REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7579365
Eder Barbosa Cruz
Resumo
Para ensinar línguas é necessário ter clareza da definição dos termos “língua materna”, “primeira língua”, “segunda língua” e “língua estrangeira”, pois deles decorrem modos de ensinar específicos consonantes com cada um dos status sociolinguísticos que eles representam. Entretanto, observa-se pouca clareza epistemológica acerca desses termos no campo do ensino aprendizagem de línguas para o público surdo e a difusão de definições superficiais que não deixam transparecer a complexidade sociolinguística das comunidades surdas brasileiras, bem como as especificidades didático-pedagógicas que elas implicam. Desse modo, o objetivo deste artigo é discutir os conceitos de “língua materna”, “primeira língua”, “segunda língua” e “língua estrangeira” no campo do ensino-aprendizagem de línguas para o público surdo. A reflexão proposta neste texto indica que ainda não parece haver uma definição operatória desses termos que possa beneficiar o campo do ensino-aprendizagem de línguas para esse público, em termos epistemológicos e praxiológicos, mesmo sendo a compreensão de sua natureza epistêmica fundamental para a teorização da prática nesse contexto.
Palavras-chave: Surdez; Língua Materna; Primeira Língua; Segunda Língua; Língua Estrangeira.
Résumé
Pour enseigner les langues, il est nécessaire d’avoir une définition claire des termes « langue maternelle », « langue première », « langue seconde » et « langue étrangère » car ils traduisent des manières spécifiques d’enseignement de langue en fonction de chacun des statuts sociolinguistiques qu’ils représentent. Cependant, il y a peu de clarté épistémologique sur ces termes dans le domaine de l’enseignement des langues pour le public sourd et la diffusion de définitions superficielles qui ne révèlent pas la complexité sociolinguistique des communautés sourdes brésiliennes ainsi que les spécificités didactiques et pédagogiques qu’elles impliquent. De ce fait, le but de cet article est de discuter les notions de « langue maternelle », « langue première », « langue seconde » et « langue étrangère » dans le champ de l’enseignement/apprentissage des langues pour le public sourd. La réflexion proposée dans ce texte indique qu’il ne semble pas encore exister de définition opératoire de ces termes pouvant bénéficier au champ de l’enseignement/apprentissage des langues pour ce public, en termes épistémologiques et praxéologiques, même si la compréhension de sa nature épistémique est fondamentale pour la théorisation de cette pratique.
Mots clés: Surdité ; Langue Maternelle ; Langue Première ; Langue Seconde ; Langue Étrangère.
Introdução
Os conceitos “língua materna”, “primeira língua”, “segunda língua” e “língua estrangeira” são fundamentais para a Didática das Línguas-Culturas (doravante, DLC), “Disciplina centrada na observação, na análise, na interpretação, na avaliação e na intervenção concernente aos ambientes, práticas e processos situados e interligados de ensino aprendizagem-uso de línguas-culturas”1 (PUREN, 2022, p. 1. O grifo é do autor), na qual se inscreve nossa reflexão acerca do ensino de línguas para o público surdo. Isto porque, esses conceitos levam a construção de abstrações didáticas, das quais decorrem abordagens metodológicas e modelos de agir didático distintos para o ensino de línguas para esse público, de acordo com a perspectiva de cada um desses quatro status sociolinguísticos. Todavia, observamos que a maior parte dos estudos brasileiros sobre apropriação da linguagem, ensino de línguas e educação bilíngue no campo da surdez, ou utiliza os termos “primeira língua” e “segunda língua” sem defini-las e, muitas vezes, limitando-se a dizer que no processo de aquisição da linguagem em crianças surdas, a primeira língua (doravante, L1) deveria ser a Libras e a segunda língua (doravante, L2) a língua portuguesa, conforme determina a legislação vigente (sobretudo, com base na Lei No. 10.436, de 24 de abril de 2002; e no Decreto Nº. 5.626, de 22 de dezembro de 2005); ou apresenta definições pouco esclarecedoras acerca dessas noções. Não encontramos, portanto, uma definição operatória dessas expressões que ofereça uma clareza epistemológica para o desempenho da profissão de professor de línguas para o público surdo.
Em vista disso, o objetivo deste artigo é discutir os conceitos de “língua materna”, “primeira língua”, “segunda língua” e “língua estrangeira” no campo do ensino-aprendizagem de línguas para o público surdo. Para tanto, vamos iniciar nossa discussão, apresentando os conceitos de língua materna e de primeira língua. Em seguida, abordaremos os conceitos de “segunda língua” e de “língua estrangeira”. Logo depois, discutiremos acerca da aplicação dos conceitos “primeira língua” e “segunda língua” no campo do ensino-aprendizagem de línguas para o público surdo. Por fim, apresentaremos nossas considerações finais.
2. Os conceitos “língua materna” e “primeira língua”
Skutnabb-Kangas (1981) define a expressão “língua materna” (doravante, LM) a partir de quatro critérios: (a) origem, o qual define a LM como a língua falada pela mãe do locutor; (b) competência (domínio, nível de proficiência), que caracteriza a LM como a língua que a pessoa conhece melhor; (c) função (uso), que constitui a noção de LM como a língua que a pessoa mais usa; e (d) atitudes, cuja perspectiva estabelece a LM como a língua com qual a pessoa se identifica e por meio da qual ela é identificada.
Segundo Skutnabb-Kangas (2008), a definição de LM por meio dos critérios da origem e da identificação interna é, com frequência, uma boa definição de LM para as minorias linguísticas. Entretanto, a autora frisa que há exceções, como no caso dos surdos, em que a adoção desses critérios pode não ser uma boa opção, já que entre 90 e 95% desses indivíduos nascem de pais ouvintes e, em havendo contato com uma língua de sinais, pais e filhos não terão a mesma LM. Para essa autora, a definição de LM que melhor convém aos surdos então seria uma que a considerasse como a língua com a qual eles se identificam e por meio da qual eles podem se expressar plenamente.
Jokinen (2013) escrevendo sobre a educação de surdos nos países nórdicos, aplicou os critérios de Skutnabb-Kangas (1981) às crianças surdas e concluiu que a língua de sinais é sua primeira língua, uma vez que “[…] é a língua que elas adquirem espontaneamente sem ensino, conhecem na melhor, usam mais e com a qual são identificados pelos outros e por si mesmos […]” (p. 119). Svartholm (2014), acerca da educação de surdos na Suécia, afirma que os termos “primeira língua”, “segunda língua” e “língua estrangeira” quando aplicados ao quadro da surdez podem suscitar mal-entendidos. A autora define L1 a partir do papel que uma dada língua representa no desenvolvimento da criança surda e não da ordem em que a língua foi apreendida:
Este termo é usado para a língua que preenche funções importantes para a criança (cognitivas, emocionais, sociais) e é extremamente importante quando aplicado às crianças surdas, para a língua que é aprendida naturalmente em situações normais de interação junto com outras crianças e adultos que usam a língua2 (p. 35).
Essa autora assume ainda que a língua de sinais seja a L1 dos surdos e evidencia, também, que a expressão “língua materna” é preterida por muitas pessoas na área da surdez, já que somente em caráter de excepcionalidade a língua de sinais é transferida dos pais para as crianças.
Castellotti (2001) propõe uma definição da expressão “língua materna” bastante semelhante à acepção de Skutnabb-Kangas (1981). A autora evidencia que o conceito de LM pode envolver vários critérios, dentre os quais ela destaca dois mais difundidos e dois menos. Os dois primeiros são: (1) de ordem etimológica ou morfológica, no qual a LM está ligada à mãe. De acordo com a autora, esse critério pode se mostrar bastante discutível em algunscontextos sociais e sociolinguísticos, já que em algumas sociedades não é a mãe que passa a maior parte do tempo com os filhos; em outras a mãe é obrigada a falar com seus filhos em uma língua que não é a sua; e (2) de anterioridade da apropriação ligado ao modo de aquisição, que considera a LM como a língua interiorizada “[…] por primeiro, de maneira natural e desde a mais tenra idade”3 (p. 21). A autora enfatiza que esse critério leva à pressuposição da existência de uma série de qualidades advindas desse processo, tais como o de ser a língua do locutor cujo domínio permite “[…] o mais alto nível de competência e de exprimir seu pensamento da forma mais precisa possível”4 (p. 22). A esse respeito, Castellotti (2001) frisa que vários exemplos mostram que isso é questionável, já que o domínio da L1 pode baixar consideravelmente se o falante perder o contato com essa língua por muitos anos.
No que concerne aos critérios menos disseminados, Castellotti (2001) considera: (1) de ordem funcional, ou seja, a LM seria a língua mais usada pelo locutor; e (2) de ordem identitária, em que a LM seria a língua com a qual o locutor se identifica de maneira privilegiada “[…] porque é a língua emblemática do grupo ou da comunidade às quais ele adere”5 (p.22). Segundo a autora, de qualquer forma, a categorização das línguas por meio desses critérios é ambígua, porque eles “[…] envolvem domínios de referência distintos mas cujos elementos, muitas vezes, se misturam, em função de se privilegiar o que suscita condições de apropriação ou o que suscita o status sociolinguístico e categorizações sociais […] da língua considerada”6 (p. 22). Por isso, de acordo com a autora, emergiu uma tendência de contornar o uso da expressão “língua materna” por meio da criação de termos como “língua fonte”, “língua nativa” e “língua de referência”.
Isso posto, Castellotti (2001) afirma que o uso da expressão “primeira língua” é muito mais difundido e apresenta a vantagem de englobar vários critérios. A autora enfatiza, que, ainda que o critério relacionado à ordem de aquisição ocupe um lugar fundamental na definição de L1, “[…] o adjetivo primeiro pode também ser interpretado como testemunho de um grau de importância, seja para o próprio locutor, seja para a sociedade, a escola ou o grupo no qual ele evolui”7 (p. 23). Para a autora, a denominação de L1 também agrega uma dimensão psicoafetiva, sem, no entanto, valorizá-la demasiadamente. Todavia, Castellotti (2001) alerta que essa definição só é válida para contextos sociolinguísticos simples, em que há poucas línguas envolvidas e cada uma delas com seus status e relação entre elas bem definidos. A autora faz a ressalva de que em contextos em que há muitas línguas em contato e com status e funções flutuantes “[…] a noção de primeira língua perde amplamente seu interesse, tanto de um ponto de vista sociolinguístico quanto didático”8 (p. 24). Nesses casos, a autora sugere substituir as diversas categorias pela noção de “repertório verbal” como a melhor opção para dar conta das condições de apropriação e de uso das línguas, pois permite englobar o conjunto de competências linguageiras do indivíduo, que se organiza e estrutura segundo um leque de utilizações ligadas também aos status das diferentes línguas. Na próxima seção, vamos discutir acerca dos conceitos “segunda língua” e “língua estrangeira”.
3. Os conceitos “segunda língua” e “língua estrangeira”
No que concerne ao conceito “segunda língua”, por um longo período ele foi considerado equivalente ao de “língua estrangeira” (doravante, LE). Atualmente, ainda que haja autores, sobretudo os anglófonos, que continuam sem distingui-los, a noção de L2 se constituiu em uma área de investigação independente. Cuq (1995) afirma que L2 é uma subcategorização do conceito de LE, isso porque “[…] é estrangeira para o indivíduo toda língua outra que a sua língua de partida, mesmo se, tendo uma realidade jurídica ou social no seu país, ela não seja sempre considerada como tal a nível nacional”9 (p. 3). Destarte, esse autor entende L2 como uma língua de natureza estrangeira, mas que em uma comunidade bilíngue ou plurilíngue, se distingue das outras línguas estrangeiras pelos “[…] seus valores estatutários, seja juridicamente, socialmente, ou pelos dois, e pelo nível de apropriação que a comunidade que a utiliza se outorgou ou reivindicou”10 (p. 2), e que desempenha um papel privilegiado no desenvolvimento psicológico, cognitivo e informativo dos membros dessa comunidade, juntamente com a(s) outra(s) língua(s).
Para Cuq (1995), L2 é, na verdade, uma teorização construída a partir da intuição de que existam semelhanças nas diferentes formas de apropriação de uma mesma língua. Por isso, esse conceito é, necessariamente, “[…] um pouco reducionista, mas todas as situações vislumbradas devem apresentar uma série de parâmetros estáveis, que ele descreve, e uma série de variáveis que ele não leva em conta” (p. 2). Esse autor destaca que o status das línguas é decidido por seus utilizadores e, em um nível institucional, pelo Estado, e enfatiza ainda que o status das línguas é evolutivo por natureza.
Jokinen (2013) também faz a distinção entre os conceitos de LE e L2: segundo ele, o primeiro diz respeito à “uma língua que o aprendiz encontra em situações de ensino e (praticamente) em nenhum outro lugar em sua vida diária” (p.119), o segundo à língua utilizada em sua vida diária fora de casa e que ele vai aprender na escola. Para Svartholm (2014), L2 diz respeito à uma língua que é ensinada dentro da sociedade em que ela é usada e o termo “língua estrangeira” às línguas usadas em outros países. Em Spinassé (2006, p. 6) “uma segunda língua é uma não-primeira-língua que é adquirida sob a necessidade de comunicação e dentro de um processo de socialização”. Para essa autora, a grande diferença entre LE e L2 reside no fato de que a primeira “[…] não serve necessariamente à comunicação e, a partir disso, não é fundamental à integração” (p. 6); já a segunda “desempenha até mesmo um papel vital numa sociedade” (Ibdem). Castellotti (2001) define L2 como uma língua cuja presença é forte e/ou possui um status específico em um dado ambiente.
Ngalasso (1992) mostra que há duas definições de L2 que se opõem: uma institucional, que remete à definição surgida sob a pena de Jean-Pierre Cuq a qual, como já vimos mais acima, considera L2 como a língua que, mesmo nos contextos em que ela é estrangeira, é língua oficial é usada de forma privilegiada no parlamento, na administração, na justiça, no ensino ou na mídia. Para Ngalasso (1992) essa definição está assentada fundamentalmente em critérios institucionais e, por isso, negligência os critérios de “ordem de aquisição” e o de “nível de domínio das línguas”; e outra técnica, fundada em critérios psicolinguísticos que considera só ser possível definir L2 em relação à uma pessoa pelo menos bilíngue, pois ela se opõe à(s) outra(s) língua(s) já adquiridas segundo uma “[…] hierarquia fundada sobre uma ordem ao mesmo tempo cronológica (sucessão no processo de aquisição) e lógica (nível de domínio)”11 (p. 33). De acordo com o autor, apesar de a definição técnica de L2 ter um valor de objetividade superior ao da primeira, geralmente, é a definição institucional do status da(s) língua(s) que prevalece em vários contextos sociolinguísticos.
A partir do que expusemos até agora, é importante discutirmos aqui a definição dos status que podem ser atribuídos a uma língua, particularmente, as concernentes à L1 e L2 (foco da proposta bilíngue de educação de surdos), a fim de podermos aplicá-las ao campo do ensino aprendizagem de línguas para o público surdo, através de uma perspectiva menos hermética com o propósito de darmos conta da inteireza das relações dos surdos brasileiros com as línguas de sinais e a língua portuguesa. Isso posto, na próxima seção, vamos discutir de maneira mais específica a aplicação dos conceitos de L1 e L2 no campo do ensino-aprendizagem de línguas para o público surdo.
4. Os conceitos “primeira língua” e “segunda língua” no campo do ensino-aprendizagem de línguas para o público surdo
Desde o advento da proposta de educação bilíngue de surdos, no início dos anos 2000, no campo do ensino-aprendizagem de línguas para surdos, os termos mais difundidos são o “primeira língua” e o “segunda língua”. Nessa área, tem-se assumido que o português deva ser ensinado como L2, por meio de um processo em que a Libras, considerada sempre como L1, desempenha um papel crucial, quiçá obrigatório12 (SALLES et. al., 2004; BRASIL, 2014), para a apropriação da L2 (SALLES et. al., 2004; QUADROS, 2008, 2012; FERNANDES; CORREIA, 2012; FREIRE, 2015; FERNANDES, 2015). Em Salles et. al. (2004, p. 46. O grifo nosso), por exemplo, a Libras “É uma língua, como qualquer outra língua materna, adquirida efetiva e essencialmente no contato com seus falantes”. Para essas autoras o surdo “[…] aprenderá o português como segunda língua” (p. 114. O grifo é nosso). Quadros (2008) enfatiza que
A LIBRAS é adquirida pelos surdos brasileiros de forma natural mediante contato com sinalizadores, sem ser ensinada […], consequentemente deve ser sua primeira língua. […] A necessidade formal do ensino da língua portuguesa evidencia que essa língua é, por excelência, uma segunda língua para a pessoa surda (p. 84. O grifo nosso).
A mesma autora também afirma que o contexto de aquisição da Libras é atípico, “[…] uma vez que a língua é adquirida tardiamente, mas mesmo assim tem status de L1 [….]” (p. 29. O grifo é nosso). Para Fernandes e Correia (2012, p.22. O grifo é nosso): “[…] é senso comum dizer-se que a língua de sinais deve ser considerada a primeira língua do surdo e a língua portuguesa, sua segunda língua”. Em Freire (2015), temos que para os surdos “[…] a primeira língua é a Língua de Sinais e […] a Língua Portuguesa é uma segunda língua com uma função social determinada” (p. 26. O grifo é nosso). Fernandes (2015) considera que a língua portuguesa seja para os surdos “[…] uma língua estrangeira na medida em que é falada por uma comunidade com a qual não há identificação linguístico-cultural – e será qualificada, em determinados casos como uma segunda língua […]” (p. 64. O grifo é nosso). Esses tipos de categorização do status das línguas no campo da surdez são pouco operatórios e não levam em consideração a complexidade da definição dos termos envolvidos, tampouco, os elementos e múltiplos contextos com os quais os surdos concernidos possam estar interagindo na relação com essas línguas. Isso posto, destacamos que não é possível definir de antemão o que é L1 ou L2 para os surdos sem adentrar no domínio das múltiplas interações que eles podem manter com um sem-número de elementos de diversas ordens. Acreditamos que a categorização do status das línguas utilizadas pelos surdos deva considerar a complexidade de suas múltiplas realidades linguísticas, culturais, sociais, identitárias etc. Apesar de não existir uma discussão epistemológica aprofundada sobre os status da línguas implicadas na educação bilíngue de surdos no Brasil, a partir dos poucos indícios de conceptualização que temos encontrado em alguns autores concernentes à definição de L1 e de L2 (SALLES et al., 2004; QUADROS, 2008; 2012; FERNANDES; CORREIA, 2012; BRASIL, 2014; FERNANDES, 2015), nos parece que o status dessas línguas na concepção brasileira, ora é operada conforme exposto por Castellotti (2001), i. e., privilegiando somente alguns critérios e, consequentemente, negligenciando a realidade sociolinguística complexa que representa a comunidade surda no Brasil; ora se aproxima da definição institucional apresentada por Ngalasso (1992), como podemos observar no Relatório sobre a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa13:
Fica claro neste documento legal, uma política que instaura um processo para o reconhecimento da Libras e a sua promoção por meio da educação. Essa educação caracteriza-se por uma perspectiva bilíngue, pois reconhece a Libras como primeira língua e a Língua Portuguesa como segunda língua das pessoas surdas, encaminhando o reconhecimento desse status no âmbito educacional (BRASIL, 2014, p. 8. O grifo é nosso).
Esse documento define L1 através, exclusivamente, do critério de “anterioridade da apropriação ligado ao modo de aquisição” (CASTELLOTTI, 2001), e L2 num plano estritamente jurídico (CUQ, 1995; NGALASSO, 1992). Isso é sintomático, posto o sabido fracasso da grande maioria dos surdos no processo de apropriação da língua portuguesa (FREIRE, 2015) e a carência de estudos acerca do ensino de Libras como L1 para o público surdo. Ngalasso (1992) destaca que esse tipo de definição, institucional, embora tenha a vantagem da simplicidade, tem o inconveniente do simplismo, que se apresenta como uma desvantagem, pois uma tal definição não nos permite lidar com a inteireza das interações mantidas entre os surdos, as línguas de sinais e a língua portuguesa. Como bem observou Ngalasso (1992, p.32): “[…] o status linguístico de uma língua não se define unicamente no plano jurídico; ele é também uma realidade psicológica e sociológica que participa intimamente da definição das identidades individuais e coletivas, através de todo um sistema de valores e representações simbólicas”14.
Ngalasso (1992) enfatiza, ainda, que a relação de cada um com a(s) língua(s) que usa é sempre singular e pessoal, mostrando que nós não aprendemos as línguas nas mesmas condições e na mesma ordem, nem as praticamos com a mesma facilidade e que tampouco temos a mesma ligação com cada uma delas. Ele destaca, portanto, que parâmetro algum desses é passível de ser determinado pela autoridade de um ato legislativo ou administrativo. Assim sendo, o autor recomenda que encontremos “[…] outros critérios de definição fora das disposições estritamente institucionais”15 (p.33). Castellotti (2001, p. 25) destaca que “[…] pode-se verificar facilmente como fatores de ordem notadamente histórica, geográfica, cultural, política, econômica, linguística têm uma influência sobre o status das línguas […]”16. Aplicando essas reflexões a nossa problemática, podemos afirmar que os múltiplos contextos da pessoa surda não são um mero pano de fundo para o aferimento do status de suas línguas.
Temos observado que no Brasil, o status das línguas no contexto da educação bilíngue de surdos, especialmente em relação à Libras como L1, representa o posicionamento político de um grupo específico de surdos, certamente justificado por um histórico de opressão e repressão, mas que culmina também na opressão e repressão de surdos cuja língua de sinais é considerada minoritária. Como podemos observar no Brasil (2014, p. 3): “Os surdos são diferenciados pela lei de Libras, do ponto de vista sociolinguístico, como pessoas surdas usuários de uma língua – a Libras”. Pensamos que no campo do ensino-aprendizagem de línguas para o público surdo, a categorização de L1 e L2 – ou ainda de LE (FERNANDES,2015) –, deveria respeitar a subjetividade de cada surdo, cabendo somente a ele eleger o status de suas línguas, sem a imposição da comunidade surda ou de profissionais da área que, por uma razão ou outra, se pretendem seus porta-vozes.
Isso posto, nos juntamos a Skutnabb-Kangas (1981, p.19-20) para dizer que “é importante não considerar a língua materna (ou o bilinguismo) como um conglomerado de características estáveis e imutáveis, mas antes como um conjunto de processos, nos quais a mudança contínua é possível (e frequentemente provável)”17 e com Spinassé (2006, p.6) para, na mesma direção, afirmarmos que “Não existe, na verdade, uma ‘receita’ para a diferenciação entre L1, L2 e LE. O status de uma língua também pode variar com o tempo, é necessário apenas estabelecer uma outra relação com ela”. Dessa forma, acreditamos estar considerando a dinamicidade das múltiplas relações que os surdos podem depreender com diferentes línguas em diversos contextos ou em um mesmo contexto, em diferentes momentos de sua vida.
Vale lembrar, ainda, que Cuq (1995) defende a ideia de que a definição de L2 diz respeito a um conceito didático e não linguístico. O posicionamento do autor se justifica no fato de que as pessoas no Brasil, por exemplo, não falam Português L1, ou Português L2, ou Português LE, elas falam, aprendem, adquirem um idioma chamado Português. Para esse autor a definição de L2 é parte integrante do processo de intervenção didática, já que dela resulta “[…] uma abstração didática, que toma seu valor em um ambiente conceitual didático, e particularmente na oposição com os conceitos de língua materna e de língua estrangeira”18 (p.2).
Nessa direção, para professores de Libras L1, de Libras L2 e de Português L2 para Surdos, formadores, elaboradores de material didático para o ensino-aprendizagem de línguas para o público surdo e para elaboradores de currículo nesse campo, a existência dos termos L1 e L2 só pode ser justificada se definidos como conceitos didáticos, i. e., somente se compreendermos o próprio conceito de língua “[…] em termos didáticos, ou seja, como um objeto de ensino-aprendizagem”19 (CUQ, 1992, p. 6). Portanto, do ponto de vista didático, Libras L1, Libras L2 e Português L2 para Surdos são termos que denotam ao professor de línguas para o público surdo um agir didático específico – bem como, demanda uma formação especializada –, condizente com o público-alvo, com os objetivos e com o contexto.
Em suma, no campo do ensino-aprendizagem de línguas para o público surdo, os termos L1 e L2 precisam ser objeto de uma conceitualização construída a partir da percepção de que há diferentes situações de ensino e de apropriação da Libras e do Português e que a dos surdos é um caso particular e deve levar em conta suas especificidades. Contudo, como vimos, no contexto da Educação Bilíngue de Surdos, a dimensão linguístico-estatutária da Libras e da Língua Portuguesa (constituída a partir de uma acepção exclusivamente político-ideológica opositora das abordagens oralistas e ouvintistas), parece se sobrepor à dimensão didática no projeto bilíngue de ensino-aprendizagem de línguas para esse público. Na próxima seção, apresentaremos nossas considerações finais.
5. Considerações Finais
A discussão proposta neste texto, nos encaminha, enquanto atores do campo do ensino aprendizagem de línguas para o público surdo, à percepção da importância de refletirmos a respeito das implicações didáticas que uma categorização tão rígida e hermética do status das línguas no âmbito da surdez, como a que observamos em nosso país, possa engendrar para o ensino de Libras L1 e L2 e de Português L2 para Surdos. Essa questão não é anódina, já que essas modalidades de ensino de línguas decorrem, como vimos, de uma abstração didática construída a partir da definição institucional de L1 e de L2 difundida no campo da surdez (sobretudo, nos documentos jurídicos), cujas implicações didático-pedagógicas apontam para um cenário desolador, sobretudo, para o aprendente surdo.
Em síntese, a reflexão levantada neste artigo indica que, apesar de sua importância capital para a implementação de uma proposta verdadeiramente bilíngue de educação de surdos, não observamos uma definição operatória de L1 e de L2 que possa beneficiar o campo do ensino-aprendizagem de línguas para esse público, em termos epistemológicos e praxiológicos, mesmo sendo a compreensão de sua natureza epistêmica fundamental para a teorização da prática nesse contexto.
1 “[…] Discipline centrée sur l’observation, l’analyse, l’interprétation, l’évaluation et l’intervention concernant les environnements, pratiques et processus situés et interreliés d’enseignement- apprentissage-usage des langues cultures.”.
2 “This term is used for the language that fulfills important functions for the child (cognitive, emotional, social) and it is extra important when applied to deaf children, for the language that is learned naturally in normal, interactive situations together with other children and adults who use the language”.
3 “[…] en premier, de manière naturelle et dès le plus jeune âge”.
4 “[…] le plus haut degré de compétence et de permettre d’exprimer sa pensée de façon la plus précise possible.”
5 “[…] parce que c’est la langue emblématique du groupe ou de la communauté auxquels il adhère”.
6 “ […] font intervenir des domaines de référence distincts mais dont, bien souvent, des éléments s’entremêlent, selon qu’on privilégie ce qui relève des conditions d’appropriation ou ce qui relève du statut sociolinguistique et des catégorisations sociales […] de la langue considérée”.
7 “[…] l’adjectif premier peut aussi être interprété comme témoignant d’un degré d’importance, soit pour le locuteur lui-même, soit pour la société, l’école ou le groupe dans lequel il évolue”.
8 “[…] la notion de langue première perd largement de son intérêt, tant d’un point de vue sociolinguistique que didactique”.
9 “[…] est étrangère pour l’individu toute langue autre que sa langue de départ, même si, ayant une réalité juridique ou sociale dans son pays, elle n’est pas toujours considérée comme telle au niveau national”.
10 “[…] par ses valeurs statutaires, soit juridiquement, soit socialement, soit les deux, et par le degré d’appropriation que la communauté qui l’utilise s’est octroyé ou revendiqué”.
11 “[…] hiérarchie fondée sur un ordre à la fois chronologique (succession dans le processus d’acquisition) et logique (degré de maîtrise)”.
12 Em outros contextos, a L1 do aprendente surdo pode ocupar outro lugar na apropriação da língua vocal. Na França, por exemplo, as aulas de francês como segunda língua podem ter o francês como língua de instrução apoiada pelo Cued Speech (código manual desenvolvido pelo Dr. Orin Cornett da Universidade de Gallaudet, com base na fonética articulatória, cujo objetivo é complementar a leitura labial restituindo a percepção dos fonemas invisíveis, dos fonemas instáveis e a distinção entre sósias labiais, por meio de oito configurações de mão associadas a cinco posições na região da face).
13 Neste documento, “Política Linguística” é definida da seguinte forma: “Política linguística representa um tipo de intervenção social em uma determinada comunidade. Uma política linguística vai determinar decisões quanto ao uso das línguas em um determinado país ou comunidade linguística. A partir disso, instaura-se um planejamento linguístico que objetiva implementar a política linguística traçada. Os idealizadores de um planejamento linguístico conduzem as decisões a respeito do uso das línguas em uma comunidade específica, podendo ou não coincidir com os interesses da própria comunidade […]” (BRASIL, 2014, p.7). Este posicionamento corrobora o pensamento de Ngalasso (1992) acerca da definição institucional do status da(s) língua(s) de uma dada comunidade ser negligente. Aliás, o próprio Brasil (2014) ressaltou isso, mostrando que a política linguística anterior não coincidia com os interesses da comunidade surda. Desafortunadamente, isso parece não ter mudado, já que essa nova política foi pensada com base na perspectiva de uma minoria.
14 “le statut d’une langue se définit pas uniquement sur un plan juridique ; il est aussi une réalité psychologique et sociologique qui participe intimement à la définition des identités individuelles et collectives, à travers tout un système de valeurs et de représentations symboliques”.
15 “[…] d’autres critères de définition en dehors des dispositions strictement institutionnelles”.
16 “[…] on peut aisément vérifier comment des facteurs d’ordre notamment historique, géographique, culturel, politique, économique, linguistique ont une influence sur le statut des langues […]”.
17 “It is thus important not regard the mother tongue (or bilingualism) as a conglomerate of stable unchanging features, but rather as a group of processes, in which continual change is possible (and often likely)”. 18 “[…] une abstraction didactique, c’est-à-dire qui prend sa valeur dans un environnement conceptuel didactique, et particulièrement dans l’opposition avec les concepts de langue maternelle et de langue étrangère”. 19 […] en termes didactiques, c’est-à-dire, comme un objet d’enseignement-apprentissage.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Relatório do Grupo de Trabalho designado pelas Portarias no 1.060/2013 e no 91/2013, contendo subsídios para a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. 2014.
CASTELLOTTI, V. La langue maternelle en classe de langue étrangère. Paris: CLE International, 2001.
CUQ, J-P. Le FLS: un concept en question. Tréma [En ligne], 7, 1995.
FERNANDES, S. É possível ser surdo em português? Língua de sinais e escrita: em busca de uma apropriação. In: SKLIAR, C. (Org.). Atualidade da Educação Bilíngüe para Surdos: Processos e projetos pedagógicos. Vol. 2. 5.ed. Porto Alegre: Mediação, 2015, p.59-81.
FERNANDES, E.; CORREIA, C. M. C. Bilinguismo e surdez: a evolução dos conceitos no domínio da linguagem. In: FERNANDES, E. (Org.). Surdez e Bilinguismo. Porto Alegre: Mediação, 2012, p.7-25.
FREIRE, A. M. F. Aquisição do português como segunda língua: uma proposta de currículo para o Instituto Nacional de Educação de Surdos. In: SKLIAR, C. (Org.). Atualidade da Educação Bilíngüe para Surdos: Processos e projetos pedagógicos. Vol. 2. 5.ed. Porto Alegre: Mediação, 2015, p.25-34.
JOKINEN, M. Alguns pontos de vista sobre a educação dos surdos nos países nórdicos. In: SKLIAR, C. (Org.). Atualidade da Educação Bilíngüe para Surdos: Processos e projetos pedagógicos. Vol. 1. 4.ed. Porto Alegre: Mediação, 2013, p.105-127.
NGALASSO, M.-M. Le concept de français langue seconde. ÉLA: Revue de Didactologie des langues-cultures, 88, p.27-38. Paris: Didier Érudition, 1992.
PUREN, Christian. Modélisation, types généraux et types didactiques de modèles en Didactique Complexe des Langues-Cultures. Essai. 2022.
QUADROS, R. M. Educação de surdos: a aquisição de linguagem. 2ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008.
QUADROS, R. O “BI” em bilinguismo na educação de surdos. In: FERNANDES, E. (Org.). Surdez e Bilinguismo. Porto Alegre: Mediação, 2012, p.27-37.
SALLES, H. M. M. L; FAULSTICH, E.; CARVALHO, O. L. C.; RAMOS, L. Ensino de Língua Portuguesa para Surdos: caminhos para a prática pedagógica. Secretaria de Educação Especail. Vol. 2. Brasília: MEC/SEE/SEESP, 2004.
SKUTNABB-KANGAS, T. Bilingualism or not: the education of minorities. Translated by Lars Malmberg and David Crane. Clevedon: Multilingual Matters Ltda, 1981.
SKUTNABB-KANGAS, T. Bilingual education and Sign language as the mother tongue of Deaf children. In: KELLETT BIDOLI, C. J.; OCHSE, E. (eds). English in International Deaf Communication. Bern: Peter Lang, 2008, p.75-94.
SPINASSÉ, K. P. Os conceitos Língua Materna, Segunda Língua e Língua Estrangeira e os falantes de línguas alóctones minoritárias no Sul do Brasil. Revista Contingentia, v.1, novembro, p.1-10, 2006.
SVARTHOLM, K. 35 years of Bilingual Deaf Education – and then? Educar em Revista. ed. especial n. 2, p. 33-50. Curitiba: Editora UFPR, 2014.