RELATO DE CASO: DIAGNÓSTICO OCASIONAL DE ÚTERO DIDELFO EM PACIENTE COM QUADRO DE SANGRAMENTO ANORMAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7478164


Isabel de Vasconcelos Iannotti1
Vitória Araújo Mourão Pena1
Yuri Ferrari Volanin Vitorino de Souza1
Fabrício Alves de Oliveira Campos2


RESUMO

O Útero Diadelfo é uma anomalia que ocorre devido a falhas na fusão dos canais mahlerianos, de forma que dois colos de útero e dois hemípteros são formados. Na maioria dos casos, ocorre também a formação de um septo longitudinal na vagina. Grande parte das pacientes são assintomáticas, mas outras cursam a doença com polimenorreia, menometrorragia e dispareunia, podendo haver também outros sintomas. O caso de uma paciente de 18 anos, que busca o serviço de saúde privado por um sangramento vaginal intenso não associado ao período menstrual, devido ao útero diadelfo ainda não descoberto, foi relatado com detalhes neste artigo. A jovem relata em sua anamnese sangramento volumoso que não podia ser contido por fraldas geriátricas. Foi encaminhada para o bloco cirúrgico para exame especular com anestesia local, que identificou septo vaginal, de onde se originava o sangramento. Foram realizadas ultrassonografias e tomografias computadorizadas para fechamento do diagnóstico de útero diadelfo, e as imagens examinadas acompanham a descrição neste relato de caso.

Palavras-chave: útero diadelfo, septo vaginal, malformações uterinas

1. Introdução

O Útero Diadelfo – do grego Di, “dois” e Delphys, “útero” – é uma malformação uterina, causada na embriogênese, que ocorre após uma falha na fusão dos Ductos Paramesonéfricos (Ductos de Müller). Estes são responsáveis pela formação das tubas uterinas, cérvix e terço superior da vagina.

A malformação afeta 10 mulheres a cada 20 mil mulheres e está associada com 33% dos casos de abortamento, 29% dos partos pré-termo e 13% dos casos de infertilidade, de acordo com o Instituto Paulista de Ginecologia e Obstetrícia (IPGO). Dessa forma, as chances aumentadas de parto prematuro ou abortamentos exigem a realização adequada do diagnóstico, para que o pré-natal seja realizado adequadamente. Apesar disso, a maioria das mulheres com essa malformação é capaz de engravidar, segundo o IPGO.

Embora os dados literários sobre o Útero Diadelfo sejam ainda insuficientes, é reconhecido que existe maior risco à fertilidade das mulheres acometidas. Contudo, tais anomalias Mahlerianas não estão relacionadas a impossibilidade de uma gestação natural ou de um parto vaginal a termo, por exemplo. Dessa forma, o estudo deste tema por meio de um relato de caso se faz relevante, pois aborda a importância de um diagnóstico antecipado, o que permite a análise de outras malformações relacionadas e orientação adequada a respeito das possíveis inconstâncias que podem acompanhar o quadro da paciente.

Sob tal ótica, com o caso clínico apresentado, os autores visam difundir as possíveis dinâmicas terapêuticas e abordagens de embasamento científico que enriqueçam os métodos diagnósticos, protocolos de tratamento e ampliamento do assunto.

2. Caso Clínico

No dia 29 de setembro de 2020, paciente do sexo feminino, estudante de 18 anos de idade, deu entrada em um hospital privado de Belo Horizonte referindo sangramento vaginal intenso, não coincidente ao período menstrual, após relação sexual, com dor intensa. Relatou utilização de absorventes e fraldas geriátricas para a contenção do sangramento, que não foram eficazes. A paciente afirmou fazer o uso de anticoncepcional oral e não ter atrasos menstruais.

A equipe de Ginecologia do hospital iniciou a investigação com um exame especular, que não foi possível pela limitação importante pela dor da paciente, de modo que o exame dói realizado posteriormente sob anestesia local, em bloco cirúrgico.

A visualização do colo uterino revelou a origem do sangramento advinda do rompimento de uma artéria no septo que bifurcava o canal vaginal da paciente, identificado naquele instante. A hemostasia foi realizada a seguir por sutura hemostática intravaginal. A paciente foi questionada sobre a ciência da presença do septo, a qual afirmou que não tinha conhecimento mesmo após diversos acompanhamentos com ginecologista.

A propedêutica a partir da visualização do septo incluiu ultrassonografia e tomografia computadorizada. As imagens e os laudos revelaram a presença da malformação Útero Diadelfo.

Baseado no diagnóstico, a conduta recomendada à paciente foi o acompanhamento ginecológico de rotina e, caso desejasse, poderia realizar uma avaliação cirúrgica de tratamento da alteração estrutural. A paciente não demonstrou interesse em realizar a intervenção cirúrgica e não apresentou nenhuma outra intercorrência.

3. Exames de Imagem

A Figura 1 traz algumas das fotos obtidas a partir da ultrassonografia transvaginal da paciente, em que se evidenciam duas formações adjacentes semelhantes, em topografia de pelve e ecogenicidade compatível com útero, com endométrios distintos e em solução de continuidade, completamente separados em sua porção proximal, observados em corte transversal (letra a). A letra b da Figura 1 representa um dos hemiúteros em corte longitudinal, enquanto a letra c, o outro, confirmando se tratarem de duas imagens distintas.

A Figura 2 apresenta imagens da TC da paciente em corte transversal, em que se notam duas imagens hipodensas, adjacentes, com centro hiperdenso, em topografia de pelve, compatível com duas estruturas uterinas perfeitamente separadas e seus respectivos endométrios. As demais imagens em corte transversal foram suprimidas por conveniência durante a escrita do artigo.

A figura 3 apresenta um ponto de vista longitudinal da mesma TC de pelve, em que se nota, em topografia de pelve, o surgimento de imagem hipodensa com estrutura hiperdensa em seu interior, compatível com útero e endométrio, que desaparece e dá lugar a outra estrutura vizinha semelhante, reforçando o diagnóstico do útero didelfo.

Figura 1. Imagens da ultrassonografia transvaginal da paciente.

Figura 2. Imagens da TC de pelve em corte transversal da paciente.

Figura 3. Imagens da TC de pelve em corte longitudinal da paciente.

4. Discussão

O surgimento do útero diadelfo ocorre devido a uma falha no processo de fusão dos MDs (canais mahlerianos), de forma que dois colos uterinos e dois corpos uterinos são formados, cada um dotado de uma tuba uterina. Portanto, avaliar a prevalência desta anormalidade é de extrema relevância, uma vez que esta envolve desafios e consequências ginecológicas e/ou obstétricas, e que muitas das pacientes são assintomáticas. Nesse sentido, apesar de haver a presença de dispareunia e dismenorreia em determinado número de mulheres, raramente apresentam dor abdominal inferior ou efeito de massa devido a obstrução, de forma que as possibilidades de diagnósticos diferenciais da doença se tornam diversos, tendo como base apenas a história clínica (REZAI, et. al., 2015).

A causa do Útero Diadelfo é ainda desconhecida, apesar de haver diversas teorias e estudos que apontam para: hipóxia fetal, mutações genéticas e fatores ambientais (exposição a drogas teratogênicas, radiações e infecções congênitas), os quais acarretariam na alteração da embriogênese intraútero (BAGNOLI, et. al., 2010).

A suspeita de útero diadelfo em pacientes com septo vaginal ou dois colos uterinos deve ser uma das principais hipóteses diagnósticas a serem consideradas (HOFFMAN, et. al., 2014).

Ademais, após estabelecida a hipótese diagnóstica como útero diadelfo, deve-se excluir o diagnóstico diferencial de Síndrome de Herlyn-Werner-Wunderlich, principalmente no público adolescente (PHELPS A, et. al., 2016). Essa síndrome acompanha os seguintes sintomas: septo hemivaginal, útero diadelfo e agenesia renal unilateral.

Por fim, ao suspeitar de alteração dos canais mahlerianos, devem ser solicitados exames de imagem do útero que possibilitem a visualização da alteração anatômica, (RIBEIRO SC, et. al., 2009), como no caso da paciente em estudo, que recebeu seu diagnóstico final após ultrassonografia e ressonância magnética (já obtido suspeita clínica em seu exame especular detalhado na descrição). Dessa forma, se torna possível a avaliação do útero, anexos uterinos, fundo uterino, bexiga e jatos urinários, se solicitada via abdominal pélvica e endovaginal.

5. Aspectos éticos

Este relato de caso foi elaborado de acordo com o Código de Ética Médica, zelando principalmente pelo Artigo 110 do Capítulo XII, descrito como vedado ao médico: “Praticar a medicina, no exercício da docência, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, sem zelar por sua dignidade e privacidade ou discriminando aqueles que negarem o consentimento solicitado.”. Dessa forma, a amento da paciente, todos os dados sensíveis foram omitidos do relato, e a privacidade da paciente foi preservada.

6. Conclusão

O Útero Diadelfo é uma má formação anatômica decorrente de falhas completas na fusão dos canais mahlerianos. Dessa forma, ela é manifestada por dois colos uterinos, dois hemípteros e, em alguns casos, septo vaginal. Essa anomalia constitui 11% dos casos de malformações uterinas. Como apresentado, a paciente em questão possui um caso típico de Útero Diadelfo.

O decorrer desta irregularidade é assintomático na maioria das pacientes, mas em outras ocorre a participação dos sintomas: dismenorreia, polimenorreia e dispareunia; principalmente, mas não unicamente. A paciente do relato não obteve sintomas, ocorrendo apenas uma hemorragia por uma lesão no local.

Baseado nas descrições literárias supracitadas, a conduta correta para a paciente seria a realização de exames de imagens e a orientação correta conforme o diagnóstico da paciente. Essa conduta foi bem executada e realizada pela equipe médica responsável pelo caso descrito. Idealmente, a paciente deve realizar o acompanhamento ginecológico de rotina, comum para as mulheres sem nenhuma intercorrência. Caso seja da vontade da paciente, os benefícios da intervenção cirúrgica devem ser avaliados e, possivelmente, realizá-la.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
2 Hospital Governador Israel Pinheiro