REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.8161833
Thalles Ferreira Costa
Resumo
As mulheres brasileiras são intensamente afetadas pela pobreza, pelos conflitos e pelas consequências da crescente desigualdade social; são as primeiras a serem vítimas das violências físicas, sexistas e sexuais. O presente artigo objetiva examinar como elas, ao longo da história reagiram a essas violências. Isso porque o conhecimento histórico possibilita traçar estratégias de resistência às formas de violência de gênero. Dessa forma, dividiu-se o artigo em três momentos, nos quais o primeiro almeja traçar as características do patriarcado, em especial no Brasil, a partir de um panorama histórico-cultural; o segundo, busca examinar a condição das mulheres no Brasil desde a chegada dos europeus, passando pelos “anos dourados”; conhecidos por uma década de chuva de balas sobre as mesmas e culminando com a criação, em 1985, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, por meio da Lei nº 7.353; por fim, o terceiro momento cuida de esquadrinhar as principais normatizações internas de enfrentamento à violência de gênero. O problema de pesquisa questiona em que medida o conhecimento da história das mulheres no Brasil pode conduzir ao rompimento da discriminação de gênero e, sobretudo, conclamar os homens a participarem do presente debate, objetivando-se a erradicação da violência. A hipótese é de que o conhecimento da história feminina, bem como do aparato legal interno de proteção; tanto no aspecto punitivo e, principalmente, preventivo, pode nos ajudar a resistir ao machismo estrutural que gera números alarmantes de violência de gênero. A pesquisa aqui exposta é histórica, empregando-se o método hipotético-dedutivo, mediante técnica de pesquisa bibliográfica e exploratória.
Palavras-chave: História. Mulheres. Patriarcado. Violência. Marcos legais.
Abstract
Brazilian women are intensely affected by poverty, conflicts and the consequences of growing social inequality; they are the first to be victims of physical, sexist and sexual violence. This article aims to examine how Brazilian women, throughout history, have reacted to these types of violence. This is because the knowledge of history makes it possible to design strategies to resist forms of gender violence. Thus, the article was divided into three moments, in which the first aims to outline the characteristics of patriarchy, especially in Brazil, from a historical-cultural panorama; the second seeks to examine the condition of women in Brazil since the arrival of the Europeans, passing through the “golden years”; known for a decade of rain of bullets on women and culminating in the creation, in 1985, of the National Council for Women’s Rights, through Law No. 7.353; finally, the third phase takes care of scrutinizing the main internal norms for fighting gender violence. The research problem questions the extent to which knowledge of women’s history in Brazil can lead to the breaking of discrimination against women and, above all, call on men to participate in this debate, making violence less and less. The hypothesis is that the knowledge of women’s history, as well as the internal legal apparatus of protection; both in the punitive aspect and, mainly, preventive, it can help us to resist the structural machismo that generates alarming numbers of violence against women. The research exposed here is historical, using the hypothetical-deductive method, through bibliographical and exploratory research technique.
Keywords: History. Women. Patriarchy. Violence. Cool milestones.
1. Considerações Iniciais
Em 21 de fevereiro de 2020, na capital do Estado do Acre, Maria, uma garota de 17 anos, foi morta e degolada pelo seu companheiro. A cabeça de Maria foi ofertada à própria mãe. O feminicida confessou o crime, detalhando que a esganou e a degolou. Em momento posterior, desfilou com a cabeça de Maria nas mãos pelas ruas da vila. Há relatos, ainda, que o feminicida chegou a arremessar a cabeça de Maria sobre o corpo de um conhecido da comunidade.
Em 2018, também no Estado do Acre, fez-se divulgar vídeo no qual uma jovem, de 19 anos, prostrada, recebia golpes de terçados e de facadas de carrascos encapuzados, enquanto gritava e clamava por misericórdia. A ação criminosa só acabou quando a cabeça dela foi arrancada. A motivação, segundo os algozes, foi a traição feminina, representada pela infidelidade aos demais membros de uma determinada facção criminosa.
A justificativa histórica a esses atos de violência remete-se aos modelos de patriarcalismo machista. Todavia, ao longo da história brasileira, mulheres de todas as condições sociais resistiram à violência, reinventaram-se e apostaram em comportamentos de resistência.
Nesse contexto, o artigo foi construído a partir da seguinte pergunta: como as mulheres, ao longo da história brasileira, reagiram à violência transcultural que as persegue? A história nos possibilita compreender como, a despeito da dominação masculina, o seu conhecimento descortina os desejos de autonomia e igualdade. Compreender a história é fundamental, sobretudo para a inserção de homens no presente debate, inclusive por meio da educação, visando tornar a violência cada vez menor.
Como objetivo geral, a pesquisa busca resgatar a história de resistência das mulheres à violência no Brasil até a inserção de direitos na Constituição Federal de 1988. Para dar concretude ao objetivo geral, os objetivos específicos da pesquisa, são dispostos em três seções: a) traçar as características do patriarcado, em especial no Brasil, a partir de um panorama histórico-cultural; b) examinar a condição das mulheres no Brasil desde a chegada dos europeus, passando pelos “anos dourados”; conhecidos por uma década de chuva de balas sobre as mulheres e culminando com a criação, em 1985, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, por meio da Lei nº 7.353; c) apresentar as principais normatizações internas de enfrentamento à violência de gênero.
A pesquisa aqui exposta é histórica, empregando-se o método hipotético-dedutivo, mediante técnica de pesquisa bibliográfica e exploratória.
2. A história do patriarcado brasileiro
O desafio persiste. Histórias reais como as citadas acima são frequentes no Brasil. De acordo com o Atlas da Violência 2021[1], apesar de o Brasil ter apresentado uma redução de 18,4% nas mortes de mulheres entre 2009 e 2019, em 14 das 27 Unidades Federativas a violência letal contra mulheres aumentou. Os aumentos se deram nos estados do Acre (69,5%), do Rio Grande do Norte (54,9%), do Ceará (51,5%) e do Amazonas (51,4%).
Ao nos deparamos com os números da violência contra mulheres somos tomados por sentimentos de perplexidade e revolta. É que o gesto sempre se repete. O punho erguido com força e o golpe no corpo “invisível”, domesticado e, sobretudo, submisso-dominado. Historicamente, explica-se a violência contra as mulheres utilizando-se o conceito-território intitulado patriarcado.
Segundo Jablonka (2021, p. 98) o patriarcado é o movimento em que o masculino representa tanto o superior e universal, em proveito de uma maioria de homens e de uma minoria de mulheres. Segundo o autor, “é o sexismo institucionalizado na forma de prestígio e transcendência; sua cultura é a masculinidade de dominação (ou masculinidade patriarcal)”.
Saffioti (2015) ao traçar o conceito de patriarcado, recorre à sua vertente sexual. A incursão da autora é muito importante para que possamos compreender as características do patriarcado brasileiro, porquanto o mesmo foi marcado por uma constante sujeição sexual das mulheres ao poder masculino. A autora mostra o caráter masculino do que conhecemos como contrato social. Ela diz que se trata de um contrato entre homens, cujo objeto são as mulheres. É que, no seio desse contrato, as desigualdades sexuais são convertidas em diferenças políticas, passando a se apresentar como liberdade ou sujeição. A liberdade do homem e a sujeição sexual da mulher.
O patriarcado também diz respeito a uma organização social em que a descendência é patrilinear e a autoridade do chefe de família é venerada e incontestável. O patriarcado perpassa todas as culturas do mundo e baseia-se no fato de que os homens possuem uma tarefa peculiar: alimentar e proteger a família. Por outro lado, a mulher deve organizar a casa e cuidar dos filhos.
Ao falar sobre o contrato sexual que estabelece o patriarcado moderno e a dominação masculina sobre as mulheres, Pateman (1993, p. 16-17) afirma que o contrato social original é um pacto sexual-social, mas a história do contrato sexual tem sido omitida/sufocada. Além da liberdade está em jogo “a dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas”. Portanto, o contrato social é uma história de liberdade e o contrato sexual é uma história de sujeição, sendo que o contrato original cria ambas: a liberdade e a dominação. Nas palavras da autora:
[…] O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é sexual no sentido de patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres -, e também sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático dos homens aos corpos das mulheres. O contrato original cria o que chamarei, seguindo Adrienne Rich, de “lei do direito sexual masculino”. O contrato está longe de se contrapor ao patriarcado; ele é o meio pelo qual se constitui o patriarcado moderno (PATEMAN, 1993, p. 17).
Pateman (1993, p. 18) pretende deixar claro que o contrato sexual na sociedade patriarcal faz parte do contrato original, e ignorá-lo seria ignorar metade do contrato original. A sociedade civil patriarcal está dividida em duas esferas, a pública e a privada, mas só se presta atenção a uma delas. “A história do contrato social é tratada como um relato da constituição da esfera pública da liberdade civil. A outra esfera, a privada, não é encarada como sendo politicamente relevante.” Como se propagou, erroneamente, a ideia de que o contrato social é algo distinto do sexual, este último se restringiria à esfera privada, razão pela qual o patriarcado não diria respeito ao espaço público, não tendo para ele nenhuma relevância. Para contra-argumentar este raciocínio equivocado, Pateman (1993, p. 18-19) aduz que,
ao contrário, o direito patriarcal propaga-se por toda a sociedade civil. O contrato de trabalho e o que chamarei de contrato de prostituição, ambos integrantes do mercado capitalista público, sustentam o direito dos homens tão firmemente quanto o contrato matrimonial. As duas esferas da sociedade civil são separáveis e inseparáveis ao mesmo tempo. O domínio público não pode ser totalmente compreendido sem a esfera privada e, do mesmo modo, o sentido do contrato original é desvirtuado sem as duas metades interdependentes da história. A liberdade civil depende do direito patriarcal (PATEMAN, 1993, p. 18-19).
As estruturas patriarcais contaminam toda a sociedade, não estando adstrita ao espaço privado, mas também impregnam o Estado. A divisão social em duas esferas serve apenas para fins analíticos, todavia, para ser possível a compreensão do todo social, são inseparáveis. O contrato original possui um caráter masculino, que se caracteriza como um contrato entre homens, o qual possui como objeto as mulheres, em que as diferenças sexuais são convertidas em diferenças políticas, de modo que a uma parte é garantido o direito de liberdade, e à outra, o dever de sujeição, sendo o patriarcado daí decorrente uma forma de expressão do poder político, razão pela qual devem ser analisados conjuntamente (PATEMAN, 1993).
Ao analisar o patriarcado como um sistema político, que como tal se estende às famílias, às relações trabalhistas, sexuais e a outras esferas, passou a ser possível enxergar até onde se estendia o controle e domínio sobre as mulheres, popularizando-se a ideia de que o pessoal é político. A partir de então, as mulheres passaram a perceber que aquilo que pensavam ser problemas individuais eram na verdade experiências comuns a todas, resultado de um sistema opressor (GARCIA, 2015).
Com a afirmação o pessoal é político, pretende-se dizer que o que acontece na relação entre os sexos na vida pessoal não é imune à dinâmica de poder e “que nem o domínio da vida doméstica, pessoal, nem aquele da vida não-doméstica, econômica e política, podem ser interpretados isolados um do outro”. Na teoria política a vida familiar é pressuposta e não discutida, tendo sido encargo do feminismo problematizar as relações de poder nas famílias, como se vê a seguir:
Ainda que nem sempre explicitado, “o pessoal é político” na verdade tornou-se a afirmação que sustentou o que a maioria das pensadoras feministas estava dizendo. Feministas de diferentes tendências políticas, e em uma variedade de disciplinas, revelaram e analisaram as conexões múltiplas entre os papéis domésticos das mulheres e a desigualdade e segregação a que estão submetidas nos ambientes de trabalho, e a conexão entre sua socialização em famílias generificadas e os aspectos psicológicos de sua subordinação. Desse modo, a família se tornou, e vem se mantendo desde então, central à política do feminismo e um foco prioritário da teoria feminista. (OKIN, 2008, p. 314).
O patriarcado moderno deixou de ser paternal, deixando de se estruturar no parentesco e no poder dos pais, passando a se pautar na subordinação das mulheres aos homens enquanto homens, ou enquanto fraternidade, criando assim o patriarcado fraternal moderno. Tal conclusão decorre do fato de “o poder de um homem enquanto pai é posterior ao exercício do direito patriarcal de um homem (marido) sobre uma mulher (esposa)”, devendo-se abandonar a acepção de poder paterno do direito patriarcal e passar a compreendê-lo como direito sexual (PATEMAN, 1993, p. 18).
Ao encontro deste entendimento, Delphy (2009, p. 173) afirma que o termo patriarcado mudou de sentido, inicialmente por volta do século XIX, com as primeiras teorias dos “estágios” da evolução das sociedades humanas, e posteriormente no final do século XX, com a “segunda onda” do feminismo surgida na década de 1970 no Ocidente. De acordo com esta nova acepção feminista, o termo patriarcado significa “uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens”. Ele é, assim, quase que sinônimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres”, distinguindo-se deles em virtude de duas características: por um lado designa um sistema e não relações individuais; por outro lado, as feministas opuseram a distinção de patriarcado e capitalismo, deixando claro que não se trata da mesma coisa, para explicitar que a subordinação das mulheres não é uma consequência exclusiva do capitalismo, um não se reduzindo ao outro.
O Brasil herdou três formas de patriarcalismo: o primeiro é oriundo dos povos originários que viviam o período denominado neolítico superior, marcado por uma rígida divisão de tarefas; o segundo, proveniente do Ocidente Cristão, se caracteriza como a crença de que a mulher é pecadora e responsável pela expulsão de todos do paraíso; o terceiro, por fim, procedente “das Áfricas”, é caracterizado pela poligamia, pelo tabu da esterilidade e pelo rigoroso sistema de controle da sexualidade feminina, com a prática da infibulação e excisão do clitóris.
Os povos originários no Brasil, por ocasião da chegada dos Europeus, viviam o período neolítico superior, ou seja, divisão de tarefas bastante definidas. Os homens eram responsáveis pelas guerras, caça, pesca, liderança tribal, relações externas, construção das aldeias, canoas, armas, produção do fogo e derrubada das matas. Destinado às mulheres estava o plantio, a colheita, o preparo de alimentos, a limpeza, organização do ambiente e o cuidado com crianças e velhos.
No início da colonização não havia mulheres europeias suficientes para constituir famílias. Deste modo, os europeus subjugaram sexualmente as índias. Aqui fica evidente a vertente sexual do contrato social.
Com a chegada dos Europeus no Brasil introduziu-se o patriarcado cristão, representado pela visão de inferioridade e submissão das mulheres. O pano de fundo na Europa era o movimento de “caça às bruxas” e a Inquisição. À época já se contava com vários escritos que firmavam a ideia de que a mulher era um ser diabólico, a quem se atribuía a responsabilidade pela expulsão do paraíso. Ainda, tem-se a concepção médica que descrevia o corpo feminino como inferior ao corpo masculino. Contava-se que a mulher era um ser lunar, noturno, diabólico. Os médicos recorriam a inúmeras metáforas com a finalidade de propagar comparações que colocavam as mulheres em situação de menoridade e submissão aos homens.
Por fim, proveniente “Das Áfricas” veio a herança da presença do homem forte e poderoso, praticante da poligamia e preocupado em perseguir e expulsar mulheres estéreis dos vilarejos, marcando um rigoroso controle da sexualidade feminina.
Segundo a historiadora Mary Del Priore:
Embora o continente africano não forme um bloco uno, as escravizadas vinham de nações organizadas em clãs, onde a poligamia era corrente e onde viviam submissas aos códigos de conduta de uma sociedade hierarquizada, estruturada segundo rígidos padrões de comportamento e tradições religiosas. Nelas, o chefe poderoso era aquele que sabia amparar generosamente, reunindo todos os membros de uma família numerosa. Privilégios e poderes ficavam nas mãos dos homens, cuja importância era definida pelo número de filhos que engendrassem. “Papai” ou “Bigman”, era o chefe. Cada um poderia ter quantas esposas conseguisse sustentar, e cada esposa viveria na única perspectiva da maternidade, tão valorizada quanto o vínculo entre as pessoas e os espíritos ancestrais. (PRIORE, 2020, p. 15).
Para além desses patriarcados, a Igreja Católica, a partir do Concílio de Trento (1535/1537), cuidou de consolidar os papéis sexuais dentro do sacramento do matrimônio. O casamento tinha a finalidade de controlar as populações. A relação com a Igreja permeia, então, a formação das famílias que estavam se constituindo no primeiro momento da colonização, sob o mote dos três patriarcados citados acima. O matrimônio, frise-se, tinha uma única e exclusiva finalidade: a procriação. Nesse contexto, cabia à mulher o papel de ser mãe. É um cenário de adestramento da sexualidade feminina.
Assim como a Igreja Católica, os filósofos também desprezavam as mulheres, por exemplo: foram consideradas ao longo dos tempos, ótimas servas, cortesãs e belas escravas, mas raramente reconhecidas e valorizadas como seres humanos. Eram tidas como mundanas, que, com suas belas carnes, poderiam servir aos homens, mas seus cérebros não podiam servir à filosofia, à geometria e às ciências em geral. A mulher aprendeu que a palavra era do homem, e o silêncio era dela.
A presença das mulheres na história da Filosofia, revela que mesmo sendo escondidas e menosprezadas, elas existiram e fizeram diferença no estudo e reflexões sobre o tema. Para expor essa presença, surgiram estudos investigativos que se debruçaram nas teorias de filósofos ocidentais, os quais demonstraram grande aversão às mulheres, colocando-as sempre numa posição de inferioridade. Com isso, a ausência feminina no que tange ao campo do conhecimento filosófico foi reforçada pelos discursos – ainda que indiretamente por parte desses filósofos. De acordo com (SÁBATA, 2002), ao estudar a vida de 22 filósofos, constatou que apenas oito deles se casaram. Porém, todos falavam muitos absurdos sobre as mulheres.
2. A condição das mulheres no Brasil e o modo como resistiram às violências: uma breve introdução
Como ressaltado acima, era raro mulheres brancas europeias atravessarem o Atlântico, o que propiciou que os colonizadores mantivessem como escravas as mulheres índias e negras; fato que deu origem à miscigenação do povo brasileiro (CHAKIAN, 2020).
É indiscutível que as mulheres indígenas foram escravizadas, inclusive sexualmente. Isso porque eram tidas como selvagens. Do mesmo modo, as mulheres negras foram escravizadas, não somente a partir de sua força de trabalho, mas também como instrumento de prazeres sexuais.
A colonização brasileira, com a presença de mulheres africanas, serviu, exclusivamente, para angariar lucros ao capitalismo europeu, bem como fortalecer o patrimonialismo patriarcal. Este, baseado no contrato social na sua vertente mais violenta: a sexual.
Outro aspecto importante é o fato de que, ao contrário do sistema de castas tradicional, no Brasil havia a possibilidade de ascensão social individual (SAFFIOTI, 2013). Essa organização trouxe reflexos para a condição das mulheres. Isso porque contribuía para a diferenciação dos papéis que as mulheres, de uma ou outra casta, desempenhavam.
Na efervescência da colônia, com as plantações de café, açúcar e algodão, as mulheres também eram submetidas à exploração e submissão. Muitas mulheres, ressalta Chakian, terminavam por viver sozinhas, nas senzalas, com seus filhos, coagidas a manter relações sexuais com muitos escravos, para reproduzir e gerar mais mão de obra escrava, ou obrigadas a satisfazer os prazeres sexuais dos senhores feudais (CHAKIAN, 2020).
Território de alianças e de estratégias de sobrevivência, a família também era espaço de violência (PRIORE, 2020). Os documentos pertinentes aos divórcios revelavam o nível de violência que as mulheres viviam no período. As mulheres eram espancadas, abandonadas e ultrajadas com acusações infundadas. Eram também presas aos cercados, onde apanhavam com paus, instrumentos de trabalho do homem e espinheiros. Mulheres, ainda, eram privadas de alimentos e roupas.
Chakian (2020) destaca que a única alternativa de resistência das mulheres negras residia na possibilidade de se destacarem como cozinheiras ou lavadeiras, hipótese em que poderiam exercer as atividades na casa grande, em condições um pouco menos degradantes. Fora dos limites do lar, portanto, a mulher seguia à margem de possibilidades de existência real, livre de violência.
Com a abolição da escravatura, a urbanização e a industrialização repercutiram nas relações sociais. É que, conforme Chakian (CHAKIAN, 2020, p. 69):
Com a necessidade de mão de obra feminina nas fábricas e comércios, a mulher passou a ter possibilidade de se conhecer, pela primeira vez, em outros papéis sociais e outras formas de existência, para além da vida conjugal. Consequentemente, a instrução precária, que até então era destinada às mulheres, passou a ser insuficiente, fazendo surgir a exigência pelo aprimoramento da educação feminina.
Nísia Floresta Brasileira Augusta foi pioneira na exigência do letramento feminino como instrumento de emancipação social, tendo fundado um colégio para meninas. É imperioso destacar que muitas mulheres se destacaram no movimento abolicionista, inclusive Nísia Floresta, além da compositora Chiquinha Gonzaga e da romancista Maria Firmina dos Reis.
Percebe-se, contudo, que desde o início da colonização as mulheres estavam trabalhando e resistindo. As mulheres acessavam todo tipo de trabalho, principalmente no período de interiorização da urbanização. Eram agricultoras, cozinheiras, costureiras, padeiras, fiandeiras. Havia, inclusive, greves de padeiras no século XVIII. Esse trabalho se constituiu como “elevador social”. E é graças a essa “ascensão” que mulheres negras alforriadas tiveram acesso ao “letramento”, inclusive proporcionando aos seus filhos a educação.
No primeiro e segundo reinado os filhos dessas mulheres compuseram, conforme leciona Del Priore, a intelectualidade negra. (DEL PRIORE, 2020). Como forma de resistência, mulheres tiveram participação formidável na abolição da escravatura e na proclamação da República. Nesse momento histórico, já se consolidaram as faculdades de medicina no Brasil. A partir daí quem cuida das famílias não é mais a Igreja, mas os médicos. Nesse ponto, os tratados de medicina trataram de justificar a inferioridade feminina. Temos uma medicina ativa controlando os papéis de gênero.
A medicina também, na busca de controle da sexualidade dos casais, trabalha duas imagens: a mulher louca/histérica e a mulher ninfomaníaca. A primeira, tratava-se da mulher estéril que não podia ter filhos. Esta, acabava no hospício. A segunda, tratava-se da mulher que usava sua sexualidade para outra finalidade que não a reprodução. É uma mulher que foi julgada com a máxima moralidade possível.
No campo das violências temos o mesmo cenário: muitas surras, pancadas e espancamentos. Todavia, aqui as mulheres começaram a reagir. Nesse campo, quando levadas a julgamento, as mulheres eram submetidas a juízos morais. Eram boas mães? Se sim, podiam ser libertadas.
No início do século XX, as mulheres trabalharam na esfera pública. Constituíam um operariado das fábricas e indústrias. Conforme destaca Saffioti:
o crescimento da urbanização, da industrialização e das atividades comerciais, a ordem social e econômica passou a se organizar de maneira mais complexa, exigindo maior presença nos diversos setores: a educação feminina é, pois, pensada de um lado, como necessidade para se estabelecer a justiça social e, de outro, como o setor-chave de uma política de reformas sociais visando atingir um estágio superior de organização-social. (SAFFIOTI, 2013, p. 292):
Apesar desse movimento, somente a partir de 1930 é que ocorreu uma verdadeira transformação no sistema de ensino brasileiro, como efeitos no ensino superior. Tal fato permitiu maiores possibilidades de instrução superior para as mulheres. Outra forma de resistência/ascensão das mulheres é o campo do cinema, do rádio e do teatro, que se encontrava, à época, no seu auge. Essas mulheres obtiveram imenso sucesso. Contudo, persistiam os julgamentos de ordem moral sobre os seus comportamentos.
Em 1937, as mulheres assumiram um papel importante na luta contra a ditadura e a favor da democracia. Igualmente, no pós-guerra, as mulheres demonstraram organização na luta pelo regime democrático, a despeito de não conseguirem avanços na Assembleia Nacional Constituinte de 1946 (CHAKIAN, 2020). Após a II Guerra Mundial, com a vitória dos Estados Unidos, temos a influência dos padrões de consumo americano. O Brasil é tomado pela chegada de toda sorte de eletrodomésticos. Tal fato vai cumprir o desiderato de aprisionar, ainda mais, a mulher no recinto doméstico.
Nos anos 60 contamos com a chegada da pílula anticoncepcional no Brasil. Os militares estavam preocupados com o povoamento do Brasil. A isso somou-se a posição da igreja católica; que era opositora de qualquer forma de anticoncepção. Alçou-se, com isso, a tese de que os Estados Unidos tinham o intuito de esterilizar os povos pobres. Embora tenha agradado grande parte das mulheres, a medicação não atingiu a maioria delas.
No período da ditadura militar mulheres foram perseguidas, presas, torturadas, vítimas de violência sexual, aborto, exiladas, mortas ou desaparecidas.No mesmo período chega ao Brasil as influências da Revolução Sexual, em especial no ano de 1968. Tal ano se tornou um marco da rebeldia e contestação. O período da Revolução Sexual durou dos anos 70 até meados da década de 80. Isso porque temos dois fatores que chegaram freando todas as conquistas: a AIDS e a “chuva de bala sobre as mulheres”. A AIDS vitimou artistas e grande parcela da juventude brasileira. A “chuva de bala sobre as mulheres” foi marcada por assassinatos e feminicídios de grande repercussão no Brasil, como o famoso “Crime da Praia dos Ossos”.
Diante desse breve histórico, pergunta-se: em que medida as mulheres reagiram a essas violências?
Primeiramente, é preciso dizer: as mulheres sempre trabalharam. As mulheres brasileiras venceram, perderam, ganharam, se casaram, descasaram, sofreram e cometeram violências. Elas resistiram firmemente. A história nos mostra que a vida delas é marcada por constantes transformações na medida em que houve, paulatinamente, mudanças na condição de esposa, de mãe e de trabalhadora. As mulheres foram as personagens principais de uma das transformações sociais mais importantes do século XX: a resistência feminina às violências, a ocupação dos espaços públicos, a previsão constitucional de direitos das mulheres e etc. No período do Brasil colônia as mulheres foram lavradoras, vendedoras, fabricantes de doces, lavadeiras, parteiras, costureiras e mais uma diversidade de trabalhos, fundamentais para o desenvolvimento social.
No período compreendido entre os séculos XVII e XVIII houve a chegada das mulheres africanas escravizadas. Todas essas mulheres foram interlocutoras entre os mundos de brancos, negros, indígenas, na medida em que se uniram e compartilharam culturas. Ainda, temos o fenômeno da migração interna; o que abalou a vida familiar de muitas mulheres, porquanto com a partida dos homens para o interior do país, muitas ficaram sozinhas com os filhos; fato que as obrigou a tirar o sustento e a lutarem pela sobrevivência.
Segundo Del Priore (2020) com a libertação do Brasil, as mulheres se multiplicaram em primeiras “mestras de letras” e comerciantes. Ainda, segundo a historiadora:
Nas primeiras décadas do século XX, grande parte do proletariado era constituído por mulheres. Em 1901, elas perfaziam 67,62% da mão de obra empregada na fiação e na tecelagem. As mulheres negras, após a abolição dos escravos, continuaram trabalhando em setores desqualificados e recebendo péssimo salário. (DEL PRIORE, 2020, p. 234):
Com a chegada dos anos 60 a ditadura militar impôs um violento processo de modernização da área rural. O trabalho da mulher foi redefinido, pois, de colona, passou a boia-fria. Estas, por sua vez, recebiam salários inferiores, mas, uma vez sindicalizadas, lutavam firmemente pela melhoria das condições de trabalho. Resistiam.
Em 1970 cresceu a participação ativa das mulheres em grupos das comunidades. Os grupos eram organizados pelas igrejas e sindicatos. A participação das mulheres nesses grupos culminou na criação de clubes de mães e movimento de mulheres trabalhadoras, bem como na participação em comissões jurídicas e políticas. As mulheres brasileiras, nesse período, mobilizaram diferentes grupos da sociedade, porquanto exigiram a redemocratização do país, inaugurando novos conflitos e tirando da inércia as organizações sindicais. As mulheres impulsionaram a mobilização popular, portanto, resistiram.
Entre as décadas de 70 e 80 temos três grandes adventos transformadores da vida das mulheres. Esses acontecimentos modificaram os papéis femininos e masculinos na família. Cuida-se da pílula anticoncepcional, a migração campo-cidade e a explosão demográfica em áreas urbanas. A pílula, por sua vez, promoveu a “revolução sexual”, alterando significativamente a sexualidade feminina. A cultura, nesse momento, possibilitou a criação de um sistema de valores que preconizava a autonomia.
Para Del Priore (2020, p. 235), “o crescimento de mulheres no mercado de trabalho, o progresso científico, a contracepção, a liberalização dos costumes e o divórcio mudaram definitivamente a cara do casamento e da família”. A historiadora ainda ressalta que:
Transformações nos padrões culturais e nos valores relativos ao papel social da mulher, intensificadas pelo impacto dos movimentos feministas e pela presença mais atuante das mulheres nos espaços públicos, alteraram a constituição da identidade feminina, cada vez mais voltada para o trabalho produtivo. A expansão da escolaridade e o ingresso nas universidades viabilizaram o acesso delas a novas oportunidades de trabalho. Mesmo contra um pano de fundo em que algumas questões estavam para ser melhoradas (a segregação ocupacional por preconceito racial, as disparidades salariais, a menor participação feminina nas associações de categorias profissionais, entre outras), no fim do século XX as mulheres obtinham progressivamente uma igualdade de reconhecimento com os homens, senão de direitos. (DEL PRIORE, 2020, p. 236)
Houve resistência das mulheres, bem como um declínio das sociedades patriarcais. É possível constatar a reconfiguração das relações entre os sexos e mesmo dos papéis e das representações de cada um dos gêneros. O mito da virilidade começou a ruir desde o fim dos grandes patriarcas coloniais, do desmonte das casas-grandes, da chegada do voto feminino na República Velha, dos hábitos e condutas introduzidas no período pós-guerra, do advento da pílula, do divórcio, da legislação de proteção e da escolarização das mulheres. Todavia, ainda há um longo caminho a percorrer. Agora, todos juntos, precisamos enfrentar o que sobrou da cultura machista patriarcal e essa resistência será feita por meio da educação.
As mulheres também participaram ativamente dos movimentos que demandaram a criação de normas constitucionais e legais de proteção aos seus direitos. O tema será tratado no tópico adiante.
3. A normatização interna de proteção às mulheres.
Em 1988, a partir de uma comunhão de mulheres em busca de afirmação de direitos, destacou-se o movimento conhecido como “lobby do batom”. O referido movimento conferiu ação e articulação feminina durante a Assembleia Constituinte de 1987/1988. A composição da constituinte contava com 26 mulheres. As referidas mulheres se uniram com a finalidade de alcançar a implementação de alguns direitos, tais como: a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos das mulheres, a definição do princípio da não discriminação da mulher no mercado de trabalho, e igualdade jurídica entre homens e mulheres.
Como destacado anteriormente, em 1985, como fruto de lutas e reivindicações foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. O Conselho teve papel de destaque na composição do “lobby do batom”, porquanto promoveu demandas de inclusão de mais direitos para as mulheres na nova Constituição. O próprio Conselho Municipal dos Direitos da Mulher lançou o movimento “Mulher e Constituinte”, que tinha como slogan “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”. O Conselho atuou para que mulheres participassem da Constituinte, obtendo a inclusão de 26 mulheres no processo.
O movimento das mulheres em 1987/1988 teve como propostas uma vasta gama de direitos, entre eles a justiça social, a criação do Sistema Único de Saúde, ensino público e gratuito nos vários níveis, autonomia sindical, reforma agrária e tributária. Contou, ainda, com demandas intrinsicamente ligadas aos direitos das mulheres, questões relativas ao seu trabalho, propriedade, sociedade conjugal, violência contra mulher e abertura para discussão do tema do aborto (CHAKIAN, 2020).
No nível infraconstitucional, em virtude das intensas transformações sociais, que possibilitaram a construção de novos valores, o direito passou por adaptações. Vejamos:
Primeiramente, temos as primeiras alterações no Código Penal. Em 1994, a Lei nº 8.930/1994 tornou o estupro crime inafiançável. Em 1996, a Lei nº 9.318 introduziu, no artigo 61 do Código Penal, a agravante relativa à condição de gestante da vítima. No mesmo ano de 1996, a Lei nº 9.281 promoveu a majoração das penas previstas nos artigos 213 e 214 do Código Penal. Em 1997, a Lei nº 9.520 revogou a exigência do marido para que a mulher casada exercesse o direito de queixa-crime. Em 2003, a Lei nº 10.778 estabeleceu a notificação compulsória, em todo território nacional, dos casos de violência contra as mulheres atendidas nos serviços de saúde, públicos ou privados. Em 2004, a Lei nº 10.886 incluiu hipóteses de violência doméstica no artigo 129 do Código Penal.
Ainda, no que toca a proteção da mulher, no âmbito penal, é imperioso registrar a Lei nº 10.244/2001 e a figura do assédio sexual. Nesse ponto, segundo Silvia Chakian:
a tipificação da conduta de constranger alguém, com o intuito de obter vantagem sexual, prevalecendo-se de superioridade hierárquica ou de função, passou a ser exigida a partir da consciência de que o direito a uma vida livre de violência, assegurada pelos diplomas internacionais e garantido constitucionalmente através dos direitos fundamentais, também deveriam abranger o ambiente do trabalho, do qual, cada vez mais, participam as mulheres. (CHAKIAN, 2020, p. 230-231).
A previsão da figura típica do assédio sexual deveu-se ao fato de que o legislador penal, em 1940, não vislumbrou a necessidade de proteção ao bem jurídico, liberdade sexual e não discriminação da mulher no trabalho, porquanto as mulheres, àquela época não eram consideradas sujeitos de direito, bem assim não ocupavam o mercado laboral formal como nos dias de hoje.
Em 2005, a Lei nº 11.106 revogou o delito de adultério e baniu do texto penal a expressão “mulher honesta”. Silvia Chakian (2020, p. 234) , ainda, nos chama atenção para o seguinte ponto: “a manutenção do termo “mulher honesta” na legislação penal, por tantas décadas traz reflexos até os dias atuais, na forma como vítimas de violência sexual, por exemplo, são ouvidas no sistema de justiça, em suas narrativas”.
A Lei nº 11.106/05 ainda revogou os delitos de sedução e rapto. Tais delitos prestavam-se unicamente à proteção “dos costumes” ou do “pátrio poder”, e não da liberdade ou dignidade sexual da mulher. A mesma Lei também revogou a possibilidade de extinção da punibilidade quando o agente se casasse com a vítima. Trata-se do instituto do “matrimônio reparador”, resultado das concepções que historicamente reservavam à mulher o destino exclusivo do matrimônio (CHAKIAN, 2020).
A lei nº 11.106/05 revogou a possibilidade de extinção da punibilidade do agente que praticasse crime contra os costumes sem violência, caso a vítima se casasse com terceiro, desde que não se manifestasse em sessenta dias pelo prosseguimento da investigação ou ação penal. A referida Lei majorou a pena dos crimes sexuais quando o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima ou quem, por qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela.
Em 2009, a Lei nº 12.015 substituiu, no Código Penal, a expressão “Crimes contra os costumes”, para fazer constar “Crimes contra a dignidade sexual”. Cuida-se de uma mudança significativa de paradigma. É que o legislador finalmente entendeu que a proteção não deve se dirigir à moral sexual, mas sim à liberdade sexual do homem e da mulher. A citada lei promoveu, também, a unificação das figuras do estupro e atentado violento ao pudor, sem diferenciação do gênero da vítima. Importante avanço foi a criação da figura do estupro de vulnerável.
Em 2018, a Lei nº 13.718 criou a figura criminosa da importunação sexual, divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia. Ainda no aspecto penal temos a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Como sabido, a partir da Constituição Federal de 1988, o Brasil passou a ser signatário de diversos diplomas e documentos internacionais. Nesse espaço, se comprometeu a criar uma lei específica de proteção das mulheres. O Brasil se comprometeu, ainda, a implementar políticas públicas voltadas à prevenção, repressão e erradicação da violência de gênero.
Nesse contexto, em 2004, deu-se início ao projeto de lei versando sobre mecanismo de combate e prevenção à violência doméstica contra as mulheres. O processo de elaboração da lei contou com a contribuição de juristas e a mobilização das mulheres e dos movimentos de mulheres oriundos de diversos segmentos sociais. Para Chakian:
no ordenamento jurídico nacional, a Lei Maria da Penha representa o rompimento do paradigma de tolerância à violência doméstica que sempre prevaleceu no país, contemplando um sistema multidisciplinar integrado de proteção da mulher em situação de violência, bem como de seus dependentes. O legislador define a discriminação e a violência de gênero como forma de violação aos direitos humanos, o que legitima ainda mais o Estado brasileiro a coibir, reprimir e prevenir sua prática, quer tenha sido praticado na esfera pública, quer tenha ocorrido na esfera privada. (CHAKIAN, 2020, p. 262).
Em 2015 o Brasil fez editar a Lei nº 13.104/2015, tendo a seguinte justificativa:
A importância de tipificar o feminicídio é reconhecer, na forma da lei, que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres, expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade, e é social por combater a impunidade, evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como o de terem cometido “crime passional”. Envia, outrossim, mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que não haverá impunidade. Protege, ainda, a dignidade da vítima, ao obstar de antemão as estratégias de se desqualificarem, midiaticamente, a condição de mulheres brutalmente assassinadas, atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime de que foram vítimas. (FRANCO, Simone. Crime de feminicídio poderá ser incluído no Código Penal. Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/07/18/crime-de-feminicidio-podera-ser-incluido-no-codigo-penal. Acesso em: 01 nov. 2021).
A Lei nº 13.104/2015 introduziu a qualificadora do feminicídio no artigo 121 parágrafo 2º do Código Penal, que assim passou a definir: “VI: contra a mulher por razões da condição do sexo feminino. […] § 2º. A: Considera-se que há razões da condição de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. [2]
A lei do feminicídio veio complementar o que foi iniciado com a lei Maria da Penha, porquanto confere visibilidade ao fenômeno da morte violenta de mulheres por circunstâncias de gênero no nosso país, permitindo a elaboração de ações e estratégias mais adequadas, uma vez que poderão ser subsidiadas em números e estatísticas. Contudo, cabe lembrar, que há uma distância enorme entre a regra jurídica formal e a aplicação efetiva da mesma (materialidade) no campo social. Fato este, que acaba gerando uma ilusão de segurança jurídica para as mulheres vítimas de violência no País.
Não podemos perder de vista que nosso sistema Jurídico Penal está ultrapassado, nossas legislações são muito brandas, o judiciário demasiadamente moroso, além da crise ética, política e social que o Brasil está inserido. Sabemos que a CF88, a Lei Maria da Penha, e a Lei do Feminicídio, bem como as normativas internacionais, dentre elas a Recomendação Geral das Nações Unidas; Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher; a Declaração Universal dos Direitos Humanos; a Convenção Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher e a “Convenção Belém do Pará”, são instrumentos normativos que possuem sua importância em relação ao problema, porém, a violência de gênero não reduziu, ao contrário, aumentou.
Este fato nos leva obrigatoriamente a concluir que estamos operando de maneira equivocada, ou seja, estamos trabalhando com os efeitos da violência e não com suas causas. Nós criamos novas leis, aparelhamos, mesmo que de forma precária, as estruturas de atendimento psicossocial às vítimas e seus filhos, mas isso não é o suficiente. Precisamos de políticas públicas específicas que trabalhem urgentemente com as causas da violência de gênero no país e não podemos mais remeter este problema somente à questões culturais arraigadas no patriarcalismo arcaico dos séculos anteriores. Nesse sentido, a educação nos parece ser o melhor caminho para dirimir este grave problema social, pois, ela começa no seio familiar e continua na escola. As informações passadas nestes dois ambientes constroem hábitos e parecem autorizar determinadas posturas que passamos para a sociedade. (COSTA, 2016).
Por fim, temos, em 2021, talvez a política pública mais importante do país. Cuida-se da política prevista na Lei nº 14.164/2021. Ao contrário das demais leis traçadas acima, essa lei tem um contorno eminentemente preventivo. A Lei nº 14.164/2021 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e tem como objetivo incluir, na forma de temas transversais da educação básica, conteúdos relacionados aos direitos humanos e a prevenção da violência familiar. A nova lei institui, também, a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher.
Considera-se a referida lei um novo paradigma socioeducacional no Brasil, porquanto direciona as políticas de prevenção à violência à educação; única forma de resistir ao que restou do patriarcado machista no Brasil. Mais uma vez, junto com as mulheres, precisamos resistir e insistir na sua aplicabilidade.
4. Considerações Finais
Georges Didi-Huberman profetiza que “para conhecer os vagalumes, é preciso observá-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista” (HUBERMAN, 2011, p. 52).
Conhecer os vagalumes é, no presente caso, proceder ao resgate histórico da luta das mulheres contra a violência. Cuida-se da luta que se desenrolou no aspecto cultural e normativo. É também uma história de submissão e dominação. Todavia, é, igualmente, uma história de resistência.
A opressão e dominação masculina é comumente associada ao conceito de patriarcado. Este, no Brasil, assumiu contornos peculiares, pois é fruto de três outras formas de patriarcado: a) um primeiro dos povos originários; b) um segundo oriundo do Ocidente Cristão e; c) o proveniente “das Áfricas”.
Ainda, é digno de registro que a religião e a medicina contribuíram para o incremento do sistema de dominação e opressão contra as mulheres, porquanto ratificaram e propagaram ideias e teorias acerca de uma suposta inferioridade das mulheres.
No Brasil, as mulheres, desde a colonização, trabalharam e resistiram. Contudo, foram vítimas das mais diversas formas de violência, em especial a sexual. A luta de resistência das mulheres brasileiras é destacada durante a abolição da escravatura, a declaração de independência, a proclamação da República e a queda da ditadura militar.
A mobilização das mulheres propiciou ainda, na criação, em 1985, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Ainda, alçou condições de participação na Assembleia Constituinte, com o “lobby do batom”. A demanda pela inclusão de direitos da mulher na Constituição de 1988 foi de extrema relevância, pois resultou na positivação, em nível constitucional, de diversos direitos. Posteriormente, a legislação infraconstitucional sofreu significativas mudanças, em especial na área penal. Destaca-se a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio.
Em 2021 foi sancionada a Lei nº 14.164. A referida Lei constitui um novo paradigma de proteção das mulheres. É que possui um caráter preventivo, voltado ao sistema socioeducacional. Acredita-se que a resistência ao que restou do patriarcado somente terá êxito por meio da educação, desde o ensino básico, que permitirá imprimir uma nova cultura e um novo olhar sobre a mulher sujeito de direito, desvencilhando-a das formas históricas de opressão e dominação.
Diante desse cenário, mostra-se a iminente necessidade de uma educação ciente da predominância de desigualdades de gênero, a fim de traçar novas perspectivas para a educação contemporânea, o que pode ser feito apenas com o estudo das intersecções entre a educação, o direito e o feminismo. Compreender as principais causas que contribuem para a continuidade das desigualdades de gênero, identificar o papel das políticas públicas de educação no contorno dessa problemática para então buscar a transformação da condição das mulheres e das desigualdades estruturais a que estão submetidas.
Referências
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[1]Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf). Acesso em 01 dez. 21.
[2] BRASIL. Lei nº 13.104/2015. Lei do Feminicídio. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2015/lei-13104-9-marco-2015-780225-publicacaooriginal-146279-pl.html Acesso em: 01 nov. 2021.
Promotor de justiça do MPAC
Mestre em direito sociais e políticas publicas.