REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7693212
Felipe Guimarães de Oliveira Souza¹
Resumo:
O intuito deste ensaio é analisar conexões entre a linguística de Wilhelm von Humboldt, a dogmática jurídica e a obra literária de Ursula K. Le Guin, A Curva do Sonho. Pensar a linguagem enquanto processo que possibilita a objetividade da experiência e a intersubjetividade da comunicação abre dimensões metodológicas para enfrentarmos os limites e as possibilidades da ciência jurídica, que não é meramente conhecimento instrumental, tampouco mera fruição cognitiva inútil apartada da realidade e circunscrita ao mundo normativo. Tal como as personagens de A Curva do Sonho, o jurista também é desafiado a descobrir e inventar soluções para os diversos problemas sociais do seu tempo.
Palavras-chaves: ciência jurídica, Wilhelm von Humboldt, A Curva do Sonho
Abstract:
The aim of this essay is to analyze connections between Wilhelm von Humboldt’s linguistics, legal theory and Ursula K. Le Guin’s literary work, The Lathe of heaven. Thinking about language as a process that enables the objectivity of experience and the intersubjectivity of communication opens up methodological dimensions for us to face the limits and possibilities of legal theory, which is not merely instrumental knowledge, nor mere useless cognitive fruition separated from reality and limited to the normative world. Like the characters in The Lathe of heaven the jurist is also challenged to discover and invent solutions for the several social problems of his time.
Keywords: legal theory, Wilhelm von Humboldt, The Lathe of heaven
Eu, um pesquisador? Não Empregueis tal palavra…
Sou apenas muito pesado! Caio, caio sem descanso,
Para descer, finalmente, até o fundo.
(Nietzsche)
Introdução
O intuito deste pequeno ensaio é criar um esboço, um rascunho, sobre as interseções da linguagem em Humboldt e a produção de saber da dogmática jurídica. A ideia é correlacionar algumas temáticas de Ontologia e Linguagem com o romance, de Ursula K. Le Guin, “A Curva do Sonho”. A estratégia de usar uma obra de ficção neste trabalho é proposital, pois algumas dúvidas e conclusões parciais que me acompanharam e me acompanham podem ser explicitadas, com algum sucesso, por meio deste artifício. Enquanto teórico aprendiz, construo certas convicções sobre o alcance de um trabalho acadêmico no direito, mesmo ciente que convicção não é e nem deveria ser a palavra correta, pois tal vocábulo remete a algo por demais fixo, pedregoso, imutável; característica que certamente não reflete minhas angústias diante deste processo movediço envolvendo o conhecimento e a aprendizagem. Não à toa me defino como teórico aprendiz e, talvez, mesmo com o passar do tempo, mesmo após compartilhar meus anos vindouros de trabalho com colegas de profissão, não me sinta legitimado para me auto atribuir a alcunha tantas vezes almejada em “sonho”. Não me basta pesquisar, encontrar dados na realidade que ornamentem minhas opiniões com o rigor acadêmico. Meu intuito, não com este trabalho, obviamente, mas com os trabalhos gestados no calor do travesseiro, trabalhos a serem feitos, é ultrapassar o esboço, o rascunho, ter caráter científico não por apego aos ritos ou critérios que atordoam alguns dos nossos melhores pesquisadores; ter caráter científico porque, depois de tantos esboços e rascunhos e no meio de tantas superfícies, projete algo em profundidade.
Meu contato com o mundo acadêmico é suficiente para perceber que a linguagem construída neste trabalho são ideias advindas de extenuantes e, por que não, alegradoras leituras, pretende comunicar, transformar em palavra escrita aquilo que ainda é um amontoado diverso e desperto de palavra imaginada. Mais do que isso, quero aproximar meu objeto de estudo à filosofia, criar ressonância entre as duas áreas do saber, aos dois campos que me exortam e me constrangem na elaboração deste pequeno esboço de memória vaga. Admito, conheço pedaços do pensamento de Humboldt, aspectos de sua obra mais influente, mas é com estes pedaços que me arrisco a escrever este pequeno ensaio. Antiacadêmico por natureza, superficial por estigma, idiossincrático pela petulância de misturar conteúdo e devaneio; porém digno e autêntico; porque, apesar do rigor inexpressivo, está permeado de critérios; critérios que me foram comunicados; critérios que tento absorver, reproduzir em redundância, replicar modificando.
A maleável e flexível convicção que carrego sobre o alcance de trabalhos acadêmicos no direito, e, talvez, por que não, na filosofia; convicção que se esvai a cada nova leitura, é um dos temas centrais deste ensaio. Seria possível fazer ciência com o direito? E qual ciência teria legitimidade social no nosso meio? Existem papeis distintos entre o pesquisador que coleta e descreve os dados da realidade e o teórico que cataloga estratégias para interferir nesta mesma realidade?
Entre tantas perguntas e incertezas, o vislumbre humboldtiano pode nos oferecer alguns insights, soluções, chaves interpretativas para o vetusto problema levantado. Sabemos que para Humboldt a linguagem constitui o pensamento; e ao contrário daqueles que consideravam a língua, as palavras, mero instrumento de transformação da experiência singular em experiência compartilhada, percebe que ela, a linguagem, não pode ser instrumento porque não é produto, mas atividade; atividade esta que possibilita a objetividade da experiência e a intersubjetividade da comunicação. ²
Se pensarmos que o conhecimento é atividade intelectual, poderemos sugerir uma aproximação entre conhecimento, ciência e linguagem. Agora, enquanto escrevo, me interrogo, talvez em termos utilitaristas, a que ou a quem serve o conhecimento? A resposta simplória me induz a imaginar que o conhecimento que ouso ou pretendo produzir, serve à atividade acadêmica tal como qualquer outro trabalho científico. A simplicidade ingênua desta definição é tautológica, com ela admitimos que o conhecimento serve para que cientistas, pesquisadores e acadêmicos produzam ciência; em outras palavras, conhecimento científico produz mais conhecimento científico, e, portanto, pelo paralelo proposto, a linguagem, enquanto atividade intelectual, também serve para produzir mais linguagem.
A ciência e a linguagem são jogos que, como qualquer outro, possuem objetivos. Identificar algo na realidade, descrever seu funcionamento, imaginar conexões entre a natureza, o mundo social e os nossos pensamentos não são simples apanágios de alguns seres estranhos que se afogam em fruição inútil de conhecer o que outros ainda não conhecem. Existem propósitos, propósitos que não estão inscritos no nosso ser, propósitos que, apesar da crença de muitos, não nos foram dados por Deus ou por qualquer outra entidade divina, mitológica, encantada. São propósitos construídos, reconstruídos, criados por aquilo que entendemos por cultura ou sociedade. Cultura esta, inclusive, que pôde e pode nos convencer que os nossos propósitos são divinos ou que estão inscritos na natureza, no âmago, no espírito ou em compartimentos fisiológicos compartilhados em material genético.
Ciência não é apenas uma técnica de compreensão da natureza, do mundo social, dos nossos pensamentos, mas uma forma de agir sobre a realidade, de controlá-la, de regulá-la. Imaginar que o pesquisador apenas coleta e descreve dados, gerando informação e construindo linguagem objetiva é uma forma de idealização, de pureza asséptica, uma fuga, atalho escamoteado com o véu da neutralidade. Se queremos controlar e regular, através da ciência, nosso comportamento, nossas ações, relações, a natureza, o espírito; ou se admitimos que existem propósitos internos ao próprio discurso científico que ultrapassam a mera fruição inútil de conhecer o desconhecido, a visão essencialmente analítica da ciência precisa se adequar a estas regulações, a estes mecanismos de controle. Só podemos vislumbrar um potencial científico nas ciências humanas, e, por consequência, no direito, imaginando a possibilidade dessas adequações. Eis o papel da abordagem linguística inscrita em Humboldt, por ela conseguimos reconhecer distinções e semelhanças entre o pesquisador que coleta e descreve os dados da realidade e o teórico que cataloga estratégias para interferir nesta mesma realidade. São estas ideias que serão desenvolvidas ou, ao menos, perseguidas ao longo deste texto. Como dito, usarei uma obra ficcional para refletir alguns conteúdos imanentes à linguagem humboldtiana; esta obra servirá à parte final deste ensaio, quando as distinções e semelhanças entre o pesquisador e o teórico, mencionadas anteriormente, serão analisadas em detalhes. Tento escrever texto seco, sem a intermediação de outros autores, citações, cópia ou argumentos de autoridade. Sem abrir mão de todos os critérios acadêmicos, notas de rodapé informativas irão cumprir o papel que se espera de um texto desta estirpe³. Espero que o texto seco funcione sem qualquer muleta, por isso a tentativa de camuflar as citações em notas explicativas. Se já está consagrado na academia o uso de citações diretas e indiretas, proponho, neste ensaio, citações explicativas. Estas irão, além de apontar indícios das leituras que regularam meu processo de aprendizagem, mostrar posições contrárias às defendidas neste texto. Ao final, espero deixar claro meus propósitos, sendo julgado pelo fracasso ou pelo sucesso de tal empreendimento. Sozinho não ouso dizer se houve sonho, pesadelo ou apenas estado letárgico.
A Curva Do Sonho
Não é nenhuma novidade recorrer à literatura para destilar comentários em torno de questões jurídicas⁴. Isso já foi feito com bastante brilhantismo, embora, em linhas gerais, pululem, nesta área, trabalhos desprovidos de vigor ou criatividade. Algumas obras literárias já carregam o epíteto de serem leitura obrigatória aos estudiosos do direito, aqui predomina a repetição, como, aliás, em qualquer outra área. Nossa necessidade de segurança nos incute aos “melhores”. Porém, aos que sistematicamente se aventuram na análise destes materiais acadêmicos, a frustração é quase imediata; são trabalhos que geralmente abordam grandes problemas jurídicos com uma superficialidade assustadora⁵. Claro, é bem verdade, trabalhos amorfos no meio acadêmico é a regra. Instrumentalizar a literatura para repetir conceitos já consagrados talvez seja um ótimo entretenimento acadêmico, atividade lúdica que cumpre papel elementar, distrai, diverte⁶. A falsa sensação de liberdade, a aparência criativa que tais empreendimentos sugerem são sempre bem-vindos, principalmente quando o leitor consegue compartilhar, durante a leitura, esta brincadeira proposta pelo autor, cuja a única exigência é entrelaçar citações das mais diversas, em especial as jurídicas, com as personagens, com a trama da obra ficcional escolhida. De certa forma, é isto que me proponho. Se por um lado não escolho obra consagrada, é bem possível que “A Curva do Sonho” ainda não tenha dado o ar da graça em trabalhos envolvendo direito e literatura, por outro admito o caráter eminentemente lúdico que assemelha este ensaio a tantos outros. Faço da obra literária o meu instrumento para me aproximar, através de Humboldt, a dogmática jurídica de uma suposta ciência baseada na linguagem do Direito.
A estória possui enredo bastante simplório. O herói da trama, George Orr, altera a realidade sonhando. Alguns sonhos, que ele chama de sonhos efetivos, sonhos muito realistas experienciados no estado D, que acontece após o sono profundo e um pouco antes do despertar, criam uma nova cadeia temporal, modificando os fatos e a história. Orr é o único capaz de reconhecer estas mudanças, todos os outros a ignoram. No início do romance, a personagem explica, citando exemplo marcante da juventude, como tudo acontece. Lembra de uma tia que passou algumas semanas com ele e seus pais. Essa tia o perturbava, insistindo em contatos íntimos. Por ser muito jovem e sem qualquer experiência amorosa, a situação era assaz angustiante. Seu talento onírico resolve o embaraço, e após despertar de um sonho efetivo, no qual a tia morre, descobre que as perturbações sexuais nunca tinham acontecido, porque a tia meses antes de visita-lo, morrera em lamentável acidente automobilístico. Seus pais vivem esta nova cadeia temporal alheios à situação pretérita, resguardada apenas na memória do garoto. De início, Orr acredita estar louco, mas aos poucos se convence que seus sonhos de fato possuíam esta estranha característica de alterar a realidade. Todas estas alterações eram insuportáveis, pois sempre envolviam perdas e Orr se sentia responsável. Depois de alguns anos, para controlar os sonhos efetivos, passa a consumir drogas inibidoras do sono. A necessidade de ministrar quantidades cada vez maiores de substâncias entorpecentes, desperta a atenção do governo. Orr, então, é convidado a se submeter a tratamento psiquiátrico. O profissional encarregado da tarefa, o doutor William Haber, médico do submundo da cidade de Portland, onde se passa o enredo da estória, usa o herói em uma série de procedimentos. O doutor aperfeiçoava uma geringonça, o Ampliador, capaz de controlar, por meio de sugestão e hipnose, os sonhos dos pacientes. Em troca de drogas para continuar inibindo seus sonhos efetivos, Orr aceita participar dos testes, sem suspeitar que Haber conseguiria, através de seu Ampliador, se lembrar, assim como ele, das outras realidades. ⁷
Quando percebe que está sendo usado pelo doutor, já é tarde. Haber não quer apenas melhorar de vida, deixando de ser um mero psiquiatra do submundo de Portland, para se transformar num cientista renomado; mas, sobretudo, quer melhorar o mundo. Quer resolver os problemas urbanos envolvendo superpopulação, os problemas climáticos, os problemas bélicos entre as nações, o racismo e tantas outras mazelas sociais e civilizatórias⁸. O Ampliador garante ao médico algum controle sobre o paciente, mas boa parte do que é sonhado está inteiramente circunscrito ao psiquismo de Orr. A cada “melhoria” um problema maior é criado, mas Haber tem convicção que ele não é responsável por estes problemas. Quando aperfeiçoasse o Ampliador, se livrando da mente fraca, frouxa e irresponsável de Orr, finalmente teria total controle sobre seus inventos e soluções mágicas aos inconvenientes mundanos.⁹
Se o médico buscava obstinadamente modificar a realidade, Orr, ao contrário, desejava interromper aquela loucura. Precisava se livrar do médico, mas já estava suficientemente chafurdado em todo o processo para se libertar por conta própria. Ele procura assistência jurídica com a advogada Heather Lelache. Para o rapaz, os experimentos do médico violavam seus direitos de privacidade definidos na Constituição¹⁰. Ela resolve ajudá-lo, e após presenciar uma das sessões psiquiátricas, também se convence da estranha habilidade do cliente. A estória prossegue de maneira trágica, numa sucessão de realidades cada vez mais mirabolantes. Guerras, epidemias, alienígenas, tem de tudo, um prato cheio para quem quer perder algumas horinhas se inebriando em ficção. Mas, por enquanto, este breve resumo é suficiente ao ensaio.
Antes de explorar o romance, algumas dúvidas e comentários me parecem pertinentes.
Existe algum dado da realidade que preciso me ater para expor minhas ideias sobre os conteúdos abordados, ou simplesmente sou livre para escrever qualquer coisa? Se reconheço que no mínimo devo resguardar alguma coerência interna sobre aquilo que estou comunicando, então não há motivos para grandes tergiversações. Ora, de início sugeri correlacionar o romance com temas de “Ontologia e Linguagem”; e fui além, afirmei que tudo seria feito para sublinhar meu processo de aprendizagem. A coerência interna exige que, ao longo do texto, eu persiga estes objetivos. Portanto, os dados da realidade que preciso me ater existem: o romance de Ursula K. Le Guin, junto com os trechos mais importantes da obra humboldtiana. Estes dados, no entanto, não são meros objetos físicos; há conteúdo a ser compreendido. Esses conteúdos não são informações decodificadas, assimiladas e reproduzidas em outro meio, em outros substratos, com outras palavras; são conteúdos reestruturados pelo interprete, ou seja, por mim mesmo, a partir de conhecimentos vários. Certamente o ato de compreender envolve criação, pois leitura exata, matemática, verdadeira, leitura única são inviáveis em sistemas de linguagem informais. Tentar transformar nossos signos linguísticos em operações lógicas, genuinamente controladas por um sistema formal de regras é exercício inútil. O positivismo metodológico, alguns grandes pensadores da filosofia analítica tentaram algo neste sentido¹¹, mas, mesmo para estes autores, a possibilidade de equacionar a comunicação ordinária seria impossível12. Compreender, por este aspecto inferencial¹³, ou seja, admitindo que há choques, atritos entre o texto e o leitor, tudo permeado pela cultura e pelas expectativas sociais inscritas neste movimento, se mistura com o ato de interpretar. Quando há interpretação abrimos espaço para diversas leituras. Claro, também existe leitura errada, não porque a interpretação se esgota ou, na contramão de muitos, porque há limites na atividade interpretativa. Existe leitura errada, porque também interpretamos interpretação alheia.
Dizer que o infinito não comporta tudo, não é um contrassenso. Supor que o universo é infinito, por exemplo, não nos leva crer que tudo existe. Caso contrário, teríamos que acreditar na finitude para defendermos a inexistência de algo. Dentro da infinidade de leituras possíveis, existe leitura errada; não porque ela ultrapassou limites, mas porque a comunidade de intérpretes, a cultura, os jogos de linguagem aceitos e compartilhados numa dada sociedade não estão dispostos a concordar com qualquer coisa. Para existir discordância é antes necessário que haja conteúdo proposto. Pensar em limites é sugerir que certos conteúdos sequer podem ser produzidos e analisados, ou seja, é delimitar previamente a atividade interpretativa¹⁴. Não existem limites prévios à atividade interpretativa, e se não há limites prévios, não há limites e sim debates, diálogo, argumentação, convencimento, retórica¹⁵.
Não pode haver limites prévios porque não há uma natureza intrínseca, interna ao próprio texto, ao menos não uma natureza intrínseca que independa do interprete¹⁶. O texto, e aqui poderíamos pensar nas normas, nos dispositivos legais, só pode ser compreendido se relacionado com outros “textos”. Na seara jurídica, se levarmos a sério os ensinamentos de Humboldt, não há que se falar em interpretação genuinamente literal, gramatical. Ela existe enquanto conceito esquemático, cumpre papel didático para separá-la de outros métodos interpretativos. No fundo, todos os métodos tradicionais de interpretação funcionam se articulando com outros “textos”, justamente porque compreender não é decodificar, traduzir palavras e extrair significados, mas envolve um investimento em conhecimentos prévios. Os métodos sistemático, histórico e teleológico comportam bem esta definição, ninguém tem dúvida que interpretar a norma x em consonância com a Constituição, com o ordenamento jurídico, ou interpretar a mesma norma x de acordo com objetivos programáticos envolva um investimento em conhecimentos prévios; mas, quando pensamos na interpretação literal, presumimos que estes investimentos são desnecessários, pois o sentido da norma seria tão óbvio, direto, explícito que a mera capacidade de leitura num sentido tosco, escolar, daria conta de tal empreendimento. São sensações legítimas, mas talvez só percebemos um sentido óbvio, direto e explícito quando conceitos e conteúdos utilizados para compreender estão tão internalizados que não nos damos conta do papel que estes conceitos e conteúdos desempenham na interpretação. Neste sentido, a interpretação literal é a mais sofisticada, a que possui maior força persuasiva. Aqui há um paralelo com a visão humboldtiana da linguagem, uma vez que para o autor só o indivíduo obtém da linguagem sua determinação última. Nenhuma pessoa, ao escutar uma palavra, formula imagens mentais, pensamentos de forma idêntica à outra. O universo linguístico é assimilado por cada um de nós de forma personalíssima. Sendo assim não há mundos semelhantes, tampouco similitude ou identidades entre interpretações. Para Humboldt, todo a compreensão é ao mesmo tempo incompreensão; toda coincidência em ideias e sentimentos uma simultânea divergência¹⁷.
Longe do insight humboldtiano seria difícil discordar de algo aparentemente óbvio. Por isso é tão reconfortante reconhecer limites na interpretação. Encontramos os limites no óbvio, no dado, na natureza intrínseca do próprio texto. Aqui, percebemos um paralelo entre a compreensão textual e a atividade científica. O pesquisador interpreta a realidade, ou os dados da realidade e esboça conclusões. Os dados, no entanto, não são inventados, não é possível sonhar e criar realidades paralelas, como George Orr, personagem do romance de Ursula K. Le Guin. Nesta linha de raciocínio, questionar que existem limites na interpretação textual, na interpretação da Lei, da decisão jurídica parece errado, contra intuitivo, pois o leitor não pode inventar o texto, se fizesse isso usaria máscara distinta, deixando de ser leitor para se converter em autor.
Fazendo uma aproximação grosseira, poderíamos dizer que os dados da realidade são as “invenções” primárias que a princípio o intérprete não pode modificar, é o “texto” em estado bruto. A partir destas “invenções” primárias é possível inventar algo novo, seria o “texto” interpretado. A ciência, com algum sucesso, funciona desta forma. Conhecer as leis da física, a gravidade, a resistência do ar nos permitiu inventar o avião, o helicóptero, o paraquedas; se as leis da física, a gravidade ou a resistência do ar fossem distintas, o funcionamento do avião, do helicóptero, do paraquedas também seriam. A realidade em si é o “texto” em estado bruto, e as máquinas o “texto” interpretado. Percebam que as máquinas poderiam ser outras, mas só cumpririam suas funções se respeitassem o “texto” em estado bruto, caso contrário seriam máquinas inúteis, invenções erradas. O exemplo não é dos melhores, mas os que defendem limites na interpretação provavelmente devem usar raciocínio semelhante.
Sem querer entrar em polêmicas desnecessárias ao objeto destas reflexões, suponhamos que para as ciências naturais, a física, a química, a biologia, o esquema anterior se sustente. Newton, Lavoisier, Darwin, em seus respectivos campos de investigação, decifraram a “literalidade” de certos aspectos da realidade material, daquilo que chamamos “texto” em estado bruto. Pensando nas ciências humanas, poderíamos sustentar o mesmo raciocínio? A sociedade, a cultura, o direito, apesar de nos anteceder, são construções humanas, que, à semelhança da gravidade, de reações químicas, de funções celulares, também existem. Além disso, alguns cientistas sociais, Marx, Lévi-Strauss, Kelsen, à semelhança de Newton, Lavoisier, Darwin, também tentaram “decifrar” a realidade, neste caso a realidade social. Porém, como dito, o objeto de investigação das ciências sociais são construções humanas que, ao contrário de formas ontológicas e perenes da natureza, se reestruturam, se modificam, se reinventam. Alguns poderiam dizer que estas mudanças, instabilidades também podem ser investigadas, argumentar sobre a circunscrição dos estudos em ciências sociais a determinado tempo, sociedade, cultura; mas dificilmente alguém ousaria sustentar que Marx, Lévi-Strauss, Kelsen e tantos outros cientistas, teóricos, pensadores das humanidades desvelaram, como pôde acontecer nas ciências naturais, a “literalidade” dos “textos” em estado bruto. Contrariar Copérnico para defender o geocentrismo é loucura, criticar o marxismo, o estruturalismo ou o positivismo kelseniano é perfeitamente legítimo. Mas por que isso acontece? Os cientistas sociais não se preocuparam com os dados da realidade social? Ou, quem sabe, as ciências sociais ainda estão engatinhando à espera de seu futuro Newton, Lavoisier, Darwin? Claro que estas são perguntas retóricas. Depois de tantos giros epistemológicos, mudanças de paradigmas, ninguém propõe que as ciências sociais persigam o grau e a exigência de certeza que acompanhou o nascimento e o desabrochar, entre o século XVI e XIX, da ciência moderna. Muito pelo contrário, hoje questionamos a suposta objetividade das ciências naturais; nem a matemática está imune.
Toda esta volta, esta explicação simplória, realçando as diferenças entre ciências humanas e naturais, cumpre papel estratégico. Se o intérprete não pode inventar o texto, se o juiz não pode inventar a petição inicial, a contestação, a réplica, os dispositivos legais; o teor, o conteúdo destes textos também não pode existir em estado bruto. O objeto livro, o objeto peça processual, o objeto Código Civil talvez exista neste estado, no estado bruto¹⁸, seu conteúdo não, porque o conteúdo só existe diante do intérprete. Sendo assim, não há que se falar de “literalidade”, de “invenção” primária, ou até mesmo de “autor” original¹⁹, o que temos é sempre o texto interpretado. Apresso-me em dizer que uma das grandes diferenças entre as ciências humanas e naturais não está no dado, ou nos dados da realidade, mas nas distintas formas de fazer experimentação. Um físico, um químico, um biólogo consegue, na maior parte das vezes, fazer testes controlados de suas hipóteses, teorias, conclusões; um cientista social até consegue experimentar suas hipóteses, teorias e conclusões, mas as possibilidades de controle são bem menores, sem contar que, na maior parte das vezes, o cientista social tem em mãos apenas textos²⁰. A rigor, no direito as disputas científicas plausíveis acontecem no campo da interpretação; a melhor teoria é aquela que possui maior capacidade retórica, ou o melhor poder persuasivo. Em outras palavras, a cientificidade das teorias jurídicas ultrapassa o dado e a experimentação, vão além do campo epistemológico. São disputas, por mais chocante ou presunçoso que pareça, estéticas²¹, porque as teorias jurídicas não são falseáveis²², podem ser julgadas a partir de outros critérios que geralmente envolvem uma capacidade de discernir o melhor do pior²³; não à toa é possível, a depender do problema investigado, aplicar teorias distintas, sem que haja descarte, ou prova contundente de que a teoria abandonada não tem qualquer aplicabilidade. Em outros campos isso seria absurdo; afinal, Kelsen, por exemplo, não foi superado pelo pós-positivismo da mesma forma que a física aristotélica foi pela newtoniana.
Eis o motivo da minha maleável convicção a respeito do alcance de trabalhos acadêmicos no direito; convicção que será sempre flexível e nunca fixada ou inscrita de forma absoluta na realidade social, jurídica, ou na realidade dos textos em estado bruto. Há ciência no direito, porque existem dados, critérios²⁴, não porque existe certeza. O teórico Prometeu que tenta roubar a chama dos deuses para encontrar a verdade estará fadado ao fracasso. A dúvida permanece sem desnaturar, descaracterizar, enxovalhar a ciência; o abalo se dá apenas sobre
uma visão mítica, aquela que tentou substituir Deus pela verdade científica²⁵. Da mesma forma, a dúvida sobre os limites da pesquisa científica no direito, ou a dúvida se o teórico, que propõe estratégias para alterar a realidade descrita pelo pesquisador, faz ciência também permanece. Se por um lado ciência se faz com dados, por outro sabemos que a produção acadêmica incapaz de influenciar os profissionais do direito é inócua. Como conciliar as duas visões? Na dogmática jurídica encontramos bons textos, teorias, ótimas interpretações sobre a Lei, sobre os conceitos jurídicos já consagrados e até sugestões para novos conceitos; há, no entanto, textos dogmáticos de valor questionável. Em ciência é possível existir dados questionáveis, mas não da mesma forma. O dado questionável é o dado errado e não o dado que discordamos ou que achamos óbvio demais, como acontece com alguns textos dogmáticos. Sabemos que o dado não é, por óbvio, ciência; esta se realiza quando interpretamos os dados descritos, coletados. Mas, e a simples descrição dos dados é ciência? Pensemos na gravidade.
Ao lançar um objeto da minha varanda, posso determinar a velocidade inicial do objeto ao ser jogado da varanda, a velocidade final do objeto ao atingir o solo, a distância entre a varanda e o solo, o tamanho do objeto entre outros dados; posso repetir esta mesma experiência usando objeto distinto, ou lançando o objeto não da varanda, mas do terraço. Se os meus dados forem corretamente descritos, perceberei certa regularidade entre todas estas variáveis, podendo, inclusive, descobrir a velocidade final de um objeto lançado da varanda ou do terraço sem precisar medi-la. Se eu apenas descrevo as variáveis, sem formular hipóteses que podem me servir para calculá-las à revelia da experimentação contínua, eu não faço ciência, seria um mero coletor, um coletor de dados. No direito o raciocínio é o mesmo. Pode até existir controle e precisão na coleta de alguns dados; o número de acórdão que versem sobre prova em vídeo, ou sobre o princípio da bagatela ou sobre abandono afetivo, são exemplos. Mas a mera coleta destes dados não configura pesquisa científica. É preciso analisar os dados, interpretá-los e propor uma hipótese explicativa. No caso das provas em vídeo, ao analisar e interpretar os dados, posso concluir, por mais imprecisa que seja esta conclusão, que em 80% ou 70% ou na maioria dos casos, os desembargadores não assistem as imagens usadas como material probatório, mesmo quando baseiam suas decisões neste material²⁶. Agora tenho não só os dados, mas a análise e a interpretação, falta uma hipótese explicativa. Esta poderá ser múltipla, porque depende do teor da pesquisa. Posso querer saber os motivos que levam a maior parte dos desembargadores a não assistir aos vídeos; ou, o que seria um pouco mais útil, se existe prejuízo ao processo quando os desembargadores, mesmo ao decidir com base em material probatório oriundo de imagens técnicas, negligenciam estas provas visuais; ou, quem sabe, se há uma relação entre a falta de estrutura do judiciário com o peculiar costume de não assistir as imagens que embasará decisão futura; ou, ainda, outro motivo qualquer, as possibilidades são incalculáveis.
Se pretendo investigar a existência ou ausência de prejuízo ao processo, de novo é possível múltiplas respostas. Da conclusão: existe prejuízo, poderei formular infinitas interpretações, algumas melhores e outras piores; para a conclusão oposta, também é possível infinitas interpretações. Infinitas não porque posso inventar, ocultar ou adulterar os dados, mas sim porque não existem limites à criatividade humana, já que, conforme aprendemos com Humboldt, a linguagem, por não ser produto, mas atividade, se perpetua no tempo. Além disso, pesquisas empíricas, como esta que acabo de exemplificar, ao analisar e interpretar os dados colhidos e ao sugerir hipóteses explicativas precisariam de outros dados, de outras análises e interpretações e de outras hipóteses explicativas que obviamente não poderiam ser colhidas, formuladas e testadas pelo mesmo pesquisador, sob pena de transformar a pesquisa num procedimento inesgotável. Da conclusão: existe prejuízo, por exemplo, o pesquisador hipotético teria que saber de forma genérica quando ocorre um prejuízo, para depois sugerir que, por algumas razões justificáveis, decidir com base em vídeo não assistido compromete o processo, ou que, e talvez aí esteja a importância da coleta de dados sugerida, o número excessivo de acórdãos que negligenciam as provas visuais é um problema.
Teríamos, então, uma pesquisa científica no direito, baseada na coleta de dados empíricos. Se estes dados não tivessem sido colhidos pelo pesquisador, poderíamos falar em pesquisa científica? Se não houvesse nenhum dado que garantisse ao pesquisador hipotético que os desembargadores ou os juízes, em número considerável, não assistem as provas visuais, qualquer conclusão, envolvendo a hipótese, ou seja, que a prática generalizada, majoritária ou considerável de não tomar conhecimento, com os próprios olhos, do teor das imagens técnicas gera problemas no funcionamento da justiça, teria caráter meramente opinativo. No entanto, se este pesquisador hipotético se baseou em dados colhidos em pesquisa alheia, por que não haveria ciência? Óbvio que neste caso também há ciência. Ciência esta que, por depender de interpretações não quantificáveis, se aproxima muito da opinião. No entanto, ciência e opinião não se confundem, pois, para compor um discurso minimamente científico, é preciso embasá- lo e justifica-lo em dados corretos, independente da autoria. Claro, não basta repetir as conclusões de pesquisa alheia, da mesma forma que não basta querer comprovar que as leis de Newton também funcionam em Recife para se pleitear uma vaga no doutorado de física; é preciso mais.
As digressões, a repetição de lugares comuns, de raciocínios óbvios, serve para justificar aquela maleável convicção sobre o alcance dos trabalhos científicos no direito. Ora, a ideia de que repetir pesquisa alheia não caracteriza ciência é cristalina na física, na química, na biologia; pesquisar se as Leis de Newton funcionam em Recife, em Olinda, em Jaboatão da Serra, em Conselheiro Lafaiete, ou investigar se as plantas do agreste pernambucano realizam fotossíntese é repetir pesquisa consagrada. No direito, estas “repetições” não são facilmente identificáveis. Existe o plágio, mas fora isso, justamente porque as interpretações são múltiplas e carregadas de sentidos diversos, fica difícil identificar se todo o trabalho acadêmico é meramente repetição do que já foi feito. Ao dizer que existem bons textos dogmáticos e outros de mérito questionáveis, me refiro a este ponto. A dogmática de má qualidade geralmente reproduz o que já foi pensado, interpretado, construído; pior, reproduz sem se preocupar, sem levar em conta ou ignorando completamente outras construções feitas em dissonância ao reproduzido. Posso defender uma interpretação positivista da Lei, à la Hans Kelsen; mas não basta repeti-lo, preciso enfrentar posicionamentos contrários e mostrar que as críticas ao positivismo jurídico não se sustentam.
Dito isso, se existe uma distinção entre o pesquisador que coleta e descreve os dados da realidade e o teórico que visa interferir nesta mesma realidade, ela não é qualitativa, no sentido de atribuir ao pesquisador a atividade científica e as opiniões ao teórico. Se fosse o caso, diria que não existe ciência no direito, porque o pesquisador que coleta e descreve dados jurídicos, só produz ciência ao interpretar estes mesmos dados e propor hipóteses explicativas, algo bastante semelhante à atividade do teórico dogmático, ao menos do bom teórico dogmático. As diferenças estão no ponto de partida, na abrangência e nos objetivos almejados.
O pesquisador, quando se propõe a colher dados, sejam decisões judiciais, dados estatísticos, jurisprudência, doutrina, quer conhecer e sistematizar variáveis ainda não conhecidas ou sistematizadas; faz isso com algum propósito que, repetindo, ultrapassa a mera fruição inútil de conhecer o desconhecido. Os propósitos externos, prestígio acadêmico, social, realização financeira, um título, não precisam ser comunicados; os internos, ao contrário, podem e devem ser esmiuçados de forma clara nas interpretações e conclusões realizadas, são estes propósitos internos que produzem conhecimento. A atividade do teórico, apesar de menos complexa no ponto de partida, porque usa dados alheios, precisando, quando muito, apenas sistematizar comunicações ainda não sistematizadas, pode ser muito mais exaustiva; ele precisa ir além do coletor de dados, do pesquisador, para tornar seu trabalho minimamente interessante ou útil. É possível imaginar atalhos na conquista de prestígio acadêmico, social, financeiro, na conquista de um título; mas em ciência, em relação aos propósitos internos, não há atalhos.
Feita as observações e comentários que julgo pertinentes, volto ao romance. Afinal, qual a relação deste amontoado de raciocínio e ideia murcha que acabo de enunciar com Ursula e sua sci-fi pertubadora? E por que Humboldt poderia nos ensinar algo sobre a temática proposta? O romance não diz nada sobre as peculiaridades da produção científica no direito, ou da relação entre pesquisador e teórico; tampouco advoga tese sobre a falta de limites na atividade interpretativa. Só conta uma estória, uma boa estória, e isto é suficiente. Basta usar a imaginação, usar o texto, instrumentalizar um dado da realidade, no caso o texto literário, que inferências, interpolações, articulações distintas são criadas e recriadas ao sabor das reflexões propostas. Não é preciso inventar o enredo, subverter a ordem dos acontecimentos ou ocultar conteúdo desfavorável. A ideia nunca foi desvendar a natureza do romance, desvelar sua essência ou desobstruir seus ensinamentos mais misteriosos. Desejo apenas sugerir uma interpretação que poderia ser outra a depender dos objetivos traçados. Verso sobre as semelhanças e diferenças entre o pesquisador e o teórico, sem atribuir ao texto literário as reflexões propostas, e sem exigir que o leitor, o meu leitor ideal ou empírico, crie conteúdo a partir de expectativas prévias. Há uma clara dicotomia na “Curva do Sonho”, por um lado a personagem do psiquiatra pretende manipular as habilidades do herói para melhorar o mundo, por outro Orr quer impedir que seus sonhos alterem a realidade, pois, quase sempre, o processo envolve consequências trágicas. Haber, o psiquiatra, age como um teórico, vê em suas pesquisas uma possibilidade de solucionar problemas; Orr, o herói, ao contrário, desconfia das intenções do cientista e acha que seus sonhos não podem interferir na cadeia natural dos acontecimentos; ele não quer manipular, nem ser manipulado; não se sente confortável e nem acha justo assumir papel divino.
Pensar em alguma espécie de neutralidade na produção científica é assumir a perspectiva de Orr, afinal, aquele que descreve os dados da realidade, ou encontra relações entre variáveis distintas, sabe que o teor de suas pesquisas pode ser usado politicamente, influenciando no orçamento, motivando políticas públicas ou permitindo a incorporação de novas tecnologias, mas a pesquisa em si não deve ter teor político, ser enviesada ou comprometida com projetos de poder, projetos econômicos, financeiros ou dirigida à favor de determinada visão de mundo. As angústias de Orr são semelhantes às do pesquisador que, sem motivos escusos, clama por neutralidade.
A personagem, por mais que tentasse, nunca conseguiria passar o resto da vida sem dormir. A medicação inibidora de sonhos não era infalível, e, mesmo sem controla-los, sem controlar seus próprios sonhos, cedo ou tarde eles iriam alterar o mundo. Ao menos, nesta hipótese, Orr não planejaria de antemão os resultados ou as consequências dos seus devaneios oníricos. O pesquisador que insiste na neutralidade não quer se “vender”, fazer falsa ciência para legitimar projetos políticos, mas ele pesquisa e, cedo ou tarde, tal como os sonhos de Orr, seus resultados serão incorporados em sistemas não científicos. Não que haja problemas nesta incorporação, afinal, a pesquisa perseguiu e encontrou resultados à parte de qualquer interferência. Tanto em Orr quanto no pesquisador “neutro” a angústia, quando não há interferência na pesquisa ou no sonho, é amenizada.
Nosso herói não quer alterar a realidade, mas a realidade está, independente dos seus sonhos, mudando. Talvez ele não queira ser o responsável por estas mudanças ou, quem sabe, deseje que tais transformações não sejam abruptas. Os sonhos de Orr, nesta análise proposta e guardadas as devidas proporções, funcionam à semelhança da atividade científica. O propósito da ciência é produzir conhecimento científico para entender, regular e controlar a realidade. Por ela criamos expectativas legítimas, gerando previsibilidade; eis seu principal intuito. As vacinas, por exemplo, criam expectativas legítimas no controle de agentes patológicos; a meteorologia, por sua vez, oferece previsibilidade sobre os eventos climáticos. Nas ciências sociais, na pesquisa jurídica, apesar das inúmeras diferenças comentadas superficialmente nos parágrafos anteriores, também há tentativa de entender, regular e controlar a realidade social ou jurídica, por elas criamos expectativas legítimas e geramos previsibilidade; caso contrário não seriam ciências. Há diferenças na forma e no grau que estas expectativas e previsibilidades são geradas, principalmente na pesquisa jurídica.
A microbiologia, a farmacologia, a epidemiologia nos trouxeram as vacinas para resolvermos problemas práticos. A pesquisa científica no direito também nos oferece soluções para resolvermos problemas práticos. A dogmática jurídica lida cotidianamente com estas soluções, também a pesquisa teórica ligada às áreas propedêuticas, as pesquisas sociológicas, as pesquisas empíricas. Fazemos ciência a partir de um problema, que não necessariamente será solucionado, já que não é a solução que caracteriza a atividade científica, mas a investigação do problema dentro de critérios estabelecidos pela comunidade científica. Sem o problema não há investigação.
No romance de Ursula K. le Guin, Orr tinha sonhos efetivos para solucionar incômodos, angústias, privações, frustrações, medos, tristezas, aborrecimentos, situações problemáticas da vida. Se não houvessem problemas, não haveriam sonhos efetivos. Os sonhos criavam outras realidades para solucionar os problemas, e é exatamente dessa forma, e de novo alerto que devemos resguardar as devidas proporções, que funcionam ou operam os propósitos internos à atividade científica. Os sonhos são investigações que podem ser efetivas quando há solução proposta ou sonhos normais quando a investigação se limita a refutar a hipótese. Mesmo neste último caso, a pesquisa, porque também há comunicação, modifica, transforma à “realidade”.
A ciência, o fazer científico, o fazer acadêmico cria novas “realidades”, assim como a linguagem em Humboldt também cria; são sonhos que inviabilizam aquela ilusão de neutralidade de tipo positivista tão propagada no século XIX. Não controlar os próprios sonhos, ou não admitir que estes sonhos possam ser controlados caracteriza certo tipo de neutralidade mais sofisticada, a neutralidade contemporânea, aquela que, apesar de reconhecer as irritações de outros sistemas sociais sobre a ciência, não admite uma abertura estrutural entre sistemas diversos. Orr quer ser “neutro”, já Haber pretende controlar os sonhos do rapaz, ele está embebido de motivações éticas, políticas, filosóficas²⁷. O psiquiatra é o clássico vilão, e certamente a obra de Ursula denuncia nossa pretensão quase divina de querer modificar o mundo. As boas “intenções” de Haber geram guerras, alteram a “natureza” humana, e distorcem todas as leis do universo. Nosso herói parece estar certo ao adotar postura “neutra”, ao, obstinadamente, lutar contra os sonhos, ou, ao menos, se eximir de qualquer controle. Esta postura de Orr, no entanto, também está embebida de motivações éticas, políticas, filosóficas²⁸.
A ciência que se proclama “neutra” – “neutra” em um sentido sofisticado – faz isso por razões, tal como nossos personagens, éticas, políticas, filosóficas. Nesta parte final, meu intuito é defender o psiquiatra louco à parte de qualquer reflexão ética correlacionada à atividade científica e sem adentrar em detalhes do enredo.
Depois de tantas frases, de conteúdos e devaneios estruturado em forma de texto, de ensaio, acho que marquei posição neste terreno arenoso envolvendo as pesquisas científicas no direito. Deixei claro que existem mais semelhanças do que diferenças entre o pesquisador que coleta e descreve os dados da realidade e o teórico que cataloga estratégias para interferir nesta mesma realidade; em ambos os casos é possível produzir ciência. Também afirmei que Haber tem traços em comum com o teórico. Nosso personagem real, o teórico, e o nosso personagem fictício, o psiquiatra, desejam alterar a realidade. O teórico dogmático faz isso oferecendo interpretações, leituras das Leis, da jurisprudência, ou sugerindo conceitos jurídicos. Afirmar que estes autores querem “melhorar” o mundo soa estranho, principalmente se relacionarmos o sentido desta expressão com as boas “intenções” do Dr. Haber. Evidentemente, a dogmática é mais comedida. Dentro do sistema jurídico “posto”, dentro da “realidade” jurídica existente eles propõem soluções, estratégias, críticas para resolver problemas práticos, fazem isso com intenções cientificas e não meramente operacionais, afinal produzem trabalhos acadêmicos, alguns de excelência “comprovada”, outros de excelência questionável. O Dr. Haber, ao controlar os sonhos de Orr, também propunha soluções e estratégias para resolver problemas práticos, além disso, realizava críticas após notar as incongruências entre suas intenções iniciais e a nova realidade criada. Neste aspecto há muitas semelhanças. Se pensarmos no teórico não dogmático, tantos os que querem transformações radicais no sistema jurídico, quanto os que plainam em torno de uma metódica analítica, as semelhanças ficam ainda maiores.
Haber era um megalomaníaco que estragou tudo, não deixou nada no lugar, fez inúmeras bobagens. Nenhum teórico, mesmo considerando esta analogia esdrúxula, gostaria de ser comparado a ele. Posições teóricas diversas, principalmente em áreas propedêuticas, negam a ideia de “melhorar” o mundo, associam este pensamento às utopias. São posições legítimas, mas, temo em dizer que se admitíssemos um sentido “fraco” à expressão “melhorar o mundo”, talvez os teóricos das mais diversas linhas de pensamento concordassem que é exatamente isso que eles tentam fazer. Ninguém observa, reflete, faz ciência pensando: “como deixar tudo pior? ” O dogmático não sugere interpretações e conceitos visando piorar o funcionamento da justiça, o pesquisador não analisa e interpreta os dados colhidos para produzir conhecimento “errado”. Repito, ciência, pesquisa e teoria visam controlar, regular e oferecer soluções aos problemas observados. Não defendo posicionamento ingênuo que associa conhecimento ao progresso da humanidade, tampouco advogo que o saber científico, que as resoluções dos problemas teóricos sempre melhoram nossas vidas. Associar felicidade, bem-estar, vida eudaimônica ao saber são valorações que ultrapassam minha capacidade reflexiva. Afirmo, tão somente, que a própria pretensão de resolver problemas, inerente à atividade científica ou teórica, guarda semelhanças com o projeto do Dr. Haber. Ciência que não quer melhorar nada, melhorar num sentido fraco, não é ciência; mesmo o conhecimento que se julga inútil visa melhorar alguma coisa, mesmo a pesquisa essencialmente analítica pretende algo, mesmo as análises meramente descritivas dos dados coletados alteram a substância investigada. Sempre há intenções internas, propósitos; e os “mal-intencionados” não fazem ciência.
Conclusão
Se do conhecimento brotam impactos diversos, alguns brutais, ou se não podemos controlar totalmente nossos “sonhos”, isso não atinge os “limites” deste trabalho. Mesmo porque, inspirado em “Sobre a Diversidade e a Estrutura da Linguagem Humana”, é possível não só questionar a suposta neutralidade científica, como também alargar nossa compreensão da dogmática jurídica levando em consideração o papel da linguagem na criação da nossa própria perspectiva de realidade.
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WELSCH, Wolfgang. Undoing Aesthetics. Sage Publications. [S.L]. 1997
²(SEGATTO, 2009).
³Tomando emprestado a ideia de horizontes de compreensão textual em Marcuschi (2020, p. 258-259), e fazendo adaptações que espero serem apenas problemáticas, poderia exemplificar o recurso usado em trabalhos acadêmicos, as citações, da seguinte forma: i. falta de horizonte – quando há cópia, repetição, (citação direta); ii. horizonte mínimo – o caso da leitura parafrástica, repetir com outras palavras, (boa parte das citações indiretas); iii. horizonte máximo – leitura nas entrelinhas, quando há articulação entre diversas passagem do texto ou entre o texto e informações diversas, (algumas citações indiretas e citações explicativas); iv. horizonte problemático – exige um grau amplo de informações que se encontram além do próprio texto, (algumas citações explicativas, principalmente quando envolve crítica, discordância com partes dos textos comentados); v. horizonte indevido – leitura errada (todas as anteriores, quando os intérpretes não concordam com o sentido dado às citações). Doravante, minhas citações, todas reunidas em notas de rodapé, tentarão trafegar entre os quatro primeiros horizontes, evitando, talvez sem sucesso, o horizonte indevido.
⁴Desde o século XVIII há este tipo de aproximação. No início do século XX duas obras, “List of Legal Novels” de John Wigmore, e “Law and Literature” de Benjamin Cardozo, ganharam grande notoriedade, sendo consideradas pioneiras (OLIVIO, 2012). Mas a popularização só ocorreu nas décadas de 70 e 80, quando, nos Estados Unidos, Direito e Literatura ganhou status de disciplina autônoma, sendo catapultado pelo Law and Literature Movement, reunião informal de diversos autores, dentre eles James Boyd White e Robert Weinsberg, que compartilhavam esta abordagem sistemática e acadêmica da literatura no direito. (MITTICA, 2015); (WARD, 1995).
⁵André Karam Trintade e Luísa Giuliani Bernsts realizaram primoroso estudo sobre a evolução dos estudos de direito e literatura no Brasil. Embora reconheçam que hoje vivemos uma fase de expansão na área, a maior parte dos trabalhos carecem de aprofundamento teórico e metodológico. Do levantamento de artigos realizados no período de 2007 a 2016, mais da metade não apresentam qualquer citação teórica envolvendo a matéria e apenas 8% constavam com seis ou mais citações. (TRINDADE E BERNSTS, 2017, p. 225-257) Embora o número de citações teóricas não predeterminam a qualidade de um trabalho, elas servem de indício.
⁶Julie Stone Peters, em cativante estudo de 2005, anuncia a morte do Law and Literature Movement. Para a autora, o interesse dos juristas pelo universo literário é produto de ilusões. O ambiente formal, construído em torno de conceitos normativos excessivamente abstratos, que caracteriza o direito, garantiu o sucesso inicial, segundo a autora, do Movimento. Existia esperança que a literatura possibilitasse uma ponte, uma reconexão entre os juristas e a realidade concreta. Esperanças vãs que logo foram elididas. A comparação entre os devaneios de alguns estudos em direto e literatura com os sintomas da neurose, feitas por Peters, são inegavelmente divertidos. O neurótico é aquele que, apesar de reconhecer a impossibilidade de que algo se materialize, aconteça, se ilude e passa a acreditar naquilo que reconhecia ser impossível. Peters chama os entusiastas do Movimento de neuróticos, e, neste aspecto, ela tem razão (PETERS, 2005). Literatura é instrumento retórico, não ferramenta mágica que nos reconecta com anseios sociais superiores.
⁷Orr explica o processo de mudança da realidade a partir dos seus sonhos da seguinte forma: ” Veja, funciona assim: se ele me dissesse, sob hipnose, para sonhar que existia um cachorro cor-de-rosa na sala, eu faria isso; mas o cachorro não poderia estar lá, já que cães cor-de-rosa não existem na ordem natural, não são parte da realidade. O que aconteceria: ou eu encontraria um poodle branco tingido de rosa e um motivo plausível para ele estar ali ou, se ele insistisse que fosse um cão rosa autêntico, eu teria de alterar a ordem natural para inserir nela os cães cor- de-rosa. Em todo o mundo. Desde o Pleistoceno ou seja lá quando os cães surgiram. Eles teriam sempre existido nas cores preta, marrom, caramelo, branca e rosa. E um dos cães cor-de-rosa entraria perambulando pelo corredor; seria o collie dele, ou o pequinês da recepcionista ou algo assim. Nada de milagroso. Nada artificial. Cada sonho abrange toda sua trajetória. Apenas haveria um cão cor-de-rosa normal e corriqueiro ali quando eu acordasse, com um excelente motivo para estar ali. E ninguém teria consciência de alguma coisa diferente, exceto eu… e o doutor. Eu mantenho as duas lembranças, das duas realidades. O dr. Haber também. Ele está ali no momento da alteração, sabe sobre o que é o sonho. Ele não admite que sabe, mas eu sei que sabe. Para todas as outras pessoas, sempre houve cães cor-de-rosa. Para mim, e para ele, há… mas não havia antes.” (GUIN, 2019, p. 64)
⁸Ao perceber os propósitos do Dr. Haber, Orr se questiona: “Mas ele não é um cientista maluco, Orr pensou, de forma nada brilhante; ele é consideravelmente são, ou era. O que o desvirtua é a possibilidade de poder que meus sonhos lhe dão. Ele continua atuando em um papel, e isso lhe dá um papel gigante a interpretar. De modo que está até usando a ciência como meio, não como fim… Mas seus fins são bons, não são? Ele quer melhorar a vida da humanidade. Está errado?” (GUIN, 2019, p. 96).
⁹Haper fica indignado com o conformismo da mente de Orr, reclama: “Você não tem consciência social, não tem altruísmo. Você é uma medusa moral. Tenho que lhe incutir responsabilidade social hipnoticamente todas as vezes. E todas as vezes ela é tolhida, corrompida.” (GUIN, 2019, p. 179)
¹⁰“Ele tinha a sensação de que o psiquiatra, ao orientá-lo a sonhar determinados sonhos, poderia estar infringindo seu direito à privacidade conforme definido na Nova Constituição Federal de 1984.” (GUIN, 2019, p. 58).
¹¹O atomismo lógico de Bertrand Russel baseava-se numa concepção correspondentista da verdade. Seriam verdadeiras proposições que correspondessem aos fatos. Para o autor, se pudéssemos recorrer a uma linguagem logicamente perfeita, o mundo poderia ser reduzido a objetos, propriedades e relações simples (MEURER, 2018,p. 14). O primeiro Wittgenstein, o Wittgenstein do Tractatus, também defendeu uma visão corrrespondentista. Sua teoria pictórica imaginava ser possível, através da linguagem, representar o mundo tal como uma fotografia retrata um cenário. Para ele, “a linguagem, expressão sensível do pensamento, pode figurar o mundo com verdade” (ibid, p. 36).
¹²Alfred Tarski, autor que reanimou as teorias correspondentistas da verdade, admite que apenas no âmbito das linguagens formalizadas é possível aplicar sua definição de sentença verdadeira (MEURER, 2018, p. 47)
¹³“(…) a compreensão não é um simples ato de identificação de informações, mas uma construção de sentidos com base em atividades inferenciais. Para se compreender bem um texto, tem-se que sair dele (…)” (MARCUSCHI, 2020, p. 233).
¹⁴Vale considerar posições contrárias. Sírio Possenti, por exemplo, acredita em limites ao discurso. Para o autor se a realidade existe independente do sujeito, é possível pensarmos em conhecimento objetivo e, por conseguinte, na existência autônoma do dado. Este existiria independentemente do pesquisador. (POSSENTI, 2002, p. 34). Nesta perspectiva, os limites são “dados” pelo dado, e a interpretação não poderia ultrapassar o dado textual ou o próprio texto. Concordo que o dado tenha existência autônoma, já que ele está inscrito na realidade. Mas, não estou convencido que o conteúdo do dado, na produção, na interpretação ou na aplicação, independa da ação humana. Se “o dado é um limite para o delírio”, ou “um freio para a divagação sem sentido, descontrolada” (ibid, p. 33); ficam as dúvidas. Quem determina o sentido? Qual a fronteira entre o delírio e a sanidade? O texto em si, o dado, não pode discordar de interpretação alheia, considerá-la delirante, descontrolada, desprovida de sentido. Possenti está correto quando afirma que o discurso encontra limites na própria língua, isso, no entanto, não diz nada, já que as leituras erradas, os discursos delirantes não o são assim considerados porque ultrapassaram os limites da língua. Quem ultrapassa os limites da língua, faz apenas ruído e não leitura errada, discurso descontrolado.
¹⁵Essa ideia se coaduna com o pensamento de Foucault, diz o autor: “E o problema é de reintroduzir a retórica, o orador, a luta do discurso no interior do campo da análise, não para fazer como os linguistas, uma análise sistemática de procedimentos retóricos, mas para estudar o discurso, mesmo o discurso da verdade, como procedimentos retóricos, maneiras de vencer, de produzir acontecimentos, de produzir decisões, de produzir batalhas, de produzir vitórias. Para retorizar a filosofia.” (FOUCAULT, 2002, p. 142).
¹⁶Para Richard Rorty não existe distinção entre interpretar textos e usar textos, para ele ”tudo o que alguém faz com alguma coisa é usá-la.” (Rorty, 2005, p. 110). Prossegue: “Para nós, pragmatistas, a noção de que há algo sobre o que um determinado texto realmente é, algo que a aplicação rigorosa de um método irá revelar, é tão errada quanto a ideia aristotélica de que a algo de que uma substância é realmente, intrinsecamente, em contraposição ao que ela é apenas aparentemente, acidentalmente ou relacionalmente.” (RORTY, 2005, p. 121). A ideia de que não há uma natureza intrínseca no próprio texto, se coaduna com visão do autor, pois a interpretação sempre é motivada por algum propósito, mesmo quando o propósito é revelar o sentido interno do texto.
¹⁷Trecho quase literal de uma passagem de “Sobre a Diversidade…” (HUMBOLDT, 1990, p. 88).
¹⁸Vale mencionar as novas elaborações de um pensamento realista crítico. Autores diversos defendem uma distinção entre epistemologia e ontologia. “Evitando equívocos, de todas maneras, el realista no se limita a decir que la realidad existe. Sostiene una tesis que los construccionistas niegan, o sea, que no es verdad que ser y saber equivalgan, y que, aún más, entre ontología y epistemología existen numerosas diferencias esenciales a las que los construccionistas no prestan atención. El construccionista sostiene que si el fuego quema, el agua es mojada y la pantufla está sobre la alfombra, esto depende de esquemas conceptuales67. Claramente no es así. El hecho que el fuego queme, el agua moje y la pantufla esté sobre la alfombra, depende de que son caracteres ontológicos, no epistemológicos.” (FERRARIS, 2012, p. 46).
¹⁹A ideia de “autor” original proposta, no contexto da interpretação, cumpriria o papel de limite; dele, deste “autor” original, poderiam surgir várias interpretações, mas não qualquer interpretação. Tomando emprestado um ”conceito” desenvolvido por Foucault no ensaio “Que es un autor?” (1969), poderia dizer, mesmo reconhecendo distorções indevidas, que o “autor” original cumpriria uma função, serviria para caracterizar uma forma de circulação e funcionamento de certos discursos. O “autor” original legitimaria certas interpretações, primeiro enquanto status, “foi Foucault que disse isso”, depois como limite, “isso que você interpreta sobre Foucault, não está em Foucault”, por último enquanto conceito transdiscursivo, “Ao analisar este texto, ao interpretar estes dados, parto de Foucault”. Ao final, não é Foucault que autoriza ou desautoriza minhas falas, meus argumentos, meu discurso, mas a função que ele cumpre em certo contexto social, em certos tipos de racionalidade.
²⁰Aqui vale uma imensa ressalva. Existem áreas nas ciências humanas que trabalham em larga escala com dados não textuais, basta pensarmos na psicologia. Em outras áreas, inclusive no direito, também observamos a utilização de dados não textuais, principalmente em pesquisas empíricas. Observar audiências, realizar entrevistas, analisar imagem são procedimentos recorrentes que muitas vezes fundamentam o resultado e as conclusões de muitos trabalhos acadêmicos.
²¹Para além da estética como disciplina filosófica, aquela de viés racionalista cuja origem remonta a obra de Alexander Baumgarten, passando por Kant e culminando em Hegel. Pensamos na estética enquanto metodologia. Para Vílem Flusser existe uma inter-relação entre a ontologia (como o mundo é), a deontologia (como o mundo deveria ser), e a metodologia (como transformar aquilo que é naquilo que deveria ser). O autor sublinha que ciência e ética se encontram pela arte. Se na antiguidade e no medievo prevalecia uma fé deontológica, na idade moderna a falta de fé se destacou a partir de uma ótica cientificista. Saímos da pergunta teológica do “para que?”, passamos pelo método do “por quê?” e chegamos, finalmente, no “como?”. Neste sentido a ciência, que é, deve servir aos propósitos daquilo que deveria ser. É pela arte que o processo se completa (Flusser, 1994, p. 19-20).
²²Karl Popper define o conceito de falseabilidade da seguinte forma: “(1) É fácil obter confirmações ou verificações para quase toda teoria – desde que as procuremos; (2) As confirmações só devem ser consideradas se resultarem de predições arriscadas; isto é, se, não esclarecidos pela teoria em questão, esperarmos um acontecimento incompatível com a teoria que a teria refutado; (3) Toda teoria científica boa é uma proibição: ela proíbe certas coisas de acontecer. Quanto mais uma teoria proíbe, melhor ela é; (4) A teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como frequentemente se pensa, mas um vício; (5) Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém, diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais testáveis, mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos; (6) A evidência confirmadora não deve ser considerada se não resultar de um teste genuíno da teoria; o teste pode-se apresentar como uma tentativa séria porém malograda de refutar a teoria. (Refiro-me a casos como o da evidência corroborativa); (7) Algumas teorias genuinamente ‘testáveis’, quando se revelam falsas, continuam a ser sustentadas por admiradores, que introduzem, por exemplo, alguma suposição auxiliar ad hoc, ou reinterpretam a teoria ad hoc de tal maneira que ela escapa à refutação. Tal procedimento é sempre possível, mas salva a teoria da refutação apenas ao preço de destruir (ou pelo menos aviltar) seu padrão científico. (Mais tarde passei a descrever essa operação de salvamento como uma ‘distorção convencionalista’ ou um ‘estratagema convencionalista’) Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define o status científico de uma teoria é sua capacidade de ser refutada ou testada.” (POPPER, 2008, p. 7). As teorias jurídicas não podem ser testadas da mesma forma que as teorias das ciências naturais.
²³Pela estética diferenciamos sucesso e fracasso, o melhor do pior, o modelo ideal do modelo desviante. Sabemos que nos últimos 200 anos, muitos autores enxergaram na estética modelos que expliquem nossa percepção da realidade e do conhecimento. Escreve Wolfgang Welsch: “If earlier it was thought that aesthetics was concerned only with secondary, supplemental realities, then today we are recognizing that the aesthetic belongs to knowledge and reality directly at a base level. Traditional knowledge of reality sought to be objective, that is, fundamentalist; only the laws of genuine production were clarified through aesthetic phenomena.” (WELSCH, 1997, p. 23).
²⁴Os critérios não estabelecem limites à interpretação do dado? Talvez limites em relação à forma como esta interpretação deve ser comunicada, mas nunca em relação ao conteúdo desta comunicação. Mesmo porque quem estabelece a forma legítima da comunicação científica é a própria comunidade científica, e não o dado. Sobre o conteúdo, não há limites, mas avaliação. No direito, principalmente nas áreas propedêuticas, é possível reconhecer os méritos de um trabalho acadêmico e até de uma teoria, sem, no entanto, concordar com seu conteúdo. No debate entre Rorty e Eco sobre os limites da interpretação, fica claro que Eco, mesmo discordando de Rorty, reconhece os méritos do pragmatista; diz: “A leitura feita por Rorty de meu O pêndulo de Foucault é muito profunda e inteligente. Provou ser um leitor empírico que satisfaz todos os meus requisitos para o leitor-modelo que eu queria. Espero que não se irrite com minha avaliação, mas entendo que, ao dizer isso, concluo que não leu a textualidade em geral, mas que leu o meu romance. O fato de eu reconhecer meu romance (e acho que outros podem fazê-lo) através e a despeito de sua interpretação não muda minha abordagem teórica, mas sem dúvida contesta a dele. Um texto continua sendo um parâmetro para suas interpretações aceitáveis.” (ECO, 2005, p. 166). Ora, Eco, rechaça completamente a leitura empreendida por Rorty, tem visão contrária, mas, independente de qualquer polidez, reconhece os méritos do adversário. Não é o texto, mesmo o texto sendo de autoria de Eco, que diz que Rorty está errado, mas o próprio Eco. É ele que estabelece os parâmetros de uma interpretação aceitável, porque é ele que procura, no texto, estes parâmetros.
²⁵Vílem Flusser acreditava que a Idade Moderna foi caracterizada pela fé na dúvida. Para o autor, a fé na dúvida reflete apenas necessidade de certeza, de segurança epistêmica. “Essa fé caracteriza toda a Idade Moderna, essa Idade cujos últimos instantes presenciamos. Essa fé é responsável pelo caráter científico e desesperadamente otimista da Idade Moderna, pelo seu ceticismo inacabado, ao qual falta dar o último passo. À fé na dúvida cabe, durante a Idade Moderna, o papel desempenhado pela fé em Deus durante a Idade Média.” (Flusser, 2011, p. 23).
²⁶Este tipo de pesquisa já foi feito. Eu, inclusive, participei de um projeto que, dentre outras coisas, buscou catalogar dados referentes às provas em vídeos utilizadas pelos Tribunais de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. Este banco de dados deu origem a uma série de trabalhos. Dentre eles, indico a dissertação de mestrado de um amigo, que, de forma bem didática e usando gráficos bastante explicativos, reuniu os dados coletados pelo projeto. Ver (BANHATO, 2019).
²⁷Em diálogo com o Dr. Haber, Orr manifesta sua visão contrária ao dirigismo implementado pelo psiquiatra: “Estamos no mundo, não contra ele. Não adianta tentar ficar de fora das coisas e dirigi-las dessa maneira. Simplesmente não funciona, vai contra a vida. Existe um caminho, mas é preciso segui-lo. O mundo é, não importa como pensamos que deveria ser. Temos de fazer parte dele. Deixá-lo ser.” (GUIN, 2019, p. 170).
²⁸“Para ser Deus, é preciso saber o que se está fazendo. E para fazer qualquer bem, não basta apenas acreditar que está certo e que seus motivos são bons. É preciso… estar em sintonia. Ele não está em sintonia. Para ele, ninguém mais, coisa alguma tem existência própria; ele só enxerga o mundo como um meio para seus fins. Não faz diferença se seus fins são bons; meios são tudo o que temos… Ele não consegue aceitar, não consegue deixar que as coisas existam, não consegue abrir mão do controle. Ele é insano… Poderia arrastar todos nós consigo, para fora de sintonia, se conseguisse sonhar como eu.” (GUIN, 2019, p. 189).
¹Felipe Guimarães (felpguima@gmail.com) é advogado, graduado em Direito pela UFJF, mestre em Direito e Inovação pela UFJF, e doutorando em Direito pela UFPE Link do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7490070335298111
“O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001
(This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001).”