O PAPEL DO ODONTOLEGISTA NA IDENTIFICAÇÃO DE VÍTIMAS EM DESASTRES AÉREOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7994500


Paola Santos do Espírito Santo1
Andréia Ferreira do Carmo2


Resumo 

O odontolegista é um profissional da área da odontologia que atua na identificação  humana de desastres em massa, como acidentes aéreos, nos quais devido a  magnitude dos acidentes, os corpos podem ser encontrados em estágio avançado  de decomposição, carbonizados ou fragmentados, tornando a identificação por  datiloscopia impossível. O objetivo desse artigo é abordar a importância da  identificação imediata das vítimas, bem como entender como acontece a atuação do  odontolegista na área criminal de identificação. Realizou-se um estudo de revisão de  literatura, onde foram pesquisados dissertações e artigos científicos, selecionados  através de buscas nas seguintes bases de dados: Scielo, MEDLINE, PUBMED,  BIREME, pesquisados nos últimos 10 anos, nos idiomas de português e inglês.  Visando esclarecer a sociedade, de modo geral, o aspecto científico e humano na  realização de um trabalho de suma importância no reconhecimento dos corpos na  medida em que se esgotam outros meios de identificação, gerando assim um  conforto junto às famílias envolvidas na tragédia, que poderão ter a certeza de  encontrar e dar um último adeus ao seu ente querido. A área criminalística da  Odontologia ainda é pouco discutida no meio acadêmico, portanto, demonstrar como  o odontolegista atua e é um profissional importante para a sociedade perante esse  tipo de tragédia, pode instigar o interesse de futuros cirurgiões-dentistas a sondar  essa área como profissional atuante. 

Palavras-chave: Odontolegista. Identificação Humana. Perícia Odontológica. Desastres Aéreos. 

1 Introdução 

O cirurgião-dentista, além das diversas especialidades clínicas, também pode atuar na área da criminalística, como profissional odontolegista. A Odontologia pode ser uma ferramenta fundamental na identificação de vítimas em desastres em massa, como nos acidentes aéreos, em que muitas vezes se torna  impossível a identificação do corpo por datiloscopia (sistema de identificação realizado através das impressões digitais). 

Desastres em massa são fenômenos de grande magnitude, inesperados e que  exigem uma ação rápida das autoridades, podendo ser divididos em desastres naturais, como terremotos e tsunamis, ou desastres acidentais, como incêndios e  quedas de aviões. Nesses eventos, em geral, há muitas vítimas, as quais podem ser  encontradas com graves ferimentos ou sem vida, que em alguns casos, devido aos  danos, precisa-se fazer a identificação humana. 

Esse trabalho tem como finalidade estudar como se realiza o processo de identificação humana em casos de acidentes aéreos, onde se faz  necessário o auxílio da família cedendo materiais como fotos do sorriso, registros  em gesso das arcadas, próteses bucais e prontuários, para que se possa fazer a  posterior análise, comparação e interpretação com o exame efetuado no crânio e os  respectivos arcos dentais. Dessa forma, é possível chegar aos padrões genéticos,  podendo estabelecer relação entre as vítimas e os familiares de forma concreta.  

O trabalho possui também o objetivo de abordar a importância  da identificação imediata das vítimas para que se possa decretar civilmente o óbito,  sanando as dúvidas dos familiares e dando a chance para que estes possam viver o  seu luto com respeito, despedindo-se do seu ente querido, além de proporcionar  soluções como a guarda de menores, bem como questões legais com os cônjuges  entre outras situações vivenciadas. 

2 Desenvolvimento 

2.1 Metodologia 

O trabalho se trata de uma revisão de literatura, onde foram  utilizados livros, dissertações e artigos científicos, publicados nos últimos 10 anos, selecionados através de busca nas bases de dados: SciELO, Medline, Pubmed e Bireme. As palavras-chave utilizadas na busca foram: odontolegista, identificação  humana e desastres aéreos. 

2.2 Discussão 

A odontologia está inclusa na área criminal, o profissional odontolegista atua nas áreas de foro administrativo, criminal, cível e na identificação humana, sendo a área de foco na Odontologia Legal. A identificação pode ser realizada no vivo, em casos de agressão, como mordidas na vítima, e no cadáver,  quando se torna impossível a identificação por datiloscopia (MORETTO et al., 2017). 

Em todo atendimento odontológico, o cirurgião-dentista deve fazer uma anamnese detalhada, preenchendo minuciosamente o prontuário, com os  exames extra e intraorais, pois, além de utilizada como ficha de acompanhamento  do paciente, o profissional pode precisar das informações para fins legais ou  periciais (COUTINHO et al., 2013). 

Vale ressaltar a importância dos registros fotográficos do paciente como forma de auxiliar e visualizar a evolução nos tratamentos  odontológicos, além de ser uma ferramenta útil no processo de reconhecimento do mesmo ou para os fins comparativos, por exemplo, comparação do registro  fotográfico do indivíduo com uma mordida encontrada em uma vítima, caso seja necessário. 

A comparação pelo sorriso é uma técnica muito utilizada, no entanto, tem suas limitações, pois, as fotografias, em geral, não são padronizadas, sendo assim, podem apresentar angulações diferentes. Vale ressaltar que as fotos devem ser recentes, uma vez que, alguns tratamentos odontológicos podem fazer  com que o sorriso sofra alterações (TERADA et al., 2011). Por outro lado, cada indivíduo tem suas particularidades, deste modo, torna-se viável a identificação por meio dessa técnica. 

Trevisol (2021) diz que, através do estudo e análise detalhada da cabeça, observando os ossos e os dentes, é possível determinar a idade, sexo, estatura, ancestralidade e, pela técnica de reconstrução facial, é possível traçar o aspecto facial do indivíduo.  

Sendo assim, existem vários fatores para a identificação das vítimas, como número de corpos, níveis de danos e a facilidade na retirada de  amostras de DNA. Quando em grande escala, esse trabalho requer uma atenção  redobrada. Segundo Carrero (2009, p.9) “a identificação dos cadáveres tem  motivações morais e humanitárias. É a garantia aos familiares de que o corpo que  está sendo entregue é realmente o do ente querido”. Portanto, observa-se a necessidade de que em acidentes catastróficos seja seguido protocolos e condutas  rigorosas. 

Em desastres em massa, principalmente desastres aéreos, o acidente em grande parte resulta em cadáveres carbonizados, fragmentados ou em decomposição avançada. O papel desse profissional se faz de extrema importância,  pois a Odontologia Legal pode ser considerada o meio mais viável e rápido, tendo  em vista o grande número de corpos a serem identificado (LEITE et al., 2011). 

As vítimas de desastres aéreos dificilmente apresentam  queimaduras leves que possibilitam a identificação pela análise digital, pois os  corpos sofrem um processo de carbonização (VANHONI, 2019). Nesses casos,  outras técnicas podem ser realizadas para o sucesso da identificação humana. 

O processo de identificação é realizado através das técnicas de  datiloscopia, DNA e os métodos odontológicos, que, por apresentarem grande  resistência à ação dos fatores ambientais como, calor, fogo e umidade, se tornam  essenciais. As equipes periciais farão a separação dos dados post-mortem (PM) e  ante-mortem (AM) de cada vítima, para posterior análise, interpretação e  comparação (BIANCALANA, et al. 2015).  

A Revista Brasileira de Odontologia Legal (2015, p.55) ressalta  que “a identificação odontológica é um método comparativo, por isso durante o  exame do crânio e seus respectivos arcos dentais, é crucial a presença de dados  odontológicos”, sendo assim, as famílias das vítimas passam a agir junto às equipes,  ajudando nas aquisições dos registros AM como prontuários, fotos do sorriso,  modelos de gesso e próteses bucais. 

No local do acidente, a equipe responsável pela coleta deve identificar o que é tecido humano, separando os corpos dos outros materiais  provenientes dos fragmentos, como fuligem ou concreto. Os restos mortais devem  ser encaminhados ao Instituto Médico Legal (IML), onde a Polícia Técnico-Cientifica  tentará obter amostras de material genético para enviar para o laboratório de DNA.  Devido a presença de fuligem, tinta, combustível e/ou outros produtos químicos que  dificultem a obtenção de DNA puro, Lenharo (2014, p.3) destaca que é necessário  que se repita várias vezes os testes. 

Através dos testes, os perfis genéticos de cada indivíduo são descobertos, podendo estabelecer relações entre as vítimas e suas respectivas  famílias, onde as mesmas são chamadas a fazerem exames de sangue para  posterior comparação. Podendo também fazer a comparação dos restos mortais, permitindo a identificação dos corpos.

Com o objetivo de seguir um padrão de forma sistematizada, foi implantado um protocolo de identificação de vítimas pela INTERPOL (Organização Internacional de Polícia Criminal) chamado de protocolo DVI (Disaster  Victium Identification) ou DVI Guide. O protocolo é implantado mundialmente, a fim de estabelecer estratégias para servir de modelo único, de respostas rápidas e  eficazes (BIANCALANA, et al. 2015). Pode-se observar na figura 1 uma página desse protocolo. 

Figura 1 – Formulário Ante Mortem Protocolo DVI 

Fonte: RBOL. 

No intuito de ter uma equipe preparada em casos de desastres, cada país deve selecionar especialistas de diversas áreas como, médicos, odontólogos, psicólogos  e policiais (BIANCALANA et al., 2015). Essa equipe é enviada ao local, para busca, reconhecimento do local, recolhimento de ossos e fragmentos dos corpos, que devem ser separados e numerados, onde se torna fixa a numeração de todos os fragmentos para cada corpo. 

Vale destacar que para assegurar uma ordem, são preenchidos formulários  para as vítimas, que são divididos em: formulário amarelo (registro AM) e formulário rosa (registro PM). Dessa forma, as informações podem ser facilitadas, tanto para o  profissional, como, principalmente, aos familiares das vítimas (BIANCALANA, et al. 2015). Assim, as equipes podem trabalhar de forma mais organizada, tendo sucesso  nas perícias realizadas. 

No Quadro 1, pode-se observar, no âmbito odontológico, dados de protocolo  para gerenciamento de acidentes aéreos, mostrando o trabalho necessário das  equipes em acidentes desse tipo. 

Quadro 1 – Dados sobre utilização de protocolo de gerenciamento e da comparação  odontológica 

Acidente AéreoUso do protocolo pré-estabelecido de gerenciamento de acidenteRelato do uso da comparação odontológicaTempo necessário para a identificação dos corposN° de pessoas que formavam a  equipe odontológica de  identificação
GOL 2006 NÃO“Utilizada em 15 corpos. De forma isolada, 9 corpos foram identificados única e  exclusivamente pela odontologia.”“Em 15 dias, já  tínhamos identificados a  maioria. Foi tudo muito rápido”“3 pessoas”
TAM 2007 NÃO“Dos 195 restos mortais  localizados e identificados (186 no interior da aeronave e 13 no local), a odontologia  legal contribuiu isoladamente em 79 casos (40,5%).”“49 corpos foram  identificados praticamente de 20 a 30 dias e um  corpo demorou mais de 1 mês.”“05 peritos criminais cirurgiões dentistas do IML”
AIR FRANCE  2009SIM“De forma geral, a  odontologia foi responsável como método primário, que é aquele que seria suficiente, por mais de 40  dos casos. Como método de aplicação, a odontologia sobe de 40% para 60%”.“49 corpos foram  identificados praticamente de 20 a 30 dias e um corpo demorou mais de 1 mês.”“10 a 15 dentistas.”
Fonte: Leite et al. (2011, p.55).

Como visto no Quadro 1, é possível identificar o papel da equipe odontológica  em meio a acidentes aéreos, sendo eles, GOL 2006, TAM 2007 e AIR FRANCE  2009, onde, em sua maioria, os corpos foram identificados através do método  odontológico. “Nesses incidentes coletivos e catastróficos, o primordial, após o socorro e resgate dos sobreviventes, é a busca pela identidade das vítimas” (BIANCALANA et al., 2015, p.49), denotando o quanto as famílias sofrem na espera  de um último adeus. 

Biancalana et al. (2015, p.49) afirma que, perante a visão médico-legal, jurídica  e sociológica e em razão do vínculo familiar com a vítima quando se busca a  verdadeira identidade do ser humano vitimado, em casos de falecimento, por lei, na  maioria dos países, deve-se emitir o atestado de óbito, a fim de revelar a causa mortis, bem como comprovar civilmente a morte. O Atestado de óbito também ampara na resolução de problemas como a guarda de menores, cônjuges das vítimas e a preparação do funeral, quando feita a liberação dos corpos, para que os familiares e amigos possam se despedir (ALVES, et al. 2022, p.2). 

Tragédias de difíceis localidades requerem uma força tarefa, o que pode levar dias para que se possa executar o trabalho de forma digna, fazendo com que as equipes se comovam com a situação, mas que não desistam. Segundo Dr. Samuel Ferreira, “o mínimo que podemos fazer é restituir aos familiares os corpos  identificados, para serem enterrados dignamente. Nosso trabalho é tão nobre quanto salvar vidas. Por mais doloroso que seja” (KERSUL, 2020, p.46). Por trás das resoluções, há uma equipe determinada, que não mede esforços para sanar um pouco a dor das famílias causada pelo desastre. 

Na imagem a seguir podemos observar parte do esquadrão que serviu nas buscas do acidente aéreo do voo GOL 1907. 

Figura 2. Militares do PARA-SAR retornam ao local 

O Capitão Ivan observa um dos familiares. A expressão estampada em seu rosto é de profunda tristeza. Para ele, o trabalho dos homens das equipes de busca e resgate representa a última esperança das famílias das vítimas.  (KERSUL, 2020, p.58).  

Para as famílias, mais triste que a perda de um ente querido, é nunca poder  achar o corpo, portanto, a identificação humana é essencial, principalmente em  casos de acidentes como esse (GOL 1907), onde inicialmente as informações  demoram a chegar, e o desespero aumenta em busca de respostas, mas no final a  sensação é de dever cumprido, pois todas as vítimas voltaram as suas famílias. 

Sendo assim, nota-se que o trabalho de identificação é indispensável, tanta  para as vítimas e familiares, quanto para as equipes que trabalham incansavelmente  nesses desastres, destacando que a atuação do perito odontolegista é de suma importância na identificação de vítimas de desastres aéreos, na conclusão de casos,  sendo eles, para decretar causa mortis ou para devolver as vítimas suas respectivas  identidades. 

3 Conclusão 

Como abordado, a odontologia não se limita somente ao consultório, podendo também estender-se para a área criminal, o odontolegista entra como um  profissional ímpar no que se refere aos casos de identificação humana nos  desastres aéreos. A atuação do odontolegista na identificação das vítimas de casos  de grande magnitude promove a maior eficácia na conclusão das causas mortis,  bem como acelera o processo de devolução dos corpos as suas respectivas  famílias. Partindo desse ponto, entende-se que o papel do perito odontolegista é  indispensável e o meio mais viável, uma vez que, nesse tipo de desastre, a análise  odontológica pode ser o único método para a identificação da vítima encontrada em  estado de carbonização/decomposição.  

Referências 

ALVES, S. et al. Atestado de óbito: uma reflexão sob a perspectiva do direito médico  brasileiro. Rev. Eletr. Acervo Méd., v.3, p. e9663, 2022. 

BIANCALANA, R. et al. Desastres em massa: a utilização do protocolo de DVI da  Interpol pela odontologia legal. 2.2. 2015. 

BRASIL. Ministério da Defesa. Força Aérea Brasileira. Notícias: Dez anos depois  militares voltam ao local do acidente e homenageiam vítimas do voo 1907. Brasília, DF. Disponível em: https://www.fab.mil.br/noticias/mostra/27587/DEZ%  20ANOS%20DEPOIS%20%20Militares%20voltam%20ao%20local%20do%20aciden t20e%20homenageiam%20v%C3%ADtimas%20do%20voo%201907. Acesso em: 21  out. 2022.  

CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO.  Identificação humana em catástrofes: aspectos éticos e técnicos – 1957. São Paulo,  2009. 8 e 9 p. Disponível em:  https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=1230. Acesso em: 19 out. 2022. 

COUTINHO, C. et al. O papel do odontolegista nas perícias criminais. Revista da  Faculdade de Odontologia-UPF, v. 18, n. 2, 2013. 

KERSUL, M. Ninguém ficou para trás: a operação de Busca e Resgate do voo 1907.  2020. Disponível em:  https://www.google.com.br/books/edition/NINGU%C3%89M_FICOU_PARA_TR%C3 %81S/77opEAAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=0. Acesso em: 20 out. 2022 

LENHARO, M. Entenda como é feita a identificação de vítimas em acidentes de  avião. G1, Ciência e Saúde. 2014. Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e saude/noticia/2014/08/entenda-como-e-feita-identificacao-de-vitimas-em-acidentes de-aviao.html. Acesso em: 19 out. 2022 

LEITE, M. et al. A importância da atuação do odontolegista no processo de  identificação humana de vítimas de desastre aéreo. Rev. Odontol. Brasil Central,  2011.  

MORETTO, M.J. et al. A atuação do odontolegista: conceito, história e recursos de  identificação. J. Multidisc. Dent., v.10, n.1, p.36-40, 2020.  

TERADA, A.S.S.D. et al. Identificação humana em odontologia legal por meio de  registro fotográfico de sorriso: relato de caso. Rev. Odontol. UNESP, v.40, n.4,  p.199-202, 2011. 

TREVISOL, S. et al. Odontologia Forense: sua importância e meios de identificação  post mortem. Rev. Bras. Criminal., v.10, n.1, p.11-21, 2021. 

VANHONI, B. Abordagem da perícia odontológica em corpos carbonizados. Universidade Federal de Santa Catarina. 2019.


1Acadêmico do Curso de Odontologia da Faculdade Anhanguera de Macapá

2Docente do Curso de Odontologia da Faculdade Anhanguera de Macapá