REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7788091
Maria Isabelle Evangelista de Assis1
Clóvis Marques Dias Júnior2
RESUMO: Este trabalho buscou investigar em que medida o Poder Judiciário assiste para a eficácia e consolidações dos direitos indígenas no Maranhão. Para tanto, transcorreu de um estudo das decisões do Poder Judiciário, referentes aos direitos humanos, demarcação de territórios e política social, tal como, a identificação de ONG’s responsáveis da sua relação com os indígenas. Para esta pesquisa a metodologia científica priorizada é o método exploratório, bibliográfico, quantitativo documental. Dessa forma, é notório que o direito ao território aos indígenas é suprimido pelas forças externas, sendo resultado de uma estruturação estatal suprimida no que diz respeito à preservação dos direitos indígenas de atentado legitimado nos conflitos de territórios entre madeireiros e os povos originários, que se apoderam das terras, com o objetivo de expandir o agronegócio no Estado do Maranhão. O acesso à justiça dos povos indígenas no Maranhão é limitado pela falta de diálogo intercultural, falta de recursos, falta de assistência jurídica adequada, distância das aldeias em relação aos centros urbanos e a omissão do estado na proteção dos direitos indígenas. Dessa forma, a postura etnocêntrica do Poder Judiciário dificulta o reconhecimento dos direitos indígenas e a aplicação justa do direito. É necessário implementar políticas públicas que garantam o acesso dos indígenas à justiça e valorizem a jurisdição indígena como forma de diálogo intercultural e proteção dos direitos fundamentais dos povos originários.
Palavras-chave: Poder Judiciário. Conflito. Estado do Maranhão.
ABSTRACT: This work sought to investigate the extent to which the Judiciary assists in the effectiveness and consolidation of indigenous rights in Maranhão. To this end, it was based on a study of the decisions of the Judiciary, referring to human rights, demarcation of territories, and social policy, such as the identification of NGOs responsible for their relationship with indigenous peoples. For this research, the prioritized scientific methodology is the exploratory, bibliographic, documental quantitative method. In this way, it is clear that the right to the territory of indigenous peoples is suppressed by external forces, resulting from a suppressed state structure with regard to the preservation of indigenous rights from legitimate attacks in conflicts over territories between loggers and indigenous peoples, which seize the land, with the aim of expanding agribusiness in the State of Maranhão. Access to justice for indigenous peoples in Maranhão is limited by the lack of intercultural dialogue, lack of resources, lack of adequate legal assistance, distance of villages from urban centers and the state’s failure to protect indigenous rights. In this way, the ethnocentric posture of the Judiciary makes it difficult to recognize indigenous rights and the fair application of the law. It is necessary to implement public policies that guarantee indigenous peoples’ access to justice and value indigenous jurisdiction as a form of intercultural dialogue and protection of the fundamental rights of indigenous peoles.
Keywords: Judicial Power. Conflict. State of Maranhão.
1 INTRODUÇÃO
O Estado do Maranhão enfrenta problemas graves relacionados à degradação ambiental e violência contra povos tradicionais e originários. A maior parte das florestas preservadas do Estado está localizada dentro de áreas indígenas, como as Terras Indígenas Alto Turiaçu, Awá, Caru e Araribóia, que sofrem uma enorme pressão devido a ameaças como desmatamento, extração madeireira, queimadas, garimpo, pasto e construção de estradas.
De acordo com Dados do Prodes/Inpe, mais de 170 mil hectares já foram desmatados nas TIs maranhenses nas últimas décadas, e apesar da redução da taxa de desmatamento, a degradação não cessou. Essas atividades ameaçam a integridade das florestas e intensificam as violações de direitos políticos, territoriais e humanos dos povos originários (PROJETO PRODES DIGITAL, 2002).
De acordo com o art. 231°, CF, é responsabilidade da União proteger e fazer respeitar os Territórios Indígenas, porém, na prática, a omissão estatal é comum e contribui para a ocorrência de diversos crimes dentro dessas áreas. Tais crimes incluem extração ilegal de madeira, furto, roubo, receptação, ameaças e homicídios, muitos dos quais são ignorados pelas autoridades responsáveis pela investigação e punição. Além disso, a falta de investimento em órgãos públicos de fiscalização resulta em um plano de proteção e fiscalização insuficiente contra invasores madeireiros, o que agrava ainda mais a situação (BRASIL, 1988).
Diante disso, é premente que o Estado cumpra seu papel na proteção dos Territórios Indígenas, e adotando medidas efetivas para garantir a segurança e a preservação dessas áreas. É preciso também investir em ações de fiscalização e ações que preservem os Territórios Indígenas, bem como garantir que esses povos sejam ouvidos e tenham sua narrativa levada em consideração durante os processos judiciais, portanto, suscita a grande problemática, em que medida o direito indígena se efetiva no acesso à justiça no Estado do Maranhão?
Os objetivos deste trabalho se concentram na abstração teórica no que concerne a concepção do acesso à justiça aos povos indígenas. Outrossim, identificar ONG’S responsáveis e sua relação em simbiose com os indígenas, e por último, investigar decisões do Poder Judiciário no que concerne o cenário supracitado, foi realizada uma avaliação quantitativa das decisões judiciais proferidas pelo Superior Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1), no que diz respeito aos direitos indígenas ao território.
A metodologia utilizada para esta pesquisa a metodologia científica priorizada é o método exploratório, por finalidade de torná-lo sua problemática de acesso à justiça aos povos indígenas mais explícita, no que concerne o Estado do Maranhão, acrescentando também a pesquisa bibliográfica e documental com base em análise dos relatórios disponibilizados pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI); Dados disponibilizados pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), com apoio do banco de dados do julgados da Justiça Federal do Maranhão, haja vista, que demandará da análise de dados concernente a Lei n° 6.00, em simbiose com as ONG’S; Funais e o Estatuto do Índio. Dessa forma, submetendo a análise documental de decisões jurídicas perante o tema supracitado.
Quanto ao método será dedutivo, segundo Lakatos e Marconi (1995, p. 106) terá as premissas de verdades generalizadas confirmarão, por intermédio, o caminho para tal conhecimento, através de uma cadeia de raciocínio cronológica descendente. Assim, decorrendo da necessidade da análise minuciosa dos dados bibliográficos juntamente com a pesquisa documental, para adentrarmos a problemática existente no Estado do Maranhão, retratando a investigação de observância de contextos reais, haja vista, proceder-se-á generalização para o particular perante a correlação dos dados.
Adotaremos a abordagem qualitativa e quantitativa, através da investigação jurisprudencial, para análise minuciosa, no corpo jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal Federal (STF) e da segunda instância, Tribunal Regional Federal – 1ª Região (TRF-1).
A presente pesquisa tem como objetivo avaliar o papel desempenhado pelo Poder Judiciário na garantia e fortalecimento dos direitos dos povos indígenas no Maranhão. Para tanto, realizou-se um mapeamento quantitativo das decisões judiciais proferidas pelo Superior Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e segunda instância do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, relacionadas aos direitos indígenas no estado. Em seguida, procedeu-se à análise comparativa dessas decisões com as normas nacionais e internacionais relacionadas, a fim de verificar a correta aplicação e efetividade das leis no contexto estudado.
2 O ACESSO À JUSTIÇA E A GARANTIA DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NA PERSPECTIVA DA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA
O acesso à justiça é um direito fundamental de todos os cidadãos, garantido pelo art 5°, XXXV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Esse direito busca assegurar que a população tenha acesso ao Poder Judiciário, garantindo uma ordem jurídica justa e a proteção dos direitos e valores previstos tanto na Constituição quanto na legislação infraconstitucional.
Para que o acesso à justiça seja efetivo, é necessário que o processo seja acessível em todas as suas fases e que a prestação jurisdicional seja efetiva e célere. O processo judicial deve ser acessível em termos físicos, o que significa que os cidadãos devem ter meios para ingressar com uma ação judicial, como por exemplo, por meio da Defensoria Pública ou da assistência judiciária gratuita.
No entanto, não é suficiente que o processo seja apenas acessível fisicamente. Ele também deve ser efetivo em todos os seus momentos, o que significa que o processo deve ser conduzido com rapidez, transparência e imparcialidade. O acesso à justiça não se limita apenas ao acesso ao processo judicial, mas também inclui o acesso aos mecanismos de resolução alternativa de conflitos, como a mediação e a conciliação.
De acordo com Watanabe (1988, p. 135), o acesso à justiça não se limita apenas ao acesso formal aos tribunais, mas deve ser entendido como um processo mais amplo de inclusão social, envolvendo o acesso à informação jurídica, à assistência jurídica, à educação em direitos e à participação na vida social e política. Para ele, a promoção do acesso à justiça deve ser entendida como uma estratégia de promoção da cidadania e da democracia, visando garantir que todas as pessoas possam ter seus direitos reconhecidos e respeitados.
Assim, para o autor supracitado, o acesso à justiça é uma garantia fundamental que visa assegurar a efetividade dos direitos e valores fundamentais previstos na ordem jurídica brasileira. Ele destaca que o acesso à justiça é um direito que não pode ser limitado por questões econômicas, sociais, culturais ou políticas, sendo necessário o compromisso do Estado e da sociedade em garantir que todas as pessoas possam efetivamente exercer esse direito.
Em outras palavras, o acesso à justiça é uma garantia de que todas as pessoas tenham acesso à ordem jurídica justa, protegendo seus direitos e interesses. A sua efetividade depende de uma série de fatores, incluindo o acesso ao processo judicial e aos mecanismos de resolução alternativa de conflitos, bem como a efetividade do próprio processo judicial. A promoção do acesso à justiça é um importante desafio para o Estado e para a sociedade, que devem trabalhar juntos para garantir que todos tenham acesso à justiça de forma equitativa e efetiva.
A importância do acesso à justiça como direito fundamental sob fulcro do art. 5º, do XXXV previsto no texto constitucional (BRASIL, 1988). Logo, tem sido objeto de estudo por parte da comunidade jurídica. No entanto, a diversidade e pluralidade da sociedade brasileira, incluindo os povos indígenas, é frequentemente ignorada neste contexto. O reconhecimento da identidade étnica e cultural dos povos indígenas é explícito na Constituição conforme os arts. 231° e 232°, a qual dissemina que estes devem ser tratados de forma diferenciada pelo Estado, inclusive no que diz respeito ao acesso à justiça, considerado um direito fundamental, sob o fulcro do art. 5°, LV, art. 231, art. 232 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
De acordo com Canotilho (2001, p. XXIX), a visão da existência de cidadãos múltiplos e de múltiplas cidadania pode ser prejudicial para a compreensão da Constituição, já que a interpretação frequentemente se baseia na ideia de um único tipo de cidadão, o cidadão universal. Esta visão limitada pode resultar em desconsideração das diferenças e particularidades de grupos sociais distintos, incluindo os povos indígenas.
De acordo com a perspectiva de Canotilho (2001), o modelo atual de compreensão dos direitos humanos, baseado na Declaração Universal de Direitos Humanos, não permite o reconhecimento de outros tipos de cidadania além da cidadania nacional (CANOTILHO, 2001, p. 380-388).
A ideia dominante de homogeneizar a diversidade através da categoria cidadão é prejudicial, pois reduz o indivíduo a um modelo europeu de cidadania e ignorando grupos sociais diferenciados, especialmente os povos indígenas e comunidades tradicionais que não se enquadram neste padrão de cidadania universal. (SHIRAISHI NETO, 2014; CLAVERO, 2005).
Este fato evidencia a desigualdade no acesso à Justiça para os povos indígenas do Amazonas, pois muitos destes povos estão localizados em regiões remotas, o que dificulta o acesso aos órgãos judiciários e aos meios de proteção dos seus direitos. Além disso, a falta de recursos e de infraestrutura adequada para a prestação de serviços judiciários, a falta de capacitação dos profissionais que atuam na área indígena, bem como a falta de conhecimento dos direitos constitucionais dos povos indígenas, também contribuem para a dificuldade de acesso à Justiça para estes grupos.
De acordo com Sadek (2009, p. 170), o acesso à justiça é considerado como um direito constitucional fundamental, que permite ao indivíduo participar dos bens e serviços disponibilizados pela sociedade. É importante destacar que sem uma efetiva condição de acesso à justiça, a inclusão social torna-se impossível. Portanto, é fundamental que este direito seja preservado, pois é a partir dele que todos os demais direitos adquirirão efetividade.
A Constituição Federal representa uma importante mudança na garantia dos direitos fundamentais para o cidadão universal e para o cidadão indígena múltiplo. Pela primeira vez na história do Brasil, a constituição atual incluiu um capítulo específico para os povos indígenas, em vez de se referir a eles como “índios” (BRASIL, 1988). No entanto, a antropologia jurídica tem evidenciado que a categoria “povo” é mais adequada para representar as reivindicações dos grupos étnicos indígenas e reflete a utilização da terminologia no Artigo 2º da Convenção 169 da OIT, que ultrapassa a ideia de “tribo” e reconhece a consciência da identidade indígena. (TRABALHO, 1989).
A diversidade de povos indígenas no Brasil tem apresentado limitações ao reconhecimento jurídico de sua autonomia e autodeterminação em suas áreas tradicionais. Estimativas apontam a presença de cerca de 305 etnias no país, com aproximadamente 896.917 pessoas, é estimado a presença de 817.963 pessoas indígenas no Brasil, com mais de 200 povos e 180 línguas diferentes espalhadas pelo território nacional conforme o Censo de 2010 (ESTATÍSTICA, 2010).
Os quatro povos indígenas mais significativos demograficamente são os Guarani, os Kaingang, os Ticuna e os Makuxi, juntos compondo aproximadamente 25% da população indígena do país. Estes dados indicam a importância de se assegurar o direito à autodeterminação e autonomia destes grupos, bem como a necessidade de se estabelecer mecanismos de proteção e garantia de seus direitos.
3 MEIOS DE ACESSO À JUSTIÇA PELOS POVOS INDÍGENAS NO ESTADO DO MARANHÃO.
O acesso à justiça é considerado um direito fundamental para a participação efetiva na sociedade, sendo a porta de entrada para a obtenção de bens e serviços. A inexistência de condições reais de acesso à justiça impede a inclusão social, uma vez que os demais direitos não terão efetividade sem a possibilidade de recorrer ao sistema de justiça. Portanto, é essencial que o acesso à justiça seja garantido a todos, independentemente de sua condição social, cultural ou econômica, para que os direitos fundamentais possam ser efetivamente assegurados.
Inicialmente, no que concerne ao tópico anterior supracitado, é notório que os indígenas possuem o direito de acessar a justiça como qualquer outro cidadão brasileiro. No entanto, devido às suas especificidades culturais, históricas e sociais, o processo de acesso à justiça pode ser mais difícil e complexo para os indígenas.
Os indígenas podem acessar a justiça de forma individualizada por meio da Defensoria Pública da União (DPU) ou de advogados particulares. Caso o indígena não possua recursos financeiros para arcar com as despesas advocatícias, a DPU pode prestar assistência jurídica gratuita para a defesa dos seus direitos. Ademais, o Ministério Público Federal (MPF) também pode atuar em defesa dos direitos dos povos indígenas, inclusive em casos individuais, e é importante ressaltar que a comunidade indígena pode ser uma importante aliada na busca por soluções e resolução de conflitos de forma pacífica e consensual.
Em situações que envolvam direitos coletivos também suscita a FUNAI e MPF, com a finalidade de proteger os interesses dos povos indígenas, tanto individuais quanto coletivos. Conforme prevê o art. 231 da Constituição Federal de 1988, é dever da União respeitar e proteger os direitos indígenas (BRASIL, 1988). Para isso, a FUNAI foi criada com o objetivo de promover e defender os interesses desses povos, conforme estabelece o art. 35 do Estatuto do Índio (ÍNDIO, 1973).
O Ministério Público Federal (MPF) também tem um importante papel na defesa dos direitos indígenas, em decorrência do art. 129, III e V da Constituição Federal, que estabelece a sua atribuição de defender judicialmente os interesses coletivos e individuais indisponíveis. O art. 6º, VII, “b” e “c” da Lei Complementar nº 75/93, que dispõe sobre a organização, atribuições e estatuto do MPF, também reforça essa obrigação ao estabelecer que cabe ao Ministério Público Federal a defesa dos direitos indígenas e a promoção das medidas necessárias para a sua proteção. MPF, a FUNAI e a própria comunidade podem ser parte no processo, visando assegurar a proteção dos direitos indígenas e a preservação de sua cultura e tradições.
Na defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas, podem atuar como legitimados diretos tanto os indivíduos indígenas quanto suas comunidades ou entidades representativas. Além disso, a FUNAI e o MPF seguem sendo legitimados extraordinários para atuarem em defesa dos direitos desses povos.
Essa perspectiva está em consonância com a situação de vulnerabilidade peculiar em que os povos indígenas se encontram, considerando que muitas vezes têm seus direitos violados por interesses de terceiros, e precisam de mecanismos de proteção para garantir o pleno exercício de seus direitos. Portanto, a atuação conjunta desses atores é fundamental para a garantia dos direitos e interesses dos povos indígenas no âmbito individual e coletivo. O acesso à justiça é um conceito que engloba não apenas a possibilidade de acesso formal aos tribunais, mas também o acesso a uma ordem de valores e direitos fundamentais do ser humano. Segundo o renomado jurista brasileiro WANABE (1988):
“A problemática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça, enquanto instituição estatal, e sim de
viabilizar o acesso à ordem jurídica justa. Uma empreitada assim ambiciosa requer, antes de mais nada, uma nova postura mental. Deve-se pensar na ordem jurídica e nas respectivas instituições, pela perspectiva do
consumidor, ou seja, do destinatário das normas jurídicas, que é o povo, de sorte que o acesso à Justiça traz à tona não apenas um programa de reforma como também um método de pensamento, como com acerto
acentua Mauro Cappelletti. (…) São seus elementos constitutivos: a) o direito de acesso à Justiça é, fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa; b) são dados elementares desse direito: (1) o direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e ostentada à aferição constante da adequação entre a ordem jurídica e a realidade sócio
econômica do país; (2) direito de acesso à justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; (3) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; (4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características.”
O acesso à justiça é um direito fundamental que abrange não apenas o acesso aos tribunais, mas também o acesso a uma ordem de valores e direitos fundamentais do ser humano. Ada Pellegrini Grinover, renomada jurista brasileira, defende que o acesso à justiça é um direito amplo, que permite obter uma solução justa para os conflitos de interesses, de acordo com uma ordem de valores prevista na legislação.
Para Grinover (1988), o processo judicial é um instrumento capaz de produzir decisões justas e equitativas, que respeitem os valores e princípios fundamentais da ordem jurídica brasileira. Nesse sentido, o acesso à justiça não se limita ao mero acesso aos tribunais, mas engloba também o acesso à informação jurídica, à assistência jurídica, à educação em direitos e à participação na vida social e política.
Dessa forma, o acesso à justiça deve ser entendido como um direito multidimensional, que contribui para a promoção da cidadania, da justiça e da democracia. É responsabilidade do Estado e da sociedade trabalhar em conjunto para garantir que esse direito seja efetivamente exercido, independentemente da condição social, econômica ou política dos cidadãos.
Portanto, o acesso à justiça é um direito fundamental que transcende o simples acesso aos tribunais e deve ser compreendido como um processo mais amplo de inclusão social e promoção dos valores e princípios fundamentais previstos na ordem jurídica brasileira.
4 ANÁLISE DA APLICAÇÃO DO DIREITO INDIGENISTA PELO PODER JUDICIÁRIO NO ESTADO DO MARANHÃO.
A presente pesquisa tem como objetivo avaliar a atuação do Poder Judiciário no que se refere à aplicação do direito indigenista em casos concretos e seu impacto na garantia dos direitos dos povos indígenas. Para isso, será realizada uma pesquisa jurisprudencial, ou seja, uma investigação baseada nas decisões proferidas pelo Poder Judiciário no período de 2005 a 2020.
A coleta de dados para essa pesquisa será feita por meio de uma revisão das decisões judiciais que abordem questões relacionadas aos direitos humanos, políticos e territoriais dos povos indígenas do estado do Maranhão. A partir daí, será possível analisar se o Poder Judiciário vem atuando de forma adequada na garantia desses direitos, bem como identificar eventuais pontos de fragilidade que possam prejudicar a efetivação desses direitos.
Dessa forma, espera-se contribuir para o aprimoramento da proteção dos direitos dos povos indígenas e para a compreensão da importância da atuação do Poder Judiciário neste contexto. A metodologia utilizada na extração e coleta de dados quantitativos consistiu em buscar decisões judiciais relevantes para o tema da pesquisa no banco de dados jurisprudenciais dos tribunais superiores e da 2ª instância do tribunal regional federal da 1ª região.
As potencialidades desta metodologia incluem a obtenção de uma base de dados ampla e diversificada de decisões judiciais, bem como a possibilidade de analisar tendências e padrões nos julgamentos. Além disso, a utilização de palavras-chave específicas e frases de pesquisa permite uma maior precisão na seleção das decisões judiciais relevantes.
A pesquisa iniciou-se com o objetivo de investigar a jurisprudência relativa aos direitos humanos, políticos e territoriais dos povos indígenas no estado do Maranhão. Para tal, foi realizada uma coleta de decisões judiciais dos três principais tribunais brasileiros: o
Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e a Segunda Instância do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1). Essa coleta de dados foi conduzida com o objetivo de obter informações sobre como os tribunais têm tratado questões relevantes para os direitos dos povos indígenas, permitindo uma análise mais aprofundada e precisa dos temas abordados.
Com relação aos Direitos Territoriais Indígenas, foram analisadas 21 decisões judiciais, sendo 8 no Supremo Tribunal Federal (STF), 7 no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e 6 na segunda instância do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). A análise das decisões foi confrontada com as normativas de regência, tanto no âmbito dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos assinados pelo Brasil, quanto no âmbito constitucional.
A Constituição Federal de 1988 representa um marco jurídico para o direito indigenista brasileiro, pois reconheceu aos povos indígenas a plena autonomia organizativa, cultural, política e territorial. Além disso, reconheceu aos indígenas a plena legitimidade processual ativa para se fazer representar em qualquer instância administrativa ou judicial, rompendo assim com o paradigma da Tutela Indígena vigente até a constituinte, onde os indígenas seriam relativamente incapazes para praticar os atos da vida civil, cabendo exclusivamente à Fundação Nacional do Índio (Funai) falar em nome das pessoas indígenas e representá-las perante órgãos da administração pública.
A análise das decisões judiciais permitiu identificar alguns padrões de violação dos direitos territoriais indígenas. A Constituição Federal de 1988, (art 20, XI) garante aos povos indígenas o direito à posse e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes em suas terras, bem como o direito de serem consultados previamente em processos decisórios que afetem seus direitos (BRASIL, 1988). No entanto, algumas decisões judiciais ignoraram esses direitos, autorizando a exploração de recursos naturais em terras indígenas sem a consulta prévia e o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas.
Além disso, a Constituição Federal, art. 231° prevê a demarcação das terras indígenas como um direito originário dos povos indígenas, garantindo-lhes a posse permanente e o usufruto exclusivo sobre essas terras (BRASIL, 1988). No entanto, algumas decisões judiciais questionaram a validade dos estudos antropológicos que fundamentam a demarcação das terras indígenas, o que pode colocar em risco a segurança jurídica das terras já demarcadas e dificultar a demarcação de novas áreas.
A decisão monocrática da Presidência do TRF-1, que reverteu a concessão da liminar para autorizar a construção da ferrovia Carajás, passando pelo Território Indígena Awá Guajá, foi fundamentada em um paradigma inconstitucional e preconceituoso da Tutela Indígena.
Segundo o julgador, a construção da ferrovia contaria com a anuência da FUNAI, sem considerar que a anuência para tal construção deveria ter sido dada pelo próprio povo afetado, por meio de suas instâncias representativas que gozam de plena autonomia territorial e política, conforme estabelecido pela constituição.
Essa decisão do presidente do TRF-1 violou a autonomia territorial e política do Povo Awá Guajá e ignorou o direito de participação e consulta livre e informada, garantido pela Convenção 169 da OIT. Além disso, ao decidir dessa maneira, o julgador não observou o princípio do devido processo legal, que é basilar do Estado Democrático de Direito e se subdivide nos princípios da ampla defesa e do contraditório.
A Constituição Federal brasileira reconhece a Teoria do Indigenato, que garante aos povos indígenas o direito originário sobre a terra que tradicionalmente ocupam. Cabe à União demarcá-las e proteger todos os seus bens. Esse reconhecimento implica no reconhecimento de um direito anterior ao próprio sistema jurídico normativo ibérico.
Além disso, o art. 231, §1º CF, garante aos indígenas não apenas o direito ao território onde residem, mas também o direito aos territórios de uso produtivo, religioso e aos que possuem recursos naturais necessários para a reprodução física e cultural do povo (BRASIL,1988). Esse reconhecimento do direito ao território é essencial para a manutenção da cultura e sobrevivência dos povos indígenas, bem como para a preservação dos recursos naturais e da biodiversidade em seus territórios.
Dessa forma, conforme o art 231° supracitado, dissemina que o reconhecimento do direito originário dos povos indígenas às suas terras é um princípio fundamental da Carta Magna. Conforme essa teoria, as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas são “inalienáveis e indisponíveis”, o que significa que os atos que visam ocupar, dominar ou possuir essas terras são nulos e não produzem efeitos jurídicos. Além disso, os negócios jurídicos realizados em partes do território indígena são considerados nulos, presumidamente de má-fé, e não fazem jus à indenização.
Durante a década de 1990, a aplicação da Teoria do Indigenato se fortaleceu, e a partir do século XXI, tornou-se um entendimento pacificado nos tribunais superiores. Em algumas decisões, como a APELREMNEC 38885, movida pela Agropecuária Alto Tiruaçu LTDA e outros particulares que reivindicavam a nulidade do procedimento demarcatório do Território Indígena Awá Guajá, a correta interpretação e aplicação do Art. 231 da Constituição Federal foi observada.
Na ocasião, a sexta turma do TRF-1 declarou a legalidade da Portaria do Ministro da Justiça que instaurou o processo demarcatório, a nulidade dos títulos incidentes sobre o
território indígena, a necessidade de registro da área demarcada no cartório de registro imobiliário e a desintrusão da área, com a remoção dos não indígenas e de todas as benfeitorias, pela União e pela FUNAI.
Conforme o supracitado, pode-se afirmar que há uma clara violação dos direitos constitucionais dos Povos Indígenas no Estado do Maranhão. A Constituição garante a esses povos o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, bem como a proteção e o respeito aos seus bens. No entanto, a realidade dos Territórios Indígenas no estado é de invasões e conflitos constantes, principalmente por parte de madeireiros ilegais, o que tem gerado prejuízos irreparáveis, inclusive com o assassinato de indígenas.
Diante disso, é necessário que o poder público atue com urgência para garantir a proteção e a segurança dos Povos Indígenas no estado do Maranhão, bem como para coibir ações ilegais de invasores e exploradores. A demarcação das terras indígenas, seguida da desintrusão das áreas invadidas e da responsabilização dos infratores, é uma medida que se faz urgente para a proteção desses povos e da biodiversidade presente em seus territórios.
Além disso, é fundamental que sejam criados mecanismos eficazes de proteção e fiscalização das terras indígenas, em colaboração com as comunidades indígenas e seus representantes, de forma a garantir a preservação e o uso sustentável dos recursos naturais existentes nos territórios, bem como o respeito às tradições e culturas desses povos.
A proteção dos territórios indígenas no Brasil tem sido alvo de constantes conflitos e descaso por parte do poder público. A falta de ação governamental na defesa dos direitos territoriais dos povos indígenas têm gerado uma situação de vulnerabilidade, com invasões de terras e recursos naturais, resultando em graves violações de direitos humanos.
Em face dessa situação, grupos de indígenas denominados “Guardiões da Floresta” surgem como uma alternativa de defesa e proteção aos territórios indígenas contra a invasão de madeireiros. Esses grupos se auto-organizam e trabalham na vigilância das áreas protegidas, desempenhando um papel fundamental na preservação da biodiversidade e na garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas.
No entanto, a atuação dos Guardiões da Floresta é permeada por uma série de riscos e ameaças, uma vez que sua atuação implica em enfrentamentos diretos com invasores e grupos criminosos. Além disso, a omissão do poder público na proteção dos territórios indígenas agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade desses grupos, colocando em risco a integridade física e a vida dos Guardiões da Floresta.
A gravidade e a urgência da situação foram reconhecidas pela CIDH3, que emitiu uma medida cautelar em janeiro de 2021, obrigando o Brasil a proteger os Povos Guajajara e Awá do Território Indígena de Araribóia no Maranhão. A CIDH apontou que a presença contínua de terceiros não autorizados no território indígena contribui para o aumento da vulnerabilidade e do risco de violação de direitos humanos, especialmente no contexto da pandemia do coronavírus. Além disso, o plano de proteção apresentado pelo governo brasileiro foi considerado inefetivo, por não apresentar prazos, responsáveis ou metas (HUMANOS, 1948).
44. Diante do exposto, a Comissão não dispõe de elementos que indiquem que as ações estatais foram suficientes e efetivas para proteger os povos indígenas da TI Araribóia frente à multiplicidade e complexidade dos riscos alegados, em especial tendo-se em conta que os povos indígenas no Brasil historicamente apresentariam vulnerabilidade imunológica a infecções respiratórias (ver supra paras. 5 e 24).
Assim, considerando o presente contexto da pandemia de COVID-19, em que as pessoas propostas beneficiárias estariam em frequente contato com terceiros não autorizados nas terras que habitam, os quais seriam potenciais vetores da doença, juntamente com a falta de medidas de atendimento à saúde suficientes e eficientes a seu favor, e recordando a particular situação de vulnerabilidade histórica dos povos
indígenas, principalmente dos povos em isolamento voluntário, a Comissão considera que, pelo padrão prima facie aplicável ao mecanismo de medidas cautelares, os direitos à vida, à integridade pessoal e à saúde dos membros dos Povos Indígenas Guajajara e Awá da Terra Indígena Araribóia estão em uma situação de grave risco.
O presente estudo identificou um problema recorrente na relação dos entes federativos brasileiros com os Povos Indígenas, o qual se manifesta na animosidade histórica presente em muitas das decisões judiciais analisadas, nas quais municípios figuram no polo ativo dos processos judiciais. Tal informação é relevante, pois evidencia que o próprio poder público muitas vezes subverte a sua competência de proteger os Territórios Indígenas e, ao contrário, busca obstaculizar a conquista dos direitos territoriais indígenas. Este problema é grave, pois atenta contra os direitos fundamentais dos Povos Indígenas e coloca em risco a integridade física e cultural dessas comunidades.
Durante o processo de pesquisa, constatou-se um fato relevante que evidencia a hostilidade histórica presente na relação dos entes federativos brasileiros com os Povos Indígenas. É notável que muitas das decisões judiciais analisadas incluíam municípios no polo ativo dos processos judiciais, o que demonstra que é comum que o próprio poder público subverta sua responsabilidade de proteger os Territórios Indígenas, a fim de impedir a conquista dos direitos territoriais indígenas.
Esse cenário foi observado no caso do Território Indígena Porquinhos dos Canela Apãnjekra, cujo processo de demarcação foi questionado repetidamente na justiça pelos municípios de Grajaú, Fernando Falcão, Formosa da Serra Negra e Barra do Corda. Em 2010, foi ajuizado um Mandado de Segurança (MS 14.987 DF) no STJ, que teve o deferimento monocrático do pedido liminar para suspender os efeitos da Portaria declaratória n. 3508/2009 até o julgamento final do MS.
No entanto, três meses depois, o Acórdão proferido pela primeira seção negou a ordem e rejeitou a tese do marco temporal, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse – ou em processo de reivindicação física ou judicial – em outubro de 1988. Essa tese, na prática, legaliza e legitima as violências às quais os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar.
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL – ÁREA INDÍGENA: DEMARCAÇÃO – PROPRIEDADE PARTICULAR – ART. 231 DA CF/88 – DELIMITAÇÃO – PRECEDENTE DO STF NA PET 3.388/RR (RESERVA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL) – DILAÇÃO PROBATÓRIA – DESCABIMENTO DO WRIT – REVISÃO DE TERRA INDÍGENA DEMARCADA SOB A ÉGIDE DA ORDEM CONSTITUCIONAL ANTERIOR – POSSIBILIDADE. 1. Processo administrativo regularmente instaurado e processado, nos termos da legislação especial (Decreto 1.775/96). Ausência de cerceamento de defesa. 2. A existência de propriedade, devidamente registrada, não inibe a FUNAI de investigar e demarcar terras indígenas. 3. Segundo o art. 231, §§ 1° e 6°, da CF/88 pertencem aos índios as terras por estes tradicionalmente ocupadas, sendo nulos os atos 59 translativos de propriedade. 4. A ocupação da terra
pelos índios transcende ao que se entende pela mera posse da terra, no conceito do direito civil. Deve-se apurar se a área a ser demarcada guarda ligação anímica com a comunidade indígena. Precedente do STF. 5. Pretensão deduzida pelo impetrante que não encontra respaldo na documentação carreada aos autos, sendo necessária a
produção de prova para ilidir as constatações levadas a termo em laudo elaborado pela FUNAI, fato que demonstra a inadequação do writ. 6. A interpretação sistemática e teleológica dos ditames da ordem constitucional instaurada pela Carta de 1988 permite concluir que o processo administrativo de demarcação de terra indígena que tenha sido levado a termo em data anterior à promulgação da Constituição vigente pode ser revisto. 7. Segurança denegada.
Em meio à controvérsia, os entes federativos municipais envolvidos no processo de demarcação do Território Indígena Porquinhos dos Canela-Apãnjekra recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de um Recurso Ordinário (RMS 29.542 DF), buscando invalidar a Portaria declaratória n. 3508/2009 e aplicar a tese do marco temporal para impedir a suposta ampliação do território indígena. Em 2014, a segunda turma do STF proferiu um acórdão nesse sentido, o que gerou polêmica e controvérsia em relação à validade e aplicação da referida tese em casos de demarcação de terras indígenas.
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. TERRA INDÍGENA DEMARCADA NA DÉCADA DE 1970. HOMOLOGAÇÃO POR DECRETO PRESIDENCIAL DE 1983: REVISÃO E AMPLIAÇÃO. PORTARIA N. 3.588/2009 DO MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA. ALEGADOS VÍCIOS E IRREGULARIDADES NO PROCESSO DEMARCATÓRIO PRECEDENTE. DELIMITAÇÃO DE ÁREA INFERIOR À REINVIDICADA. ADEQUAÇÃO AOS PAR METROS DE POSSE TRADICIONAL INDÍGENA (ART. 231 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA): IMPOSSIBILIDADE. CASO RAPOSA
SERRA DO SOL (PETIÇÃO N. 3.388/RR). FIXAÇÃO DE REGIME JURÍDICO CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS IDÍGENAS NO BRASIL. DESATENDIMENTO DA SALVAGUARDA INSTITUCIONAL PROIBITIVA DE AMPLIAÇÃO DE TERRA INDÍGENA DEMARCADA ANTES OU DEPOIS DA PROMULGAÇÃO DE 1988. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.
O movimento em favor dos direitos dos povos indígenas no Brasil tem sido marcado por uma série de desafios, incluindo a resistência dos setores ruralistas e governamentais que buscam minar os direitos dos povos tradicionais sobre suas terras ancestrais. Desde o início do século XXI, o judiciário brasileiro vinha consolidando o entendimento de que os povos indígenas têm direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, invalidando todos os negócios jurídicos que ocorrem nesses territórios. Ainda assim, os ruralistas vinham sofrendo derrotas no campo jurídico, que não interpretava as ações de retomada e autodemarcação dos Territórios Indígenas como criminosas.
Em resposta a essas derrotas, setores ruralistas passaram a formular a tese do marco temporal, com o objetivo de questionar os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras. A tese do marco temporal foi ganhando visibilidade a partir do julgamento referente ao Território Indígena Raposa Serra do Sol (PET 3.388 RR) em 2008, quando foram estabelecidas “salvaguardas institucionais” que deveriam ser observadas para que fosse reconhecida a validade do procedimento demarcatório em análise naquele caso específico. No entanto, tais salvaguardas não possuem previsão legal e a decisão não possui efeito vinculante para outros processos que discutam matérias semelhantes.
A tese do marco temporal passou a ser utilizada pelos setores ruralistas em diversos processos judiciais que envolvem a demarcação de terras indígenas, como no caso do Território Indígena Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, no qual diversos municípios questionaram o procedimento demarcatório na justiça. A segunda turma do STF acabou aplicando a tese do marco temporal para invalidar a portaria demarcatória e impossibilitar a suposta ampliação do território indígena em questão.
Essa decisão reforça a animosidade histórica existente entre os entes federativos brasileiros e os povos indígenas, uma vez que o próprio poder público tem subvertido sua competência de trabalhar pela proteção dos Territórios Indígenas, provocando o sistema de justiça no intuito de obstar a conquista dos direitos territoriais indígenas. Dessa forma, a descrição ilustra a existência de uma disputa contenciosa entre grupos indígenas e ruralistas no que se refere ao significado jurídico do artigo 231 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). O artigo em questão reconhece aos povos indígenas o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, contudo, sua aplicabilidade prática é objeto de interpretações divergentes por parte dos tribunais superiores. O campo do direito é caracterizado por conceitos abertos, que frequentemente demandam expertise de outras áreas do conhecimento para sua interpretação e aplicação.
Conforme pesquisas, é demonstrada que no decorrer das decisões judiciais que detém a temática de demarcação territorial, faz jus a tentativa de desfigurar a presença do perito antropólogo, haja vista, que os índios são frequentemente acusados de cometer o crime do art. 171,CP (BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940).
Alegam que os estudos que embasaram a expedição da Portaria n. 3.508/2009 do Ministro da Justiça estariam eivados de vícios, que as terras em questão não eram tradicionalmente ocupadas por índios e que as conclusões, assim como a idoneidade do antropólogo que coordenou os trabalhos, teriam sido questionadas em parecer
produzido por outro antropólogo para subsidiar a contestação apresentada no processo administrativo conduzido pela Funai. (Relatório do Acórdão STF. RMS 29.542 DF) Sustentam que as fontes utilizadas no relatório que fundamentou a referida portaria “são inconsistentes e falham no sentido de comprovar a ocupação
indígena na área pretendida para ampliação e corrobora a afirmação, indubitável, de parcialidade do relatório desenvolvido pelo antropólogo Jaime Garcia Siqueira” (fl. 08). Afirmam, ainda, que “O Ministro Tarso Genro mais uma vez foi enganado por relatório mentiroso, elaborado apenas por um antropólogo a serviço de ONG’S
estrangeiras e não levou em conta que o Maranhão possui apenas 15% de terras férteis, sendo que 8% das mesmas já estão nas mãos dos índios e 7% ocupadas com agricultura e pecuária pelos não índios” (fl. 14)] (Relatório da decisão monocrática.
Exmo. Cesar Asfor Rocha. MS 14.987 DF).
Os resultados da pesquisa apontam para a existência de obstáculos significativos enfrentados pelos Povos Indígenas do Maranhão em relação ao acesso à justiça para a reivindicação dos seus direitos territoriais. A partir dos achados de pesquisa e do conhecimento empírico de especialistas, como a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e o Conselho Indigenista Missionário, é possível concluir que os indígenas são constantemente enquadrados no paradigma assimilacionista e são acusados de cometer estelionato identitário.
Outra barreira importante é a morosidade processual, que faz com que muitos processos fiquem parados por longos períodos, chegando a durar mais de uma década. Mesmo quando os tribunais superiores decidem a favor dos Direitos Territoriais Indígenas, pode acontecer de a decisão ser tardia e inoperante em face da consumação de prejuízo irreparável. É importante destacar que essas questões são ainda mais graves em um contexto de disputas territoriais cada vez mais acirradas entre indígenas e ruralistas, que têm apresentado argumentos divergentes sobre a interpretação do Art. 231° da Constituição da República Federativa do Brasil 1988. (BRASIL, 1988).
Ademais, os achados de pesquisa descritos anteriormente, destacam a pouca quantidade de decisões judiciais em relação às questões dos Povos Indígenas, o que pode ser indicativo de questões que não são investigadas ou levadas ao conhecimento do poder judiciário. Isso pode ser atribuído ao racismo institucional que se manifesta durante a condução de inquéritos investigativos, muitas vezes invisibilizando a narrativa dos indígenas e levando a conclusões contrárias aos seus direitos na ausência do contraditório.
Diante desses achados, juntamente com as contribuições daqueles com experiência prática na luta pelos Direitos Territoriais Indígenas, podemos concluir que ainda há uma visão preconceituosa em relação aos indígenas nas estruturas institucionais, incluindo o regime tutelar, a homogeneização e transitoriedade da identidade indígena, a negação do comportamento do tempo nas sociedades indígenas e o paradigma integracionista.
A visão preconceituosa enraizada dentro das instituições de poder em relação aos povos indígenas no Brasil, denominada Racismo Estrutural, gera prejuízos irreparáveis a esses povos. Além dos prejuízos já descritos, o tratamento dispensado aos indígenas nas delegacias locais de polícia é um exemplo disso. Nessas delegacias, não há celeridade nas investigações e nem transparência de dados.
Muitas vezes, os inquéritos são realizados sem que nenhum indígena tenha sido ouvido, resultando em muitos crimes cometidos contra indígenas motivados por questões que envolvem seus interesses, mas que, diante da invisibilização do contexto em que foram praticados e da ausência da oitiva dos indígenas, são processados como crimes comuns pela justiça estadual. Esta situação é agravada pela falta de recursos e pessoal especializado para lidar com as especificidades das demandas dos povos indígenas no sistema judiciário brasileiro.
A questão da discriminação institucional evidenciados durante a condução de inquéritos investigativos, é também um fator que contribui para a pouca quantidade de decisões judiciais que se têm a respeito dos Direitos Territoriais Indígenas. Essa situação pode indicar que muitas questões simplesmente não são investigadas e muito menos levadas ao conhecimento do poder judiciário, resultando em conclusões contrárias aos Direitos Indígenas quando as investigações chegam a ser instauradas, dada a ausência do contraditório.
Dessa forma, é possível concluir que o racismo estrutural nas estruturas institucionais brasileiras, em relação aos indígenas, acarreta prejuízos que vão além dos danos já mencionados, e incluem também a falta de celeridade nas investigações e a inviabilização do contexto em que são praticados a invasão do território indígena.
Nesse sentido, é mister destacar a necessidade de uma abordagem intercultural para a construção de políticas públicas que possam contemplar as especificidades culturais dos povos indígenas no Brasil. Isso implica em uma mudança de paradigma nas relações entre Estado e povos indígenas, em que estes últimos são vistos como sujeitos de direitos e não mais como tutelados.
Portanto, essa mudança deve ser acompanhada de ações concretas, como a implementação de políticas educacionais diferenciadas, a garantia de acesso à saúde e a criação de mecanismos que permitam a participação efetiva dos povos indígenas na construção de políticas públicas que afetem suas vidas e territórios. A implementação dessas políticas é fundamental para a promoção de uma sociedade mais justa e equitativa para todos os brasileiros, incluindo os povos indígenas.
O respeito às normas constitucionais e ordinárias que protegem o pluralismo cultural e os direitos dos povos indígenas é crucial para a promoção da justiça e da igualdade no Brasil. A Constituição Federal de 1988 prevê a proteção dos direitos indígenas, inclusive o direito à demarcação das terras tradicionais e o direito à preservação de suas línguas e culturas. No entanto, esses direitos são frequentemente violados, haja vista, que a sociedade brasileira ainda tem uma grande dívida com o contexto histórico brasileiro com os nativos.
Assim, é importante que o intérprete das normas constitucionais e ordinárias tenha em mente o espírito que presidiu à sua elaboração, ou seja, a promoção do pluralismo cultural e o respeito aos direitos dos povos indígenas. Somente assim será possível resgatar a dívida histórica que o Brasil tem com os indígenas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicialmente, o acesso à justiça aos indígenas que residem no Estado do Maranhão, é ofendido por não garantir um diálogo intercultural, o que representa uma negação de seus direitos culturais e sociais. Segundo, pela falta de acesso dos indígenas à Justiça brasileira, o que se traduz em um obstáculo ao exercício dos seus direitos fundamentais e uma violação da sua dignidade. No caso do Amazonas, a situação é agravada pela distância das aldeias indígenas em relação aos centros urbanos, a escassez de recursos, a falta de estrutura dos órgãos responsáveis pela defesa dos direitos indígenas, a falta de assistência jurídica adequada e a ausência de intérpretes nas audiências judiciais.
Dessa forma, o cenário supracitado dificulta o acesso à Justiça e compromete a efetividade dos direitos dos povos indígenas. É necessário, portanto, que sejam implementadas políticas públicas que garantam o acesso dos indígenas à Justiça, incluindo a criação de centros de assistência jurídica nas áreas de concentração indígena, a capacitação de intérpretes e a valorização da jurisdição indígena como forma de diálogo intercultural e proteção dos direitos fundamentais dos povos originários.
Observa-se que a violência contra os povos indígenas no estado do Maranhão é resultado de uma estrutura estatal omissa na proteção dos direitos indígenas e de um discurso de violência institucionalizada nos conflitos de terras entre madeireiros e os povos originários que ocupam as terras de interesse do agronegócio.
Essa situação reflete o interesse econômico do mercado da madeira e da abertura de pastos para o agronegócio, o que leva a expulsão e desorganização das populações indígenas que protegem a floresta. A existência de uma população politicamente organizada, como é o caso da população Guajajara, que predomina o território do Maranhão, notadamente no Território Indígena Araribóia, é vista como um obstáculo para a exploração das florestas.
Portanto, os conflitos de terras ocorrem frequentemente contra as lideranças indígenas daquela área, a fim de desestruturar a população originária e enfraquecê-la enquanto resistência territorial. Por outro lado, o poder público, que deveria conduzir a função de proteger e fiscalizar as terras indígenas, mostra-se na grande maioria dos casos de assassinatos4, omisso e ineficaz, sendo que nos poucos casos em que o crime é investigado, o processo investigatório muitas vezes sequer chega à esfera judicial.
O Brasil enfrenta um desafio significativo para garantir o acesso à Justiça aos povos indígenas e demais cidadãos universais, bem como reconhecer juridicamente as formas de justiça indígena e jurisdição especial. O atual estágio de reconhecimento jurídico multicultural neoliberal e as decisões judiciais no Maranhão referentes ao direito ao território e seus condicionantes evidenciam que o Poder Judiciário tem minimizado o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas.
Essa postura enfatiza o direito pensado e aplicado pelos juízes “não índios” estatais ao “outro” indígena, desconhecido pelo Poder Judiciário em sua história, suas origens e sua cultura. Como resultado, os povos indígenas são sujeitados à aplicação do direito exclusivamente emanado pelo Estado, de maneira colonial e etnocêntrica. Portanto, é necessário um esforço mais abrangente para garantir que os povos indígenas tenham acesso à justiça e possam ter suas questões jurídicas abordadas de maneira justa e culturalmente adequada.
REFERÊNCIAS
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1 Graduanda em Direito pelo Instituto de Ensino Superior do Sul do Maranhão (Unisulma/IESMA). E-mail: assis.maria@discente.ufma.br.
2 Doutorando em Direito (UniCEUB). Mestre em Educação (UFMA). Professor do Curso de Direito do Instituto de Ensino Superior do Sul do Maranhão (Unisulma/IESMA). E-mail: clovisjrs@gmail.com.
3 Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
4Jornal O Globo.