MEMÓRIA E IDENTIDADE NO ROMANCE “GAROTA, MULHER, OUTRAS” DE BERNADINE EVARISTO: A JOVEM YAZZ NA CULTURA PÓS-COLONIAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7551334


Inês Couto Macedo Ferreira


RESUMO

O presente artigo pretende traçar um estudo do regaste da memória e ancestralidade presente no romance Garota, Mulher, Outras (2019), da escritora negra, britânica de ascendência nigeriana e inglesa Bernadine Evaristo, em direção a uma nova visão da identidade cultural pós-colonial de como (re) pensar “Outras” em especial a personagem Yazz, pertencente a uma geração de jovens negras, inquieta com as questões feministas que analisa a concepção de raça e gênero como formas que determinam privilégios numa sociedade. Para tal explanação tenho como objetivo identificar o conglomerado herdado que caracteriza a forma de memória e identidade na construção da personagem. Tenho com base teórica Candau (2016) para tratar as questões de memória e identidade que estão indissoluvelmente ligadas e Mcclintock (2010) com a temática de raça e gênero. Dessa forma fica evidente que as histórias de suas personagens e das suas famílias, amigos e amantes, se entrelaçam numa narrativa realista dos nossos dias atuais, numa sociedade multicultural que se confronta com o seu passado e luta contra as contradições do presente.

PALAVRAS-CHAVE: Pós-Colonial; Memória; Identidade.

RESUMEN

El presente artículo se propone trazar un estudio sobre el rescate de la memoria y la ascendencia presente en la novela Girl, Woman, Others (2019), de la escritora negra británica de ascendencia nigeriana e inglesa, Bernadine Evaristo, hacia una nueva visión de la posguerra. identidad cultural colonial sobre cómo (re)pensar a los “Otros”, en especial el personaje Yazz, perteneciente a una generación de jóvenes negras, preocupadas por cuestiones feministas que analizan la concepción de raza y género como formas determinantes de privilegios en una sociedad. Para esta explicación pretendo identificar el conglomerado heredado que caracteriza la forma de memoria e identidad en la construcción del personaje. Mi base teórica es Candau (2016) para abordar cuestiones de memoria e identidad que están indisolublemente ligadas y McClintock (2010) con el tema de raza y género. De esta manera, se evidencia que las historias de sus personajes y sus familias, amigos y amantes se entrelazan en una narrativa realista de nuestro presente, en una sociedad multicultural que se enfrenta a su pasado y lucha contra las contradicciones del presente.

PALABRAS-CLAVE: Poscolonial; Memoria; Identidad.

INTRODUÇÃO

Evaristo nasceu em Londres no ano de 1959, é uma autora britânica que publicou oito obras de ficção. Sua obra Garota, mulher, outras (2019), foi premiado com Book Prize em 2019, tornando-a primeira mulher negra britânica a ganhar este prêmio. Por ser uma escritora que defende a inclusão de escritores e artistas de cor, fundou também a primeira companhia de teatro de mulheres negra na Grã-Bretanha (1982 -1988) a “Theatre of Black Woman”.

O romance “Garota, mulher, outras” (EVARISTO, 2019) com publicação no Brasil em 2020, aborda temas como o feminismo interseccional, relações de raça e de classe, bem com questões de gênero e sexualidade, que do início até o fim da narrativa está marcada por uma diversidade de lutas de mulheres com opiniões divergentes ao se identificarem com o mesmo rótulo feminista, são onze personagens mulheres e uma não binária, personagens absurdamente humanizadas, numa forma de se conectarem, ultrapassando as barreiras do discurso colonial e dispondo ao leitor a complexidade da identidade de feministas negras num diálogo sem reduzi-las, mas sim que as mesmas façam parte da literatura numa temática de alteridade.

Percebe-se que Evaristo ao “contar a história de mulheres negras de diferentes idades, orientações sexuais e classes sociais” (MIRANDA, 2019, Orelha do livro) sem reduzir suas personagens proporciona situações que todas têm em comum, seja em relações de amizade, família, amor e trabalho, suas culturas de origem africana apoderadas pela hegemonia branca, são transformadas de tal forma que apagam seu sentido de origem. Por mais que a história tenha uma relação como os fatos, não é “mimese daquilo que um dia tenha ocorrido” (PESAVENTO, 2000, p. 34).Torna-se uma representação de um passado que não se apaga enquanto existir uma memória que transcende geração e geração de mulheres e situações que ainda necessitem ser analisadas com um novo olhar. Nesse viés, a literatura de forma verossímil se encarrega de mostrar traços de uma sociedade, sua cultura, religião, grupos sociais e até os conflitos, disputas predominantes em determinada época.

Com isso a proposta desse estudo é analisar o segundo capítulo da obra em especial a representação da personagem Yazz nesse cenário, a fim de refletir sobre suas origens ancestrais, memórias, histórias que a tornaram uma jovem de 19 anos, humanitarista durona, que encontra a sua trajetória de vida que a ensinou a amadurecer de forma prematura. Sua mãe Amma encontra na filha seu exemplo na contracultura, porém o conflito de gerações, as estratégias de resistência de garotas com metas a serem conquistadas ultrapassando toda uma história que se revela a relembrar dos fatos anteriores, ao encontrar na arte uma forma de desejo de mostrar ao público suas ancestralidades africanas como forma de retomar a narrativa que não se cala. O critério de seleção dessa personagem se justifica pelo fato de tentar compreender como são construídas e representadas as personagens femininas no romance que tem na sua ancestralidade a marca dos impactos culturais do colonialismo britânico e no pós-colonialismo na construção de suas identidades.

Como forma de abordar está temática que marcaram a vida dos povos colonizados, aproximamos de uma vertente de estudos em relação à memória cultural, com uma investigação aos estudos de gêneros e pós-coloniais. Sendo assim, encontro no referencial teórico com as reflexões de Anne McClintock, por meio de sua obra Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial (2018) um dos possíveis entendimentos como se organiza todo o contexto na qual a narrativa está inserida. Nessa perspectiva, McClintock apresenta raça, gênero e classe como elementos que estão interligados no que se refere ao imperialismo. Parte da afirmação que o imperialismo europeu desde o começo foi um encontro violento com hierarquias preexistentes de poder, marcadas por imposições que seguiam os regimes de poder.

Nas palavras de McClintock (2010, p.39) a estória não é simplesmente sobre relações entre negros e brancos, entre homens e mulheres, mas sobre como as categorias de brancura e negritude, masculinidade e feminilidade, trabalho e classe passaram a existir historicamente desde o início. Uma história de vida próxima da ancestralidade das personagens retomada por uma narrativa que protagoniza mulheres fortes com uma escrita cativante e empolgante que conduz o leitor a repensar a sua maneira de ver e compreender o mundo.

Pode-se apenas concluir que a escrita proporciona em certas ocasiões um pouco de indignação, porque é descrevendo o que está invisível, que surge de certa forma dar visibilidade a vozes de personagens num discurso ficcional na busca por caminhos para o entendimento do outro, compreender que cada personagem no romance traz consigo resultado de um legado do império colonial britânico, com uma diversidade de pensamentos que navega na esfera social da amizade, que está próximo da ancestralidade retomada pela narrativa, na luta contra o apagamento e protagonismo do povo negro.

ANCESTRALIDADE E MEMÓRIA : UM NOVO OLHAR NA ERA PÓS-COLONIAL

Para iniciarmos nossas reflexões faz-se necessário pensarmos na palavra “ancestralidade” e suas definições. Etimologicamente, a palavra refere-se ao legado dos antepassados, hereditariedade, ativismo (HOUAISS, 2018), mas precisamente Souza (2011) esclarece que a ancestralidade:

é a origem de um povo, desta maneira, assemelha-se ao conceito grego de arké. Ela  remete ao início de um determinado grupo, não a qualquer início, mas aos primórdios, instante de fundamento, tempo mítico imemorial, perdido no tempo cronológico, revivido no rito que cria todos os tempos, nos conduzindo a fazer uma experiência de um momento tão humano que só poderia ser divino. (SOUZA JR, 2011, p.46)

Tal fator esta relacionado com os ancestrais, às linhas de gerações anteriores que transportam ao longo da narrativa humana nossas crenças, atitudes e intenções como herança de uma cultura. Sendo assim, ancestralidade esta presente no processo de transformações do pensamento humano ao longo dos séculos. A partir dessa concepção retornamos nas escritas do passado para entendermos como é reformulada a forma de ver e entender os fatos que ao longo da história foram estipulados como natural para a sociedade, e hoje é resultado de inquietações e questionamentos na busca constante de rememorar o que se quer apagar na construção/formação do sujeito.

Sem memória o sujeito se esvazia, vive unicamente o momento presente, perde suas capacidades conceituais e cognitivas. Sua identidade desaparece. Não produz mais do que um sucedâneo de pensamento, um pensamento sem duração, sem a lembrança de sua gênese que é a condição necessária para a consciência e o conhecimento de si.(CANDAU, 2016, p. 60)

Em tal contexto encontrar na literatura as marcas que o imperialismo/colonialismo ocasionou na sociedade africana, fatos que contribuíram para a formação da identidade da personagem Yazz presente no segundo capítulo do livro Garota, Mulher Outras (2020), uma obra que está subdivida em seções tendo como destaque cada título o nome de uma personagem que se conectam e contam um pouco das suas histórias vividas na Inglaterra, à geração de mulheres e suas relações familiares, um encontro com a memória como uma forma de trazer à tona a ancestralidade de determinado povo ou etnia, é na presença do passado que novas gerações se deparam com um conglomerado cultural herdado que leva milênios para acontecer e nunca terminam de se constituir. Desde pequena Yazz foi incentiva a realizar suas escolhas e preferências, a não se calar diante da opressão, a mãe demonstra ensinamentos par a filha para se tornar uma feminista, nesse empasse às origens familiares tem amplo papel na determinação dos resultados alcançados pelo indivíduo.

A linguagem utilizada por Yazz na narrativa tem como função representar as múltiplas vozes de geração de jovens mulheres num espaço histórico e cultural às memórias numa complexidade na construção da identidade, através da interação com suas colegas de universidade e seus questionamentos interiores, aos poucos compreende que o privilégio social é melhor determinado com o contexto, as normas e formas de pensar e agir de mulheres são históricas e se alteram de gerações para gerações, porém a construção do discurso se entrelaçam na narrativa, assim:

Yazz às vezes passa noites sem dormir cismando que vai ficar sozinha a vida toda
se ela não consegue arrumar um namorado decente aos dezenove qual a esperança quando for mais velha ?
algumas amigas da mãe ficaram solteiras por décadas, não as lésbicas que têm poucos problemas para transar umas com as outras, mas as héteros que têm um bom trabalho, casa e nenhum companheiro para compartilhar, que dizem que não estão preparadas para sossegar nesse estágio da vida.(EVARISTO, 2020, p. 64)

Para McClintock(2010, p. 383) “na linguagem os limites, do si-mesmo eram permanentemente ambíguos, e as palavras podiam provocar, como ela bem sabia, a ponta para a aniquilação da rejeição e retribuição, um sentindo que formou profundamente suas relações com o público”. Essa relação aparece da interação com seu padrinho Kenny que lembra que a conheceu quando ainda estava na barriga da mãe e dava muito chutes, a mesma ironiza “que o chute era por causa da premonição embrionária que dizia que ela ia nascer na pobreza” (EVARISTO, 2020, p. 59), um dos elementos em destaque é que Yazz ironicamente reconhece a condição social a qual irá herdar e de forma contraditória não quer aceitar, porém é uma forma de se tornar uma personagem esforçada, dedicada e critica ao sistema anterior e com uma visão num futuro sem complexidade que os seus antepassados estavam condicionados.

Na estreia da peça “A última amazona do reino de Daomé”, Yazz senta no lugar escolhido pela mãe, um dos melhores espaços para visualizar o espetáculo, porém a mesma prefere ficar escondida, tem receios de a peça ser um fracasso como foi no passado, quando a mãe estava à margem e não conseguia lugar de destaque. Outro elemento importante é que a personagem prende seu cabelo uma forma de ainda ceder a certas convenções do passado, seu cabelo é símbolo da construção da identidade negra.

Puxa e prende o black incrivelmente selvagem, vigoroso, forte e volumoso porque as pessoas sentadas nos lugares atrás dela reclamavam que não conseguem ver o palco quando seus conterrâneos negros acusam as pessoas de racismo ou microagressão por essa mesma razão, Yazz pergunta como iam se sentir se uma cerca viva rebelde bloqueasse a visão dele do palco num concerto. (EVARISTO, 2020, p. 51)

Por esse viés, Yazz não passou pelo processo de apropriação e aprovação do seu cabelo, pois é a representação de uma personagem transformada de tal forma que apaga seu sentido de origem e sua essência, pois partes dos povos negros são apoderados pela hegemonia branca, corpos negros são ridicularizados e estereotipados em forma de um racismo inofensivo que inferioriza partes de seu corpo e uma forma de resistência para se impor em determinados padrões.

É notável que  no romance encontram-se experiências de imigrantes ganeses, etíopes, barbadianos e de tantos outros países africanos e caribenhos, com uma fluidez na narrativa que implicitamente busca romper com o discurso colonial. Nesse embate homens e mulheres africanas foram prejudicados com a invasão do colonizados e foram moldados a seguir padrões da hegemonia europeia.

Explorar a instabilidade histórica desse discurso conduz ao desvendar a história e compreender os mecanismos que construíram a condição das mulheres, assim, Yazz trabalha em um restaurante e encontra nos estudos uma forma de mudar sua vida, procura fazer anotações em seu celular para um futuro livro de memórias, talvez seria uma das formas de um não apagamento histórico de sua geração. Através da memória o indivíduo capta e compreende continuamente o mundo, manifesta sua intenção a esse respeito estrutura-o e coloca-o em ordem (tanto no tempo como no espaço), conferindo-lhe sentido (CANDAU, 2016, p. 61). Nesse viés, “A mãe de Yazz”, Amma uma personagem feminista lésbica dos anos 80, artista negra que escreve a peça “A última amazona do reino de Daomé”, mostra que nos séculos XVII e XIX mulheres guerreiras serviam ao rei, escravas, treinadas para escalar os troncos e ser tronarem mais fortes. A origem familiar tem amplo papel na determinação de como esse indivíduo irá se reconstruir na sociedade.

Amma queira que filha fosse livre, feminista e poderosa mas tarde a levou a cursos de desenvolvimento pessoal para crianças para que tivesse confiança e a desenvoltura necessária para florescer em qualquer ambiente
grande erro (EVARISTO, 2020, p. 47)

Com catorze anos Yazz apresenta ideias consideradas ambiciosas para seu tempo, e diz para mãe “feminismo é coisa de manada, para ser sincera mesmo ser mulher é ultrapassado hoje em dia” (EVARISTO, 2020, p.49), essa crítica ao feminismo coloca a personagem num patamar de alteridade, que no passado sua mãe vivia a margem e como socialista estava na luta nos movimentos feministas. As personagens Yazz e suas amigas Waris e Courtney, buscam assumir o controle intelectual dos mais velhos, pois a geração delas estava “condenaaaaaada” devido à geração anterior ter “ARRUINADO TUDO”(EVARSITOS, 202, p.52). Pode-se deduzir nessa passagem um chamado a ação, pois se a geração anterior foi marcada por estruturas de poderes de opressão, a geração delas talvez esteja marcada por um sistema de opressão invisível que faz com que essas jovens lutem para construir identidades, mudar a realidade de vida delas e de seus familiares, como uma forma de resistência a qualquer as convenções do passado.

Há um perigo muito real em batizar certos textos com água benta de um novo privilégio feminino, apagando variações históricas e culturais e subsumindo a multiplicidade das vidas femininas numa única visão privilegiada e branca e de classe média. A categoria “mulher” é uma construção social, e as rupturas visíveis das narrativas de mulheres expressam rupturas em experiência social. ( MCCLINTOCK, 2018,p.457)

Em meados dos anos 70, a crítica literária retoma discussões referentes aos impactos da colonização que só chegaram para esse debate pela ascensão de nações que buscavam afirmar-se com suas identidades e etnias próprias após o período pós-guerra e a descolonização progressiva do continente africano e asiático (SCHMIDT, 2009.p.137). A avó de Waris “viveu uma vida de rica em Mogadíscio até 1991, numa família que todos os homens adultos trabalhavam como dentistas, até que foram mortos e ela fugiu para cá com as filhas” (EVARISTO, 2020, p. 69). Trata-se de um período na qual a personagem perde sua terra natal e se vê obrigada a deixar tudo e buscar por novos recursos em outros países.

Fossem elas embarcadas como condenadas ou recrutadas para a servidão doméstica ou sexual; tivessem sido elas servido discretamente ao poder como esposas de oficiais coloniais, sustentando fronteiras do império e gerando seus filhos e filhas; tivessem elas dirigido escolas missionárias ou enfermarias de hospitais em postos remotos, ou trabalhando nas lojas ou lavouras de seus maridos, as mulheres coloniais não tomaram quaisquer das decisões econômicas ou militares no império e muito poucas delas colheram seus enormes lucros. (MCCLINTOCK, 2018, p. 22)

Para Waris ela não sofreu e sim sua avó, no novo país não é vítima, mas sim uma jovem que não pode se dar ao luxo de não se esforçar, não foi o que sua mãe a ensinou, pois não precisa esconder a sua identidade de ninguém e nem dar explicações do uso do hijab, usa-o para afirmar sua identidade mulçumana. De fato Waris é a mais profunda de todas elas, devido à condição que a sua família passou, as injustiças vividas, o que a transformou numa personagem a amadurecer prematuramente igual à Yazz, nesse entrelace cada personagem se constituem retornando a um passado na busca de encontrar no presente a solução para as gerações futuras não carregarem uma herança que não é distribuída solitária, tem todo um conglomerado de situações sociais que contribuem que vão desde perpassando por temáticas do colonialismo, mas enunciando vozes de grupos etnicamente minoritários, práticas e discursos com a prerrogativa de desconstruir os discursos que limitam as minorias de estarem inserido no sistema de oportunidades.

Metaforicamente, o termo “pós-colonialismo” marca a história como uma série de estágios ao longo de um memorável caminho do “pré-colonial” ao “colonial”, ao “pós-colonial”- um compromisso espontâneo, ainda que negado, com o tempo linear e com a ideia de desenvolvimento. Se uma tendência teórica a ver a literatura do “Terceiro Mundo” como se ela progredisse da “literatura de protesto” para a ”literatura de resistência” para a “literatura nacional” foi criticada por recolocar no tropo iluminista do progresso linear e sequencial, o termo “pós-colonialismo” é questionável pela mesma razão. (MCCLINTOCK, 2018, p.29)

Nesse cenário a literatura pós-colonial é constituída de resistências às temáticas coloniais, bem como das ideias europeias e boa parte dos estudos pós-coloniais se coloca contra a ideia imperial do tempo linear (MCCLINTOCK, 2018.p. 29). Logo, a verossimilhança com a realidade social, econômica e política que as personagens se encontram foram construídas de acordo com os interesses dos homens brancos que criavam leis e políticas em prol dos seus próprios interesses, por mais que as mulheres brancas detinham uma condição que as colocavam numa situação de poder as mesmas eram subordinadas as leis, a mulher negra colonizada restava à condição de pertencer a uma classe desfavorecida de poder.

EM DIREÇÃO A UMA NOVA VISÃO ” IDENTIDADE CULTURAL NO PÓS-COLONIALISMO: YAZZ REPRESENTAÇÃO DA CONTRACULTURA”

Eis, que adentramos no romance Garota, mulher, outras (EVARISTO, 2020) uma narrativa ambientada em uma Londres dividida e hostil logo após o Brexit (A palavra Brexit vem da junção das palavras inglesas “Britain” (Bretanha) e “Exit” (saída) que está relacionada ao processo de saída do Reino Unido da União Europeia iniciado em 2017 e com término em 2020). “O que dizer do planeta quase indo para o lixo com o Reino Unido prestes a ser destituído da Europa” (EVARISTO, 2020, P.52). Todo o cenário conduz a uma narrativa que desde o título prenuncia as personagens centrais são femininas, é nítido que personagens masculinos não serão o foco do enredo, pode-se deduzir que a menção de “outras” simboliza o aspecto pós-colonial e os sofrimentos, numa mistura de origem cultural, orientações sexuais, classe, experiências de diversas personagens imigrantes ganeses, etíopes, barbadianos e diversos outros países africanos e caribenhos que chegaram à Inglaterra na década de 1950.    As personagens centrais dos romances e seus mundos não são fechados nem surdos uns aos outros, mas se cruzam e se entrelaçam multifaceticamente (BACKHTHIN, 2018, p. 82), estabelecem uma conexão como forma de ressaltar as dinâmicas das famílias tradicionais, gerações e gerações de mulheres se interligando pela sua ancestralidade, a identidade da mulher negra marcada por complexidade e contradições, a diversidade dentro das lutas bem como a discordância entre mulheres que se identificam pertencente a um movimento feminista rotuladas, no caso a personagem Amma (mãe da Yazz) uma feminista e outras que ignoram essa teoria, como exemplo a Yazz filha de Amma, que pretendem estabelecer uma nova forma de ver “outras” a partir do discurso ideológico do pensamento humano.

Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as ideias dos outros é que a ideia começa a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, encontrar e renovar sua expressão verbal, gerar novas ideias. O pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressam pela palavra. (BAKTIN, 2018.p.98)

A mais jovem personagem do romance a Yazz de 19 anos, filha de Amma uma socialista, dramaturga, negra, lésbica que sempre viveu a margem, na luta de criar a sua filha, num tempo não muito favorável para uma mãe solteira, lésbica e negra, porém Amma encontra em Yazz seu experimento na contracultura (EVARISTO, 2020, p. 46), pois a filha de certa forma se torna antifeminista. Partimos do pressuposto que a realidade social, econômica e política das personagens afrodescendentes podem ser interpretadas em termos de interseção de desigualdades, tanto por etnia/raça, quanto por gênero e classe.

Na obra, vale ressaltar a importância da Yazz nessa contracultura, a mesma simboliza uma geração de jovens negras universitárias e suas amigas a Waris e Courtney são personagens carregadas de adjetivos como: inabaláveis, dedicadas e determinadas na busca do diploma universitário. É possível perceber como a identidade de todas essas personagens estão marcadas por situações relacionadas ao gênero, etnia, classe social e orientação sexuais, numa diversidade cultural que as permitem debater essas questões não de forma a sentir “dó” uma das outras, mas sim numa forma de alteridade que conduz à narrativa. No quadro 1 encontramos algumas características dessas personagens na busca do status social

Quadro 1: Características das personagens no segundo capítulo da obra: Garota, mulher, outras

PersonagemRaçaIdentidadeCursoExpectativa de status
YazzNegraHumanitaristaLiteratura InglesaJornalista
CourtneyBrancaRicaçaPolíticaFazer parte do Parlamento
WarisPretaSomali Muçulmana- adepta do hijabEstudos Norte-AmericanosEncontrar um marido norte-americano nos Estados Unidos

Fonte: Autora

É notável que a cada capítulo novo apareça uma personagem em destaque, juntamente com amigas, familiares, namorados, colegas de trabalhos, filhos, cada uma é protagonista de suas próprias vidas, temos de fato como antagonista as circunstâncias que a vida proporciona e a visão da sociedade em relação a mulheres pretas periféricas no decorrer de cada capítulo, que acabam silenciadas em determinadas situações e outras são revolucionárias lutam para controlar/mudar a sociedade. O espaço é representado de forma a expor uma Londres na visão de uma família branca, no caso da Courtney demonstra bem essa passagem ao ser questionada por Yazz por não visitar mais vezes a capital.

é porque meus pais não gostam de Londres, Courtney respondeu, acham que é um esgoto a céu aberto cheio de gente negra, homens-bomba, esquerdistas, atores, gays e imigrantes polonês, que tiram homens e mulheres trabalhadores deste país a chance de conquistar uma vida boa; o pai extrai todas as ideias políticas dos jornais, cita tudo tim-tim por tim-tim, (EVARISTO, 2020, p. 79)

Em decorrência dessas situações as jovens se constituem sujeitos em transformação, ocasião que “a identidade se torna uma celebração móvel: formada e transformada continuadamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”(HALL, 2006, p.13), ao adentrar no ambiente acadêmico, se encontram num patamar de mérito intelectual, a conquista do diploma será o auge para a carreira de sucesso. Yazz com suas opiniões próprias revela “Quando saírem da faculdade vai haver uma grande dívida e uma competição insana por empregos e o preço escandaloso dos aluguéis lá fora vai levar a geração de elas a morarem na casa dos pais para sempre e, portanto a se desesperar com o futuro” (EVARISTO, 2020, p. 52), é necessário levar em conta que são garotas que compartilham perspectivas de vidas, criam vínculos de amizades com outras independentes de raça, etnia, gênero e classe social.

Nesse sentido a identidade passa a existir através da comunidade, e desde as primeiras relações de Yazz com sua família foram moldadas por incentivos para elevar a condição de vida, na construção de uma identidade feminina que encontre espaço para ser reconhecida através da dedicação, esforço e lugar de fala. Assim, a assertiva alude um contexto e circunstância que muitos estudantes oriundos de classes menos desfavorecidas trilham caminhos para saírem da condição de subalternizados os diplomados na luta para se inserirem num ambiente de condições favoráveis. Com consequência, caem no dilema de obter um diploma como forma de garantir o emprego dos sonhos e ajudar os seus familiares a saírem da condição miserável herdada e repassada por milhares de anos, uma herança que levará séculos para ser transformada e moldada, que não depende apenas do “eu” esforçado, mas sim de todo um conjunto de ações com um olhar nas “outras”, minorias que travam um luta contra o sistema de poder que há tempos impera, seja de forma direta ou indireta, mascarando-o como natural e falta de estudo por parte das personagens das gerações anteriores não deixar um legado cultural para as futuras gerações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir esta abordagem que não se esgota em significados e indagações em “Garota, mulher, outras”, observa-se que a narrativa se entrelaça com o conflito de gerações de mulheres de origem africanas que conduzem de forma geral a dinâmica social da mudança, em especial com a jovem Yazz, que herda da sua mãe feminista a força para lutar por uma condição favorável de vida melhor do que seus antepassados, para ela raça e gênero são os únicos aspectos que determinam privilégio na sociedade.

Sabe-se que partes das culturas de origem africanas apoderadas pela hegemonia branca, se transformam de tal maneira que foram conduzidas a um apagamento da memória de um povo, seu significado, suas origens e lutas. Na obra, Evaristo conduz o leitor a uma leitura de vivências de personagens jovens negras que interagem com diferentes raças e origens e gradativamente vão construindo suas identidades e compreendendo a complexidade das relações sociais que estão sendo conduzidas.

Falar de um legado colonial e de suas marcas é desconfortável para muitos, a personagem Yazz não há escolha a não ser enfrentar essas questões que na sua concepção já estão no passado, o momento exige agora uma garota forte, dedicada e não opressiva, porém que precisa de espaço para mostrar seu talento ao mundo, que não veio em forma de herança, mais sim de condições que a tornaram uma humanitarista percorrendo caminhos para transformar sua vida e a de diversos jovens que buscam no diploma a forma de diminuir as desigualdades sociais e contribuir para o futuro das próximas gerações.

REFERÊNCIAIS

BAKHTIN, Mikhael.Estética da criação verbal. Introd. e trad. de Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martin Fontes, 2003.

EVARISTO, Bernadine. Garota, mulher, outras. Tradução Camila von Holdefer. 1º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

SCHMIDT, Simone Pereira. Onde está o sujeito pós-colonial? (algumas reflexes sobre o espaço, e a condição pós-colonias na literature angolana). In: Revista Abril, v.2, nº2, p. 136-147, abril de 2009.

SOUZA JUNIOR, Vilson Caetano de. Na palma da minha mão: temas afro-brasileiros e questões contemporâneas. Salvador: edUFBa, 2011.

MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial/ Tradução: Plinio Dentzien- Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.

PESAVENTO, S. J. Fronteiras da ficção: diálogos da história com a literatura. Revista de História das Ideias, v. 21, p. 33-57, 2000.