A (IN)VIABILIDADE JURÍDICA DA AÇÃO DE EXIGIR CONTAS NAS VERBAS ALIMENTARES

THE LEGAL (IN)VIABILITY OF THE ACTION TO REQUIRE ACCOUNTS IN FOOD ACTION

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7675444


João Paulo Pontes de Miranda Magalhães1
Buenã Porto Salgado2


RESUMO: O presente artigo aborda a viabilidade de o genitor não guardião requisitar judicialmente que o guardião do alimentando preste contas da destinação da verba paga a título de encargo alimentar. Trata-se de controvertida questão jurídica, existindo correntes doutrinárias e jurisprudenciais para cada hipótese. O objetivo geral é demonstrar a necessária pacificação do tema, analisando as razões de ambos os posicionamentos. Explora de maneira específica os conceitos, cabimentos e particularidades dos alimentos contrapostos aos da ação de exigir contas para introdução da problemática. Partindo da conceituação geral desenvolve o tema até a divergência atual entre duas turmas recursais do superior tribunal de justiça acerca do assunto, restando prejudicada a uniformização justamente da corte superior competente para pacificar os demais tribunais. Assim, o estudo é qualitativo com abordagem dedutiva, utilizando da pesquisa bibliográfica exploratória para atingir o objetivo central. Nesse ínterim, a problemática atinge todo o ordenamento jurídico brasileiro, haja não existir força vinculante horizontal entre turmas, na medida em que os jurisdicionados encontram insegurança jurídica sobre a matéria. 

PALAVRAS-CHAVE: Alimentos; exigir contas; viabilidade jurídica; divergência jurisprudencial; pacificação; ordenamento jurídico; insegurança jurídica.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo explora a viabilidade do alimentante ajuizar ação de exigir contas em face do guardião do alimentando para obtenção de informações acerca do destino da verba alimentar paga mensalmente, sendo tal tema objeto de discussões jurisprudenciais e doutrinárias no ordenamento jurídico brasileiro em virtude da incompatibilidade dos institutos. Pelo exposto, trata-se de matéria pertinente principalmente ao Direito Processual Civil e Direito de Família, sendo os argumentos trazidos à baila tanto de direito material quanto processual.

Desse modo, possui como objetivo geral demonstrar a necessária pacificação do tema, analisando as razões de ambos os posicionamentos, e abordar de maneira específica os conceitos, cabimentos e particularidades dos alimentos contrapostos aos da ação de exigir contas. 

Posto isso, de maneira liminar busca-se conceituar e definir a hermenêutica jurídica quanto aos alimentos, sua importância e protecionismo constitucional e civil. Perpassado o reconhecimento dos alimentos como direito social e dever comum, com base no princípio norteador da proteção integral da criança e do adolescente, é posto em pauta suas peculiaridades, características essenciais (principalmente a irrepetibilidade), legitimidade e o trinômio alimentar que no desenvolvimento das correntes divergentes são utilizados como argumentos de convencimento.

Preliminarmente, é adotado o método de abordagem dedutivo, no qual partindo da premissa geral de cada assunto chegou-se ao específico questionamento acerca da possibilidade ou não da tutela jurisdicional dessa pretensão. Ainda, utilizou-se da pesquisa exploratória e técnica bibliográfica, na medida que as fontes do estudo são as legislações, livros, doutrinas, artigos e jurisprudência, para versar sobre a problemática levantada após alteração legislativa do §5º do art. 1.538 do Código Civil.

Doravante, em paralelo aos alimentos, foi necessário conceituar e realizar considerações acerca da demanda de exigir contas, que sofreu mudanças legislativas com o Código de Processo Civil vigente. Desse modo, tal ação possui natureza condenatória, sendo compreendida viável juridicamente nas relações em que um indivíduo possui bens ou interesses administrados por um terceiro, surgindo então o direito de exigir judicialmente a condenação do devedor cumulada com a prestação de contas das receitas, despesas e investimentos de forma pormenorizada no decorrer da administração, a fim de liquidar tal relacionamento jurídico econômico entre as partes e estabelecer se há ou não saldo.

Outrossim, a ação de exigir contas possui caráter e procedimento diferenciado, justamente pela sua natureza dúplice e fases procedimentais sucessivas de conhecimento, merecendo destaque nesses pontos no bojo do estudo. Destarte, após a apresentação paralela dos perfis de ambos institutos, passa a explorar as razões e compatibilidade entre as matérias, amparando-se em argumentos de doutrinas especializadas e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Ademais, a pertinência temática é devida, pois a jurisprudência era uníssona para a inviabilidade jurídica da pretensão, entretanto, após precedente julgado em 26/05/2020 o assunto reacendeu discussões e questionamentos se a corte superior havia superado o antigo entendimento. Diante do precedente, turmas recursais da mesma corte superior passaram a julgar e entender a matéria divergentemente em casos extremamente semelhantes. 

Nesse ínterim, colecionando e analisando os pontos e razões dos posicionamentos existentes, bem como as consequências da divergência de entendimento justamente da corte que é competente pela pacificação e uniformização da jurisprudência, o presente artigo pretende como objetivo principal demonstrar a imprescindível pacificação do tema e contribuir qualitativamente para a solução jurídica da viabilidade da ação de exigir contas de verba alimentar em face do genitor guardião.

2. DOS ALIMENTOS

Partindo da acepção jurídica, os alimentos são as prestações devidas (pecuniárias ou in natura) para a satisfação das necessidades pessoais e existenciais daquele que não pode provê-las por si. Nessa seara, o artigo 1.695 do Código Civil Brasileiro prevê:

Artigo 1.695:  São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento (BRASIL, 2002).

 Destarte, o direito à alimentação é tão basilar que possui previsão constitucional como direito social no artigo 6°, e é imposto como dever comum (proteção integral da criança e do adolescente) no artigo 227, vide:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988). 

Posto isso, o direito à alimentação, alicerçado no princípio da solidariedade imposta ao Estado e sociedade brasileira é um bem jurídico tão fortemente tutelado que seu descumprimento enseja a única hipótese de prisão civil no ordenamento jurídica brasileiro atual (art. 5º, LXVII, da Constituição Federal).

Consoante Paulo Lôbo (2017), a doutrina tradicional distingue os alimentos em naturais e civis, na qual os naturais seriam os estritamente exigidos para a sobrevivência e os civis seriam os fixados atentando-se nos haveres do alimentante e da qualidade e contexto personalíssimo do alimentando. Entretanto, ressalta entendimento de Pontes de Miranda (2012) que tal distinção não há razão de existir, visto que o Código Civil anterior e o atual referem que o legado de alimentos deve abranger o sustento, cura, vestuário, lazer e educação, se infante for.

Nesse sentido, é a lição de Tartuce e Simão (2007):

Diante dessa proteção máxima da pessoa humana, precursora da personalização do Direito Civil, e em uma perspectiva civil-constitucional, entendemos que o art. 6º da CF/1988 serve como uma luva para preencher o conceito atual dos alimentos. Esse dispositivo do Texto Maior traz como conteúdo os direitos sociais que devem ser oferecidos pelo Estado, a saber: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados. Anote-se que a menção à alimentação foi incluída pela Emenda Constitucional 64, de 4 de fevereiro de 2010, o que tem relação direta com o tema aqui estudado. Ademais, destaque-se que, conforme a doutrina contemporânea constitucionalista, os direitos sociais também devem ser tidos como direitos fundamentais, tendo aplicação imediata nas relações privadas (apud GAGLIANO; FILHO, 2019, p. 2086-2087).

Assim, resta evidente a intrínseca relação dos alimentos com o princípio norteador da dignidade humana, pois não são devidos apenas para atender as necessidades básicas de sobrevivência (o mero sustento físico), mas sim para atender todo um aspecto existencial de viver dignamente, respeitosamente e de maneira saudável.

Ademais, para assegurar a teleologia da norma, os alimentos são dotados de certas características, sendo elas: indisponibilidade, irrenunciabilidade, incompensáveis, irrepetíveis e impenhoráveis. Para melhor compreensão do presente estudo, destaca-se o caráter da irrepetibilidade, ou seja, não é possível o alimentante repetir (pedir de volta) e o alimentando não é obrigado a devolvê-los, ainda que seja indevidamente recebido. Por exemplo, se a decisão judicial que fixou o encargo alimentar for cassada, os alimentos que já foram pagos não deverão ser devolvidos em obediência a esse princípio e visto que se trata de verba destinada à aquisição de bens de consumo. Nesta senda, é presumido que todo o valor entregue ao alimentando, à título de alimentos, serve para sustento integral das necessidades básicas, motivo pelo qual a irrepetibilidade busca proteger a urgência que o alimentando possui em relação à verba. Dessa forma, a alegação de pagamento indevido ou enriquecimento sem causa não consegue vencer a obrigação alimentar, diante da tão costumeira proteção da dignidade humana relacionada com o instituto (TARTUCE, 2017).

2.1 DA LEGITIMIDADE

Preliminarmente, importante frisar que enquanto perdurar a convivência familiar não existirá a obrigação de alimentos, pois essa é determinada judicialmente e não se confunde com os deveres familiares de sustento derivado do poder familiar. Ou seja, no presente estudo trataremos do encargo alimentar fixado judicialmente ou extrajudicialmente com força de título executivo.

Doravante, o Código Civil Brasileiro determina que o direito à prestação alimentícia é oriundo do parentesco e relações familiares e recíproco entre pais e filhos, sendo extensivo a todos os ascendentes, todavia sempre recaindo a obrigação nos mais próximos em grau. Extrai-se do artigo 1.694 do Código Civil os legitimados para proporem a ação de alimentos e de figurarem no polo ativo e passivo: “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”. Posto isso, extrai-se a necessidade de uma relação jurídica entre os sujeitos de direito para que o encargo alimentar seja estabelecido, podendo tal relação derivar de um liame consanguíneo ou afetivo.

Outrossim, preceitua a Constituição Federal em seu artigo 229: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”, dessa forma, há a previsão constitucional expressa do princípio da solidariedade familiar que assegura a assistência material e social aos integrantes daquela família, sendo basilar para a fundamentação da existência das pensões alimentícias.

Segundo entendimento de Paulo Lôbo (2017, p. 29):

A regra matriz do princípio da solidariedade é o inciso I do art. 3º da Constituição. No capítulo destinado à família, o princípio é revelado incisivamente no dever imposto à sociedade, ao Estado e à família (como entidade e na pessoa de cada membro) de proteção ao grupo familiar (art. 226), à criança e ao adolescente (art.227) e às pessoas idosas (art. 230). A solidariedade, no direito brasileiro, apenas após a Constituição de 1988 inscreveu-se como princípio jurídico; antes, era concebida como dever moral, ou expressão de piedade, ou virtude ético-teologal (Moraes, 2006). Para Paulo Bonavides (1998, p. 259), o princípio da solidariedade serve como oxigênio da Constituição — não apenas dela, dizemos, pois, a partir dela se espraia por todo o ordenamento jurídico –, a valoração da ordem normativa constitucional […] Desenvolve-se no âmbito do direito de família estudos relativos ao “cuidado como valor jurídico”. O cuidado desponta com força nos estatutos tutelares das pessoas vulneráveis, como a criança e o idoso, que regulamentaram os comandos constitucionais sobre a matéria. O cuidado, sob o ponto de vista do direito, recebe a força subjacente do princípio da solidariedade, como expressão particularizada desta. 

2.2 DO TRINÔMIO ALIMENTAR

O quantum debeatur a ser pago mensalmente à título de pensão alimentícia é alicerçado no tradicional binômio alimentar, expressamente previsto no §1° do artigo 1694 do Código Civil: “Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada” (BRASIL, 2002). Posto isso, em que pese a doutrina tradicional falar de binômio alimentar (necessidade do alimentando e possibilidade do alimentante), a jurisprudência atual e a doutrina moderna incluíram a proporcionalidade/razoabilidade como terceiro critério, sendo um critério procedimental, visto que necessita dos outros dois para ser aplicado.

Consoante Maria Berenice Dias (2015, p. 604):

A regra para a fixação do encargo alimentar é vaga e representa apenas um standard jurídico (CC 1 .694 § 1 º e 1 .695). Dessa forma, abre-se ao juiz um extenso campo de ação, capaz de possibilitar o enquadramento dos mais variados casos individuais. Para definir valores, há que se atentar ao dogma que norteia a obrigação alimentar: o princípio da proporcionalidade. Esse é o vetor para a fixação dos alimentos. Segundo Gilmar Ferreira Mendes, o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom-senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, segue de regra de interpretação para todo ordenamento jurídico.

Tradicionalmente, invoca-se o binômio necessidade-possibilidade, perquirindo-se as necessidades do alimentando e as possibilidades do alimentante para estabelecer o valor do pensionamento. No entanto, essa mensuração é feita para que se respeite a diretriz ela proporcionalidade. Por isso se começa a falar, com mais propriedade, em trinômio: proporcionalidade-possibilidade-necessidade. 

Doravante, adotando o trinômio alimentar, têm-se que a necessidade está relacionada ao sustento digno do alimentado, abarcando as reais condições de vida, falta de renda, incapacidade para o trabalho, educação, saúde, alimentação, moradia, lazer, segurança, entre outros. Necessário ressaltar que a necessidade é legalmente presumida quando se tratar de filhos menores e que não há direito de isonomia na fixação desse quantum alimentar entre filhos de diferentes genitores, haja visto ser necessário observar as peculiaridades próprias e gastos individuais de cada um deles.

Em contrapartida, o critério da possibilidade é alusivo aos rendimentos reais que servem de lastro ao pagamento dos alimentos, devendo observar que o alimentando viva de modo compatível com a sua condição social e, concomitantemente, que não comprometa o sustento e a própria subsistência/manutenção do alimentante. Doravante, o terceiro critério da proporcionalidade busca garantir um justo balanceamento equilibrado entre os outros supramencionados critérios, servindo de maneira procedimental, e pautando-se diretamente nos ideais de equidade, prudência, moderação e justa medida. Assim, verifica-se que em um polo há alguém com direito a alimentos e no outro polo há alguém obrigado a fornecê-los, sendo a ambos assegurados a possibilidade de viver de modo compatível com sua condição social, razão pela qual a fixação dos alimentos é matéria sensível no direito de família.

3. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA DEMANDA DE EXIGIR CONTAS

Doravante, ante o breve exposto acerca dos alimentos, cabe adentrar no tema do instituto de exigir contas e suas particularidades. A demanda de exigir contas está prevista nos artigos 550 a 553 do Código de Processo Civil, possuindo a finalidade de liquidar relacionamento jurídico existente entre as partes em sentido econômico, de forma que estabeleça com precisão se há ou não saldo, fixando, no caso positivo, o quantum debeatur correspondente, com efeito de condenação judicial. 

Ou seja, nas relações em que há administração de bens ou interesses de um sujeito por terceiros, poderá ser necessário valer-se da ação para que as receitas e despesas sejam pormenorizadas no desenvolvimento de tal administração. Entretanto, a prestação de contas não busca apenas o acertamento das receitas e despesas na administração de bens ou interesses, pois a discussão é realizada de forma incidental somente como meio de se definir a responsabilidade do devedor e o direito do credor, dessa maneira, a doutrina adota que a ação tem natureza condenatória. 

Consoante entendimento de Neves (2021): 

Interessante notar que a prestação de contas não tem como objetivo final tão somente o acertamento das receitas e despesas na administração de bens, valores ou interesses, considerando-se que a discussão das contas será realizada de forma incidental somente como meio para se definir a responsabilidade de pagar do devedor. Essa circunstância leva a melhor doutrina a entender pela natureza condenatória dessa ação, considerando que o seu resultado será a condenação do devedor ao pagamento do saldo apurado.

A natureza da ação é realmente condenatória, até mesmo porque os dois pedidos necessariamente cumulados na petição inicial da ação de exigir contas têm essa natureza: (a) condenação à prestação das contas (obrigação de fazer); (b) condenação ao pagamento do saldo residual (obrigação de pagar). Excepcionalmente pode haver somente pedido de condenação ao pagamento do saldo residual, quando o dever de prestar as contas for decorrência de expressa previsão legal, como ocorre, por exemplo, com o inventariante. (p.. 917-918).

Anteriormente ao Código Processual Civil vigente, o CPC/1973 previa dois procedimentos especiais distintos sob a ação de prestação de contas, sendo eles: ação de exigir contas e ação de dar contas (artigos 914 a 919 do CPC/1973). Doravante, na vigência do atual Código de Processo Civil, com a finalidade de eliminar procedimentos especiais desnecessários, permaneceu sob procedimento especial apenas a ação de exigir contas, prevista nos artigos 550 a 553, devendo a ação de dar contas ser processada apenas sob o procedimento comum (artigos 318 ao 512). Nesta senda, 

[…] a administração de bens ou negócios alheios gera sempre, para o gestor, o dever de prestar contas, de sorte que este tem, na perspectiva do direito material, não apenas a obrigação, mas também o direito de se livrar desse dever. Assim, coexistem sempre as duas pretensões, a de exigir e a de prestar contas (THEODORO JÚNIOR,2016, p. 116).

Posto isso, a legitimidade ativa da ação de exigir contas é aquela que teve seus bens ou interesses administrados, devendo comprovar o dever do requerido em prestá-las (primeira fase) e apurar o suposto débito decorrente da relação jurídico-econômica entre as partes (segunda fase). Para Humberto Theodoro Júnior (2016), o procedimento da ação para exigir contas é composto de duas fases, com objetivos diferentes: na primeira busca-se apurar a existência ou não da obrigação de prestar contas que o autor atribui ao requerido; na segunda, que pressupõe solução positiva no julgamento da primeira, desenvolvem-se as operações de exame das diversas parcelas das contas, com a finalidade de condenar ao pagamento do débito da parte que deu causa, seja a parte autora ou a ré, a fim do correto acertamento de contas.

Em contrapartida, há Luís Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero que lecionam no sentido de que o procedimento especial de prestação de contas é voltado a apurar a existência ou não da pretensão às contas, não havendo necessidade de que o autor da demanda invoque algum suposto crédito existente ou desfalque efetuado pelo requerido, bastando que ostente o direito de ter as contas prestadas, para que a demanda seja procedente. Ademais, defendem que a supramencionada demanda visa permitir que o Requerente imponha ao Requerido o oferecimento de contas, alicerçando-se exclusivamente na existência ou não desse direito de exigir, sendo prescindível a invocação de alguma desconfiança sobre o trabalho exercido pelo administrador ou ainda algum saldo supostamente existente em razão de seu trabalho.

3.1 DA NATUREZA DÚPLICE E DO PROCEDIMENTO

Destarte, é unanimidade na doutrina a natureza dúplice da ação de exigir contas, sendo que o bem tutelado (quantia resultante do saldo devedor) irá obrigatoriamente ficar com uma das partes, podendo ser em favor do autor ou do réu. Ou seja, ambas as partes da relação material podem assumir polos de autor ou de réu, e assim, a tutela jurisdicional pode ser prestada em favor de qualquer um. Nesse sentido, o réu apenas se defende, não sendo necessário oferecer reconvenção, visto que a consequência natural a ser gerada, caso reconheça crédito ao seu favor, será a condenação do autor. 

Acerca do tema, é a lição de Fredie Didier Júnior (2009, p.210): 

As ações dúplices são as ações (pretensões de direito material) em que a condição dos litigantes é a mesma, não se podendo falar em autor e réu, pois ambos assumem concomitantemente as duas posições. Esta situação decorre da pretensão deduzida em juízo. A discussão judicial propiciará o bem da vida a uma das partes, independentemente de suas posições processuais. A simples defesa do réu implica exercício de pretensão; não formula pedido o réu, pois a sua pretensão já se encontra inserida no objeto de uma equipe com a formulação do autor. É como uma luta em cabo de guerra: a defesa de uma equipe já é, ao mesmo tempo, também o seu ataque. São exemplos: a) as ações declaratórias; b) as ações divisórias; c) as ações de acertamento, como a prestação de contas e oferta de alimentos.

 Assim, o resultado final poderá atingir tanto o administrador quanto o interessado nos bens e interesses, tornando a eventual quantia título judicial executivo em favor do credor. 

Ressalta-se a existência duas fases procedimentais sucessivas na demanda de exigir contas, sendo ambas de conhecimento, devendo a primeira ater-se a discussão no dever ou não da prestação de contas e a segunda apurando o valor do saldo devedor. O Superior Tribunal de Justiça reconhecendo a natureza cognitiva da segunda fase do procedimento, já entendeu por unanimidade ser indevida a utilização do agravo de instrumento para recorrer da decisão interlocutória que versava sobre produção probatória, no REsp 1.821.793-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/08/2019, in verbis : 

A partir do exame do conjunto de regras que disciplinam a ação de prestação de contas, no CPC/1973 e no CPC/2015, que a atividade jurisdicional que se desenvolve na segunda fase desta ação de procedimento especial não é de liquidação ou de cumprimento de sentença, mas, sim, de cognição própria da fase de conhecimento, em que há o acertamento da relação jurídica de direito material que vincula as partes. Nesse sentido, a fase de cumprimento da sentença na ação de prestação de contas apenas se iniciará após a prolação da sentença condenatória que porventura vier a ser proferida na segunda fase do referido procedimento especial. […] Nesse contexto, a decisão interlocutória que, na segunda fase da referida ação, deferiu a produção de prova pericial contábil, nomeou perito e concedeu prazo para apresentação de documentos, formulação de quesitos e nomeação de assistentes, não se submete ao regime recursal diferenciado que o legislador estabeleceu para as fases de liquidação e cumprimento da sentença (art. 1.015, parágrafo único, do CPC/2015), mas, ao revés, ao regime recursal aplicável à fase de conhecimento (art. 1.015, caput e incisos, CPC/2015). Assim, inexiste previsão legal para a recorribilidade imediata da referida decisão interlocutória a partir das hipóteses de cabimento arroladas nos incisos do art. 1.015 do CPC/2015. 

Nesse ínterim, o procedimento estabelecido legalmente determina que aquele que alegar ser titular do direito deverá especificar na petição inicial detalhadamente as razões pelas quais exige as contas, instruindo-a mediante prova documental, se existirem, requerendo a citação do réu para a devida apresentação ou o oferecimento da contestação, no prazo de quinze dias. Ou seja, a peça exordial deverá vir cumulada com dois pedidos: condenação do réu a prestar as contas e a condenação do réu ao pagamento de eventual saldo devedor apurado (admissível formulação de pedido genérico nos termos de artigo 324 §1, III, do CPC).

Ato contínuo, o réu poderá contestar, prestar as contas ou manter-se inerte. Neste prazo de resposta de 15 dias há quatro possíveis desdobramentos, sendo eles: apresentação das contas sem contestar, resultando no reconhecimento jurídico do pedido condenatório da primeira fase. Apresentar as contas e contestar, assim reconhecendo o dever de prestar contas, mas divergindo em relação ao seu conteúdo das contas (artigo 551 do código de processo civil). Contestar e sequer apresentar contas, na hipótese de não concordar com o dever de prestar as contas suscitadas na inicial, alegando inexistência do dever e pedir rejeição do pedido (artigo 487, I, do CPC). E por fim, há a hipótese de não contestar e nem apresentar as contas, nesse caso o réu será revel e caberá julgamento antecipado do mérito se o juiz presumir como verdadeiros os fatos referentes ao dever de prestar contas apresentados pelo autor nos moldes do artigo 355, II, do código de processo civil (NEVES,2021). 

Dessa maneira, com a sentença condenatória sanando a primeira fase, inicia-se a segunda fase do procedimento, que também dependerá do comportamento do réu condenado. Por força do artigo 551 do Código de Processo Civil: “As contas do réu serão apresentadas na forma adequada, especificando-se as receitas, a aplicação das despesas e os investimentos, se houver” (BRASIL, 2015), ainda, caso a decisão na primeira fase julgar procedente o pedido e condenar o réu a prestar contas, essas deverão estar em forma adequada, instruídas de documentos justificativos, especificando-se receitas, aplicação das despesas, investimentos e o respectivo saldo. Por fim, conclui o artigo 552 que a sentença deverá apurar o saldo e constituir o título executivo judicial pertinente. 

4. A(IN)VIABILIDADE DE EXIGIR CONTAS EM AÇÃO DE ALIMENTOS

Perpassado brevemente acerca das características relevantes de ambos os institutos para o presente estudo, surge o questionamento acerca da compatibilidade entre os temas, posicionamentos jurisprudenciais/doutrinários, suas problemáticas e consequências no ordenamento jurídico pátrio.   

 Destarte, a polêmica cinge-se ao conflito forense de tal fiscalização valer-se do procedimento especial de exigir contas. Antes do vigente código processual civil existia um silêncio normativo, no qual o código se restringia a legitimar aqueles que possuíam o direito de exigir ou obrigação de prestar as contas. Doravante, o Código Civil previa (antes de alteração legislativa em 2014) que: “a guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos”, sendo essa supervisão conceituada e prevista no artigo 1.589: “o pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”. A teleologia da positivação da função fiscalizadora de manutenção e educação do filho é para o superior interesse destes, a fim de que o genitor, mesmo não detentor da guarda, pudesse participar ativamente na criação dos filhos. 

Dado o exposto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e doutrina majoritária eram no sentido da não confusão do direito de supervisão com o direito de ingressar judicialmente para exigir contas das verbas alimentares. Sendo o Agravo Regimento no Recurso Especial 1.378.928/PR (Publicado no DJE 06/09/2013) nesse sentido:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE FISCALIZAÇÃO DE DESPESAS ALIMENTÍCIAS. DEMANDA QUE OBJETIVA A FISCALIZAÇÃO DA APLICAÇÃO DA VERBA ALIMENTAR. AÇÃO INADEQUADA AO FIM COLIMADO. 1.- Segundo a jurisprudência desta Corte, o alimentante não detém interesse de agir quanto a pedido de prestação de contas formulado em face da mãe do alimentando, filho de ambos, sendo irrelevante, a esse fim, que a ação tenha sido proposta com base no art. 1.589 do Código Civil, uma vez que esse dispositivo autoriza a possibilidade de o genitor que não detém a guarda do filho fiscalizar a sua manutenção e educação, sem, contudo, permitir a sua ingerência na forma como os alimentos prestados são administrados pela genitora. 2.- Agravo Regimental improvido”. (STJ, AgRg no REsp 1.378.928/PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, DJe 06/09/2013).

Entretanto, após a alteração legislativa com a lei número 13.058/2014, houve a previsão legal no artigo 1.583, §5º, acerca de tal solicitação de informações e/ou prestação de contas, passando a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1.583.  A guarda será unilateral ou compartilhada:

[…] § 5º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos (Incluído pela Lei nº 13.058 de 2014) (BRASIL, 2002).

A partir desse momento o judiciário fora acionado diversas vezes com a antiga pretensão, mas agora fundamentando-se na interpretação literal legal e na vontade do legislador para o fim pretendido. Inclusive, para alguns renomados doutrinadores especializados no direito de família, como Rolf Madaleno, a alteração chancelou a legitimidade ativa do genitor não guardião de exigir contas:

De qualquer forma parece que toda essa polêmica judicial estabelecida entre a possibilidade ou não de ser pedida a prestação de contas pelo genitor alimentante perdeu em parte seu sentido perante o texto contido no § 5º do artigo 1.583, acrescentado pela Lei n. 13.058/2014, ao dispor possa o guardião, que não detenha a guarda, supervisionar os interesses dos filhos, e, para viabilizar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações ou a prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos. Portanto, todos os temas relacionados com a saúde física e psicológica dos filhos e mais aqueles relativos à sua educação, autorizam o progenitor alimentante a exigir prestação de contas ou meras informações acerca do destino dos alimentos que paga, pela simples dúvida, suspeita ou interesse que tenha de, preocupado com o bem-estar do seu filho, ser mais bem informado, de modo inclusive pormenorizado, acerca de como está sendo administrada a pensão alimentícia do filho menor (MADALENO, 2020, p. 1.023).

4.1  TESES DA INVIABILIDADE

Os principais argumentos pela inviabilidade da solicitação em juízo de exigir as contas por meio do procedimento especial, alicerçam-se na ilegitimidade ativa e ausência de interesse processual. A ausência de legitimidade é suscitada, pois, pugna-se que a verba é pertencente somente ao infante, assim, ao realizar o pagamento do encargo alimentar, este ingressaria na esfera patrimonial do infante. Posto isso, devido a incapacidade civil (absoluta ou relativa), teria o seu patrimônio administrado pelo guardião legal, não podendo o alimentando utilizar da prestação de contas para fiscalizar verba que não lhe pertenceria. Salienta-se “para existir a obrigação de prestar contas, há de haver uma relação material entre os sujeitos da relação, na qual se verifique a existência efetiva do poder daquele que se diz credor das contas de sujeitar o demandado a prestá-los” (THEODORO JÚNIOR, 2012, p. 85).

Em contrapartida, a ausência de interesse de agir advém justamente da discussão de aplicar uma verba que já saiu da esfera patrimonial do alimentante e entrou na do alimentando e que de nada resultaria em virtude do caráter da irrepetibilidade dos alimentos. Para o procedimento especial de exigir contas entende-se como interessado aquele que não tenha como aferir em quanto importa seu crédito nascido em razão da administração de bens ou interesses alheios, realizada por uma das partes em favor da outra, assim, o alimentante não deteria interesse processual para ajuizar ação de exigir contas em face do guardião do alimentando porquanto ausente a utilidade do provimento jurisdicional, haja visto que quaisquer valores que acaso sejam apurados em favor do alimentante estariam revestidos pela irrepetibilidade dos alimentos já pagos. 

Dessa forma, seria justamente o objetivo da ação de exigir contas (apuração de eventual crédito, mediante critérios puramente aritméticos e quantitativos) que tornaria o procedimento incompatível com a pretensão. Ademais, de nada traria vantagem para o alimentante visto que a supracitada irrepetibilidade não permitiria crédito ao seu favor e, acaso, a pretensão do autor seja modificar a quantia fixada judicialmente ou constituir prova para tal, o ideal seria utilizar de outros meios processuais (revisional de alimentos ou modificação de guarda) próprios para a finalidade e que possibilitaram a melhor produção de provas e discussão acerca do trinômio alimentar. 

Nessa mesma toada foram diversas decisões dos ministros da Terceira e Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça em casos semelhantes: AREsp 1561495/SP, Rel. Ministro Luiz Felipe Salomão, DJ 26/11/2019; REsp 1704311/MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 12/11/2019; REsp 1664532/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, 05/08/2019; AREsp 1277379/RS, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 14/06/2019; AREsp 1450163/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 02/05/2019; AREsp 1315093/RS, Rel. Ministro Moura Ribeiro, 30/11/2018. Colaciona-se a ementa do Recurso Especial n.º 1637378/DF, julgado em 19/02/2019:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. ALIMENTOS. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. DEVEDOR. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. CRÉDITO. INEXISTÊNCIA. ADMINISTRAÇÃO. VALORES. GUARDA. EXCLUSIVIDADE. IRREPETIBILIDADE. UTILIDADE. AUSÊNCIA. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. A ação de prestação de contas tem a finalidade de declarar a existência de um crédito ou débito entre as partes. 3. Nas obrigações alimentares, não há saldo a ser apurado em favor do alimentante, porquanto, cumprida a obrigação, não há repetição de valores. 4. A ação de prestação de contas proposta pelo alimentante é via inadequada para fiscalização do uso de recursos transmitidos ao alimentando por não gerar crédito em seu favor e não representar utilidade jurídica. 5. O alimentante não possui interesse processual em exigir contas da detentora da guarda do alimentando porque, uma vez cumprida a obrigação, a verba não mais compõe o seu patrimônio, remanescendo a possibilidade de discussão do montante em juízo com ampla instrução probatória. 6. Recurso especial não provido. (STJ, REsp n.º 1637378/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/02/2019, DJe /06/03/2019)

Assim, militam que o direito à fiscalização de contas existe, mas não é devido pelo procedimento especial, indo além da mera averiguação aritmética. Outrossim, seria desproporcional exigir do genitor guardião e administrador de verbas alimentares (presumidas utilizadas para manter) apresentar periodicamente de maneira contábeis o balancete das despesas e saldo (se houver) com os comprovantes fiscais. 

4.2 TESES DA VIABILIDADE

Por outro lado, há doutrinadores e recentes precedentes acerca da viabilidade jurídica da ação de exigir contas nas pensões alimentícias para obtenção de informações acerca do destino da verba após o advento do §5 do artigo 1.583 do Código Civil Brasileiro. Os argumentos favoráveis incluem desde a proteção integral da criança e do adolescente, isonomia e dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, é o posicionamento de Rolf Madaleno (2020, p. 1.023):

A Lei n. 13.058/2014 inserido no § 5º do art. 1.583 do Código Civil justamente um dispositivo legal que doravante consagra a possibilidade sempre negada pela jurisprudência brasileira da ação de prestação de contas do pagamento da pensão alimentícia, atribuindo, expressamente, legitimidade ativa ao genitor não guardião para solicitar informações ou prestação de contas sobre assuntos ou situações que reflitam sobre a saúde física e psicológica e a educação dos seus filhos e, obviamente, neste espectro de incidências, a pensão alimentícia se apresenta como fundamental direito a ser fiscalizado, pois ainda que os alimentos não possam ser restituídos, ao menos a readequação dos gastos pode ser redirecionada. 

A concepção de família na seara jurídica evoluiu ao passar dos anos, deixando de ater-se ao meramente ao disposto legal no §3º do artigo 226 da Constituição Federal (além da relação heteronormativa) e tornando-se mais dialética. A quebra do patriarcalismo no atual ordenamento jurídico mudou o pátrio poder para poder familiar, colocando a mulher em pé de igualdade com o homem em relação aos direitos e deveres a serem exercidos na sociedade conjugal e estipulando o dever conjunto dos pais na correta manutenção dos infantes. Desse modo, amparando-se nessas premissas, defendem que na perspectiva do melhor interesse da criança seria juridicamente viável a ação de exigir contas, pois estariam indiretamente relacionadas com a saúde física e psicológica do menor. 

Desse modo, os defensores, pautando-se em todo esse protecionismo constitucional assegurado à família e às crianças, militam que a lei não traz palavras inúteis, assim, com a introdução da polêmica norma (§5 do artigo 1.583 do Código Civil) a função supervisora tornou-se elemento de garantia da própria dignidade do alimentado, devendo o judiciário deferir os mecanismos necessários para sua proteção integral. Nesta toada, estaria concretizado o direito e dever do genitor não-guardião de requisitar em juízo tais informações e aferir se a verba alimentar está sendo empregada no desenvolvimento sadio efetivamente. Assim, o mecanismo supervisor protege o alimentando em caso de abuso de poder e negligência do genitor guardião, servindo como instrumento da ideal isonomia parental e do melhor interesse da criança.

Nesta lógica são as palavras de Flávio Tartuce (2015) ao comentar acerca do tema:

A menção à supervisão e à prestação de contas, sem dúvidas, pode estar relacionada aos alimentos. Esclareça-se, por oportuno, que a fixação da guarda compartilhada (ou alternada) não gera, por si só, a extinção da obrigação alimentar em relação aos filhos, devendo a fixação dos alimentos sempre ser analisada de acordo com o binômio ou trinômio alimentar. Em complemento, quanto à prestação das contas alimentares, passa ela a ser plenamente possível, afastando-se os argumentos processuais anteriores em contrário, especialmente a ilegitimidade ativa e a ausência de interesse processual. Igualmente, não deve mais prosperar a premissa da irrepetibilidade como corolário da inviabilidade dessa prestação de contas. De toda sorte, acreditamos que a exigência da prestação deve ser analisada mais objetiva do que subjetivamente, deixando-se de lado pequenas diferenças de valores e excessos de detalhes na exigência da prestação, o que poderia torná-la inviável ou até aumentar o conflito entre as partes. (MIGALHAS, 2015).

Ademais, justificam que o legítimo interesse processual é em virtude apenas da finalidade protetiva da criança beneficiária dos alimentos, e não o eventual acerto de contas. Sustentam que a irrepetibilidade dos alimentos não é causa suficiente para afastar a pretensão, pois para alguns doutrinadores o instituto jurídico da ação de exigir contas não exige necessariamente a existência de algum crédito, mas sim que demonstre o direito de ter as contas prestadas. Consoante doutrina de Adroaldo Furtado (2008) sequer há correlação necessária entre o dever jurídico de prestar contas e a situação do devedor, pois a prestação de contas possui justamente o condão de aclarar qual o estado da relação jurídica econômica, de tal forma que só após serem prestadas se saberá quem há de pagar e quem tem de receber.

Enfim, alicerçando-se nos argumentos alhures, surgiu o precedente no Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.814.639 / RS (julgado em 26/05/2020) no qual, após voto de minerva da Ministra Nancy Andrighi acompanhando a divergência, deram parcial provimento permitindo o manuseio da ação de exigir contas de verba alimentar, sem necessidade que se busque ou indique a existência de algum crédito, mas apenas que demonstre a titularidade do interesse legítimo, de modo que a irrepetibilidade dos alimentos não seja fator determinante para impedir o ajuizamento da ação (p. 40 do inteiro Teor do Acórdão).  Colaciona-se a ementa do julgado:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. PENSÃO ALIMENTÍCIA. ART. 1.583, § 5º, DO CC/02. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. VIABILIDADE JURÍDICA DA AÇÃO DE EXIGIR CONTAS. INTERESSE JURÍDICO E ADEQUAÇÃO DO MEIO PROCESSUAL PRESENTES. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE .PROVIDO. 1. Aplica-se o NCPC a este recurso ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC. 2. Não há falar em omissão ou negativa de prestação jurisdicional, na medida em que o Tribunal gaúcho dirimiu, de forma motivada, as questões devolvidas em grau de apelação, pondo fim à controvérsia dos autos. 3. O cerne da controvérsia gira em torno da viabilidade jurídica da ação de prestar contas ajuizadas pelo alimentante contra a guardiã do menor/alimentando para obtenção de informações acerca da destinação da pensão paga mensalmente. 4. O ingresso no ordenamento jurídico da Lei nº 13.058/2014 incluiu a polêmica norma contida no § 5º do art. 1.583 do CC/02, versando sobre a legitimidade do genitor não guardião para exigir informações e/ou prestação de contas contra a guardiã unilateral, devendo a questão ser analisada, com especial ênfase, à luz dos princípios da proteção integral da criança e do adolescente, da isonomia e, principalmente, da dignidade da pessoa humana, que são consagrados pela ordem constitucional vigente. 5. Na perspectiva do princípio da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente e do legítimo exercício da autoridade parental, em determinadas hipóteses, é juridicamente viável a ação de exigir contas ajuizada por genitor(a) alimentante contra a(o) guardião e representante legal de alimentado incapaz, na medida em que tal pretensão, no mínimo, indiretamente, está relacionada com a saúde física e também psicológica do menor, lembrando que a lei não traz palavras inúteis. 6. Como os alimentos prestados são imprescindíveis para própria sobrevivência do alimentado, que no caso tem seríssimos problemas de saúde, eles devem ao menos assegurar uma existência digna a quem os recebe. Assim, a função supervisora, por quaisquer dos detentores do poder familiar, em relação ao modo pelo qual a verba alimentar fornecida é empregada, além de ser um dever imposto pelo legislador, é um mecanismo que dá concretude ao princípio do melhor interesse e da proteção integral da criança ou do adolescente. 7. O poder familiar que detém os genitores em relação aos filhos menores, a teor do art. 1.632 do CC/02, não se desfaz com o término do vínculo matrimonial ou da união estável deles, permanecendo intacto o poder-dever do não-guardião de defender os interesses superiores do menor incapaz, ressaltando que a base que o legitima é o princípio já destacado. 8. Em determinadas situações, não se pode negar ao alimentante não-guardião o direito de averiguar se os valores que paga a título de pensão alimentícia estão sendo realmente dirigidos ao beneficiário e voltados ao pagamento de suas despesas e ao atendimento dos seus interesses básicos fundamentais, sob pena de se impedir o exercício pleno do poder familiar. 9. Não há apenas interesse jurídico, mas também o dever legal, por força do § 5º do art. 1.538 do CC/02, do genitor alimentante de acompanhar os gastos com o filho alimentado que não se encontra sob a sua guarda, fiscalizando o atendimento integral de suas necessidades materiais e imateriais essenciais ao seu desenvolvimento físico e também psicológico, aferindo o real destino do emprego da verba alimentar que paga mensalmente, pois ela é voltada para esse fim. 9.1. O que justifica o legítimo interesse processual em ação dessa natureza é só e exclusivamente a finalidade protetiva da criança ou do adolescente beneficiário dos alimentos, diante da sua possível malversação, e não o eventual acertamento de contas, perseguições ou picuinhas com a(o) guardião, devendo ela ser dosada, ficando vedada a possibilidade de apuração de créditos ou preparação de revisional pois os alimentos são irrepetíveis. 10. Recurso especial parcialmente provido. (STJ, REsp 1.814.639 / RS, R.P/ acórdão: Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 26/05/2020).

5. PACIFICAÇÃO NA CORTE SUPERIOR

Após o supracitado precedente na terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, levantou-se a possibilidade de um possível overruling (ou overriding) e superação do antigo paradigma. Ao examinar a jurisprudência interna verifica-se que tanto a terceira turma quanto a quarta turma julgavam pela inexistência do dever de prestação de contas pelo genitor que detém a guarda, pelos motivos já expostos. Entretanto, após o precedente do voto divergente vencedor na Terceira turma, a Quarta Turma entendeu no recentíssimo REsp 1.911.030 / PR (julgado em 01/06/2021) de maneira unânime pelo provimento ao recurso especial para viabilizar a propositura da ação de exigir contas pelo alimentante com o intuito de supervisionar a aplicação da verba alimentar, ementa in verbis:

DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL. ALIMENTOS. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. ART. 1.583, § 5º, DO CC. PODER DEVER DE FISCALIZAÇÃO DOS INTERESSES DO MENOR. 1. A proteção integral da criança e do adolescente, defendida pela Organização das Nações Unidas (ONU) com base na Declaração Universal dos Direitos da Criança e erigida pela Constituição da República como instrumento de afirmação da dignidade da pessoa humana (art. 227), exerce crucial influência sobre o intérprete da norma jurídica infraconstitucional, porquanto o impele a compreendê-la e a aplicá-la em conformidade com a prevalência dos interesses do menor em determinada situação concreta. 2. Com o inequívoco objetivo de proteção aos filhos menores, o legislador civil preconiza que, cessando a coabitação dos genitores pela dissolução da sociedade conjugal, o dever de sustento oriundo do poder familiar resolve-se com a prestação de alimentos por aquele que não ficar na companhia dos filhos (art. 1.703 do CC), cabendo-lhe, por outro lado, o direito-dever de fiscalizar a manutenção e a educação de sua prole (art. 1.589 do CC). 3. O poder-dever fiscalizatório do genitor que não detém a guarda com exclusividade visa, de forma imediata, à obstrução de abusos e desvios de finalidade quanto à administração da pensão alimentícia, sobretudo mediante verificação das despesas e dos gastos realizados para manutenção e educação da prole, tendo em vista que, se as importâncias devidas a título de alimentos tiverem sido fixadas em prol somente dos filhos, estes são seus únicos beneficiários. 4. A Lei n. 13.058/2014, que incluiu o § 5º ao art. 1.583 do CC, positivou a viabilidade da propositura da ação de prestação de contas pelo alimentante com o intuito de supervisionar a aplicação dos valores da pensão alimentícia em prol das necessidades dos filhos. 5. Na ação de prestação de contas de alimentos, o objetivo veiculado não é apurar um saldo devedor a ensejar eventual execução — haja vista a irrepetibilidade dos valores pagos a esse título —, mas investigar se a aplicação dos recursos destinados ao menor é a que mais atende ao seu interesse, com vistas à tutela da proteção de seus interesses e patrimônio, podendo dar azo, caso comprovada a má administração dos recursos alimentares, à alteração da guarda, à suspensão ou até mesmo à exoneração do poder familiar. 6. A ação de exigir contas propicia que os valores alimentares sejam melhor conduzidos, bem como previne intenções maliciosas de desvio dessas importâncias para finalidades totalmente alheias àquelas da pessoa à qual devem ser destinadas, encartando também um caráter de educação do administrador para conduzir corretamente os negócios dos filhos menores, não se deixando o monopólio do poder de gerência desses valores nas mãos do ascendente guardião. 7. O Juízo de piso exerce importante papel na condução da prestação de contas em sede de alimentos, pois, estando mais próximo das partes, pode proceder a um minucioso exame das condições peculiares do caso concreto, de forma a aferir a real pretensão de proteção dos interesses dos menores, repelindo o seu manejo como meio de imisção na vida alheia motivado pelo rancor afetivo que subjaz no íntimo do(a) alimentante. 8. O objetivo precípuo da prestação de contas é o exercício do direitodever de fiscalização com vistas a — havendo sinais do mau uso dos recursos pagos a título de alimentos ao filho menor — apurar a sua efetiva ocorrência, o que, se demonstrado, pode dar azo a um futuro processo para suspensão ou extinção do poder familiar do ascendente guardião (art. 1.637 combinado com o art. 1.638 do CC). 9. Recurso especial provido. (STJ, REsp 1.911.030 / PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, quarta turma, unanimidade, julgado 01/06/2021).

Nesse ínterim, em que pese o tema não ter sido objeto de pacificação pela corte superior, tudo indicava que os julgados formariam jurisprudência a fim de sedimentar o novo entendimento. Nesse viés foram as fundamentações e decisões nos novos julgados da quarta Turma, vide Agravo Interno no agravo em recurso especial nº 1414005 – SP (2018/0327698-6) julgado em 15/08/2022, no qual expressamente comenta acerca do entendimento trazido pela terceira turma de que, excepcionalmente, é viável juridicamente o pleito, por estar indiretamente relacionada com a saúde física e psicológica do menor alimentando.

 Todavia, novamente em caso semelhante aos anteriores, a terceira turma retornou ao entendimento supostamente superado. No recurso especial nº 1.767.456 – MG (2018/0240558-0), julgado em 25/11/2021, decidiram de forma unânime que o alimentante não detém interesse processual em exigir contas do detentor da guarda do alimentando. Colaciona-se a ementa: 

 RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. ALIMENTOS. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. DEVEDOR. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. CRÉDITO. INEXISTÊNCIA. ADMINISTRAÇÃO. VALORES. GUARDA. EXCLUSIVIDADE. IRREPETIBILIDADE. UTILIDADE. AUSÊNCIA. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. A ação de prestação de contas tem a finalidade de declarar a existência de um crédito ou débito entre as partes. 3. Nas obrigações alimentares, não há saldo a ser apurado em favor do alimentante, porquanto, cumprida a obrigação, não há repetição de valores. 4. A ação de prestação de contas proposta pelo alimentante é via inadequada para fiscalização do uso de recursos transmitidos ao alimentando por não gerar crédito em seu favor e não representar utilidade jurídica. 5. O alimentante não possui interesse processual em exigir contas da detentora da guarda do alimentando porque, uma vez cumprida a obrigação, a verba não mais compõe o seu patrimônio, remanescendo a possibilidade de discussão do montante em juízo com ampla instrução probatória. 6. Recurso especial provido. (STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.767.456 – MG (2018/0240558-0, Ministro relator RICARDO VILLAS BOAS CUEVA, terceira turma, unanimidade, julgado 25/11/2021).

Ademais, no texto desse acórdão há expressa menção à ciência do entendimento diverso da Quarta Turma, entretanto, não o acompanha. É o trecho do inteiro teor (pág. 9 a 13):

Todavia, não se desconhece recente julgado da Quarta Turma em sentido diverso 

[…]A ação de alimentos apresenta peculiaridades que se dissociam da lógica da ação de prestação de contas. A verba alimentar, uma vez transferida ao alimentante, ingressa definitivamente no patrimônio do alimentando. O detentor da guarda tem, indubitavelmente, o dever de utilizar o montante da melhor forma possível em favor do beneficiário. Contudo, ainda que se discorde da aplicação dos recursos, não há falar em devolução da quantia utilizada pelo credor, ante o princípio da irrepetibilidade que norteia as regras do Direito de Família, em especial, com relação aos alimentos. 

[…] Aquele que quitou sua dívida alimentar antecipa crédito ou realiza um empréstimo. No caso, inexistem bens ou recursos pertencentes ao autor passíveis de restituição, o que torna a lide inócua e o processo incapaz de atingir seu desiderato. Por outro lado, o suposto direito de exigir o adequado emprego dos valores repassados pressuporia a análise da utilização matemática da pensão alimentícia, o que não é plausível. Ademais, seria imprescindível analisar todas as circunstâncias fáticas acerca da qualidade de vida do alimentando, consoante a condição social e econômica da família de forma global, o que não se coaduna com os fundamentos lógicos e jurídicos da ação de prestação de contas. 

[…] Não se justifica a propositura da ação de prestação de contas por suposto risco de não ser a pensão alimentícia administrada corretamente pelo representante ou assistente do menor. Tal circunstância dependeria da prova do efetivo prejuízo ao alimentando e poderia conduzir à suspensão do poder familiar do administrador da verba, o que é incompatível com o rito da ação de prestação de contas. A eventual má administração de numerário destinado à manutenção e educação do filho, e consequente enriquecimento sem causa, em verdade, deve ser objeto de uma análise global na via adequada, com ampla instrução probatória, até mesmo para evitar abusos por parte de quem a alega. Além disso, esse tipo de demanda não deve ser incentivada, sob pena de se patrimonializar excessivamente as relações familiares, sensíveis por natureza, especialmente em virtude da irrepetibilidade da verba alimentar e consequentemente, inexistência de crédito na forma mercantil, com a especificação das receitas e despesas. Ademais, a controvérsia poderá, no lugar de proteger, violar os interesses do menor vulnerável. Por fim, a via adequada para se questionar o valor da dívida alimentar é ação revisional ou ação de modificação da guarda ou suspensão do poder familiar, não servindo a ação de prestação de contas para tal intento.

E assim permaneceu o entendimento da Terceira Turma do STJ no mais atual agravo interno no agravo em recurso especial nº 1450163 – SP (2019/0041755-1), julgado em 23/05/2022, no qual os ministros da terceira turma negaram provimento por unanimidade ao pleito do interesse processual em exigir contas do genitor guardião, ementa in verbis

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. ALIMENTOS. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. DEVEDOR. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. CRÉDITO. INEXISTÊNCIA. ADMINISTRAÇÃO. VALORES. GUARDA. EXCLUSIVIDADE. IRREPETIBILIDADE. UTILIDADE. AUSÊNCIA. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. A ação de prestação de contas tem a finalidade de declarar a existência de um crédito ou débito entre as partes. 3. Nas obrigações alimentares, não há saldo a ser apurado em favor do alimentante, porquanto, cumprida a obrigação, não há repetição de valores. 4. A ação de prestação de contas proposta pelo alimentante é via inadequada para fiscalização do uso de recursos transmitidos ao alimentando por não gerar crédito em seu favor e não representar utilidade jurídica. 5. O alimentante não possui interesse processual em exigir contas da detentora da guarda do alimentando porque, uma vez cumprida a obrigação, a verba não mais compõe o seu patrimônio, remanescendo a possibilidade de discussão do montante em juízo com ampla instrução probatória. 6. Agravo interno não provido. (STJ, AgInt no AREsp 1450163 / SP, Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, JULGADO 23/05/2022).

Dessa forma, conclui-se que o tema não foi objeto de pacificação pela corte superior, sendo ainda interpretado e julgado de forma completamente distinta a depender de qual Turma recursal for distribuída. Ressalta-se ainda dentre as competências que a Constituição Federal estipulou ao Superior Tribunal de Justiça, sua função de uniformizar a interpretação da lei federal, possuindo solução definitiva em casos civis e criminais que não envolvam matéria constitucional ou justiça especializada. Nessa seara, sabido que não existe força vinculante no plano horizontal ou prevalência do entendimento de uma turma recursal perante à outra, sobressai a lesão à segurança jurídica e acesso à justiça, violando até mesmo a dignidade humana dos jurisdicionados. Consoante Marinoni (2013, pág. 496):

Entretanto, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça, para adquirirem eficácia vertical obrigatória, obviamente não necessitam ser discutidos mediante embargos de divergência. Os precedentes das Turmas têm eficácia vertical obrigatória ou vinculante, embora não tenham igual eficácia no sentido horizontal. Uma Turma não está obrigada a respeitar precedente firmado pela outra, sejam elas de uma mesma Seção ou de Seções diferentes. O precedente de Turma perde automaticamente a sua força obrigatória no momento em que os embargos de divergência são recebidos. Neste caso, a decisão que julga os embargos passa a constituir precedente obrigatório.

Patente a necessidade do Superior Tribunal de Justiça dirimir e uniformizar seus próprios julgados, sendo no caso em análise a divergência entre a jurisprudência dominante e precedentes que a contrariam, a solução processual seria a interposição de embargos de divergência, entretanto não houve provocação da parte interessada, restando a problemática exposta. Ainda, como citado alhures, tais precedentes produzem eficácia vertical resultando em recursos providos a depender de qual turma recursal seja distribuída. 

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, utilizando os conceitos da demanda de exigir contas no Código Processual Civil vigente e do instituto dos alimentos com suas características essenciais e protecionismo constitucional, o trabalho em voga buscou contribuir para a discussão acerca da controversa questão da viabilidade do alimentante valer-se da ação de exigir contas para supervisionar a administração da verba alimentar paga ao alimentando, mas administrada pelo genitor guardião.

Doravante, com o advento da polêmica norma do §5 do artigo 1.583 do Código Civil em 2014, parcela da doutrina começou a argumentar e defender a possibilidade jurídica de tal pretensão, embora a jurisprudência fosse uníssona em sentido contrário. Entretanto, após precedente do Superior Tribunal de Justiça surgiram julgados nesse sentido e em que pese o tema não ter sido objeto de pacificação naquele momento (por interposição de embargos de divergência), acreditava-se que o tribunal havia superado o entendimento. 

Não obstante o precedente, a terceira turma do tribunal retornou a sinalizar forte posicionamento (maneira unânime) pela inviabilidade da via processual eleita para o pleito nos acórdãos já expostos. Assim, é cristalina a existência de duas correntes divergentes com argumentos concretos e válidos, os quais foram abordados no presente estudo, sendo uma favorável à fiscalização das contas judiciais e a outra contrária.   

Posto isso, ao tentar elucidar o tema foram exploradas as razões de ambos posicionamentos, sendo os principais argumentos pela inviabilidade da solicitação em juízo de exigir as contas a irrepetibilidade da verba alimentar, ilegitimidade ativa, ausência de interesse processual e desproporcionalidade de exigir do genitor guardião apresentação periodicamente em forma contábil o balancete das despesas e saldo (se houver) com os comprovantes fiscais.

Em contrapartida, os argumentos favoráveis incluem desde a proteção integral da criança e do adolescente, isonomia parental, dignidade da pessoa humana e melhor interesse da criança na medida em que a função supervisora dessa verba estaria alinhada constitucionalmente com o protecionismo assegurado aos infantes. Nesse viés, há divergência de entendimento entre as turmas recursais do Superior Tribunal de Justiça, sem força vinculante horizontal, mas produzindo eficácia vertical aos órgãos jurisdicionais. 

Assim, conclui-se no ordenamento jurídico certa insegurança jurídica acerca do tema, visto que o jurisdicionado poderá ter provimento a depender da turma recursal a que seja distribuída seu recurso, ferindo gravemente o acesso à justiça e a dignidade dos jurisdicionados. É patente a necessidade da pacificação e uniformização da jurisprudência entre turmas recursais, principalmente pelo Superior Tribunal de Justiça, não sendo benigno que tal divergência predomine por tanto período lesando a segurança jurídica e homeostasia jurisprudencial justamente no direito de família em que o superior interesse dos menores deve ser observado. 

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Senado, 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 20/11/2022.

BRASIL. Lei 13.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Senado, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 20/11/2022.

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3Pensão alimentícia – observância do trinômio: possibilidade x necessidade x razoabilidade “4. Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada, de modo a não onerar demasiadamente quem os presta e a garantir efetivo auxílio material ao necessitado (§ 1º do art. 1.694 do CC). O quantum fixado na origem encontra-se em estrita observância ao trinômio necessidade-possibilidade-razoabilidade, pois considerou todas as peculiaridades do caso concreto, inclusive a necessidade dos alimentandos e a renda de sua genitora”. TJDFT, Acórdão 1420638, 07017249220208070012, Relator: DIVA LUCY DE FARIA PEREIRA, Primeira Turma Cível, data de julgamento: 4/5/2022, publicado no PJe: 16/5/2022.
4TJDFT, Acórdão 1422022, 07053476720208070012, Relator: JAMES EDUARDO OLIVEIRA, Quarta Turma Cível, data de julgamento: 5/5/2022, publicado no PJe: 21/6/2022.
5STJ, 3a Turma, REsp 1.776.035/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16/06/2020, DJe 19/06/2020.
6Prestação de contas. Segunda fase. Decisão que defere a produção de prova pericial, nomeia perito e concede prazo para apresentação de documentos, formulação de quesitos e nomeação de assistentes. Natureza jurídica cognitiva. Agravo de instrumento. Descabimento. STJ, REsp 1.821.793-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 20/08/2019, DJe 22/08/2019.
7Art. 226. “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. […] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Em que pese a hermenêutica estritamente literal do artigo, o Supremo Tribunal Federal ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, já reconheceu uniões homoafetivas à união estável e aos demais direitos conferidos pela Constituição Federal, desde que cumpridos os requisitos.
8Por overruling entende-se a mudança de entendimento de determinado tribunal acerca de tema jurídico anteriormente pacificado, por alteração no ordenamento jurídico ou por evolução fática histórica.
9REsp n.º 1637378/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/02/2019, DJe /06/03/2019.
10REsp 970.147/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 04/09/2012, DJe 16/10/2012.
11Art. 1.043. É embargável o acórdão de órgão fracionário que: I – em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito […];


1Graduando do curso de Direito da Universidade Estadual do Tocantins – UNITINS. E-mail: jppmmagalhaes@gmail.com
2Professor no curso de Direito da Universidade Estadual do Tocantins – UNITINS, Campus Palmas. E-mail: buena.ps@unitins.br.