A VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA NOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL: E A MUDANÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO APÓS O CASO MARIANA FERRER

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7309023


Rochele Morghana Vieira da Silva1
Rosyvania Araújo Mendes2


Resumo:
Segundo (Nucci,2021) em 2020, por dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maioria das vítimas de crimes sexuais são pessoas vulneráveis, dentre elas bebês e crianças de até 9 anos de idade. Historicamente as vítimas de crimes sexuais sofrem com o processo vitimizatório, dentre eles a vitimização secundária, que versa sobre a revitimização cometida pelos próprios agentes estatais no decorrer de todo o processo judicial. Em razão disso, o presente trabalho busca entender o conceito de vitimização secundária no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, o trabalho parte-se para um estudo sobre a revitimização sofrida por Mariana Ferrer na audiência de instrução e julgamento do processo no qual figurou como vítima. Assim, a pesquisa tem como objetivo analisar os reflexos da lei 14.245/2021, no processo de vitimização secundária. Visando atingir o objetivo, foi utilizado o estudo bibliográfico, contando com uma pesquisa explicativa e uma abordagem qualitativa. Por fim, mostra-se como resultado que apesar da Lei 14.245/2021, ser um grande avanço na proteção contra a revitimização, ainda é frágil o ordenamento jurídico acerca desse assunto.

Palavras-chave: Vitimização Secundária; Lei Mariana Ferrer; Crimes Sexuais. 

Abstract: According to (Nucci,2021) in 2020, according to data collected by the Brazilian Public Safety Forum, most victims of sex crimes are vulnerable people, including babies and children up to 9 years of age. Historically, victims of sex crimes suffer from the victimizing process, including secondary victimization, which deals with the revictimization committed by state agents themselves during the entire judicial process. As a result, this paper seeks to understand the concept of secondary victimization in the Brazilian legal system. In addition, the work is based on a study on the revictimization suffered by Mariana Ferrer in the hearing of instruction and trial of the process in which she appeared as a victim. Thus, the research aims to analyze the reflexes of law 14.245/2021, in the process of secondary victimization. In order to achieve the objective, the bibliographic study was used, with an explanatory research and a qualitative approach. Finally, it is shown that although Law 14.245/2021, being a major advance in the protection against revictimization, the legal system on this subject is still fragile.

Keywords: Secondary Victimization; Revictimization; Mariana Ferrer

1 INTRODUÇÃO

De acordo com (Nucci, 2021), no Brasil, a cada oito segundos e meio, uma pessoa é vítima de estupro segundo dados levantados pelo Fórum Basileiro de Segurança Pública, é relatado que do total de 73,7% são referentes a estupro de vulneravéis, em que a vítima tem menos de 14 anos de idade sendo incapaz de consentir sobre o ato contra sua dignidade por alguma deficiência, efermidade ou por estar alcoolizada, por exemplo. Ademais, 11,3% são bebês de 0 a 4 anos, e 20,5% de crianças de 5 a 9 anos..

É sabido que as vítimas de crimes sexuais que decidem denunciar ao Poder Estatal seus agressores, têm um difícil caminho a percorrer. Visto que, é cada vez mais comum ter relatos de humilhações e frustrações das vítimas, desde o momento que se dirigem a delegacia de polícia para registrar o boletim de ocorrência, até o momento da audiência. Assim, a vítima que já sofre por carregar consigo a memória de um momento constrangedor na sua vida, é obrigada a passar por mais sofrimento quando decide externar o acontecido ao Poder Estatal, com isso se veem novamente vitimizadas, pelas instituições que deveriam proteger a integridade dessa vítima. 

Dessa forma, conforme dispõe (BERISTAIN, 2000, p.105), configura-se a vitimização secundária ou a revitimização, que é o sofrimento causado à vítima, por meio das investigações, colhimento de testemunho, realização de perícias, causando uma relembrança à vítima de todo o acontecido, gerando assim, mais dor, vergonha e constrangimento, no decorrer do processo judicial. É evidenciado essa modalidade de vitimização em casos de crimes contra a dignidade sexual, visto que, na maioria dos casos, a única testemunha do acontecido é a própria vítima, assim torna-se necessário que ela relembre todo o terror do momento que viveu. 

Indo de encontro a essa narrativa, o tema da revitimização secundária ganhou grandes proporções, quando ocorreu a audiência de instrunção e julgamento, realizada por videoconferência, em que a parte era Mariana Ferrer, figurada como vítima do crime de estupro de vulnerável, e o réu o empresário André Aranha. Foram divulgadas por meio do site The Intercept Brasil, imagens da audiência, em que a vítima, está chorando pedindo por respeito, no momento em que estava sendo humilhada e constrangida pelo advogado de defesa Gastão Filho, em que utilizava imagens da vítima, fotos que eram alheias ao fato processo, a fim de desqualificar a vítima. 

Após a publicação das imagens e de parte da audiência, tornaram-se virais na internet, ocorrendo assim, várias manifestações de apoio a Mariana Ferrer em todo território nacional, levantando nas redes sociais a hashtag “#justiçapormarianaferrer”, que teve repercussão mundial. 

Em sequência, o Projeto de Lei nº 5.096/2020, foi protocolado, vindo a se concretizar em 22 de novembro de 2021, na Lei nº 14.245/2021, sendo batizada assim de “LEI MARIANA FERRER”. 

Nesse contexto, convém discutir sobre a vitimização secundária no processo judicial, analisar as mudanças que o caso da Mariana Ferrer trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro, a fim de analisar os reflexos da Lei 14.245/2021, no processo de vitimização secundária. 

Dessa forma, embora seja um crime de grande incidência no país, ainda é precária a assistência prestada a essas vítimas durante todo o processo judicial. Assim, o presente trabalho possui como problemática de pesquisa a seguinte indagação: Quais os reflexos da Lei 14.245/2021, no processo de vitimização secundária?

Para isso, a pesquisa conta com uma abordagem qualitativa, buscando compreender o processo de vitimização secundária ou revitimização nos processos judiciais. A qualificação da pesquisa diante dos seus objetivos, é explicativa, visando entender a mudança que ocorreu no ordenamento jurídico brasileiro após o caso Mariana Ferrer e a criação da Lei 14.245/2021. Os métodos de pesquisa utilizados foram a pesquisa bibliográfica, a fim de, à luz da doutrina, compreender o conceito usado pelos doutrinadores acerca do processo de vitimização. 

O presente artigo está estruturado da seguinte forma: o primeiro capítulo discorrerá sobre o entendimento histórico da cultura do estupro no Brasil. O segundo capítulo, aborda o conceito de vitimização no processo judicial, a revitimização estatal nos crimes sexuais. 

Por fim, o terceiro capítulo apresenta um estudo sobre o caso Mariana Ferrer, analisando a revitimização de Mariana e a consequente reação legislativa.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

  2.1 A cultura do estupro no Brasil

O Brasil é um país onde o domínio do machismo sempre esteve presente em todos os locais, tanto na política quanto nas empresas, na sociedade em si.

Desde os primórdios, as mulheres foram vistas pela sociedade como um objeto. As indígenas sendo vistas pelos portugueses com olhos de lascívia por andarem com seus corpos descobertos, as negras escravizadas sendo usadas em casa como objeto sexual, ama de leite e para serviços domésticos. Uma parte da população brasileira foi fruto de um estupro, quando as índias e as negras, eram obrigadas a ter relação sexual com vários homens, com a finalidade de aumentar a população, assim os “senhores” teriam a sua disposição mais escravos para fazerem suas vontades. Essa subordinação feminina “figura como a primeira opressão na história da humanidade” para (SARDENBERG E COSTA, 1994, p.81).

Os atos de violência contra a mulher são tão severos que foi criada em 18 de dezembro de 1979, pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), uma Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW). Tendo no seu artigo primeiro a seguinte dissertação:

Artigo 1º – Para fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Dentre outros artigos, a convenção atribuiu uma proteção específica às mulheres, estabelecendo alguns direitos específicos das mulheres.

No cenário atual, o Brasil apesar de ter ação de represália ao crime sexual com o advento da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Ainda tem altos índices de prática desse crime, pois de acordo com os dados do Instituto Maria da Penha, que tem como base a pesquisa realizada pelo Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada dois segundo uma mulher é vítima de violência física ou verbal, ainda segundo a Secretaria de Governo Federal, é mais de meio milhão de casos de estupro por ano no Brasil, e apenas 10% chegam à justiça. Sendo assim, o quinto país no ranking mundial de violência contra a mulher (Diário do Estado, 2018).

2.2 VITIMIZAÇÃO NO PROCESSO JUDICIAL 

O processo de vitimização versa sobre as agressões que a vítima passa desde o momento que sofre o crime até durante todo o processo. Esse processo é dividido em três partes, quais sejam: vitimização primária, secundária e terciária. 

Entende-se por vitimização primária, aquela que é causada pelo agente do delito criminoso. A vitimização secundária, é o descaso pelo Poder Público, quando no decorrer do processo judicial na tentativa de punir o crime, acabam por provocar mais danos à vítima. Por fim, a vitimização terciária é causada pela sociedade, que deveria fazer o papel de acolher essa vítima, mas ao contrário disso, apontam-lhe como culpadas pelo evento criminoso. (ANDREUCCI, 2016).

Em relação a vitimização secundária o autor Andreucci afirma que:

Como exemplos de vitimização secundária pode-se citar o mau atendimento que eventualmente receba a vítima em delegacias de polícia, institutos médico-legais, fóruns e varas criminais. Também o preconceito da sociedade, amigos e pessoas da família em relação à vitimização primária. 

Na maioria dos casos, a vítima compareceu sozinha e às suas expensas às repartições policiais e fóruns, enfrentando toda a sorte de dificuldades, não tendo geralmente um advogado a acompanhá-la, aconselhá-la ou instruí-la” (ANDREUCCI, 2016, s.p).

No mesmo sentido esclarece Trindade:

O fenômeno da vitimização secundária parece estar se tornando comum no mundo moderno e servindo para o agravamento da situação das vítimas. Por isso, há necessidade de um olhar atento tanto da psicologia quanto do direito, tanto dos psicólogos, quanto dos operadores judiciais (TRINDADE, 2007, p. 160).

É sabido que a vitimização secundária ocorre no âmbito público, que os causadores dessa violência são as próprias pessoas que deveriam proteger e acolher essa vítima, visto que o crime de violência sexual causa por si só uma vergonha na vítima, uma insegurança, de ter que relembrar todos os fatos ocorridos no dia daquele delito, e quando a vítima é posta ao vexame, na delegacia, ou até mesmo na fase de audiência, o dano psicológico causado a essa vítima é muito maior, é uma recordação horrenda que esta levará pra toda sua vida. 

Na teoria, a busca de proteger os direitos humanos da vítima é muito diferente da prática que essas pessoas passam diariamente. Sobre esse assunto o doutrinador Andreucci disserta que:

“As vítimas passam por diversos constrangimentos físicos, morais, patrimoniais devido à ocorrência do delito, ao passo que são poucos os mecanismos que buscam, efetivamente, minorar as consequências por ela experimentadas, e, por conseguinte, o abandono da vítima colabora para que esta permaneça no anonimato, por ter receio de ser revitalizada” (ANDREUCCI, 2016, s.p).

Insta salientar, que há um despreparo dos agentes estatais perante o tratamento com as vítimas de crimes contra a dignidade sexual, ocasionando a chamada revitimização, que é quando a vítima é forçada a explicar o trâmite da infração sendo questionada sobre os meios que poderia ter tomado para evitar que a mesma acontecesse

Nesse sentido, Carvalho e Lobato preconizam que:

Juízes, promotores de Justiça, defensores públicos, advogados, delegados de polícia e demais servidores da Justiça devem ter noções de psicologia para melhor tratar as vítimas, bem como, tendo o auxílio dos profissionais da área do Serviço Social e da Psicologia, fato que não diminui a competência dos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e nem da Advocacia, ainda mais se estes profissionais fossem do quadro de servidores ligados aos Órgãos mencionados. Ao contrário, apenas engrandece as carreiras. O mesmo se diga aos psicólogos e assistentes sociais. Não há qualquer rebaixamento ao ajudar a se alcançar uma Justiça plena e com danos minimizados àqueles que a procuram (CARVALHO e LOBATO, 2008, s.p).

Ademais, passada as primeiras fases do processo, encontra-se o terceiro grau de vitimização, por muitas vezes o mais duradouro. Nessa narrativa, dissera o doutrinador Calhau:

No processo penal ordinário e na fase de investigação policial, a vítima é tratada com descaso e, muitas vezes, com desconfiança pelas agências de controle estatal da criminalidade. A própria sociedade também não se preocupa em ampará-la, chegando, muitas vezes, a incentivá-la a manter-se no anonimato (CALHAU, 2003, p. 27).

Conforme explica (BARROS, 2008), a vitimização terciária, ocorre na família, nos círculos de amizades, nos ambientes de trabalho, pelos vizinhos, enfim, sendo a vítima perseguida por tal vitimização até seu último suspiro. 

Nesse sentido, Barros aduz que: 

A vitimização terciária é levada a cabo no âmbito dos controles sociais, mediante o contato da vítima com o grupo familiar ou em seu meio ambiente social, como no trabalho, na escola, nas associações comunitárias, na igreja ou no convívio social (BARROS, 2008, p. 72).

 Para Carnelluti, o processo penal interessa à opinião pública, visto que frequentemente é presenciado nas mídias delitos que se tornaram público, e em consequência a vítima perde sua liberdade, sua privacidade, até mesmo dentro de casa, quando a família que deveria acolher essa vítima, muitas vezes acaba por ironizá-la, até mesmo proferindo comentários desnecessários, que ferem ainda mais essa vítima. 

Nessa mesma narrativa, enfoca Carnelluti:

Se os delitos e os processos penais os jornais se ocupam com tanta assiduidade, é que as pessoas por estes se interessam muito, sobre os processos penais assim ditos célebres, a curiosidade do público se projeta avidamente. E é também uma forma de diversão; fugisse da própria vida, ocupando-se com a dos outros; e a ocupação não é a única tão intensa como a vida dos outros assume o aspecto do drama. O problema é que assistem ao processo do mesmo modo com que se deliciam os espetáculos cinematográficos, que de resto, simula com muita frequência assim, o delito como o relativo processo. Assim como a atitude do público voltado aos protagonistas do drama penal é a mesma que tinha, uma vez, a multidão para com os gladiadores que combatiam no circo, e tem ainda, em alguns países do mundo, para a corrida de touros, o processo penal não é, infelizmente, mais que uma escola de civilização. (CARNELUTTI, 2010, p.06).

Ademais, disserta Carvalho e Lobato que:

A vitimização terciária, como visto, é aquela que ocorre no meio social em que vive a vítima. É a vitimização causada pela família, grupo de amigos, no seio de seu trabalho etc. A comunidade em que a vítima vive a vitimiza. Após a divulgação do crime, sobretudo aqueles contra os costumes, muitos se afastam, os comentários são variados e os olhares atravessados para a vítima, o que a fazem se sentir cada vez mais humilhada e, não raras vezes, até culpada do delito. Quando se tratam de vítimas crianças e adolescentes na escola, por exemplo, muitos são solidários; mas outros, até mesmo pela curiosidade, fazem perguntas demais, brincam com o fato, e mais constrangimentos impõem às vítimas. No ambiente de trabalho, o mesmo acontece. Entretanto, talvez a pior vitimização seja imposta pela família. Quando a família, alicerce da sociedade (art. 226 da CF) impõe à vítima mais sofrimento em decorrência do crime é que os efeitos são deletérios ao extremo. Muitos parentes rejeitam as vítimas, fazem comentários impertinentes. Pais tratam as vítimas como eternos coitados sem dar força aos mesmos para se erguerem e superarem a derrota imposta pelo agressor. (CARVALHO; LOBATO, 2008, s.p).

 Por fim, há ainda dentro do processo de vitimização secundária, a revitimização secundária, que será esmiuçada no capítulo seguinte.

2.3. A REVITIMIZAÇÃO ESTATAL EM CRIMES SEXUAIS  

Por ser na maioria das vezes presente em casos de estupro, a vitimização secundária possui características particulares, como a revitimização sofrida por aquelas que procuram denunciar ao Poder Estatal a violência sexual que sofreram. Nesse sentido, torna-se necessário a compreensão do conceito de revitimização, para que se consiga entender o processo da vitimização secundária. 

A vitima ao procurar a justiça após sofrer uma violência sexual, na maioria dos casos se vê sozinha naquele ambiente desconhecido e predominantemente masculino, sendo interrogada, expondo sua vida privada e sendo obrigada a reviver tudo que aconteceu novamente, além da proximidade desconfortante com o causador da violência, toda a enorme burocracia confusa de um processo desse conteúdo, muitas vezes a falta de informação e a demora do processo, caracterizando assim a vitimização secundária (MOTA, 2012, P.649). 

Nesse sentido, o processo da revitimização é ainda mais preocupante que a própria ocorrência da vitimização secundária, em razão da sensação de desamparo e desprezo sofrido pela vítima. Visto que, em todo o processo, desde a fase de investigação, a vítima na maioria das vezes é vista apenas como um instrumento processual, cumprindo apenas um papel de fornecer provas, independentemente se esse processo causará maiores danos à vítima ou novos traumas. (FEITOSA, 2019).

Dessa maneira conforme dita (SOUZA, 2020, p. 215), desde a fase de investigação até a promulgação da sentença, por diversas vezes a vítima é obrigada a repetir várias vezes em detalhes todo o ocorrido, constantemente não se leva em consideração que não são todas as vítimas que lembram do acontecido, havendo aquelas que não se lembram de nada, vagas lembranças e muitas vezes confusas, ou simplesmente não querem contar e recontar um evento traumático, o que pode resultar em declarações confusas entre si, e muitas vezes desconfiança das declarações da vítima. 

Nesse sentido a jornalista e escritora (ARAÚJO, 2020) em sua obra “ Abuso: A cultura do estupro” dispôs depoimentos e entrevistas de vítimas de crimes sexuais, mostrando na realidade como o processo da revitimização é prejudicial a vítima:

Meu maior trauma foi ter que ficar relatando de novo e de novo. Eu nunca tinha tido problema de comunicação antes de ser violentada, mas depois, de tanto relatar, eu chegava, sentava em uma cadeira e ficava de frente para uma pessoa, e já não sabia mais se conseguia falar. (ARAÚJO, 2020, p. 43)

Via de regra, os processos de crimes de estupro é bastante frágil, limita-se muitas vezes à tesmunha e perícia como principais provas, ou acabando em depoimento das vítimas, pela natureza desse crime, as partes são por muitas vezes as únicas presentes no ato, assim, a palavra da vítima acaba detendo enorme peso no processo (ANDRADE, 2006, p. 92).

       Por fim, é sabido que a vitimização secundária em crimes sexuais, comporta um problema com profunda complexidade, não sendo possível apenas uma única solução, e que não se mostra facilmente combatido. Nesse sentido, a revitimização vem ganhando grandes proporções nacionais em vários casos de abusos sexuais. Mais precisamente em novembro de 2020, a partir do processo de vitimização secundária de Mariana Ferrer, objeto de análise do capítulo seguinte. 

3. CASO MARIANA FERRER

Mariana Borges Ferreira, foi supostamente violentada sexualmente em dezembro de 2018, em uma casa de festa na cidade de Florianópolis. Mariana estava inconsciente no momento do suposto crime, a Polícia Civil chegou à identidade do possível autor. A investigação apontou para um estupro de vulnerável. Além disso, Laudos Médicos afirmam que houve rompimento recente do hímen de Mariana, que era virgem quando tudo aconteceu (ALVES, 2020).

Mariana teve que expor sua violência para seus seguidores em uma rede social, onde ela é influenciável, a fim de pressionar a justiça. Visto que, o inquérito estava parado e havia obstruções de provas. 

Conforme mostrado no vídeo publicado pelo site The Intercept Brasil, em todo momento do processo judicial a vítima Mariana, foi difamada pelos advogados do réu, que chegaram até a manipular uma foto de Mariana. Em uma das audiências, a vítima foi totalmente constrangida, chegando a chorar descontroladamente no decorrer da audiência, quando o advogado do réu, mostrava fotos que Mariana postava em suas redes sociais, como forma de justificar a suposta conduta do seu cliente, em nenhum momento o juiz se opôs ao advogado aplicando alguma divergência a sua conduta perante a vítima. 

E no caso da Mariana Ferrer, além de sofrer com a violência que alega, e reviver todo o acontecido no decorrer do processo, ainda teve sua dignidade julgada em plena audiência, onde seus direitos deveriam ser resguardados. Na audiência em questão e como na maioria dos casos das vítimas do crime de estupro, ela é julgada, quanto ao que vestia no momento do crime, as fotos que postam em suas redes sociais, ao seu estilo de vida, a culpa é transferida do agressor à vítima, em um momento que deveria haver acolhimento o que mais acontece é desproteção, como mostra claramente no vídeo publicado pelo site The Intercept Brasil.

Em dezembro de 2020, o caso de Mariana Ferrer voltou a chamar atenção pelo desfecho do julgamento. O juiz da Vara Criminal de Florianópolis absolveu o réu. A decisão foi tomada porque, segundo a sentença, o homem não sabia que Mariana estava inconsciente no momento da relação (ALVES, 2020).

Mariana Ferrer foi simbolizada pela mídia como um símbolo na luta por direitos, sendo tamanha a mobilização das manifestações nas redes sociais com diversas postagens em apoio a Mari Ferrer. Indiscutivelmente, o caso de Mariana Ferrer, tomou proporções maiores que o esperado, marcando a todos com sua história, e a sua revitimização voltou à tona o antigo problema de vitimização secundária, em que tantas mulheres sofrem caladas, até então. 

Com o acontecido, em razão da tamanha mobilização, a resposta Legislativa trouxe a promessa de soluções para a vitimização secundária. Assim, a Lei nº 14.245/2021, consagrada de “Lei Mariana Ferrer”, foi instituída. 

3.1 REVITIMIZAÇÃO DE MARIANA FERRER

Mariana Borges Ferreira, mas conhecida como Mari Ferrer nas suas redes sociais, trabalhava como promotora de eventos em uma festa do beach club Café de La Musique, que fica na praia de Jurerê Internacional em Florianópolis, Santa Catarina. No dia 15 de dezembro de 2018, quando estava trabalhando, Mariana alega que sofreu abuso por parte do empresário André de Camargo Aranha, depois de ter sido dopada e conduzida por ele para um quarto restrito no local do evento (ALVES,2020). 

Dessa Forma, a mesma foi até uma delegacia, onde fez a denúncia de estupro de vulnerável em desfavor de André Aranha, após o depoimento prestado, foi entregue as roupas que ela usava no dia que ocorreu o suposto fato e foi realizado a perícia para colhetar material genético (G1, 2019). 

Após feita a denúncia, Mariana usou suas redes sociais para externar sua história, pois tinha duras críticas à forma de atuação da Polícia Civil em relação ao seu processo. Segundo ela, a instituição tinha uma certa proteção em relação ao empresário e ao beach club onde ocorreram os fatos, por serem pessoas de “poder e dinheiro” (G1, 2019).

 Assim, conforme o site (G1, 2019), Mariana usava suas redes sociais para explanar que seu processo estava sendo mal-conduzido, que depoimentos e laudos estavam sendo manipulados, até mesmo a atuação do seu advogado estava sendo comprometida, visto que o mesmo não conseguia ter acesso ao andamento do inquérito. Dessa forma, Mariana conseguiu grande visibilidade nas suas redes sociais, conseguindo um número muito grande de seguidores. 

Apesar de todo o alvoroço nas redes sociais, em setembro de 2020, chegou ao fim o processo que julgava a autoria do crime por André Aranha, tendo o mesmo sido absolvido de todas as acusações. Após o julgamento, diversas pessoas comovidas e tocadas pela história de Mariana Ferrer, demonstraram sua indignação com o resultado do julgamento, e no mesmo dia, levantaram a hashtag #JustiçaPorMariFerrer em todo meio digital. 

Após todo o acontecido, foi divulgado uma matéria exclusiva sobre o caso de Mariana Ferrer, pelo site The Intercept Brasil, que mostrava trechos da audiência de instrução e julgamento, ocorrida por videoconferência. No vídeo aparece Mariana chorando em razão das falas do advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho. 

Na referida audiência, o advogado mostrou imagens de Mariana quando trabalhava de modelo, descrevendo as fotos como “ginecológicas” e afirmou nas seguintes palavras: “jamais terei uma filha do nível de Mariana, e peço a Deus que meu filho nunca encontre uma mulher como ela”. Além disso, ao ver Mariana chorando declarou: “só falta uma auréola na cabeça, não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo” (ALVES, 2020). 

Entre as teses levantadas pelo advogado de defesa, uma delas foi que Mariana estaria mentindo sobre o aconteceu para ganhar “fama” nas redes sociais, afirmou ainda que a mesma, “fazia showzinho no Instagram”, e que “era uma desconhecida” até o momento da denúncia que fez contra André Aranha (ALVES, 2020). É nítido nesse processo de Mariana a configuração da vitimização secundária sofrida pela jovem, visto que, de acordo com o vídeo exposto pelo The Intercept Brasil, é claramente possível ver as falas do advogado de defesa de André Aranha, como uma tentativa de desqualificar a pessoa ofendida, trazendo fatos alheios ao processo e constrangendo totalmente Mariana naquele momento tão determinante na sua vida.

Figura 1: Audiência de instrução e julgamento do processo em que Mariana Ferrer figurava como vítima do crime de estupro de vulnerável. Na imagem, Mariana chora devido às falas do advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho, que pode ser visto no canto superior esquerdo.

Fonte: Schirlei Alves, The Intercept Brasil (2020)

Na audiência o advogado de defesa, afirma quais os motivos que levaram Mariana a procurar a justiça penal, denunciando o André Aranha, verbalizando que a mesma havia perdido o emprego e que estaria com o aluguel de seu apartamento atrasado há sete meses. São afirmações alheias ao processo judicial em andamento, que não tinham justificativa para ter sido expostas em audiência, mas assim mesmo foram deflagradas pelo advogado de André, deixando a entender que a jovem Mariana estaria à procura de dinheiro e não de justiça para seu caso. 

Ademais, em meio a audiência, o advogado Gastão Filho, mostrou fotos de Mariana onde as consideravam “sensuais” de suas redes sociais, alegando que a mesma estaria manipulando a “história de virgem”. Mesmo depois do resultado da perícia realizada no processo que comprovou que Mariana era virgem até o momento do ocorrido.

Além do advogado de defesa, o juiz Rudson Marcos e o promotor Thiago Carriço de Oliveira, também foram duramente criticados, visto sua atuação na audiência de instrução e julgamento. Muitos alegam, que os agentes foram condizentes com o processo de revitimização da vítima Mariana por se omitirem às falas do advogado de defesa, e a não interromperem o completo constrangimento à vítima. Diante disso, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, manifestou-se:

“As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram” (CASTRO, 2020).

Ao final, o juiz do caso Rudson Marcos absolveu o réu André Aranha, acolhendo a tese firmada pelo procurador de justiça, onde sustentava a narrativa de que o acusado não teria como saber, durante o ato sexual, que Mariana não estava em condições de consentir ou não com a relação sexual, não existindo provas suficientes para que fosse capaz de demonstrar o dolo de André Aranha em estuprar a jovem Mariana (ALVES, 2020). 

A partir daí, em resposta a todo o alvoroço nas redes sociais, com uma completa indignação da sociedade em relação à sentença proferida naquela audiência, o Poder Legislativo decidiu atuar. Sendo o tema do tópico seguinte. 

3.1.1 #JustiçaPorMariFerrer e o clamor por soluções legislativas

Após a divulgação das imagens da audiência de instrução e julgamento, da vítima Mariana Ferrer sendo humilhada pelo advogado de defesa, o processo que já tinha ganhado grandes proporções, ultrapassou patamares maiores de discussões. Em diversas redes sociais era possível ver manifestações de diferentes correntes sobre o caso de Mariana Ferrer, 93,64% desses usuários se manifestava a favor de Mari, 5,63% mencionaram o caso, mas de forma neutra, e apenas 0,73% estavam em acordo com à absolvição de André Aranha (MARTINS, et al, 2020). 

Muitas pessoas pediam justiça para Mariana, envolta em um sentimento de impunidade em relação a esses crimes sexuais, realizando críticas ao sistema da justiça penal e também a sociedade como um todo (MARTINS, et al, 2020). 

Inúmeras foram as manifestações a favor de Mariana Ferrer, nas mais diversas plataformas digitais, em apoio à jovem, cantoras como Anitta, Iza e Luiza Sonza, como diversas outras personalidades, demonstraram nas suas redes sociais sua indignação em relação ao caso e sua palavra de conforto a Mari Ferrer (PRISCO, 2020). 

Em meio a grande dimensão do caso, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a Secretaria da Mulher e a Procuradoria da Mulher notificaram às autoridades competentes e de Santa Catarina exigindo providências contra o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho; o juiz, Rudson Marcos; e o promotor Thiago Carriço (SIQUEIRA, 2020a). 

Diante disso, o Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos afirmou ter remetido ofícios às corregedorias do Tribunal de Justiça e do Ministério Público de Santa Catarina, à Ordem dos advogados do Brasil, ao Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público, a fim de que esses órgãos investigassem as condutas dos profissionais presentes na audiência de instrução e julgamento (ALVES, 2020). 

A Corregedoria Nacional do Ministério Público e a Corregedoria Nacional de Justiça, em resposta, disseram estarem responsáveis por apurar a conduta do juiz Rubson Marcos e do promotor Thiago Carriço (FERREIRA, FERREIRA, 2021, p. 373). 

Já a Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB/SC) informou que oficiou o advogado Gastão Filho para que preste esclarecimentos sobre suas falas em relação à jovem (ANTUNES, 2020). 

Diante disso, por causa da revitimização que sofreu Mariana Ferrer, começaram a surgir vários projetos de lei, das mais variadas finalidades, a fim de caracterizar uma futura “Lei Mariana Ferrer”. Com isso, muitos deputados criaram projetos de leis, alguns visando tornar crime a violência institucional, outros propõe aumentar a pena de crime de estupro de vulnerável, entre outros projetos propostos (SIQUEIRA, 2020b). 

Por fim, de todos os projetos propostos, o que ganhou maior notoriedade foi o projeto de Lei nº 5.096/20, concebido pela deputada Lídice da Mata (PSB/BA) e subscrito por 25 parlamentares de 15 partidos diferentes, apresentado no dia 5 de novembro de 2020, que posteriormente foi convertido na Lei nº 14.245/2021 popularmente conhecida como (Lei Mariana Ferrer).

3.2 LEI MARIANA FERRER (LEI nº 14.245/2021)

Diante de todo saber, com o acontecido com a Mariana Ferrer, que passou por todo sofrimento da vitimização secundária, que teve toda sua intimidade inutilmente exposta pela defesa do acusado, e pelo descaso que essas mulheres vítimas de crimes sexuais sofrem durante todo o correr do processo penal, foi sancionada a Lei nº 14.245/2021, que busca coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causas de aumento de pena no crime de coação no curso do processo.

Art. 1º  Esta Lei altera os Decretos-Leis nos 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo.

A Lei Mariana Ferrer, foi vista pelos portais midiáticos como uma conquista para as vítimas de crimes sexuais, tendo um reconhecimento legal do que passam as vítimas no procedimento judiciário, consequentemente sendo um importante instrumento no combate ao respeito pelo direito da denúncia (GÓIS, 2021).

Nesse sentido, para o mesmo autor, a aprovação da referida lei, demonstrou um avanço, mesmo que de forma tardia, em relação a estruturação machista do Poder Judiciário, e consequentemente a cultura do estupro, demonstrando que não apenas os autores dos crimes sexuais como agressores, mais também as instituições públicas.

Por fim, a referida Lei, busca assegurar os Direitos já estabelecidos desde 1970 com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, e que deveriam ser cumpridos nas práticas a favor das vítimas desses crimes, que deixam tantas sequelas ao decorrer da vida dessas vítimas. Contudo, não é capaz de ir contra a verdadeira raiz da revitimização que é a cultura do estupro. 

4 CONCLUSÃO 

No Brasil, é insistente a ideia de continuação para a afirmativa de leis penais que possuem como finalidade a proteção de vítimas mulheres, seguindo de um enredo violento, que resulta em indignação da sociedade, com uma vasta cobertura da mídia e debates nas redes sociais, formando assim a receita para a criação de uma lei penal em homenagem à vítima que iniciou tal processo (OLIVEIRA, GIORDANO 2021, p. 8). 

Para (OLIVEIRA, GIORDANO 2021, p. 8-9), essa narrativa de homenagear as vítimas de crimes de grande repercussão os projetos de leis são rapidamente apresentados à Câmara Federal, visto que há uma grande repercussão na mídia e uma cobrança significativa da sociedade, assim, não há um minucioso debate sobre o objeto que se discute ou na conduta que se pretende punir. 

Nesse sentido, os atos de criar leis penais que homenageiam vítimas é uma forma de estratégia política, em que o nome da vítima é reiteradas vezes utilizado, para que o objetivo da lei possa ser concretizado (GARLAND 2008, p. 317). 

No caso de Mariana Ferrer não foi diferente, visto que à apresentação do projeto de Lei nº 5.096/2020, foi apresentado somente dois dias após a publicação do vídeo da revitimização sofrida por Mariana. Aproveitou assim, a notoriedade do caso para se consolidar na Lei nº 14.245/2021, que tem como objetivo, garantir que os responsáveis pela revitimização da vítima ao longo do processo de persecução penal sejam responsabilizados. 

O reflexo da Lei 14.245/2021 (LEI MARIANA FERRER), no processo de vitimização secundária, foi de certa forma um avanço ao ordenamento jurídico brasileiro, visto que a lei visa proteger a dignidade da vítima, evitando constrangimentos.

Contudo, mesmo com a Lei nº 14.245/2021, ainda se mostra frágil o ordenamento jurídico, visto que o dispositivo prevê meramente o aumento da pena ao crime de coação no curso do processo, além de estabelecer que as partes deverão assegurar a integridade física e psicológica da vítima. 

Embora tenha acrescido o artigo 400-A no Código Penal, que determina que a audiência de instrução e julgamento, em especial nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todos os envolvidos no processo deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima. E ainda acrescentou o artigo 474-A, que por sua vez, estabelece que durante a instrução em plenário todos os sujeitos envolvidos no processo devem respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do dispositivo neste artigo, a mesma redação foi acrescida ao artigo 81 da Lei de Juizados Especiais Cíveis e Criminais (ÂMBITO JURÍDICO).

É sabido que, a Lei nº 14.245/2021, não menciona o acompanhamento médico e psicólogo às vítimas, além de não ser expresso nenhum meio eficaz de combater a cultura do estupro, que é a verdadeira raiz do problema por trás da revitimização de vítimas de crime de violência sexual. 

Como deixa claro (ANDRADE 2003, p.85), que o sistema judicial penal não se constitui apenas um meio ineficaz para a proteção das mulheres, bem como também aumenta a violência contra as mulheres, visto que a utilização dos meios jurídicos como garantia de direitos que visam a proteção feminina apenas representaria uma ilusão de avanço a essa causa.

Visto que, a vitimização secundária ocorre no meio âmbito público, e que a revitimização dessas vítimas é causada por agentes estatais, é de suma necessidade que tenha como alternativa a especialização desses funcionários públicos que atuam diretamente com as vítimas de crimes sexuais, a fim de prevenir a ocorrência da revitimização. Tal teoria é defendida por (TRINDADE, 2007, p.160):

O fenômeno da vitimização secundária parece estar se tornando comum no mundo moderno e servindo para o agravamento da situação das vítimas. Por isso, há necessidade de um olhar atento tanto da psicologia quanto do direito, tanto dos psicólogos, quanto dos operadores judiciais (TRINDADE, 2007, p. 160).

Reiterando a visão de (CARVALHO, LOBATO), que dissertam:

Juízes, promotores de Justiça, defensores públicos, advogados, delegados de polícia e demais servidores da Justiça devem ter noções de psicologia para melhor tratar as vítimas, bem como, tendo o auxílio dos profissionais da área do Serviço Social e da Psicologia, fato que não diminui a competência dos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e nem da Advocacia, ainda mais se estes profissionais fossem do quadro de servidores ligados aos Órgãos mencionados. Ao contrário, apenas engrandece as carreiras. O mesmo se diga aos psicólogos e assistentes sociais. Não há qualquer rebaixamento ao ajudar a se alcançar uma Justiça plena e com danos minimizados àqueles que a procuram (CARVALHO e LOBATO, 2008, s.p).

É certo que o objetivo geral da pesquisa de analisar os reflexos da Lei 14.245/2021, foram atingidos, visto que o trabalho mostra todo o contexto em que surgiu no meio midiático a discussão acerca da revitimização a partir do acontecimento com a Mariana Ferrer, e a partir daí toda a instauração do projeto de lei que virá a se concretizar na lei 14.245/2021 (LEI MARIANA FERRER). 

Por fim, a especialização psicológica é uma alternativa considerável, visto que assim, àqueles que terão o dever de acompanhar e assegurar a vítima um comprimento adequado do processo terá base e conhecimento suficiente para que a vítima não passe pelo processo de revitimização. Pois todas as vítimas devem ser tratadas com respeito, principalmente por aqueles em que a vítima confiou a resolução do seu problema. 


REFERÊNCIAS

ALVES, Schirlei. Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com tese inédita de “estupro culposo” e advogado humilhando jovem. The Intercept Brasil. 2020.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal e violência sexual contra a mulher: proteção ou duplicação da vitimação feminina?. Sistema penal máximo x cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 81-108.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Eletrônica de Ciências Jurídicas, São Luiz, v. 3, 2006.

ANDREUCCI, Ricardo Antônio. A valorização da vítima no processo penal brasileiro. Mar. 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/a-valorizacao-da-vitima-no-processo-penal-brasileiro-por-ricardo-antonio-andreucci/ .

ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura de estupro no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020.

ANTUNES, Leda. Vídeo de julgamento de estupro gera revolta, e advogado diz: “Eu estava exercendo o meu papel. ” O Globo. 2020.

ÂMBITO JURÍDICO, Lei Mariana Ferrer: entenda a nova legislação que visa proteger vítimas de crimes sexuais, 2020. Disponível em: Lei Mariana Ferrer: entenda a nova legislação que visa proteger vítimas de crimes sexuais – Âmbito Jurídico – Educação jurídica gratuita e de qualidade (ambitojuridico.com.br)

BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro, 2008.

BERISTAIN, Antonio. Nova Criminologia à luz do Direito Penal e da Vitimologia. Trad. Cândido Furtado Maia Neto. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.

BRASIL. Lei Mariana Ferrer. Lei n. 14.245/2021. Altera os Decretos-Leis nos 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo (Lei Mariana Ferrer). Presidência da República, 2021.

CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de; LOBATO, Joaquim Henrique de Carvalho. Vitimização e processo penal. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1937, 20 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11854 .

CALHAU, Lélio Braga. Vítima e Direito penal. 2ª ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003

CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. 2ª ed. Leme/SP: CL Edijur, 2010.

CASTRO, Rodrigo. Gilmar Mendes diz que influencer Mariana Ferrer foi vítima de “tortura e humilhação” em audiência sobre estupro. Época. 2020. 

DIÁRIO DO ESTADO Violência contra a Mulher ocorre a cada dois segundos no Brasil, diz pesquisa (diariodoestadogo.com.br). 2018.

FEITOSA, Marcela Nascimento. A Vítima no Processo Penal: Um Instrumento Probatório. Âmbito Jurídico. 2019. 

FERREIRA, Gabriela Bastos Machado; FERREIRA, Letícia Alves. Estudo da vitimização secundária nos crimes sexuais. Revista Científica da Faculdade Quirinópolis, v. 2, n. 11, p. 361–378, 2021.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. 2008. Rio de Janeiro: Revan.

MOTA, Indaiá Lima. Breves linhas sobre vitimologia, redescobrimento da vítima e suas várias faces: algumas questões relevantes. Revista Jurídica da Presidência, v. 13, n. 101, p. 629-655, 2012.

MARTINS, Fernanda K.; GOMES, Alessandra; FONTELES, Juliana; SANTOS, Blenda; BECARI, Jade; PEREIRA, Catharina. Caso Mari Ferrer: Menos de 1% dos tuítes sobre julgamento foram a favor da sentença. InternetLab. 2020

NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes sexuais: no Brasil, uma pessoa é estuprada a cada 8 minutos GEN Jurídico (genjuridico.com.br)

OLIVEIRA, Kenny Stephanny Souza; GIORDANO, Jade Ventura. A Luta Pela Proteção da Mulher Vítima de Violência Sexual no Processo Judicial: Uma Análise do Projeto de Lei Mariana Ferrer. p. 7-13. In: Maternidade, aborto e direitos da mulher. Organizadoras Laurinda.

PRISCO, Luiz. “Não existe estupro culposo”: artistas protestam sobre caso de Mari Ferrer. Metrópoles. 2020

SARDENBERG, Cecília M. B. E COSTA, Ana Alice A. Feminismos, feministas e Movimentos Sociais. In: BRANDÃO, Margarida Luíza Ribeiro e BINGEMER, Maria Clara L. (Orgs.). Mulher e Relações de Gênero. Seminários especiais. Centro João XXIII. São Paulo:  Loyola, 1994. p. 81 – 114.

SIQUEIRA, Carol. Bancada feminina e Comissão de Direitos Humanos notificam autoridades por caso Mari Ferrer. Portal de Notícias da Câmara dos Deputados. 2020a.

SIQUEIRA, Carol. Bancada feminina da Câmara cobra ações sobre o caso Mariana Ferrer. Portal de Notícias da Câmara dos Deputados. 2020b

SIQUEIRA, Fernanda Saldanha, Maynara Costa de Oliveira Silva. São Luís, MA: Editora Expressão Feminista, 2021.

SOUZA, Amanda Carolina Cruz de. A natureza da ação penal no crime de estupro: a vontade da vítima em face da violência institucional. In: Do Ódio e Violência Contra As Mulheres: respostas à pergunta: “Afinal, o que querem as mulheres?”, Belo Horizonte, p. 207-221, 2020.

TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.


 1Acadêmico (s) do décimo período do curso de Direito da Faculdade de Imperatriz – FACIMP, rochelemorghana@antonio

2Orientador, Mestre em Gestão e Desenvolvimento Regional – UNITAU; Especialista em Docência do Ensino Superior e Direito Administrativo – FACIBRA; Professora do curso Direito da Faculdade de Imperatriz – FACIMP, rosyvania@gmail.com