama assada ao forno, porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho, porque disse: — “Como é ruim, a sinhá!” (LOBATO, 1967 p. 05)

Diferente de Dona Inácia a personagem, Negrinha não possui um nome na narrativa, apenas um adjetivo para expressar sua característica, o que também demonstra a fragilidade de sua existência.

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não. Fusca, mulatinha escura, cabelos cruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos de vida, vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre farrapos de esteira e panos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças. (Idem 1967 p.05)

Considerando o propósito dessa pesquisa, a teoria pós-colonial servirá para apontar em qual contexto social e econômico que o escravizado esteve, e quais são os resquícios que esse processo deixou, mesmo após a abolição. Para isso, recorremos a teóricos da crítica pós-colonial como Quijano (2009), Grosfoguel (2016) e Bonnici (2009), para fundamentar as relações que existem sobre a escravidão e racismo.

1.  O Pós – Colonialismo, Racismo e Opressão

É importante destacar o ano em que a obra foi publicada em relação aos períodos de libertação de escravizados no Brasil. A história mostra que tivemos três eventos neste sentido entre os anos de 1850 e 1888, sendo o primeiro deles conhecido por Lei do Ventre Livre. A lei foi aprovada em 28 de setembro de 1871 e compreendia que seriam libertos todos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data. Vale destacar o caráter oportunista dessa lei que era passível de indenização para os senhores de escravos “a solução foi expressa na própria lei: chegando o filho da escrava a esta idade [oito anos], o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos”. (MENDONÇA, 2018, p. 295)

Essa constatação histórica é importante para que possamos perceber como esse primeiro processo de libertação nunca esteve desvinculado da posse. Ao legitimar a indenização, o Estado reconhecia essas pessoas escravizadas unicamente como sujeito-objeto. Em 28 de setembro de 1885 foi a vez da aprovação de Lei dos Sexagenários, que concedia a alforria para os escravos que tivessem mais de 60 anos de idade, e possuía muitas ressalvas, embora não tivesse indenização para os ditos proprietários das vidas escravizadas.

A Lei dos Sexagenários, como ficou conhecida, estabeleceu a alforria dos escravos que tivessem mais de sessenta anos. Como a de 1871, para responder à demanda dos senhores por ressarcimento, ela afirmou que os velhos escravos, “a título de indenização pela sua alforria”, deveriam “prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos”. Definia também novos critérios para a alforria pelo Fundo de Emancipação, proibida a transferência de domicílio dos escravos de uma província para a outra; declarava que os libertos fixassem residência por cinco anos no município em que foram alforriados (MENDONÇA, 2018, p.298)

Por último vamos destacar a Lei Áurea, aprovada em 13 de maio de 1888, e que significou a abolição definitiva, abarcando centenas de milhares de escravizados. Gomes e Schwarcs  (2018), na apresentação do livro Dicionário da Escravidão e Liberdade, caracterizam a Lei Áurea como algo conservador e sem planejamento de inclusão, e que em apenas uma caneta seria impossível abolir o trabalho forçado e coercitivo já instaurado. É justamente nesse contexto de transformações históricas que o autor e a obra ganham destaque.

Monteiro Lobato era muito jovem quando a lei áurea foi aprovada. Nasceu em 1882 e tinha apenas seis anos. No entanto, viveu tempo suficiente para acompanhar os resquícios de um passado recente. O livro de contos intitulado de Negrinha foi publicado 32 anos após a abolição ampla da escravatura, ou seja, havia muitos antigos senhores de escravos naquele período, o que mostra uma tendência do autor em fazer uma crítica social por meio da produção literária. Embora o autor esteja longe de ser um defensor do pós-colonialismo, considerando que tal análise não existia em seu tempo, podemos observar que na narrativa de Lobato o colonizador é quase que como um predador. Em seu livro Urupês (1918) o colonizador é o fazendeiro, o coronel, o governo, a polícia, já o colonizado se apresenta na figura do Jeca Tatu, um miserável analfabeto camponês. De acordo com o texto Colonialidade do Poder e Classificação Social de Quijano  (2009, p. 110) essa definição é dada como dominadores e dominados:

Os dominados são os assalariados, as classes médias e os camponeses independentes. Na ‘periferia colonial’, os dominantes são os Capitalistas Tributários e/ou Associados Dependentes. Os dominados são escravos, servos, pequenos produtores mercantis independentes, assalariados, classes médias, camponeses.

A teoria pós-colonialista ou pós-colonial tem por objetivo analisar as consequências sociais, políticas, históricas e culturais dos países colonizados, podendo assim fazer uma releitura desse processo, que durante muito tempo exclui e marginalizou o pensamento do outro. O pós-colonial parte da ideia de explorar e construir epistemologias e paradigmas de análise sociocultural, buscando valorizar saberes não hegemônicos que provêm dos países colonizados.

A teoria pós-colonial é necessária, porque a forma que estudamos ou enxergamos a história está muito ligada ao pensamento eurocêntrico, fazendo com que os colonizados se sintam legatários de uma história mais importante, que seria a do dominador.

Podemos destacar como principais representantes dos estudos pós-coloniais Edward Said (1935-2003), autor da obra O Orientalismo (1978), que vai abordar a dominação cultural sobre os povos colonizados. Este debate é de extrema importância, porque é através dele que podemos tentar compreender a raiz da opressão em diferentes épocas. No Brasil colônia, a escravidão e o racismo estão intrinsecamente ligados a fase pré-capitalista.

O sociólogo Ramón Grosfoguel em seu artigo “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI” mostra que o racismo é um princípio organizador da economia política. Quando da conquista de Al Andaluz, no final do século XV, que culminou na destruição de grande parte da cultura muçulmana e judaica, sob o lema da pureza do sangue estava embasado num protorracismo, que levaria os vencedores a ter controle daquela região através do genocídio e do epistemicídio cultural, o que mostra que o racismo de cor não foi a primeira manifestação da história.

Ao contrário do que ateste o senso comum contemporâneo, o “racismo de cor” não foi o primeiro discurso racista. O “racismo religioso”  (“povos com religião” versus “povos sem religião” ou povos com “alma” versus “povos sem alma”) foi o primeiro elemento racista do “sistema-mundo patriarcal, eurocêntrico, cristão moderno e colonialista. (GROSFOGUEL, 2016, p.36)

A forma com que os europeus conseguiram implementar o trabalho coercitivo, atribuindo uma relação injusta e desigual e fazendo com que termos como raça e preconceito racial, oriundos da posição hegemônica de poder dos europeus é definida por Bonnicci (2009, p.262) como um forte elemento de dominação.

Esse tópico transformou-se numa justificativa para introduzir o regime escravocrata a partir de meados do século XVI, quando se formou a ideia de um mundo colonial habitado por gente “naturalmente”inferior, programada pela natureza para trabalhar braçalmente e servir ao homem europeu branco.

A teoria pós-colonial não só identifica esses fatores, por vezes é possível identificar em alguns críticos que acabam apontando o caminho para o fim da opressão e exploração, através da superação do regime econômico que vivemos.

Hoje, a luta contra a exploração/dominação implica, sem dúvida, em primeiro lugar, o engajamento na luta pela destruição da colonialidade do poder, não só para terminar com o racismo, mas pela sua condição de eixo articulador do padrão universal do capitalismo eurocêntrico. Essa luta é parte da destruição do poder capitalista, por ser hoje a trama viva de todas as formas históricas de exploração, dominação, discriminação, materiais e intersubjectivas. (QUIJANO, 2009, p. 113-114)

Com isso podemos considerar que o racismo é um fator econômico, tendo seu sentido inicial na história até os dias de hoje. Podemos perceber além dos elementos a crença e práticas culturais, o racismo funcionou e funciona para manter a exploração geral, principalmente dos indígenas e afrodescendentes.

2.  Dona Inácia e Negrinha: Os aspectos do colonizador e do colonizado

O conto Negrinha pertence ao período de transição da literatura chamado de Pré-Modernismo. Esse estilo literário, embora não seja propriamente uma estética, carrega características das escolas literárias que o antecedem, quais sejam o Realismo e o Naturalismo. O tema que leva a discussão das relações da sociedade, a crítica aos valores burgueses, e a extensa descrição na narrativa, que ocupa um grande espaço antes de chegar ao conflito, são exemplos da influência da estética realista.

Em Negrinha, Monteiro Lobato aborda um tema real da época do Brasil pós abolição, onde se criou o hábito de ter negros em casa como “agregados”. Isso porque junto com a abolição não foram criadas políticas de inclusão na escola ou de inserção ao mercado de trabalho.

A continuidade da escravidão se deu nessa forma de servidão dos negros libertos. No conto, essa relação entre as personagens dá visibilidade a violência a que estavam submetidos, como se a relação de posse não tivesse sido rompida. Ao se referir a Dona Inácia, Lobato (1967, p.06) deixa claro a insatisfação da antiga senhora de escravos: “o 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava, pois, Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Simples derivativo.”

A contradição entre as duas personagens reflete a oposição não só física como de classe. Enquanto Negrinha é descrita como pequena, negra, mirrada e assustada, dona Inácia é apresentada como grande, gorda, autoritária e violenta. O que pode parecer apenas uma oposição entre elas serve também para ilustrar a correlação de forças entre o colonizador e o colonizado. Essa correlação de forças é expressa por Memmi (1977, p.15) “a brutalidade da repressão não conhece limites e acaba por despertar no colonizador o ódio pelo colonizado. Ódio que está na raiz do capítulo mais negro da guerra còlonial, o capítulo da tortura”

A personagem de Dona Inácia também expressa uma falsa moral sobre o que seriam os valores cristãos do colonizador, mesmo expressando no texto suas virtudes religiosas.

— Ah! Monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida… Estou criando aquela pobre órfã, filha de Cesária; mas que trabalheira me dá!

— A caridade é a mais bela das virtudes! exclamou o padre.

— Sim, mas cansa… — Quem dá aos pobres, empresta a Deus! A virtuosa senhora suspirou piedosamente:

— Inda é o que vale… (LOBATO, 1977 p. 07)

A teoria pós-colonial critica essas contradições presentes na moral cristã do colonizador. Não é possível escamotear o racismo que é disseminado sobre os colonizados.

Ora, como justificar, então, o estatuto colonial, a não ser em nome de outra ideologia, o racismo, por exemplo, ideologia que põe o colonizador em contradição com ele mesmo? Sim, porque como conciliar sua posição de cristão e democrata na metrópole com a posição de racista na colônia? (MEMMI, 1977, p.12)

Durante todo o conto pode verificar uma oposição entre Negrinha e Dona Inácia, essa condição paradoxal é descrita pelo autor constantemente e principalmente na hora em que qualifica Dona Inácia que faz questão de intensificar a dor, opressão e sofrimento da menina, fazendo com que a órfã se torne uma espécie de bicho de estimação obrigado a ficar o tempo todo ao lado da cadeira de sua senhora. Dona Inácia por não admitir a abolição, o saudosismo que carrega pela escravidão e as práticas de tortura faz com que ela conserve junto de si a menina que é vítima a  todo tempo  dos “cascudos e croques” proferidos pela patroa.

O Ponto máximo da opressão física sofrida pela órfã ocorre durante uma refeição, a menina guarda um pedaço de carne para o final, uma criada nota a ação e toma dela, num rompante de resistência a menina ofende a criada com um xingamento e imediatamente é levada até Dona Inácia para que a órfã seja repreendida, a patroa por sua vez decide torturar a menina levando-a até cozinha onde coloca um ovo para ferver e em seguida obriga Negrinha  a colocá-lo  dentro da boca para que ela se queime, nesse momento podemos perceber a consciência de posse sobre o corpo da menina que nada mais é que um objeto para sua senhora.

Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, prática que era D. Inácia nesse castigo, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecer. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. (LOBATO, 1977 p.07)

O motivo pelo qual o narrador intensifica o sofrimento de sua personagem se torna necessário durante a trama porque num momento, mais especificamente num mês dezembro a vida da órfã passa por um processo de modificação que ocorre quando duas sobrinhas de Dona Inácia surgem para passar as férias. O que seria o contraponto de toda infelicidade da personagem depois de anos de é também onde  encontramos o clímax e o desfecho do conto.

As meninas sobrinhas de Dona Inácia são descritas como lindas, loiras e coradas e chegam a casa repleta de brinquedos, a órfã ao se deparar com uma das bonecas que abre e fecha os olhos tenta se aproximar considerando que aquele objeto era estranho a ela, pois o narrador deixa claro que a menina não sabia do que se tratava, intensificando a informação do narrador de que a personagem nunca tivera infância.

O inesperado ocorre e a senhora da casa deixa com que ela brinque com suas sobrinhas, o narrador descreve como dias de alegria e felicidade. Ao acabar as férias as meninas vão embora e a boneca também, automaticamente a Negrinha teria que  retornar a sua antiga condição, sendo que naquele mês de dezembro pela primeira vez na vida ela percebeu como  gente, pela primeira vez ela não era apenas a agregada cuja finalidade era a de aliviar as frustrações de Inácia por meio da violência. Podemos dizer que foi o único momento na narrativa em que ela pode se perceber como um ser humano.

O que seria uma espécie de revelação da humanidade ao perceber que não é apenas uma coisa, vai também gerar um conflito interno na personagem, pois ela não pode mais voltar aquela condição anterior em que não tinha consciência de sua objetificação, mas também não poderá viver aquela felicidade que se foi com a partida das meninas. Essa impossibilidade de voltar ao que era ou viver a felicidade que conhecera por um curto período de tempo, faz com que nossa personagem adoeça e definhar até morrer de tristeza.

Morreu na esteirinha rota, abandonada por todos, como um gato sem dono. Ninguém, entretanto, morreu jamais com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos… E bonecas e anjos rodamoinhos vão em torno dela, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça, abraçada, rodopiada. (LOBATO, 1977 p.11-12)

A transição para a morte da personagem é descrita de forma poética por Lobato mostrando que naquele momento a personagem tem reflexos de felicidade ao sonhar com um paraíso de bonecas. Depois da morte a personagem é atirada numa vala comum cuja única lembrança que deixa a Dona Inácia é da falta que sente da menina como seu objeto de aliviar o estresse.

Considerações finais

Monteiro Lobato constrói em Negrinha um texto com grande sensibilidade colocando-se a favor da órfã, ou seja, do oprimido. Vale lembrar que o autor é criticado por suas manifestações de cunho racista principalmente na obra O Sítio do Pica-pau Amarelo, ao associar a figura de uma de suas personagens a uma macaca e até mesmo o uso da expressão “negra de alma branca”.

Essas posturas na narrativa de Lobato são discutidas até hoje por trazer elementos da opressão sobre o negro. E é justamente esse mesmo autor que vai se posicionar denunciando a condição do ex-escravo na pós abolição em que o negro continuou na condição de subalterno em relação ao branco e denunciar a falsa moral cristã da sociedade, sendo assim, temos em Lobato um autor contraditório com pensamentos típicos de uma sociedade preconceituosa, mas que ao mesmo tempo conseguiu trazer uma crítica consciente sobre a opressão racial,

Este artigo procurou demonstrar como o instinto de dominação e imposição do colonizador, através da inferioridade da “raça” proveniente dos anos de exploração dos negros que foram escravizados, e que mesmo depois da abolição os resquícios de posse se ampliam dentro da ideia de superioridade, negrinha era uma criança livre, mas sua condição étnica de uma descendente de um continente colonizado e dominado pelos europeus era o suficiente para que a patroa colonizasse sua vida.

A obediência e resignação de Negrinha é fruto de anos de uma sociedade de opressão, sua subserviência é reflexo do único mundo que ela conhecia, onde Inácia imperava, a morte da órfã surge quando enfim ela consegue perceber que uma outra realidade poderia existir longe dos limites das leis draconianas de Dona inácia.

Referências

MENDONÇA,Joseli Maria Nunes. Legislação Emancipacionista, 1871 e 1885 In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 295-298.

SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio. Apresentação In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 15.

LOBATO, Monteiro. Negrinha. In:___Negrinha. São Paulo: Brasiliense, 1967. p. 0312.

QUIJANO,Anibal. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In:SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 110-114.

GROFOGUEL, Ramón. A strutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v.31, n.1, p.25-47, jan./ abr.2016

BONNICI, Thomas. Teoria e Crítica Pós-Colonialistas. In: BONICCI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (orgs.). Teoria Literária: Abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Editora Da Universidade de Maringá, 2009, p. 262.

MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado precedido pelo Retrato do colonizador. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1977. p. 12-15.