EXPLORAÇÃO DE LESÃO PENETRANTE EM REGIÃO CERVICAL – ZONA I E II: RELATO DE CASO

EXPLORATION OF PENETRANTING INJURY IN CERVICAL REGION- ZONE I AND II: CASE REPORT

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8132705


Greta Maria Murad da Costa1
Suzane Katy Rocha Oliveira2


RESUMO

INTRODUÇÃO: Lesões penetrantes na região cervical destacam-se por sua alta complexidade e apresentam elevada morbidade e mortalidade, conferindo grande relevância no atendimento nos serviços de emergência. Isso ocorre devido à grande quantidade de estruturas vitais localizadas nesta região. Com exceção dos ferimentos por arma de fogo, poucos estudos já relatados mostram predomínio de feridas por arma branca. O presente artigo se constitui em um relato de caso de paciente do gênero masculino, 64 anos, com lesão penetrante em região cervical – zona I e II. 

RELATO DE CASO: Paciente, masculino, 64 anos com ferimento penetrante na região cervical (zona I e II),  evoluindo com choque hemorrágico devido sangramento venoso através de veia cefálica esquerda , sem comprometimento de esôfago, vias aéreas e coluna cervical. Foi instituído o tratamento cirúrgico,  sendo necessária transfusão sanguínea e ligadura da veia sangrante. Apresentou boa evolução recebendo alta hospitalar no 7º dia de pós-operatório, assintomático. 

CONCLUSÃO: O caso em questão ilustra a complexidade de uma lesão cervical. O atendimento inicial e o tratamento instituído foram de suma importância para o prognóstico do paciente.  

Palavras-Chave: Trauma. Região cervical. Lesões penetrantes.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Penetrating lesions in the cervical region stand out because of their high complexity and present high morbidity and mortality, giving great importance to the emergency services. This is due to the large number of vital structures located in this region. With the exception of gunshot wounds, few studies have reported a prevalence of wounds with a weapon. The present article is a case report of a male patient, 64 years old, with penetrating lesion in the cervical region – zone I e II. 

CASE REPORT:  Patient, male, 64 years old with a penetrating wound in the cervical region (zone II) , evolving with hemorrhagic shock due to venous bleeding through the left cephalic vein, without commitment the esophagus, airways and cervical spine. Surgical treatment was instituted, requiring blood transfusion and bleeding vein attachment. He presented good evolution, being discharged on the 7th postoperative day, asymptomatic.

CONCLUSION: The case in point illustrates the complexity of a cervical lesion. The initial care and the treatment instituted were of paramount importance for the prognosis of the patient.

Key-words: Trauma. Cervical region. Penetrating lesions.

1 INTRODUÇÃO

O pescoço é uma região vulnerável a traumatismos devido à grande quantidade de estruturas vitais e importantes em um espaço tão confinado e pequeno. Sendo assim, pequenas agressões podem causar lesões importantes e com alta morbimortalidade (CRUVINEL NETO; DEDIVITIS, 2011).

O trauma cervical penetrante é aquele cuja lesão ultrapassa o músculo platisma em profundidade. Requer investigação especial devido à presença de importantes estruturas neurovasculares e dos  tratos respiratórios e digestórios profundamente ao platisma, ao contrário daqueles traumas que não o ultrapassam (CASSIMIRO et al., 2010). Este tipo de trauma pode ocasionar sérias consequências,. Não há qualquer outra parte do corpo que contenha estruturas tão representativas de diferentes sistemas (BRUCH et al., 2008). 

Estas lesões cervicais estão presentes em 5-10% dos pacientes vítimas de trauma, com uma mortalidade estimada em 3-10% (NASR et al., 2015). Há predomínio acentuado de homens entre as vítimas (88% a 92%), e entre adultos jovens, por volta dos 28 anos, refletindo maior exposição a situações de violência por estes grupos (CASSIMIRO et al., 2010). O adequado atendimento pré-hospitalar, com equipes treinadas em assistência ao politraumatizado , permite o seguimento das normas estabelecidas na estabilização e transporte conforme os protocolos do ATLS. Desta forma, os pacientes podem chegar mais cedo e em condições melhores aos centros de referência de trauma  (NEVES, 2012). 

A região cervical é dividida anatomicamente em anterior e posterior, em três zonas craniocaudais (I, II, III). A região anterior (ou trígono anterior) é limitada pela borda inferior da mandíbula, pelo músculo esternocleidomastoideo e pela linha mediana anterior do pescoço. As lesões mais frequentemente registradas ocorrem em vasos sanguíneos, nas vias aéreas e no esôfago. A região posterior (ou trígono posterior) é limitada pela face superior da clavícula, pelo músculo trapézio e pelo esternocleidomastoideo. As zonas I, II e III estão compreendidas, respectivamente, entre as clavículas e a cartilagem cricóide; a cartilagem cricóide e o ângulo da mandíbula; o ângulo da mandíbula e a mastoide. Os traumas penetrantes da região cervical incidem com frequência decrescente nas zonas II (47% a 82%), I (5% a 31%) e III (1% a 30%) (CASSIMIRO et al., 2010). 

Poucos estudos já relatados na literatura mostram predomínio de lesões penetrantes na região cervical por arma branca. Estas lesões, quando ocorrem, podem levar ao comprometimento dos tratos respiratório e digestório, além de complicações como lesões vasculares, lesões neurais e infecções dos espaços cervicais profundos e do mediastino (PINTO et al., 2000). 

O objetivo do presente estudo de caso é relatar o caso de uma vítima de lesão cervical penetrante em zonas I e II, além de múltiplas lesões em região posterior do tórax e prega cubital esquerda, todas por arma branca.

2 RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 64 anos, residente em São Luís-Maranhão, foi admitido no Hospital Municipal Clementino Moura (Socorrão II), com ferimentos penetrantes em região cervical anterior, látero-posterior e posterior, em nível de C3/C4. Foram evidenciadas  também múltiplas lesões em área posterior do tórax, além de lesões em prega cubital esquerda e antebraço esquerdo, todas por arma branca (faca). O transporte se deu por ambulância da SAMU, no mesmo dia do trauma.  Foi admitido na unidade de emergência, sendo constatado ainda intenso sangramento em veia cefálica esquerda.  

No momento da admissão, o paciente encontrava-se com vias aéreas pérvias, eupneico, SaPO2 99%, hemodinamicamente instável, sonolento, hipotenso com pressão arterial 91/46 mmHg, taquicárdico (frequência cardíaca 107 bpm), hipocorado (++/4+), acianótico, afebril e com escala de coma de Glasgow 15. Foram solicitados exames laboratoriais admissionais: ureia: 19; creatinina :1,2; hemoglobina 12,02; hematócrito 36,24; leucócitos 8.623; plaquetas 239.000. A radiografia de tórax realizada na admissão não apresentava sinais de penetração em cavidade torácica ( figura 1). 

FIGURA 1 – Radiografia de tórax da admissão em PA 

                Paciente foi encaminhado ao Centro Cirúrgico onde foi realizada intubação orotraqueal , sendo o  mesmo submetido à anestesia geral. Achado cirúrgico: lesão penetrante em região cervical anterior esquerda que transfixou o músculo platisma; lesão do músculo esternocleidomastoideo esquerdo; lesão do músculo trapézio esquerdo; ruptura de veia cefálica esquerda com repercussão hemodinâmica importante (choque hemorrágico); não houve comprometimento de esôfago, vias aéreas e coluna cervical.  Conduta operatória: foram utilizadas duas bolsas de concentrado de hemácias ; realizada ligadura  da veia sangrante com nylon 2.0; rafia de músculo platisma esquerdo com catgut simples 3.0 (Figura 2); alocação de dreno tubular em topografia de lesão penetrante (Figura 3); exploração arterial de membro superior esquerdo (Figura 4); sutura da pele com nylon 3.0 e curativo local.

                   FIGURA 2 – Localização da lesão  em músculo platisma.

     FIGURA 3 – Paciente no pós-operatório imediato com dreno tubular.

           FIGURA 4 – Lesão em prega cubital esquerda (onde houve exploração arterial).

 A terapêutica básica usada foi: Hidratação Venosa, Cefalotina 1g endovenoso 6/6 horas, Clindamicina 600 mg endovenoso 6/6 horas e analgesia com Dipirona 4ml + 16 ml de AD endovenoso 6/6 horas, além de analgesia de acordo com a escala de dor do paciente (Cloridrato de Tramadol endovenoso).  Solicitado encaminhamento para Unidade de Tratamento Intensivo, onde permaneceu por 4 dias, evoluindo com estabilização do quadro clínico. Devido ao esquema de vacinação incompleto foi realizada a administração de vacina anti-tetânica .

No pós-operatório, o paciente evoluiu com pequeno hematoma de parede torácica posterior (Figura 5) com regressão após drenagem, não sendo necessária nova abordagem cirúrgica. Apresentou boa evolução recebendo alta hospitalar no 7º dia de pós-operatório, assintomático.

FIGURA 5 – Hematoma de parede torácica posterior (complicação)

3 DISCUSSÃO 

O presente artigo descreve um caso atípico de lesão cervical penetrante. Os ferimentos cervicais penetrantes são de alta complexidade devido à presença de uma grande quantidade de estruturas vitais alojadas em um pequeno espaço, levando, assim, a altas taxas de morbidade. Além disso, estes ferimentos podem ser interpretados como uma das evidências do aumento da violência urbana e, portanto, merecem destaque nos serviços de trauma (NASR et al., 2015).

O estudo feito por Barros et al. (2015) mostra que as lesões penetrantes de pescoço correspondem a 5 a 10% dos casos de trauma na emergência e apresentam o mesmo perfil de vítimas de trauma em geral : homens jovens. Segundo o autor, os pacientes apresentam idade média de 33,1 anos, numa faixa etária de 16 a 66 anos, sendo 91% do sexo masculino. A incidência de zona lesada foi de II (61,4%), seguida da III (5,3%) e da I (3,4%). O presente caso difere da literatura devido ao paciente se encontrar na faixa acima dos 60 anos , porém é semelhante ao encontrado no estudo de Cassimiro et al. (2010) no que se refere às principais zonas atingidas.   

Em todo traumatismo cervical penetrante ou contuso, deve-se sempre estar atento a  qualquer alteração da via aérea do paciente (CRUVINEL NETO & DEDIVITIS, 2011) . A via aérea pode ser assegurada por intubação orotraqueal, cricotireoidostomia ou traqueostomia, sendo estes procedimentos de responsabilidade da equipe médica de um serviço de emergência (CORSI; CARRIERI NETO; RASSLAN, 1998).  No caso relatado, foi necessária a obtenção de uma via aérea definitiva, pois apesar do paciente encontrar-se com vias aéreas pérvias,  evoluiu rapidamente para um choque hemorrágico devido ao sangramento da veia cefálica lesionada. 

A abordagem do trauma cervical penetrante mudou substancialmente no decorrer das últimas décadas, da exploração cirúrgica mandatória ao tratamento conservador. O manejo inicial é decisivo no sucesso do tratamento do paciente. Deve-se considerar a mortalidade oriunda de lesões vasculares graves, que chega a 50%, e as complicações tardias, como pseudoaneurismas e fístulas artério-venosas, que podem afetar os resultados em longo prazo (BARROS et al., 2015). Assim sendo, o manejo correto, no momento adequado, é fundamental. O transporte do paciente, sua abordagem cirúrgica inicial, assim como a detecção e ligadura da veia sangrante foram realizados dentro de um tempo hábil que contribuiu para uma evolução satisfatória.

Pacientes com estabilidade hemodinâmica e sem sinais de lesões graves podem ser manejados com uma conduta conservadora, através da realização de exames de imagem e exame físico seriado. Na suspeita de lesão, o tratamento é determinado pela localização da mesma e pela situação hemodinâmica do paciente. Pacientes instáveis devem ser submetidos à cervicotomia exploradora (NASR et al., 2015). Lesões que ultrapassem o músculo platisma devem ser abordadas cirurgicamente (CORSI; CARRIERI NETO; RASSLAN, 1998) , assim como qualquer lesão envolvendo duas ou mais sub-regiões adjacentes (PINTO et al., 2000). Segundo Von Bahten et al (2003), há incidência significativa de sinais sugestivos de lesões vasculares nos ferimentos por arma branca. No caso relatado, o paciente foi abordado cirurgicamente, pois a lesão ultrapassava o plastima, apresentando uma dimensão maior que 2 cm e envolvendo duas áreas da região cervical, fato este que está de acordo com o mencionado na literatura.

Lesões de grandes vasos (carótida, subclávia e jugular) são as principais causas de morte nos ferimentos penetrantes cervicais. Exsanguinação é a causa de morte mais comum e a estrutura mais comumente atingida é a artéria carótida, sendo afetada em 6 a 17% dos pacientes (BARROS et al., 2015). No presente estudo, os vasos acima citados foram poupados.

Segundo Cunha et al. (2014), as complicações do acesso cirúrgico anterior à coluna cervical podem ser diversas: lesões vasculares, esofágicas, traqueais, infecciosas e lesão do nervo laríngeo recorrente, causando disfonia, além de complicações como as infecções dos espaços cervicais profundos e do mediastino. No relato descrito acima, o paciente evoluiu com pequeno hematoma de parede torácica posterior, sendo necessária drenagem e manutenção da ferida operatória aberta para cicatrização por segunda intenção. 

Em pacientes com lesões extensas, que apresentem  evidências de infecções, deve-se de imediato administrar antibiótico por via parenteral, assim como o toxóide tetânico (AGUIAR et al., 2004). No caso apresentado, o paciente realizou a administração da vacina antitetânica, bem como a administração da antibioticoterapia profilática.

4 CONCLUSÃO

Conclui-se que traumas na região cervical não são comuns a partir da sexta década de vida , porém quando ocorrem geralmente estão associados a grande morbimortalidade. O atendimento inicial é decisivo para o  prognóstico do paciente, assim como a conduta tomada e a execução satisfatória da mesma. Além de procedimentos operatórios para resolução do trauma, é de suma importância à administração de medicamentos no pós-operatório, assim como a profilaxia antitetânica e a  . É de grande valia o estudo de pacientes com lesões cervicais, para que ocorra o aprimoramento do atendimento desses, bem como maior agilidade no seu desfecho; assim, tornando o tratamento praticável,  apesar da alta complexidade envolvida.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, A. S.W. et al, Atendimento emergencial do paciente portador de traumatismo de face. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, v 17, n 1, p 37-43, 2004. 

BARROS, A. C. M. et al., Análise retrospectiva de pacientes vítimas de trauma cervical penetrante submetidos à cervicotomia. Panamerican Journal of Trauma, v 4, n 2, p 96-102, 2015.

BRUCH, T. P. et al., Trauma transfixante- Relato de caso. Arquivos Catarinenses de Medicina, v 37, n 2, p 98-101, 2008.

CASSIMIRO, A. D. et al. Abordagem do trauma cervical penetrante na zona II. Revista Médica de Minas Gerais, v 20, p 48-50, 2010.

CORSI, P. R.; CARRIERI NETO, R.; RASSLAN, S. Ferimento de hipofaringe no trauma cervical penetrante. Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, v 25, n 1, p 1-3, 1998.

CRUVINEL NETO, J.; DEDIVITIS, R.A. Fatores prognósticos nos ferimentos cervicais penetrantes. Brazilian Journal of   Otorhinolaryngology, v 77, n 1, p 121-124, 2011.

CUNHA, M. L. V. et al . Complicações do acesso anterior à coluna cervical. Coluna/Columna,  v 13, n 3, p 177-179, 2014.

NASR, A. et al., Avaliação da utilização da tomografia computadorizada no trauma cervical penetrante. Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, v 42, n 4, p 215-219, 2015.

NEVES, N. Lesões da coluna cervical subaxial. Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia, v 20, n 3, p 277-286, 2012.

PINTO, F.R. et al., Corpo estranho perfurante cervical: relato de caso. Revista da Associação  Médica Brasileira , v 46, n 1, p 77-80, 2000.

VON BAHTEN, L. C. et al., Ferimentos Cervicais: Análise Retrospectiva de 191 casos. Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, v 30, n 5, p 374-381, 2003.


1 Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade CEUMA, São Luís – MA.
Endereço para correspondência:
e-mail: muradgreta@gmail.com
2Professora Ma. do Curso de Medicina da Universidade CEUMA.
e-mail: suzanekaty@gmail.com