PROGRAMA JUSTIÇA 4.0 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA SOB A ÓTICA DO PRAGMATISMO JURÍDICO.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7926734


Álvaro Amorim Dourado Lavinsky¹


RESUMO

O artigo apresenta as contribuições do pragmatismo jurídico na reflexão sobre o Programa Justiça 4.0 do Conselho Nacional de Justiça, consideradas as experiências realizadas durante a epidemia do coronavírus. A partir do método lógico-dedutivo, pesquisa bibliográfica, legislação nacional e doutrina, abordam-se noções introdutórias sobre as medidas elencadas no programa Justiça 4.0 e acerca do pragmatismo jurídico, em sua vertente de teoria da decisão judicial. São mencionadas as principais características do pragmatismo: antifundacionalismo, contextualismo, instrumentalismo, consequencialismo, interdisciplinariedade e falibilismo. Ao final, ilustram-se exemplos das práticas previstas no Programa Justiça 4.0 e sua possível compatibilização com o pragmatismo jurídico.

Palavras-chave: Pragmatismo jurídico, método abdutivo, Programa Justiça 4.0, inteligência artificial e processo.

ABSTRACT

The article presents the contributions of legal pragmatism in the reflection on the Justice 4.0 Program of the National Council of Justice, considering the experiences carried out during the coronavirus epidemic. From the logical-deductive method, bibliographic research, national legislation and doctrine, introductory notions about the measures listed in the Justice 4.0 and about legal pragmatism, in its aspect of judicial decision theory, are approached. The main characteristics of pragmatism are mentioned: anti-foundationalism, contextualism, instrumentalism, consequentialism, interdisciplinarity and fallibilism. At the end, examples of the practices provided for in the Justice 4.0 Program and their possible compatibility with legal pragmatism are illustrated.

Keywords: Legal pragmatism, abductive method, Program Justice 4.0, artificial intelligence and process.

INTRODUÇÃO

A epidemia causada pelo novo coronavírus acarretou efeitos sociais e econômicos devastadores, que ainda se manifestarão por longo tempo. Diante da alta circulação e letalidade do vírus, saturamento dos serviços de saúde, redução do funcionamento do transporte público, fechamento dos Fóruns, impossibilidade de apresentação dos presos às audiências, o Poder Judiciário foi compelido a desenvolver medidas que garantissem a continuidade das atividades judiciárias e atendimento aos protocolos de saúde sanitários.

Dados expostos no Relatório Justiça em Números, publicado anualmente pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, demonstram que houve aumento da produtividade e economia de recursos orçamentários, em decorrência de tais medidas. No Brasil, o Judiciário proferiu 40,5 milhões de sentenças e acórdãos, 59,5 milhões de decisões judiciais e ocorreu diminuição de despesas de 4,5% em relação aos gastos de 2019. A redução ocorreu pela variação na rubrica das despesas de gastos com pessoal, que reduziram 3,3%; nas despesas de capital, com queda em 38,8%; e nas outras despesas correntes, com diminuição de 9,1%1.

Em 2020, ingressaram 1,9 milhão de casos novos criminais e mais 311,6 mil execuções penais no Poder Judiciário. A quantidade de processos novos diminuiu em relação a 2019, mas ocorreu aumento de 12,2% no acervo, maior quantitativo de processos criminais em tramitação de toda a série histórica. Os casos pendentes equivalem a 3,1 vezes a quantidade de processos baixados no mesmo ano. O número de processos baixados continuou sendo superior ao número de novos casos, mesmo com o esforço crescente de servidores e magistrados o número de baixados diminuiu, rompendo uma tendência de três anos consecutivos2.

No âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo constatou-se igualmente um significativo acréscimo de produtividade durante o exercício do trabalho à distância por servidores e magistrados, desde março de 2020 foram praticados 50 milhões de atos processuais neste período, entre sentenças, acórdãos, despachos e decisões3.

O Judiciário é alvo de críticas constantes em razão da morosidade e abuso no exercício do poder punitivo. Ao mesmo tempo existe no meio social a ideia disseminada de que a atuação jurisdicional é inútil, insuficiente ou até inexistente, sem que haja espaço para uma discussão aprofundada sobre as causas do fenômeno, gerando o descrédito das instâncias de proteção.

Nesse contexto, os julgadores devem priorizar a aplicação de conhecimentos interdisciplinares de direito, filosofia, economia e tecnologia, incorporando estratégias que se adequem aos princípios constitucionais do serviço público, à natureza específica da atividade jurisdicional, ao ambiente de trabalho dos servidores e necessidades dos cidadãos.

Com foco nessa problemática, o presente estudo aborda o Programa Justiça 4.0, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça, e apresenta noções introdutórias sobre a corrente filosófica do pragmatismo jurídico, com suas reflexões sobre o antifundacionalismo, contextualismo, instrumentalismo, consequencialismo, interdisciplinariedade, falibilismo do conhecimento científico e método prospectivo de formulação da decisão judicial, a fim contribuir para o debate jurídico no tocante à utilização de novas tecnologias adotadas ou incentivadas pelos Tribunais durante a epidemia do coronavírus.

O Programa Justiça 4.0 do CNJ.

O desenvolvimento tecnológico do processo no Brasil iniciou-se com a informatização dos processos. A Lei 11.419/2006 previu o uso de meio eletrônico na tramitação dos processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais. Atualmente, em torno de 85% dos processos já são iniciados na forma digital e ocorre também a gradual digitalização de processos físicos, gerando uma grande base de dados para pesquisas relativas à atuação do Poder Judiciário4.

Houve depois uma fase de automação, utilizando-se a tecnologia para aprimorar práticas adotadas na tramitação de processos, especialmente tarefas repetitivas e de baixa complexidade, como a realização de intimação automatizada, liberando-se a atuação dos servidores e magistrados para tarefas mais importantes.

Atualmente se trabalha com tecnologia capaz de modificar as práticas processuais tradicionais, o tratamento das partes e do conflito. Surgem as Cortes Digitais que empregam inteligência artificial, nova fase de On-line Dispute Resolution– ODR; ou a própria estruturação de uma cognição com ODR, como nos casos do Tribunal de British Columbia, no Canadá, dos três tribunais de Internet da China e do Tribunal da Estônia e ainda aplicações de inteligência artificial durante o processo5.

Por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Conselho da Justiça Federal e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, foi criado o “Programa Justiça

4.0 – Inovação e efetividade na realização da Justiça para todos”, concentrando medidas que foram adotadas pelo Poder Judiciário durante a pandemia do novo coronavírus, com os objetivos de promover o acesso à Justiça, maior transparência e eficiência do Poder Judiciário.

São ações que fazem parte do Justiça 4.0 : 1- Implantação do Juízo 100% Digital; 2 – Implantação do Balcão virtual; 3 – Projeto da Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ), com possibilidade de ampliar o grau de automação do processo judicial eletrônico e o uso de Inteligência Artificial (IA); 4- Auxílio aos tribunais no processo de aprimoramento dos registros processuais primários, consolidação, implantação, tutoria, treinamento, higienização e publicização da Base de Dados Processuais do Poder Judiciário (DataJud), visando contribuir com o cumprimento da Resolução CnJ n. 331/2020; 5- Colaboração para a implantação do sistema Codex, que tem duas funções principais: alimentar o DataJud de forma automatizada e transformar em texto puro as decisões e petições, a fim de ser utilizado como insumo de modelo de inteligência artificial; 6 – Aprimoramento e disseminação da Plataforma Sinapses, que compartilha modelos de inteligência Artificial6.

A digitalização de processos e a propositura de ações por meio dos sistemas de processo judicial eletrônico foram recursos amplamente utilizados durante a epidemia do COVID-19. A “Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro – PDPJ-Br”, criada pela Resolução CNJ n. 335/20207, instituiu políticas públicas de governança e gestão de processo judicial eletrônico, incentivando o desenvolvimento colaborativo entre os tribunais e utilizando conceitos inovadores, como a adoção obrigatória de microsserviços, computação em nuvem, modularização, experiência do usuário (user Experience – uX) e uso de inteligência artificial.

O “Juízo 100% Digital”, instituído pela Resolução n. 345/2020 do CNJ, possibilitou que os atos processuais fossem praticados remotamente, pela internet, inclusive as audiências e sessões de julgamento que ocorreram por videoconferência8.

No tocante à audiência por meio virtual, especialmente em razão do interrogatório do réu, até pouco tempo prevalecia o entendimento jurisprudencial pela sua proibição; por exemplo, o Estado de São Paulo, havia promulgado a Lei n. 11.819/2005 para autorizar a utilização de aparelhos de videoconferência, com o objetivo de tornar mais célere o trâmite processual, mas o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade formal da norma paulista, por entender existir usurpação de competência privativa da União9.

Cuida-se de tema sensível, em razão da relevância jurídica10 e simbólica das audiências, momento em que réus, vítimas e testemunhas entram em contato com o sistema judiciário e são manejadas uma série de expectativas e representações, traduzidas na disposição do espaço físico, formas de tratamento dispensadas aos diferentes participantes, linguagem e vestuário utilizados11 etc., que influenciarão a maneira que a sociedade avalia a atividade jurisdicional.

A Resolução n. 372/202112 do CNJ, criou a plataforma “Balcão Virtual”, disponibilizando ferramentas de videoconferência, v.g., Microsoft Teams, WhatsApp e Zoom, nos sites dos Tribunais, propiciando agilidade e contato imediato com o setor de atendimento de cada unidade judiciária, durante o horário de atendimento ao público.

Discute-se também a utilização de tais aplicativos na realização de citações e intimações. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou em 2017, por unanimidade, a utilização do WhatsApp como ferramenta de intimações durante o julgamento virtual do Procedimento de Controle Administrativo (PCA), de n. 0003251-94.2016.2.00.0000, praticamente dispensando a utilização de cartas precatórias13.

O Superior Tribunal de Justiça tem permitido tal procedimento, considerando o contexto de pandemia, assegurada a autenticidade do ato e a ausência de prejuízo ao acusado14.

É evidente que o uso das mencionadas tecnologias propicia inúmeras vantagens, possibilitando economia de recursos, maior eficiência na prestação jurisdicional, previsibilidade e segurança das decisões.

Mas deve ser levado em consideração que nem todas as pessoas possuem acesso à internet e informação suficiente para utilização dos meios necessários à consulta dos processos digitais e participação em audiências virtuais.

A Recomendação CNJ 130/2022 prevê instalação de Pontos de Inclusão Digital (PID), por meio da celebração de acordos de cooperação com Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradorias, Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), polícias, municípios e órgãos da Administração Pública Direta e Indireta, que se situem na área territorial de suas competências, possibilitando amplo acesso ao Poder Judiciário. Os Pontos de Inclusão Digital (PID) consistirão em salas que permitam, de forma adequada, a realização de atos processuais, principalmente depoimentos de partes, testemunhas e outros colaboradores da justiça, por sistema de videoconferência, bem como a realização de atendimento por meio do Balcão Virtual. 15

O Projeto de Lei nº 21/2020, em trâmite no Senado Federal, pretende regulamentar o uso da inteligência artificial, sendo composto de 16 artigos que tratam de aspectos conceituais; critérios de interpretação; fundamentos para o uso; objetivos; princípios para o uso responsável; direitos das pessoas interessadas e sua defesa; deveres dos agentes; diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios16.

Vale anotar que o referido Projeto é sucinto, aproxima-se de uma carta de princípios, sem regular os procedimentos específicos a serem adotados pelos desenvolvedores e utilizadores, e foi aprovado na Câmara em apenas três meses, sem que houvesse ampla discussão com a opinião pública. A título comparativo, o Marco Civil da Internet no Brasil foi aprovado em 2014, com 32 artigos, após debate de cinco anos e o projeto de regulamentação da inteligência artificial da Comissão Europeia foi iniciado em 2018 e a previsão é que ocorram mais três ou quatro anos até que o texto seja finalizado17.

Freitas sintetiza os diversos conceitos de inteligência artificial como o “sistema algorítmico adaptável, relativamente autônomo, emulatório da decisão humana”18. A Resolução nº 332/20 do Conselho Nacional de Justiça entende por inteligência artificial o “conjunto de dados e algoritmos computacionais, concebidos a partir de modelos matemáticos, cujo objetivo é oferecer resultados inteligentes, associados ou comparáveis a determinados aspectos do pensamento, do saber ou da atividade humana” e estabelece diretrizes para a utilização da inteligência artificial no Poder Judiciário, por exemplo, respeito aos direitos fundamentais; não discriminação; publicidade e transparência; governança e qualidade; segurança; controle do usuário; pesquisa, desenvolvimento e implantação de serviços de inteligência artificial; prestação de contas e responsabilização 19.

Em matéria penal, o artigo 23 da Resolução 332/20 permite a utilização de soluções computacionais para o cálculo de penas, prescrição, verificação de reincidência, mapeamentos, classificações e triagem dos autos, para fins de gerenciamento de processos, não sendo estimulada a utilização de modelos de inteligência artificial para criação de modelos de decisões preditivas.

As ferramentas de inteligência artificial são usadas no sistema de justiça brasileiro com diversos objetivos, tais como: a) busca automatizada de jurisprudência b) resolução de disputas on-line; c) análise preditiva de decisões; d) triagem de processos; e) transcrição de voz g) geração semiautomática de peças processuais etc. Estudo da Fundação Getúlio Vargas indica que existem 64 projetos de inteligência artificial implementados, em fase de projeto-piloto ou em desenvolvimento, em 47 Tribunais nacionais20. Dentre as várias experiencias promissoras em curso, podemos destacar as ferramentas Victor, Sócrates, Elis, Mandamuse a Plataforma Sinapses.

A ferramenta Victor (STF) é capaz de identificar os recursos que se enquadram nos 27 temas mais frequentes de repercussão geral. É capaz de proceder à identificação e separação das cinco principais peças dos autos: acórdão recorrido, o juízo de admissibilidade do recurso extraordinário, petição do recurso extraordinário, sentença e agravo no recurso ocasionando redução de tempo de, em média, 44 minutos pelo servidor, para 5 segundos pelo Victor.

Sócrates (STJ) é destinado aos gabinetes dos Ministros, realiza o monitoramento, o agrupamento de processos e identificação de precedentes. Pode identificar grupos de processo em um universo de 100 mil processos, realizando a comparação de todos entre si em menos de 15 minutos.

ELIS (TJ/PE) pode analisar e efetuar triagem dos processos de executivos fiscais, que totalizam mais de 50% de todas as ações que estão em trâmite no mencionado Tribunal. Ao longo do desenvolvimento do sistema, identificou-se um gargalo na triagem inicial (análise de competência, divergência de dados cadastrais, prescrição, dentre outros), que era desenvolvida de forma manual, antes do despacho inicial no processo. Diante desse quadro, o sistema focou essa etapa, a fim de criar um projeto de automação apoiado por IA para agilizar o processamento, bem como um dashboard para acompanhamento da evolução do processamento. Antes a conferência inicial de cerca de 70 mil processos levava aproximadamente 18 meses. Com o sistema de IA, tal processamento leva em torno de 15 dias, é 36 vezes mais rápido.

Mandamus (TJRR): utiliza a inteligência artificial em três etapas: análise da decisão, confecção do mandado e distribuição que classifica por urgência, natureza, complexidade e geolocalização dos endereços. A geolocalização permite o acompanhamento do cumprimento do mandado até a sua distribuição. O aplicativo disponível para os oficiais de justiça permite o envio do mandado por e-mail ou WhatsApp. A contrafé e a assinatura da certidão são digitais.

O Sinapses (TJRO – nacionalizado pelo CNJ ) é uma plataforma para desenvolvimento e disponibilização, em larga de modelos de inteligência artificial por outros tribunais, na forma de microsserviços. Funcionalidades presentes na Plataforma: sugere o movimento que será aplicado no despacho (gratuidade de justiça, mero expediente, dentre outros); identifica casos possíveis de prevenção; identifica similaridade entre documentos, a partir de um documento escolhido; gerador de texto jurídico; classifica as petições iniciais de acordo com temas pré-estabelecidos.

O Tribunal de Conta da União – órgão administrativo que julga correção de recursos públicos na esfera federal – desenvolveu os robôs Alice, Sofia e Mônica para poder analisar milhares de dados referentes a compras realizadas por órgãos públicos, a fim de verificar irregularidades (como sobrepreço ou existência de produtos similares mais baratos) e sugerir aprimoramento dos processos de aquisição de bens pela Administração Pública. Órgãos da advocacia pública tem desenvolvido advogados-robôs, que analisam dados e informações para propor soluções jurídicas ótimas para um determinado caso21.

O PRAGMATISMO JURÍDICO FRENTE ÀS MEDIDAS PROPOSTAS PELO PROGRAMA JUSTIÇA 4.0 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA.

A filosofia dualista de Kant, que separava rigorosamente as ideias de natureza e espírito, exerceu grande influência no pensamento ocidental, especialmente em Kelsen. Como neokantista, Kelsen desenvolveu a Teoria Pura do Direito, tendo como pressuposto a incomunicabilidade entre o ser e o dever-ser, criando um dualismo metodológico e uma separação entre a perspectiva descritiva explicativa e a prescritiva normativa (apenas esta interessa ao Direito). Adotava-se então uma diferenciação entre a existência e racionalidade, teoria e ordem fática, pensamento e ação, ciência e ética22.

Além disso, o método positivista considera que a ciência é neutra, admitindo o conceito neo-kantiano de realidade pensada ou ideal, elimina-se do fenômeno jurídico qualquer interferência de natureza puramente especulativa, elementos éticos, sociológicos ou psicológicos. O conceito de validade da lei é o essencial ao método positivista de análise do Direito23.

O positivismo jurídico, com sua lógica dedutiva, abstração e rigidez de conceitos, não se mostra suficiente para interpretar as relações sociais e jurídicas que estão em constante evolução, principalmente levando em consideração o contexto novo e de consequências imprevisíveis trazido pela epidemia do coronavírus.

Nesse panorama, se mostra útil que as medidas adotadas ou incrementadas pelo Programa Justiça 4.0 durante a pandemia sejam analisadas através do filtro do pragmatismo jurídico.

Sobre o histórico do pragmatismo, Mora afirma que se cuida de filosofia, ou grupo de correntes filosóficas, que surgiram principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas que repercutiram em outros países, ou se manifestaram de maneira independente em outros países com outros nomes. O pragmatismo norte-americano surgiu no Metaphysical Club, de Boston (1872 1874), ao qual pertenciam, entre outros, Chauncey Wright, F. E. Abbott (1836-1903), Peirce e James24.

O pragmatismo de Peirce considera a continuidade um conceito fundamental. A descoberta influencia a justificação, possibilitando entender que a proposta a partir da abdução é colocada em um primeiro momento no tempo, que é contínuo e se segue para a justificação, havendo comunicação entre a descoberta e a justificação.

A dedução é utilizada posteriormente à abdução ou seriam obstadas a interdisciplinariedade e criatividade no processo investigativo, próprias da abdução. Assim, a abdução é ponto de partida da investigação e está vinculada ao contexto da descoberta, não à fase de justificação ou racionalização de premissas, já que propõe um juízo falível de probabilidades25.

O raciocínio abdutivo, ao possibilitar se inferir daquilo que já se sabe algo que ainda não se conhece, supera a indução permitindo o avanço da ciência e conhecimento novo. Diferentemente da indução e da dedução, a abdução é uma forma sintética de inferência, que não é validada nem a priori, nem dedutivamente. Sua base racional é o falibilismo e representa uma lógica de descoberta. E por pressupor que todo conhecimento é falível, constitui-se em método de constante aperfeiçoamento.

A metodologia pragmatista adota perspectiva contextual e funcionalista, analisando-se cada situação, os indivíduos e o meio-ambiente em que inseridos, cuida-se de uma lógica retirada da experiência e anti-essencialista, rejeitando os modelos formais de conceituação do discurso26.

O pragmatismo jurídico, por sua vez, é concepção crítica do positivismo e que tem por objetivo aplicar a tradição filosófica do pragmatismo ao problema da interpretação jurídica27. Representa também uma teoria da decisão que tem por foco a atividade prática relativa à concretização das normas jurídicas.

A interpretação e aplicação da lei, sob a ótica do pragmatismo, não ocorrem em momentos distintos, mas, observado o método tópico, a partir da análise do problema concreto. O raciocínio jurídico sobre os fatos começa como uma abdução: é necessária uma hipótese que forneça, ou pelo menos sugira, uma explicação dos fatos conhecidos e, posteriormente, os fatos são apurados no processo, reconstrução e resolução pública do conflito.

Portanto, o pragmatismo jurídico não prioriza os silogismos lógicos de antecedentes que meramente realizam a subsunção da norma jurídica ao fato e somente se justificariam pela conveniência de não explicitar a real motivação da sentença ou pela inconsciência, por parte do julgador, das razões pessoais que conduziram à decisão28.

O pragmatismo adota perspectiva antifundacionalista – a verdade não se encontra em princípios abstratos e estanques, previamente construídos, como no positivismo. Hipóteses pretéritas devem sempre ser submetidas a verificação através do método abdutivo. Assim, as novas medidas adotadas pelos Tribunais durante a pandemia do coronavírus não podem ser simplesmente afastadas sem que ocorra exaustiva investigação de tais medidas e normas correlatas, o contexto em que produzidas e suas consequências práticas29.

No processo interpretativo várias áreas do conhecimento são utilizadas para aferir os efeitos da ação, possibilitando a melhor escolha. A norma é apreendida não apenas como texto legal, mas considerando-se o contexto, entendido como resultado da interpretação do texto, atentando-se à finalidade do legislador, as circunstâncias particulares do caso, a jurisprudência, a utilidade e consequências práticas da decisão30.

O julgador, diante de um problema, não se restringe a um método específico, mas, utilizando-se da interdisciplinariedade, simultaneamente no problema em si, fornecendo elementos para compreensão da atividade jurisdicional, com vistas ao seu aperfeiçoamento, oportunizando a utilização de criatividade e autocorreção.

A interdisciplinariedade, essencial para o pragmatismo, ressalta a necessidade de assimilação das novas tecnologias previstas no Programa Justiça 4.0, aliando conhecimentos do campo da informática, economia e administração ao direito31.

Sob o prisma do pragmatismo jurídico, as premissas de ordem econômica, psicológica, social, que efetivamente motivam a decisão judicial são posteriormente justificadas por meio de uma lógica viva que atua no contexto da descoberta e não da justificação, constituindo alternativa para investigar o modo que se chegou à conclusão. Em suma, o pragmatismo jurídico não pretende delimitar como o juiz deve decidir, mas como, de fato, ele decide32.

Não existe, pelo menos até o atual momento, um sistema de inteligência artificial que desempenhe perfeitamente as mesmas funções do intelecto humano. Conforme antevisto por Dewey há décadas, no procedimento decisório “o problema não é tirar uma conclusão de premissas dadas; isso pode ser feito da melhor maneira por alguma maquinaria inanimada ao comando de um teclado” 33.

Por óbvio, não há programa que se assemelhe a um “juiz-robô”, apenas ferramentas destinadas ao auxílio da atividade jurisdicional, mesmo porque uma máquina, que trabalha a partir de equações matemáticas, não possui a capacidade de manejar conceitos como justiça, igualdade, dignidade da pessoa humana etc.

A capacidade dos sistemas de inteligência artificial de rapidamente sistematizar dados armazenados, principalmente legislação e precedentes judiciais, e sugerir minutas de decisões não suplanta o julgamento humano. A sentença não visa apenas o passado, conforme destacado por Cardozo, “ a sentença de hoje estabelecerá o certo e o errado de amanhã. Para que o juiz a pronuncie com sabedoria, deve haver alguns princípios de seleção que lhe sirvam de guia em meio a todos os julgamentos potenciais que pleiteiam reconhecimento”34.

Além disso, não se pode ignorar que o viés cognitivo humano está presente no aprendizado de máquina, desde a criação do algoritmo até a interpretação dos dados gerados, consequentemente, padrões existentes nos dados que alimentam o sistema são repetidos pelos algoritmos, o que pode gerar efeitos indevidos ou discriminatórios sendo imprescindível a permanente supervisão humana35.

Também deve ser considerada a “opacidade” dos sistemas de inteligência artificial, não sendo esclarecido quais dados são utilizados para alimentar os sistemas, de que maneira tais dados são processados e quais os resultados esperados, tornando muitas vezes impossível o acompanhamento da correção dos sistemas de I.A., que são protegidos por leis de propriedade intelectual36.

Nesse ponto é essencial a contribuição do pragmatismo como teoria da decisão, para que se exija transparência na utilização da inteligência artificial, a fim de que sejam sempre transparentes e fundamentadas as decisões judiciais, criando-se mecanismos de controle e acompanhamento dos vieses cognitivos e opacidades próprios da utilização da inteligência artificial.

Finalmente, não se pode abdicar da máxima pragmatista da falibilidade do conhecimento científico, sendo necessariamente colocados sob o crivo da investigação permanente todas as medidas trazidas pelo Programa Justiça 4.0 visando o aperfeiçoamento da atividade jurisdicional e que tais mecanismos sejam utilizados de modo a respeitar os direitos e garantias fundamentais.

CONCLUSÃO

O positivismo jurídico é incapaz de regular um contexto novo e de consequências imprevisíveis trazidas pela epidemia do Covid-19. Na interpretação realizada pela teoria do pragmatismo jurídico, prioriza-se uma lógica prospectiva. As melhores consequências da conduta são estabelecidas após considerados o estágio de evolução social, os efeitos dos comportamentos passíveis de adoção perante o caso concreto e os possíveis efeitos decorrentes de tais escolhas.

Atualmente as pessoas podem participar de audiências ou obter informações sobre os processos sem precisar deslocar-se até o Fórum, tendo mais tempo para dedicar-se ao trabalho ou atividades de lazer. Além disso, o fato de os processos tramitarem em meios digitais acarreta a mudança do próprio conceito de competência territorial, Comarca ou Seção Judiciária, já que as atividades jurisdicionais podem ser exercidas de qualquer lugar, sem que haja uma sede ou instalação fixa para juízes e servidores.

O emprego de algoritmos na análise de dados legais e jurisprudenciais existentes e consequente sugestão para o resultado de determinado litígio (especialmente na aplicação de precedentes vinculantes emanados do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) pode gerar significativa economia de recursos, celeridade e segurança jurídica.

A atuação jurisdicional tornou-se mais célere, econômica e efetiva, em razão dos avanços trazidos pela informatização dos processos, utilização de audiências virtuais, novos aplicativos de comunicação e uso da inteligência artificial no ambiente jurídico. Tais medidas, sob perspectiva contextualista e consequencialista, não podem ser impostas sem a necessária reflexão e nem simplesmente ignoradas, sob pena de injustificável retrocesso.

Mas não se pode perder de vista que os instrumentos abarcados pelo Programa Justiça 4.0 do Conselho Nacional de Justiça apresentam falhas e riscos e devem sempre ser analisados considerando o antifundacionalismo, o contextualismo, o instrumentalismo, a interdisciplinariedade, o consequencialismo e o falibismo do conhecimento científico, próprios do pensamento pragmatista.

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KAUFMAN, Dora. O protagonismo dos algoritmos da Inteligência Artificial: observações sobre a sociedade de dados. Teccogs: Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, TIDD | PUC-SP, São Paulo, n. 17, p. 44-58, jan-jun. 2018.

KAUFMAN, Dora. Um projeto de futuro. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/um-projeto-de-futuro/. Acesso em 04/072022.


.¹BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em números 2021. Dados acessíveis em: [https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/].
²BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em números 2021. Dados acessíveis em: [https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/].
³Dados acessíveis em 21/10/2021: [https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=75640].
⁴BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em números 2021. Dados acessíveis em: [https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/].
⁵SALOMÃO, Luís Felipe (Coord): Inteligência artificial tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário brasileiro – FGV CONHECIMENTO, Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário. 2020. p. 43. Disponível em: [chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/viewer.html?pdfurl=https%3A%2F%2Fciapj.fgv.br%2Fsites%2Fciapj.fgv.br%2Ffiles%2Festudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf&clen=730026&chunk=true]. Dados acessíveis em 23/10/2021.
⁶BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Dados acessíveis em: [https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e- comunicacao/justica-4-0/].
⁷CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 335, de 29 de setembro de 2020. Institui política pública para a governança e a gestão de processo judicial eletrônico. Integra os tribunais do país com a criação da Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro – PDPJ-Br. Mantém o sistema PJe como sistema de Processo Eletrônico prioritário do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: [https://atos. cnj.jus.br/atos/detalhar/3496]. Acesso em: 23 out. 2021.
⁸CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 345, de 09 de outubro de 2020. Dispõe sobre o Juízo 100% digital e dá outras providências. Disponível em: [https://atos. cnj.jus.br/atos/detalhar/3512]. Acesso em: 23 out. 2021.
NETO, João. Imediação virtual e produção de prova oral por videoconferência in: LUCON, Paulo et al. Direito Processo e Tecnologia – 1. Ed. -São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 428.).
10“A designação da audiência, ato de vital importância no processo, só comparável para as partes à sentença, que, aliás, pode ser proferida na mesma audiência, cobra do juiz uma postura de muita responsabilidade processual e, porque não dizer, social e emocional. Os juízes, nunca sabemos o grau de ansiedade e angústia que possamos provocar nas partes litigantes, quando recebem a intimação da designação da audiência. Esse é um momento sempre tenso, pela própria natureza, de reunir desafetos, ao redor de uma mesa de audiência. (…) A audiência é a vitrina do sistema de prestação de justiça. O ato é marcante, por todos os aspectos: comparecimento ao Fórum, solenidade da prestação jurisdicional, formalismo jurídico, presença do Juiz, submissão de pessoas e bens à decisão de execução coercitiva, figuração psicológica de profundos mecanismos de introjeção ou o que seja. Nunca se poderá desqualificar a importância da audiência judicial”. (ANDRIGHI, Nancy e BENETI, Sidnei. O juiz na audiência. 2ª. Ed. -São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 34-35.).
11GOFFMAN, Erwing. Comportamentos em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos, 1.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 260.
12CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 372, de 12 de fevereiro de 2021.Regulamenta a criação de plataforma de videoconferência denominada “Balcão Virtual” Disponível em: [https://atos. cnj.jus.br/atos/detalhar/3742]. Acesso em: 23 out. 2021.
13CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em: [https://www.cnj.jus.br/InfojurisI2/Jurisprudencia.seam?jurisprudenciaIdJuris=48574&indiceListaJurisprudencia=1 &tipoPesquisa=LUCENE&firstResult=0]. Acesso em: 23 out. 2021.
14HABEAS CORPUS. PROCESSUAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AMEAÇA E VIAS DE FATO. CITAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO. APLICATIVO DE CELULAR “WHATSAPP”. PANDEMIA. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. PREVISÃO EM NORMA DO TRIBUNAL A QUO. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO RÉU ACERCA DOS TERMOS DA ACUSAÇÃO. PREVISÃO LEGAL. NULIDADE RELATIVA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. ORDEM DENEGADA. A citação por meio eletrônico, quando atinge a sua finalidade e demonstra a ciência inequívoca pelo réu da ação penal, não pode ser simplesmente rechaçada, de plano, por mera inobservância da instrumentalidade das formas. No caso concreto, ponderado o contexto excepcional de pandemia, havendo ainda norma do Tribunal a quo para regulamentara citação em situações excepcionais (Portaria GC 155, de 9/9/2020, do TJDFT), nota-se que não houve prejuízo processual objetivamente demonstrado que importe em nulidade do ato de citação por meio eletrônico (via conversa pelo aplicativo de celular “Whatsapp”), uma vez que os elementos necessários para o conhecimento da denúncia foram devidamente encaminhados ao denunciado e não há dúvidas quanto à sua ciência do ato da citação e do teor da acusação que recai contra si. A lei processual penal em vigor adota o princípio pas de nullité sans grief (art. 563 do CPP), segundo o qual somente se declara a nulidade caso, alegada oportunamente, haja demonstração ou comprovação de efetivo prejuízo à parte. Habeas Corpus denegado. (HC 644.543/DF, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/03/2021, DJe 15/03/2021)
15CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 130/2022, de 22 de junho de 2022. Disponível em: [https://atos.cnj.jus.br/files/original1340142022062362b46d3ebed9c.pdf]. Acesso em: 07 julho. 2022.
16BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei n. 21/2020. Estabelece fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil; e dá outras providências. Disponível em: [https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2236340]. Acesso em: 23 out. 2021.
17KAUFMAN, Dora. Um projeto de futuro. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/um-projeto- de-futuro/. Acesso em 04/072022.
18FREITAS, Juarez. Direitoeinteligênciaartificial: em defesa do humano/Juarez Freitas Thomas Bellini Freitas.- Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 30.
19CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 332, de 21 de agosto de 2020. Dispõe sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: [https://atos. cnj.jus.br/atos/detalhar/3429]. Acesso em: 23 out. 2021.
20SALOMÃO, Luís Felipe (Coord): Inteligência artificial tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito doPoder Judiciário brasileiro – FGV CONHECIMENTO, Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário. 2020. p. 26. Disponível em: [chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/viewer.html?pdfurl=https%3A%2F%2Fciapj.fgv.br%2Fsites%2Fciapj.fgv.br%2Ffiles%2Festudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf&clen=730026&chunk=true]. Dados acessíveis em 23/10/2021.
21(CABRAL, Antonio do Passo: DireitoProcessoeTecnologia/Coordenação Erik Navarro Wolkart … [et al.] -São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 85)
22“NÓBREGA, Flavianne Fernanda Bitencourt. Superando o dualismo entre fato e norma, ser e dever-ser. In Um método para a investigação das consequências. A lógica pragmática da abdução de C. S. Peirce aplicada ao Direito. Ed. Ideia, João Pessoa, 2013, p. 120).
23Nesse ponto reside uma das maiores contradições do positivismo jurídico: “como poderia o sistema normativo jurídico ser produto de uma validação hierarquizada, e a norma positiva real mais alta não ter validação alguma? Como se lhe atribuiria força para validar todas as demais, que lhe ficam em posição de inferioridade? A solução prevista por Kelsen pretende estar na norma hipotética fundamental (…) Não obstante a aversão de Kelsen às interferências externas ao direito – que é o mesmo que a norma, como ele entende – afirma ele, tentando elucidar do que se trata a norma jurídica fundamental, ou buscando configurar sua natureza, que ela é a aceitação da sociedade à mesma, é o “Cumpra-se” advindo da sociedade e emanado em favor da mencionada norma. E, apesar disso, não a rotula como fato histórico, mas com a natureza de pressuposição do pensamento jurídico” (FALCÃO, Raimundo Bezerra. Curso de Filosofia do Direito, p. 163; 164)
24Mora, Jose Ferrater. Dicionário de filosofia. Edições Loyola, São Paulo, 2001; p. 2341-2342.
25PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. Introdução, seleção e tradução de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo, Ed. Cultrix, 1972, p. 77-78).
26REGO. George. Browne. OPRAGMATISMOCOMOALTERNATIVAÀLEGALIDADEPOSITIVISTA:OMÉTODO JURÍDICO-PRAGMÁTICO DE BENJAMIN NATHAN CARDOZO. Duc In Altum – Cadernos De Direito, 2016 .
27BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de filosofia do direito. 1ª ed. São Leopoldo: Editora Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 656 e seguintes.
28NÓBREGA, Flavianne Fernanda Bitencourt. A proposta do raciocínio abdutivo para o Direito. In Um método para a investigação das consequências: a lógica pragmática da abdução de C. S. Peirce aplicada ao Direito. João Pessoa, Ideia, 2013, p. 108 a 109.
29Posner afirma que “a diferença entre um juiz pragmático e um juiz positivista (no sentido forte, ou seja, aquele que acredita que o direito é um sistema de normas estabelecidas pelo poder legislativo e meramente aplicadas pelos juízes) é que o último ocupa-se essencialmente de assegurar a coerência com as decisões passadas, ao passo que o primeiro só se ocupa de assegurar a coerência com o passado na medida em que a decisão de acordo com os precedentes seja o melhor método para a produção de melhores resultados para o futuro.”. (POSNER, Richard. A problemática da teoria moral e jurídica. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 381)
30Destacando a análise das circunstâncias do caso na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Margarida Maria Lacombe Camargo afirma: “De outro lado, Eros Grau estabelece uma linha de coerência com o que deixara consignado anteriormente na ADI 3685, relativamente ao “princípio da segurança jurídica” que agora prospera em benefício da preservação do município. Além da “força normativa dos fatos” e da “segurança” (face à estabilidade das relações jurídicas constituídas) como categorias que servem de embasamento à decisão, aparece uma “linha de coerência” com Gilmar Mendes no MS 24.268, e com os agravos regimentais no RE 348.364, de que fora relator. Cita também Miguel Reale, quando sustenta que “o tempo transcorrido pode gerar situações de fato equiparáveis a situações jurídicas, não obstante a nulidade que originariamente as comprometia”. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. O pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro. InBINENBOJM, Gustavo; NETO, Claudio Pereira de Souza; SARNENTO, Daniel. Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris 2009, p. 371.
31A respeito da análise interdisciplinar: “quer se goste ou não, ponderações sobre as prováveis consequências fáticas de determinadas normas jurídicas antes consideradas dados extrajurídicos que interessariam somente a áreas correlatas (sociologia, economia, psicologia etc)-hoje se fazem cada vez mais presentes na interpretação do direito no Brasil. Isso principalmente porque o caráter teleológico dos princípios jurídicos exige, para a sua melhor aplicação, juízos sobre a adequação entre meios e fins – juízos estes que necessariamente dependem de ilações sobre os efeitos concretos de um ou outro regime jurídico.”. (PARGENDLER, Mariana; SALAMA, Bruno. Direito e consequência no Brasil: em busca de um discurso sobre o método. In Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 262. p. 99-100, jan./abr. 2013).
32Conforme destacado por Dewey “os tribunais não chegam apenas a decisões; eles as expõem, e a exposição tem de exprimir [state] razões justificatórias. As operações mentais envolvidas nisso são algo diferentes daquelas envolvidas no processo de chegar a uma conclusão. A lógica da exposição é diferente daquela da busca e da investigação. Na última, a situação tal como existe é mais ou menos duvidosa, indeterminada e problemática relativamente ao que ela significa. Ela se desdobra gradualmente e é suscetível de surpresa dramática; em todos os eventos ela tem, até agora, dois lados. A exposição implica que uma solução definitiva é alcançada, que a situação está agora determinada relativamente à sua implicação legal. Seu propósito é apresentar fundamentos para a decisão alcançada de modo que ela não venha parecer como um ditame arbitrário, e de modo que indicará uma regra para lidar com casos parecidos no futuro. É altamente provável que a necessidade de justificar para outros as conclusões alcançadas e as decisões feitas tenha sido a principal causa da origem e do desenvolvimento das operações lógicas no sentido preciso; da abstração, da generalização, da consideração pela consistência das implicações.”. (Dewey. Jonh. Cornell Law Review, volume 10, número 1, dezembro de 1924. Tradução sem revisão, versão 1: Cassiano Terra Rodrigues).
33DEWEY, John. LogicalMethodandLaw. The Philosophical Review, vol. 33, nº 6 (Nov. 1924), pp. 560-572/ Cornell Law Review, vol. 10 nº 1, dez/1924. Tradução (sem revisão) Prof. Dr. Cassiano Terra Rodrigues.
34CARDOZO. Benjamin. A natureza do processo judicial: palestras proferidas na Universidade de Yale. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 10-11.
35“Nos EUA ficou conhecido o questionamento levado à Suprema Corte no caso Loomis, no qual um indivíduo condenado criminalmente teve sua pena fixada a partir de informações de um software que realiza um perfil do risco que o apenado representa para a sociedade, a justificar um maior ou menor tempo de encarceramento. No caso, várias objeções ao uso desse programa de computador foram levantadas (como o enviesamento do algoritmo em relação a pessoas negras) e todas foram rechaçadas pela Suprema Corte dos EUA.”. (CABRAL, Antonio do Passo. Op. cit. p. 89 -90)
36KAUFMAN, Dora. O protagonismo dos algoritmos da Inteligência Artificial: observações sobre a sociedade de dados. Teccogs: Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, TIDD | PUC-SP, São Paulo, n. 17, p. 44-58, jan-jun. 2018.


¹Aluno do programa de Pós-graduação stricto sensu – mestrado em Direito – na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil), e juiz vinculado ao Tribunal de Justiça de São Paulo (São Paulo, Brasil) – E-mail:aamoriml@tjsp.jus.br