REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7855143
Maria Fernanda Rangel Pereira Spada¹
Ícaro Pratti Sarmenghi¹
Ana Cláudia Vescovi Brunow¹
Resumo
Introdução: As alterações congênitas como agenesias e atresias intestinais são afecções raras e que, na sua grande maioria, necessitam de intervenção imediata. A atresia intestinal é uma das apresentações com necessidade de diagnóstico precoce e realização de cirurgia pediátrica.
Relato do caso: masculino, 40 semanas e 5 dias, 2.875 gramas, evoluiu com náuseas e distensão abdominal após seio materno, sendo optado pela lavagem gástrica (com saída de conteúdo de aspecto meconial em pequena quantidade) e prescrição de bromoprida sem melhora. Realizado sondagem anal sem progressão e sem liberação de mecônio. Radiografia de abdome anteroposterior, apresentando acentuada distensão de alças intestinais proximais, mais evidente à direita, hipotransparência difusa sem níveis hidroaéreos, levando à hipótese de obstrução intestinal. Submetido à laparotomia, com ausência do reto e dos cólons, íleo terminal acabando em fundo cego e bem dilatado, estômago e restante das alças intestinais sem anormalidades, conforme a descrição cirúrgica. Realizada ressecção de cerca de 10 centímetros da porção distal dilatada do íleo e confeccionada ileostomia no ângulo lateral da incisão. Após estudo anatomopatológico, confirmou-se a agenesia de cólon, com segmento dilatado do íleo terminal, acabando em fundo cego.
Conclusão: As agenesias de cólon são raras e o reconhecimento radiológico e de sua apresentação clínica são de suma importância para o manejo clínico e conduta adequada imediata para esses pacientes, buscando melhora de sobrevida e qualidade de vida aos pacientes.
Palavras-chave: Neonatologia. Atresia Intestinal. Cirurgia Colorretal. Unidades de Terapia Intensiva Neonatal. Agenesia total do cólon.
Introdução
As alterações congênitas gastrointestinais podem se manifestar das mais diversas formas, sendo, principalmente, classificadas em obstrutivas completas ou parciais, rotacionais, de fixação, duplicação ou podem ocorrer compressões extrínsecas1.
A atresia colônica é uma das alterações congênitas gastrointestinais, uma causa de obstrução intestinal no recém-nascido (RN), caracterizada por uma perda congênita de continuidade em um segmento colônico, tornando-se um importante desafio cirúrgico na pediatria 2. Dados apontam uma prevalência de 1,8 a 15% entre todas as atresias intestinais, com uma proporção de 4:3 entre homens e mulheres, sendo a maioria em recém-nascidos termo3.
Estudo no Rio de Janeiro (Brasil), demonstrou que quase 1% de todos os nascimentos nesse estado, durante um período de 5 anos, apresentavam alguma alteração congênita, sendo 749 casos com necessidade de cirurgia imediata e, desses, mais de 50% representando as alterações congênitas do trato gastrointestinal4. Porém, faltam estudos sobre o levantamento total de agenesia colônica, não sendo descrita ainda sua prevalência nem incidência em território nacional.
Para diagnosticar precocemente essa alteração, é de suma importância o conhecimento da distribuição gasosa ao longo do trato gastrointestinal para ter-se uma maior suspeição diagnóstica de processos obstrutivos, atresias ou agenesias nos recém-nascidos. Considerando crianças saudáveis, minutos após o nascimento, já é possível visualizar ar no estômago do recém-nascido e, cerca de 3 a 4 horas depois, é possível observar gás a nível de intestino delgado. Após oito a nove horas, a nível de sigmóide5.
Outro fator importante é a liberação meconial, que pode demonstrar uma obstrução intestinal e ser uma apresentação inicial de alteração congênita. A obstrução intestinal neonatal pode ser definida por ausência de eliminação de mecônio, acompanhada de distensão abdominal progressiva e vômitos, todavia 30% dos casos podem ter liberação meconial devido remanescente de reto e sigmóide6.
Dentro dos espectros da apresentação, existe uma rara apresentação em neonatos de agenesia completa do cólon, com poucos casos na literatura2. Tal alteração congênita demonstra um grande desafio médico, tornando importante estudos que tragam dados epidemiológicos acerca desta manifestação, sendo este um caso que será abordado por este relato de caso.
Relato do Caso
Recém-nascido do sexo masculino, idade gestacional de 40 semanas e 5 dias, nascido de parto vaginal, em um município de Serra na região metropolitana de Vitória, Estado do Espírito Santo, sudeste do Brasil. À antropometria do nascimento apresentava peso 2.875 gramas (percentil 6,3) – considerado pequeno para idade gestacional (PIG), comprimento de 47 centímetros (percentil 2,26), perímetro cefálico de 33 centímetros (percentil 7,78).
Filho de mãe primigesta com 35 anos de idade, sem história de abortamentos prévios, acompanhada em pré-natal de baixo risco em Unidade Básica de Saúde, com 9 consultas iniciadas no primeiro trimestre de gestação, com todas sorologias normais. Sem comorbidades prévias, na gestação foi diagnosticada com diabetes mellitus gestacional no 2º trimestre, todavia sem realização de tratamento adequado. Negou vícios.
O parto vaginal, bolsa rota no ato, com necessidade de clampeamento imediato do cordão umbilical, devido à hipotonia ao nascimento. Assistido por pediatra tendo boa resposta aos passos iniciais, não necessitando de reanimação neonatal. Apresentou boletim de Apgar de 7 no primeiro minuto e 9 no quinto minuto. Retornou ao colo da mãe para realização do contato pele-a-pele.
Após os cuidados iniciais, paciente submetido ao rastreio de hipoglicemia por ser PIG, apresentou hipoglicemia na primeira hora de vida, associado à hipotermia, com boa resposta ao aleitamento materno e à fonte de calor irradiante. Todavia, após a primeira alimentação em seio materno, evoluiu com náuseas e distensão abdominal, optado por lavagem gástrica e bromoprida, porém sem melhora. Após a segunda lavagem gástrica, foi observada a saída de líquido de aspecto meconial em pequena quantidade. Foi decidido por realização de sondagem anal, pela suspeita de obstrução intestinal, evidenciado ausência de progressão da sonda, sem saída de mecônio. Dessa forma, encaminhado para a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) do Hospital Cassiano Antonio Moraes (HUCAM) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), uma das referências neonatais e de cirurgia pediátrica no Espírito Santo.
Paciente foi admitido em leito de UTIN em regular estado geral, optado por realizar radiografia de abdome anteroposterior e perfil com raios horizontais (Figura 1 e 2), observando acentuada distensão de alças intestinais proximais, mais evidente à direita, hipotransparência difusa sem níveis hidroaéreos, sugestivo de obstrução intestinal.
Figura 1 e 2 – Radiografia de abdome ântero-posterior e perfil com raios horizontais
Solicitada avaliação da cirurgia pediátrica, realizada laparotomia e constatada ausência do reto e dos cólons, com íleo terminal acabando em fundo cego e bem dilatado, estômago e restante das alças intestinais sem anormalidades, conforme a descrição cirúrgica. Além disso, foi realizada ressecção de cerca de 10 centímetros da porção distal dilatada do íleo e confeccionada ileostomia no ângulo lateral da incisão. No estudo histopatológico da peça ressecada foram observados cortes histológicos transmurais de intestino delgado e grosso, gânglios nervosos preservados e atresia de intestino grosso.
No pós-operatório imediato, o paciente evoluiu com instabilidade clínica, aumento da pressão intra-abdominal e prolapso da ileostomia, havendo necessidade de reversão pela equipe cirúrgica. Realizada coleta de exames laboratoriais e iniciada antibioticoterapia empírica (gentamicina e metronidazol endovenosos). Após 6 dias de tratamento, com culturas negativas, exames laboratoriais dentro da normalidade e estabilidade clínica, foram suspensos antibióticos.
Após extubação eletiva, RN apresentou estresse sem resposta a inalação com adrenalina e corticóide venoso, necessitando de reintubação. Em três momentos o paciente foi intubado, totalizando 8 dias de assistência ventilatória mecânica. Na última tentativa de extubação, apresentou estresse importante e desconforto respiratório quando em ar ambiente, optado por realizar broncoscopia com diagnóstico de laringotraqueomalácia, sendo preciso conversão para traqueostomia.
No exame físico, apresentou sopro sistólico sem repercussões clínicas, com ecocardiograma transtorácico dentro da normalidade para a idade.
Feita consultoria pela equipe de genética que orientou coleta de cariótipo com padrão XY, sem anormalidades. Fundo de olho apresentando retinopatia de valsalva em reabsorção. Realizado ultrassonografia transfontanela sem alterações. Ressonância magnética de crânio (Figura 3 e 4) com laudo descritivo demonstrando que a morfologia do crânio tem aspecto turricefálico, além de corpo caloso com morfologia alterada, angulado cranialmente e com importante afilamento do esplênio e fontanelas amplas.
Figura 3 e 4 – Ressonância de crânio
Paciente teve alta do setor da UTIN após 4 semanas, encaminhado para a unidade semi-intensiva pediátrica onde permaneceu por mais três semanas para progressão de dieta. Recebeu alta hospitalar após 7 semanas de internação, em seio materno livre demanda e dieta complementar com chuca com fórmula extensamente hidrolisada para melhor suporte nutricional. Na alta estava com traqueostomia e ileostomia, encaminhado ao ambulatório de cirurgia pediátrica para seguimento e planos de futura abordagem cirúrgica. O paciente perdeu o acompanhamento ambulatorial e por isso não sabemos o desfecho do caso.
Discussão
A agenesia de cólon é definida como uma perda congênita da continuidade em um segmento colônico, sendo considerada uma malformação rara e um desafio cirúrgico neonatal para os cirurgiões pediátricos2. No relato de caso em questão, é uma condição ainda mais rara pois não há segmento colônico, com poucos relatos na literatura.
As atresias colônicas possuem diversas hipóteses que foram levantadas para sua causa, dentre as quais destacam-se: falta de vascularização do epitélio intestinal durante o desenvolvimento fetal; a presença de lesão isquêmica dos vasos mesentéricos fetais; a ingestão materna de drogas vasoativas2. O mais provável é que a atresia seja devido a um evento vascular pré-natal, tendo como causas apontadas: volvo, compressão do intestino em seu mesentério ou no anel umbilical fetal, intussuscepção, perfuração focal com inflamação local e interferência no suprimento sanguíneo mesentérico7. A infecção fetal por varicela foi apontada como uma provável etiologia que tem como teoria uma lesão do plexo entérico pela varicela, levando ao desenvolvimento insuficiente dos vasos sanguíneos e consequente isquemia, resultando na atresia9.
Todavia, a teoria do intuito vascular não consegue relacionar um mecanismo para as associações com outras malformações, tanto extra quanto intestinais. Por isso, é possível que a patogênese tenha mais de um mecanismo8.
A associação de atresia de cólon com anomalias crânio faciais e oculares pode existir. Em uma revisão de literatura foram relatados 20 casos de anomalias craniofaciais e 290 anomalias oftalmológicas8. Nesse presente relato, o paciente apresentou laringotraqueomalácea, crânio turrecefálico e retinopatia de valsalva.
Alguns fatores de risco como prematuridade, baixo peso ao nascer, anomalias congênitas graves associadas são mais propensas ao mau prognóstico, mesmo após a abordagem cirúrgica. Não se pode fazer muito sobre prematuridade e anomalias associadas, mas o atraso no diagnóstico e o tratamento são fatores consideráveis que estão sujeitos a melhorias10.
Na suspeita de atresia colônica, uma história gestacional completa deve ser obtida incluindo idade gestacional, histórico familiar, uso de medicamentos e drogas ilícitas e complicações na gravidez; deve-se pesquisar história familiar de fibrose cística, anomalias congênitas (especialmente anomalias gastrointestinais) ou perda fetal. Após o nascimento, deve-se questionar quaisquer problemas no parto, idade gestacional, momento do início da distensão abdominal e vômitos (e se foi bilioso ou não), bem como se a criança foi alimentada e se e quando o bebê eliminou mecônio11.
O quadro clínico inclui distensão abdominal (que pode ser acentuada ou progressiva), vômitos tardios (no segundo ou terceiro dia de vida), incapacidade de eliminar mecônio9. O vômito geralmente é bilioso, porém pode ser inicialmente claro1. Como a obstrução é distal, esses sintomas podem aparecer mais tarde do que nas lesões proximais, embora geralmente ocorra nos primeiros 3 dias após o nascimento 11.
Embora o diagnóstico possa ser intraútero, por meio de ultrassonografia, ele normalmente é suspenso após o nascimento2. O ultrassom pré-natal pode revelar um diagnóstico sugestivo de obstrução intestinal, porém sua capacidade de excluir a malformação é limitada; alças dilatadas poderão ser visíveis, porém uma boa quantidade de casos de atresia permanece não diagnosticada pelo método1. A sensibilidade tende a diminuir para lesões mais distais; um estudo mostrou que o ultrassom pré-natal detectou somente cerca de 30% das obstruções colônicas, além disso, o método não é capaz de identificar a localização e o número de obstruções uma vez que muitos achados são inespecificos11.
O diagnóstico no pré-natal tem aumentado em decorrência do uso rotineiro da ultrassonografia no desenvolvimento fetal, com benefício no reconhecimento precoce da má formação, permitindo a intervenção cirúrgica imediata após o nascimento12, reduzindo os riscos de desnutrição, depleção de volume, distúrbio hidroeletrolítico e pneumonia por aspiração11. A ultrassonografia mostra um cólon de aparência característica com haustrações aparentes e o cólon na periferia do abdome9.
Após o nascimento, radiografia simples de abdome demonstrou níveis hidroaéreos e dilatação de alças2. No caso de obstrução intestinal baixa (íleo distal e/ou cólon), o diagnóstico é geralmente aparente devido à presença de muitas alças intestinais dilatadas, porém é difícil diferenciar se o local é ileal ou colônica. Nesse caso, o enema de contraste solúvel pode ser útil no diagnóstico pós-natal, ajudando a determinar a presença de microcólon, indicando a posição do ceco e mostrando o nível de obstrução na atresia de cólon; porém deve-se ter cuidado durante a administração do contraste para evitar alta pressão intraluminal com risco de perfuração do segmento distal9,13. Importante destacar que o enema opaco não determinará o comprimento do intestino envolvido nem se há uma lesão proximal.
Os exames laboratoriais em um recém-nascido sintomático devem ser solicitados para ajudar a avaliar a condição clínica do paciente. Deve-se solicitar hemograma completo, bilirrubina total e frações, concentração sérica de eletrólitos, uréia e creatinina (para avaliar o estado hidroeletrolítico); hemocultura (na suspeita da sepse); oximetria de pulso e gasometria arterial (se houver desconforto respiratório); tipo de sangue e coagulograma para preparação cirúrgica11.
O diagnóstico diferencial inclui atresia ileal e colônica, íleo meconial, peritonite, doença de Hirschsprung e imaturidade funcional do cólon. As malformações anormais também são importantes causas de obstrução intestinal baixa, mas quase sempre são evidentes ao exame físico 13. Essas doenças causam obstrução, simulando atresia ileal ou colônia. Porém, é possível uma distinção entre obstrução alta e baixa através do enema1.
O manejo cirúrgico das atresias intestinais é individualizado de acordo com o local da lesão, os achados anatômicos específicos e as condições associadas observadas na laparotomia. Devem ser administrados antibióticos perioperatórios pelo menos 30 minutos antes do início da cirurgia 12. Pacientes com obstrução intestinal devem ter a alimentação suspensa e uma sonda nasogástrica ou orogástrica colocada para aspiração; além disso, a hidratação intravenosa deve ser fornecida e distúrbios hidroeletrolíticos corrigidos11. O tratamento cirúrgico envolve ressecção e anastomose término-terminal primária ou uma abordagem passo a passo com derivação intestinal como colostomia terminal2. A correção operatória da atresia colônica foi modificada ao longo dos anos. A colostomia inicial com anastomose tardia foi a prática de rotina para a maioria das crianças. Nos últimos anos, no entanto, vários autores relataram o uso de ressecção e anastomose primária como uma opção razoável de tratamento, independentemente da localização da atresia do cólon12.
No caso do artigo, não temos o seguimento do paciente. Porém, sabemos que a condição dele pode ser agravada, pois o paciente em questão tinha ausência completa do cólon, não sendo possível reconstruir o trânsito intestinal até a alta, com programação de acordo com o acompanhamento ambulatorial para avaliar possibilidade de reconstrução.
Normalmente o resultado pós-operatório, quando há uma atresia colônia isolada, é satisfatório se tratado da forma ideal. A qualidade de vida do paciente é influenciada pelo fato de ter ou não uma patologia associada à malformação intestinal e não somente pelo estado do cólon7. A idade gestacional e o peso ao nascer também são determinantes no resultado cirúrgico neonatal 10.
Em relação à sobrevida, na ausência de atresia de intestino delgado e outras patologias associadas, com o diagnóstico precoce da agenesia de cólon, a mortalidade geral deve ser menor ou igual a 10%. No entanto, fatores como atraso no diagnóstico e tratamento, erros técnicos da cirurgia, deficiência nutricional ou sepse interferem na sobrevida, aumentando a morbimortalidade2.
Conclusão
Embora as agenesias de cólon sejam uma desordem congênita rara, o diagnóstico clínico e radiológico devem ser bem caracterizados pela equipe médica, entendendo suas variadas apresentações anatômicas e extensão da lesão, buscando intervenção precoce e melhora do prognóstico ao paciente.
Sobre a agenesia total do cólon ainda há muito o que ser estudado, uma vez que há poucos relatos na literatura médica.
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1Universidade Federal do Espírito Santo – E-mail: mfrangel.ped@gmail.com