“VIRGENS DO BECO É SHOW”: PERFORMANCES DE UMA QUADRILHA HUMORÍSTICA EM SANTARÉM, PA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8280809


¹Andreza Cristina Moraes Viana
²Luciana Gonçalves de Carvalho


RESUMO

Este artigo é resultado de uma monografia da graduação que objetiva compreender as expressões e os sentidos cômicos nas performances de quadrilhas juninas categorizadas como “humorística”, em Santarém, Pará. Como unidades empíricas de análise, foram delimitadas as apresentações realizadas pela chamada As Virgens do Beco, as quais se destaca pela combinação de dança, teatro e humor que, em parte, se assemelha às quadrilhas convencionais, mas também se distingue ao direcionar parte de sua apresentação ao objetivo de provocar o riso no público. O foco do trabalho recai nos aspectos cômicos das performances, além de traçar um paralelo acerca da noção de sociabilidade entre público e plateia. Do ponto de vista teórico-metodológico, a pesquisa se alinha aos estudos de antropologia da performance na medida em que assume as apresentações da quadrilha como conjuntos de situações ritualizadas e dá ênfase às interações face a face nas apresentações observadas de acordo com princípios básicos da etnografia. Além de contar com a documentação visual produzida nas apresentações utilizadas como recurso importante nesta investigação. Com intuito de entender as dinâmicas sociais estabelecidas em contextos juninos e interpretar os conteúdos risíveis captados a partir da sua atuação, foi percebido durante as observações em campo que apesar da execução dos ensejos serem previamente gravadas, em sua maioria o momento das apresentações decorre de um improviso com a finalidade de causar o riso.

Palavras-chave: Quadrilhas humorísticas; Performance; Santarém/PA.

1. INTRODUÇÃO

O período junino na cidade de Santarém/ PA anualmente é marcado por festas que ganham as ruas e praças da cidade. Entre as principais atrações dos festejos estão as apresentações competitivas realizadas pelas quadrilhas. Dentro dessa modalidade de dança junina, que é amplamente disseminada nas diferentes regiões do Brasil, uma categoria se destaca: a quadrilha humorística. Chama-se de humorística a um tipo de quadrilha que mescla dança, teatro e humor, e que, em parte, se assemelha às quadrilhas convencionais, mas delas também se distingue ao direcionar parte de sua apresentação ao objetivo de provocar o riso no público.

Uma das quadrilhas humorísticas mais conhecidas na região é a chamada “As Virgens do Beco”. O grupo foi criado no ano de 2015 e é composto sobretudo, por pessoas LGBTQIA+, o que reforça a necessidade de atenção a questões relativas à sexualidade e ao gênero nessa quadrilha humorística que propõe a visibilidade homossexual e travesti em esferas públicas, em um contexto em que a diversidade tem sido pauta política. Suas apresentações estão entre as mais aguardadas nas competições juninas e suas preparações começam regularmente tão logo termine o feriado de carnaval. Desse modo, durante três meses “As Virgens do Beco” se preparam para levar ao público o melhor espetáculo junino.

A apresentação da quadrilha divide-se em duas partes, assim definidas para fins analíticos, embora, na prática, não haja fronteira clara entre elas. O primeiro momento abre o espetáculo com musicalidade e coreografia, este repertório junino dura cerca de seis minutos, dando destaque à elegância da dança e à mistura de cores presente na indumentária e nos adereços dos componentes, cuja caracterização parece ter fortes influências das quadrilhas nordestinas1. Já o momento cômico se constitui como uma série de esquetes em que os componentes, normalmente com movimentos exagerados, teatralizam cenas sobre determinados temas considerados risíveis.

Durante o espetáculo humorístico alguns personagens são recorrentes, brinca-se com a “loira burra”, “o (a) corno (a)”, “o pobre”, “o homem que sai do armário”, “musas de clubes de futebol” “musas de academia de Santarém”, “batalhas de funk”, “bichas que sensualizam homens da plateia”. Porém, cada performance é, em alguma medida, improvisada, graças à interação entre público e personagens, característica dos espetáculos de rua (CARVALHO, 1997). Apesar das falas dos esquetes serem pré-gravadas, em cada atuação o personagem tem liberdade de improvisar sobre o roteiro, de acordo com a boa recepção ou reação do público.

A categoria humorística de quadrilha reúne uma série de elementos risíveis que remetem a tradições cômicas de maior amplitude, conectando-se a expressões universais do riso popular, que privilegiam como objetos o corpo – e em especial, o baixo corporal –, o grotesco e o avesso da cultura “oficial” (BAKHTIN, 2013).

Neste contexto, as quadrilhas humorísticas suscitam indagações acerca do riso e do risível, que se apresentam como motivações desta pesquisa: Afinal, de que se ri? Entre várias faces do cômico nas manifestações culturais populares, nota-se que a temática da sexualidade se destaca nos esquetes desse tipo de dança junina. Aliás, é ela também que se manifesta no próprio nome do grupo cujas apresentações são tomadas como objeto empírico deste estudo: As Virgens do Beco.

Este trabalho é um breve apanhado da monografia do curso de antropologia que se alinhou aos estudos de performance no momento em que buscou compreender as dinâmicas sociais existentes nos festejos juninos, podendo ser entendidos como ensejo de aproximação entre atores e espectadores em situações ritualizadas que desencadeia diversos elementos performáticos, permitindo analisar as relações construídas dos sujeitos em âmbito social.

O trabalho de campo foi realizado antes e durante o período festivo dos anos de 2018 e 2019, envolvendo a experiência de observação participante de caráter etnográfico em ensaios e apresentações. Acompanhei espetáculos de rua e praça pública, registrando em vídeo as performances do grupo, além de realizar entrevistas semiestruturadas e conversas informais com os seus membros.

Busquei interpretar os sentidos cômicos e as relações existentes no universo da quadrilha. A partir disso, recorro ao que indica o sociólogo alemão Georg Simmel quando desenvolve a noção de sociabilidade. A situação urbana vivenciada favorece o estabelecimento de sociabilidades entre os sujeitos, criando a possibilidade de comunicação durante as apresentações, que de outro modo, não seria possível desenvolver esse tipo de interação.

Minha pesquisa se insere em um crescente campo de discussão sobre sexualidade e gênero em manifestações culturais populares e pretende contribuir teoricamente pela perspectiva da performance e do riso, uma vez que propõe uma análise de cunho etnográfico acerca das relações em ocasiões de festa, circulando por questões acerca de sexualidade satirizados no humor.

O objetivo geral do estudo é compreender as expressões e os sentidos do riso nas performances de quadrilhas humorísticas que, tal como As Virgens do Beco, se destacam pela mobilização de elementos risíveis além de dança e teatro. Assim, o foco deste estudo recai em perceber como o enredo da performance da quadrilha é composto nos espetáculos de rua e praça pública, analisando os conteúdos cômicos a partir das apresentações.

Dessa maneira, busco compreender as expressões e os sentidos do riso nas performances da quadrilha humorística, bem como perceber a forma que o enredo da performance d’As Virgens do beco é composto nos espetáculos de rua e praça pública, analisando os conteúdos cômicos a partir das apresentações.

2. A MARCA DO GROTESCO NOS ESPETÁCULOS D’AS VIRGENS DO BECO

A inserção nesse campo de quadrilhas juninas inicia-se no ano de 2018, quando acompanhei com curiosidade antropológica as apresentações de quadrilhas humorísticas em Santarém, em especifico d’As Virgens do Beco. Em um primeiro exercício, gravei em vídeo e posteriormente descrevi textualmente as performances executadas por esse grupo nas ruas e praças públicas de Santarém. Nas cenas, verifiquei o que me chamava atenção, do ponto de vista antropológico.

Deste modo, as características mais elementares das quadrilhas humorísticas, das quais As Virgens do Beco são um bom exemplo, constituem-nas como expressões contemporâneas de tradições cômicas populares que remontam à praça pública medieval abordada por Mikhail Bakhtin no livro intitulado A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, no qual apoio este estudo.

De acordo com Bakhtin, as festas de rua instituem ambientes de sociabilidades e interações pessoais singulares, essenciais à tradição cômica da cultura popular. Descrevendo a praça pública medieval a partir das obras de François Rabelais, o autor pontua que nas festas carnavalescas as pessoas se despiam de todas as relações hierárquicas e regras, subordinando-as a atos e ritos cômicos, de modo que o riso se fazia uma constante nesse ambiente carnavalizado, invertido.

Do mesmo modo acontece nas manifestações juninas contemporâneas, como estas em que quadrilhas humorísticas se apresentam em Santarém, percebe-se uma dimensão de continuidade em relação às práticas e expressões de subversão dos poderes oficialmente instituídos, por meio de elementos paródicos e grotescos.

A apresentação a qual me refiro divide-se em dois momentos de espetáculo. A primeira é a parte coreografada/dançada com músicas juninas, nesse momento abre-se o espetáculo, com duração de 6 minutos. Sob influência do modelo de apresentação das quadrilhas estilizadas, a categoria de quadrilha humorística também adota um tema para cada apresentação, com roteiro, personagens definidos e tudo a que um espetáculo cênico tem direito. Assim como nas estilizadas, na comissão de frente os casais em destaques encarnado pelo casal de noivos, rei e rainha apresentam-se como item importante na composição da quadrilha, pois além de saber executar a coreografia e ter um figurino impecável, é necessário demonstrar simpatia e animação durante todo o espetáculo.

Figura 1: Os destaques da comissão de frente, na sequência o casal de noivos, rainha e rei.

Fonte: Pedro Alcântara (2019)

Figura 2: Apresentação da primeira parte do espetáculo.

Fonte: Pedro Alcântara (2019)

O segundo momento de espetáculo, trato como humorística, na medida em que se compõem de entradas curtas em que os membros da quadrilha dramatizam cenas para fazer rir, é por meio dos esquetes que teatralizam cenas com excessos e exageros nos movimentos. Todos os anos a quadrilha, no momento cômico, tenta inovar no humor, entretanto seguem um mesmo preceito de satirizar a “loira burra”, “o (a) corno (a)”, “o pobre”, “saindo do armário”. As curtas cenas interpretadas se dispõem de gestos e atuação em grande medida improvisadas, principalmente se tratando de interação com o público. Apesar das falas serem gravadas, as ações não necessariamente seguem um roteiro, isso vai de acordo com a boa recepção ou reação do público.

No tema do sujeito que “sai do armário”, presente em vários esquetes dessa categoria humorística, geralmente se apresentam personagens masculinos com roupas chamativas para ajustar-se às expectativas geradas sobre a figura feminilizada na cena. Dessa maneira, o conjunto de atos e figurino determina tais fatores de “virar” ou “transvirar” na performance, e isto, de certa forma, envereda para o viés alegórico.

Um exemplo que se alinha ao contexto rabelaisiano trata-se de eleição de rainhas e reis “para rir”, no ambiente das festas juninas atuais dispomos de musas de academia ou mulheres que marcaram época “para rir”, uma vez que são personagens travestidas representando de forma grotesca a figura feminina. Seguindo Bakhtin (1993, p. 6), a margem entre a arte e a vida, na verdade, “é a própria vida apresentada com os elementos característicos da representação.”

Para demonstrar esse universo alegórico, recorro à descrição de uma dessas esquetes dos espetáculos. Numa sequência de atuação cômica, a eleição de musas de academia é um elemento comum entre as quadrilhas humorísticas de Santarém que traduz o sentido rabelaisiano do qual me refiro:

Cena

Um aspecto comum entre as quadrilhas humorísticas é a representação de musas de clubes brasileiros de futebol. Aqui, a cena compõe-se de um apresentador que exibe um desfile das “Musas do Brasileirão”2, ocasião em que as meninas representadas são sujeitos que cumprem papéis femininos usando, cada qual, a camisa de times como Palmeiras, Corinthians, Vasco e Flamengo. As musas entram em cena ao som do hino de seu respectivo time. Brinca-se com a posição que cada uma ocupa nas séries, além dos nomes dados a elas dentre eles: “Maria Mijona”, “Rogéria Furação”, “Vice Campeã” e a “Gostosa do Flamengo” – única representada por uma mulher cis, que, de certa maneira, arranca reações do público masculino por ser a “gostosa”. Em meio a aplausos, simula-se uma confusão em que a verdadeira musa do Flamengo aparece representada por uma “bicha” gorda, travestida de mulher, com mínimas roupas do time. Assim, a reação não poderia ser diferente: risos e gritaria. Vale destacar ainda as provocações dirigidas a grupos rivais, que esta cena estimula. Por exemplo, ao satirizar a musa do clube Vasco da Gama, há uma tentativa de criar analogia entre a posição do time, de estar em segundo lugar nos campeonatos, e a posição da quadrilha concorrente.3 O personagem que simulava o apresentador dizia: “Vem aí a musa do Vasco da Gama, ela que é igual a concorrência. Não deixa de ser vice-campeão!” A provocação aberta também faz parte da disputa nesta categoria e, nesse caso, as piadas de desafio ocupam lugar preferencial. Ademais, o comportamento coletivo adotado pelo grupo é de evitar pronunciar o nome das quadrilhas humorísticas rivais.

Novos recortes, símbolos e dinâmicas estão sendo incorporados no contexto junino fazendo com que as quadrilhas acompanhem os avanços e exigências da pós-modernidade. Assim, no cenário em que as Virgens estão inseridas enquanto quadrilha lgbtqia+ trazendo em seu espetáculo informações regionais, apresenta-se à comunidade um novo modelo de se fazer São João. Faz parte do conteúdo cômico abdicar-se de determinadas estruturas e tabus, recorrendo a satirizar a mulher traída, a bicha oferecida, danças esdrúxulas4, musas “gostosas” e “aquele que sai do armário” na medida em que são mecanismos recorrentes neste momento, mesmo que a intenção seja sempre a renovação dos conteúdos.

A seguir, através do recurso de imagens procuro, de maneira breve, representar a interação que ocorre entre personagens e plateia com o objetivo de demonstrar a forma como esse contato face a face é estabelecido no show. Descrevo os conteúdos risíveis utilizados sob uma ótica alegórica e grotesca. Brinca-se com o baixo corporal, a metaforização nos sentidos de músicas populares, com movimentos esdrúxulos e comportamento que cause a reação do riso o público.

Figura 3: Traz-se nessa cena da “bicha oferecida”. No momento em que ela entra na quadra, busca-se imediatamente alguém da plateia para lhe fazer parna dramatização.

Fonte: Pedro Alcântara (2019)

Figura 4: “Duas bichas sensualizam com homens da plateia”, sugerindo que eles são bancados pelas bichas. Subir na mesa, beijar, sentar no colo são recursos utilizados pelos personagens.

Fonte: Pedro Alcântara (2019)

Figura 5: Passos de dança esdrúxulos e feições expressivas marcam um estado que dentro do show é permitido.

Fonte: Pedro Alcântara (2019)

Este momento de humor encerra-se dezesseis minutos após o início da apresentação. Ao seu término, o grupo responsável pela dança retorna ao centro do espaço cênico para finalizar a coreografia e agradecer ao público pela atenção e participação.

Associo o momento de término de apresentação e, consequentemente, saída do grupo da quadra junina com o desfile de escolas de samba, em que saem rapidamente da quadra retirando todos os itens utilizados durante o espetáculo. A autora Cavalcanti (2000) descrevendo acerca da disputa dos Bois de Parintins assimila também tal evento ao desfile das escolas de samba cariocas, bem como percebo o campo das quadrilhas dentro das competições. Dessa forma, conforme a autora:

“São ambas festas espetaculares e massivas, organizadas em torno da disputa num campeonato anual. São, contudo, muito distintas em sua estrutura e em seu sentido simbólico (…) O desfile é um cortejo: uma escola de samba ‘passa’ em fluxo linear e contínuo diante do espectador, que participa livremente brincando ou apreciando. É um campeonato aberto, como convém a um grande centro urbano: há diferentes rankings, entre os quais ocorrem anualmente subidas e descidas.” (p. 1037).

Eventos do período junino que ocorrem em ruas e praças públicas, querendo ou não, remetem a uma natureza carnavalesca, no que se refere a assumir um embaraço na estrutura. Afinal, é dentro dos espetáculos que hierarquias, regras e tabus se dissolvem e quem está na plateia participa do momento festivo sem se importar com as relações pré determinadas no âmbito social.

Enfatizando a natureza complexa do riso carnavalesco, Bakhtin (1993, p. 10) sugere que o riso é sobretudo festivo:

“Não é, portanto, uma relação individual diante de um ou outro fato “cômico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente à própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é “geral”; em segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente.”

Dessa maneira, percebo que o panorama que Bakthin propicia acerca do riso e do cômico a partir da obra rabelaisiana em muitos aspectos ampara este estudo, no sentido de exprimir tal realidade representada de forma grotesca que desvia daquilo que já é condicionante dentro das normas comuns. Durante os esquetes de humor geralmente ápice do riso se dá quando há interação entre atores e plateia.

Colocar corpos em evidência através de situações ridículas ou vexatórias com intenção de causar o riso ou a zombaria por parte dos demais resulta na interpretação dos aspectos humanos que podem ser percebidos como essenciais para a produção da comicidade. Pois, “o exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso são os sinais característicos mais marcantes do estilo grotesco” (BAKHTIN, 1993, p. 265).

Diante do exposto, friso que a interação dos membros da quadrilha com o público, na parte humorística, é primordial. Por isso, eles procuram criar uma relação amistosa com pessoas da plateia, no momento do show, e, em geral, são bem recebidos. As piadas e interações íntimas são um meio de envolver o público de modo que o desejo de provocar risos seja alcançado. Atitudes como abraçar, dançar, beijar, sentar-se no colo, enfatizar as partes íntimas corporais, são recursos importantes nesse sentido, e são articuladas como se fizessem parte do enredo.

3. FACE A FACE: ESTABELECENDO A SOCIABILIDADE

Erving Goffman (1996) propõe a abordagem interacionista para interpretar a vida social a partir da interação em que o sujeito, através da performance, transmite informações. Assim como Schechner (2012)5, o autor se baseia em elementos teatrais para argumentar os modos que o indivíduo assume nas interações face a face. Para Goffman (1996, p. 17):

“Esta forma de controle sobre o papel do indivíduo restabelece a simetria do processo de comunicação e monta o palco para um tipo de jogo de informação, um ciclo potencialmente infinito de encobrimento, descobrimento, revelações falsas e redescobertas, (…) os outros podem perceber que o indivíduo está manipulando o aspecto supostamente espontâneo de seu comportamento e procurar no próprio ato da manipulação alguma variação da conduta que o indivíduo não tenha conseguido controlar.”

O conceito de sociabilidade apresentado por Georg Simmel (1983) fornece elementos para refletir acerca do estabelecimento de uma rede de comunicação. É válido frisar que o autor entende a sociabilidade como uma forma lúdica de sociação6 produzida por sujeitos que constituem toda uma dinâmica durante o espetáculo cênico. Assim, a sociabilidade aqui cria um mundo sociológico ideal, em que o contato do ator/dançarino está intimamente ligado a resposta (interação) dos outros. A relação entre ator e espectador, portanto, é fundamental para se compreender os comportamentos forjados nas ocasiões de interação.

Simmel é considerado junto com Max Weber um dos fundadores da sociologia alemã. Influenciado pela corrente teórica que considera a ação social como constituinte da sociedade, tem como ferramenta o método compreensivo que consiste em entender o sentido por trás das ações do indivíduo e o que motiva agir de determinada forma.

Assim, compreende-se que a interação é um processo social básico, ou seja, a sociedade é constituída pelas diversas maneiras de interação. O processo de interação pode se configurar como uma noção de “sociedade”, pois segundo Simmel, não existe sociedade em si, mas o resultado da pluralidade e variedade das formas da interação “onde quer que vários indivíduos entram em interação” (SIMMEL, 1983, p.59). Assim, o autor pretende dizer que a “Sociedade” nada mais é que uma denominação para indicar vários indivíduos ligados pela interação.

Como descrito acima, a sociação é formada pelos interesses dos indivíduos e pela forma que o conteúdo assume. Entretanto, no sentido weberiano, formas e conteúdo são inseparáveis. As formas funcionam aqui como “tipos ideais”. Simmel seguindo a mesma lógica, apresenta a sociabilidade como “exemplo de sociologia pura ou formal”, “estar juntos”, faz parte da forma da interação, o que não isenta de ganhar autonomia. Como forma pura, a sociabilidade não tem conteúdo e por isso é a forma lúdica da sociação, justamente porque depende inteiramente das personalidades entre dos indivíduos (SIMMEL, 1983, p.169).

Tanto o sociólogo Georg Simmel quanto o antropólogo Erving Goffman estão preocupados em analisar a relação entre sociedade e indivíduo. Simmel diz que a matéria da sociação é a própria relação constituída na ação recíproca. Igualmente, Goffman coloca norma e reprodução como mundos que reproduzem a vida cotidiana. A consequência disso é justamente a sociabilidade e interação do momento entre os sujeitos.

A partir de referências como estas pude analisar a atuação do sujeito diante de interações sociais influenciadas pelos comportamentos adotados. É através do contato face a face que se cria relações intimistas, num caráter brincante, é no momento em que os personagens entram em cena e iniciam as buscas do sujeito alvo da brincadeira que acontece a interação necessária para a execução do esquete. Contudo, a boa receptividade que está contida nos olhares e expressões do sujeito que está na plateia. A relação entre ator e espectador, portanto, é fundamental para se compreender os comportamentos forjados nas ocasiões de interação

4. NA ESFERA DA PERFORMANCE

A vertente da antropologia da performance manifesta-se no campo teórico da pesquisa no momento em que analiso as relações entre atores e plateia durantes os espetáculos, apoiando o estudo a partir do encontro entre Victor Turner, com seu aporte sobre teatro, e Richard Schechner, acerca do drama e o ritual. Conforme Rose Satiko Gitirana Hikiji (2005, p. 159), ao descrever uma etnografia se tratando de performance, afirma que:

“Schechner, parceiro de Turner em trabalhos sobre a antropologia da performance, defende sua diferença com relação ao autor do conceito de drama social. Turner localizaria o drama essencial no conflito e na resolução desse. Schechner (1988) localiza-o na “transformação”: em como as pessoas usam o teatro como um meio de experimentar, atuar e sancionar mudanças. As transformações via performance se dão tanto nos performers (que rearranjam seu corpo e mente) como no público. Nesse, as mudanças podem ser temporárias (e aqui se está falando da performance como entretenimento) ou permanentes (no caso do ritual).”

De um lado, Richard Schechner vem de uma tradição do teatro, e depois envereda para a antropologia, a partir da observação do outro. De outro, Victor Turner, antropólogo, é atraído pelo drama e, quando começa a desenvolver seus trabalhos de campo, capta uma espécie de teatralidade própria do ser humano. Nesse sentido, o diálogo entre ritual e teatro, com base nesses autores, é fundamental para perceber a ação humana como performance. Pois, compreender as representações dos indivíduos em contexto que entrelaça dança e humor em festejos juninos possibilita uma análise das atuações e, dessa forma, fornece um entendimento de como são forjadas as interações.

O conceito de ritual apresentado por Turner está ligado ao conceito de performance na medida em que se aplica a eventos performáticos em espaços públicos, fornecendo elementos para refletir as ações efêmeras durante os espetáculos de rua e praças da quadrilha. Schechner (2012, p. 49) afirma que:

“Performances consistem de comportamentos duplamente exercidos, codificados e transmissíveis. Esse comportamento duplamente exercido é gerado através da interação entre o jogo e o ritual. De fato, uma definição de performance pode ser: comportamento ritualizado condicionado/permeado pelo jogo.”

Turner (1974) ao se apropriar do termo liminar, cunhado por Van Gennep (2011), para definir o conceito de liminaridade, compreende o momento de margem que os atores vivenciam ao se despir de papeis sociais paradigmáticos. Esse aspecto torna-se fundamental para a definição de ritual apresentada por Turner, na medida em que a representação simbólica – por meio dos movimentos, expressões, trejeitos e objetos – estabelece um momento que foge da realidade cotidiana.

Assim, a quadrilha, no cenário humorístico, desenvolve um momento liminar, colocando em jogo uma negação da própria estrutura. O ritual acontece em um momento que é limiar. Para Turner (TURNER, 1974, p.117):

“Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificação que normalmente determina a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial.”

É justamente neste momento que tanto os indivíduos que interpretam personagens, quanto a plateia, suscitam um sentimento de igualdade, estando portanto, despidos, por alguns instantes do show, de seus paradigmas sociais. Quer dizer, no momento de apresentação, não existem as separações de poder, entre eles, que comumente são pré estabelecidas no âmbito social.

Estudos contemporâneos sobre quadrilhas juninas têm fomentado discussões acerca do protagonismo da população lgbtqia+ no período junino, problematizando as posições ocupadas por “elxs” nos festejos juninos. Rafael Noleto (2016), por exemplo, se atém à análise das festas juninas de Belém, enfocando os “dilemas” morais, sexuais e de gênero nos concursos de “Miss Caipira Gay” realizados nas periferias da capital paraense. O autor se dedica, principalmente, a problematizar as convenções de sexualidade sob um contexto ritual denominado “festa”.

Ao mesmo tempo que nos festejos juninos se cria uma divisão binária de gênero, resultando, consequentemente, no pressuposto de uma heterossexualidade presente na coreografia, os sujeitos ocupam certa centralidade nos eventos públicos. Nesse sentido, através da apreciação da dança e do teatro percebe-se a dinâmica que sistematiza os gêneros e exprime sexualidades, são os movimentos corporais e expressões que caracterizam a coreografia e o contexto que se deseja apresentar. Assim, os corpos dos sujeitos que vêm à frente mostrar ao espetáculo, para além do gênero, demonstram seu lugar social.

“A sexualidade é a própria substância da dança. Os em dehors, as elevações e aberturas do balé – sem falar nas dobras do tutu da bailarina, que lembram vulvas – são sexuais. E o balé está longe de ser excepcional em relação a outras danças. As ligações entre o sexo, o prazer visual, o movimento do corpo e a representação artística são óbvias (SCHECHNER, 2013: 47).”

As performances de subversão de sujeitos subvertidos, no sentido do binarismo, se fazem presentes e fazem sentir nesse contexto reinventado, de modo a alterar os sentidos da tradição. Percebem-se como sujeitos capazes de estar presentes em espaços públicos nas festas juninas, estando sob olhares de um caráter daquilo que é considerado tradicional em manifestações populares. Aqui imitam-se papéis fixos, mas apenas imita-se.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interação entre ator e plateia são características dos espetáculos de rua (CARVALHO, 1997). Os componentes do grupo não se limitam ao espaço demarcado para as apresentações e, em diversos momentos, os atores, encarnados em um personagem, saem de quadra junina para interagir com a plateia. Nessa interação, vale extrapolar os elementos cômicos que contribuem para o riso, delimitando as significações em ocasiões sociais. 

Volto ao questionamento descrito na introdução, “Afinal, de que se ri?”. As motivações do riso nos esquetes cômicos circulam no modo grotesco de se utilizar da temática da sexualidade e do corpo dos atores. Ri-se de uma representação do baixo corporal em que alusões aos órgãos sexuais são frequentemente evidenciadas. Portanto, a dinâmica dada na interação de atores e plateia tende ao exagero e ao hiperbolismo.

É por meio de expressões, movimentos, roupas, comportamentos e falas que se reinventa um mundo risível, no qual sobressaem, portanto, formas subversivas de criar humor e fazer o público rir. As performances adotadas durante as apresentações oscilam do elegante, com a parte coreografada, ao esdrúxulo, quando inicia o momento cômico. Assim, produzem performances quadrilheiras que orientam a prática ritual das festas juninas e, concomitantemente, mostram-se como uma quebra no cotidiano da cidade uma vez que trazem em seus conteúdos aspectos do exagero e do alegórico que somente no show é estimado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TURNER, V. “Liminalidade e Communitas” in. O Processo Ritual. Petrópolis: Vozes. Pp. 116-159, 1974.

¹Readaptando os elementos de quadrilhas juninas tradicionais ou matuta, as grandes festas do Nordeste no período junino inserem em seus espetáculos o aparato estético. A música, a coreografia e os trajes demonstram o contemporâneo em detrimento daquilo que representava a tradição das festas juninas interioranas: o camponês. Portanto o estético-coreográfico é o que provoca a espetacularização dessa manifestação. O autor Menezes Neto (2008) descreve acerca dessas mudanças ao longo dos anos no campo das quadrilhas juninas, referindo-se ao processo que as chamadas estilizadas/contemporâneas tomaram lugar e apontando como essas próprias mudanças fazem parte da tradição.

²Refere-se a um evento realizado pelo Globo Esporte, vinculado a transmissora Rede Globo de televisão, desde 2006, em que cada um dos vinte clubes de futebol da Série A do Campeonato Brasileiro elege uma musa (os critérios variam de cada time). Após a seleção das meninas, essas disputam o título de “Representante da Beleza Feminina nos Estádios Brasileiros”.

3O termo “concorrente” é utilizado pelos integrantes das quadrilhas para não citar o devido nome do opositor, visto que há rivalidade e provocações entre os grupos brincantes.

4O termo “esdrúxulo” contém um sentido figurado de uma característica daquilo que se encontra fora das regras comuns, causando admiração ou espanto.

5Para Richard Schechner (2012) as performances consistem de comportamentos duplamente exercidos, codificados e transmissíveis. Esse comportamento exercido, a qual me refiro, é gerado através da interação entre o jogo e o ritual. Assim, uma definição de performance pode ser: comportamento ritualizado condicionado/permeado pelo jogo (p. 49).

6A sociação é constituída pelos impulsos, motivos e interesses dos indivíduos. Além das formas que esses conteúdos assumem (SIMMEL, 1983).


¹Mestranda no PPGSA/UFPA)
Amoraesviana@alexandre

²Prof.ª. Dra. (PPGSA/UFPA)
Luciana.gdcarvalho@gmail.com