REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7299598
Sinei Ferreira Sales
Resumo
Este artigo tem por objetivo analisar o Projeto de Lei 7582, de 2014, de autoria da deputada gaúcha Maria do Rosário, do Partido dos Trabalhadores e a necessidade de enquadrar a LGBTfobia como um crime de ódio, tal qual o racismo, já que vai de encontro ao princípio constitucional da dignidade humana, bem como o das garantias fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à igualdade e a segurança. Nesse sentido, o recrudescimento desse processo punitivo, acredita-se que, não apenas reduziria violências e práticas criminosas, já que hoje há o pressuposto da não punição rigorosa, já que não tem os agravantes, tais quais outros crimes enquadrados como crimes de ódio, a exemplo do racismo. Além da análise da legislação aplicada, problematiza-se os mecanismos sociais de construção da LGBTfobia, sob uma perspectiva dos estudos de gênero e sexualidade. Como método de análise, pautamo-nos pela revisão bibliográfica de textos das áreas da análise do discurso, da antropologia, bem como do próprio Direito.
Palavras-chave
1. LGBTfobia; 2. Crimes de ódio; 3. Direito Constitucional; 4. PL7582/2014; 5. Lei e Moral
Abstract
This article aims to analyze the PL7582/2014, authored by the Rio Grande do Sul deputy Maria do Rosário, from the Partido dos Trabalhadores, and the need to frame LGBTphobia as a hate crime, just like racism, since it goes from meeting the constitutional principle of human dignity, as well as the fundamental guarantees, such as the right to life, liberty, equality and security. In this sense, the resurgence of this punitive process, it is believed that, not only would reduce violence and criminal practices, since today there is the assumption of not rigorous punishment, since it does not have the aggravating factors, such as other crimes classified as hate crimes, like racism. In addition to the analysis of the legislation applied, the social mechanisms of construction of LGBTphobia are problematized, from a perspective of gender and sexuality studies. As a method of analysis, we are guided by the bibliographic review of texts in the areas of discourse analysis, anthropology, as well as the Law itself.
Key-words
1. LGBTphobia; 2. Hate crimes; 3. Constitutional Law; 4. PL7582/2014; 5. Law and Morals
Introdução
Joga pedra na Geni/ Joga bosta na Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá pra qualquer um/ Maldita Geni (Chico Buarque)
Eternizada na voz de Chico Buarque, Geni, a protagonista da música “Geni e o Zepelim”, que integra a peça Ópera do malandro, não demonstra nada que lhe desabone, a não ser o fato de ser uma mulher que decide fazer uso livre de seu corpo e de seu desejo. No entanto, quando nos voltamos para o texto da peça, percebemos que há, sim, algo que lhe desabone mais do que o fato de usufruir de seu corpo e seu desejo: o fato de ser uma travesti. Geni é a redução do nome de Genival e isso elucida todo o ódio que a sociedade em coro destila aos gritos de “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni”, ou “ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir”.
Esse ódio, que visa a eliminar a existência física e subjetiva de Geni, por meio de agressões físicas e verbais, mesmo depois da redenção da personagem abjeta, transformada em heroína, nada lhe expia de sua mácula principal: ser diferente, amar diferente, viver diferente de um padrão estabelecido pelo horizonte da heterossexualidade compulsória que estabelece um continuum entre sexo, gênero e desejo (BUTLER, 2010). O atentado praticado por Geni ao ordenamento social, desestabiliza a normatividade do continuum enunciado por Judith Butler. Ironicamente, este poderia ser um dos motivos que leva à violência constante contra pessoas LGBTQIA +, mas não justifica a quebra do pacto social e a inviolabilidade do direito à vida e à dignidade.
Voltando-nos ainda para o caso de Geni, por sua história estar circunscrita em um período de exceção na história recente do Brasil, no qual direitos fundamentais eram constantemente violados pela ditadura militar, podemos achar que talvez essas práticas violentas contra a personagem criada por Chico Buarque fosse apenas fruto de um momento histórico. No entanto, quando colocamos em perspectiva os crimes cometidos contra pessoas LGBTQIA+, observamos que a violação de direitos e a violência impingida nesses crimes ganham contornos e rigores de crueldade, que visam à aniquilação do diferente, mesmo em um contexto democrático.
Nesse sentido, a título de ilustração, três crimes contra pessoas LGBTQIA+ chamaram a atenção da opinião pública nas últimas três decadas: o primeiro deles, foi o assassinato de Édson Néris, em 2000, por um grupo de skinheads, na Praça da República, espaço tradicional de encontro entre homens gays no centro da cidade de São Paulo. A crueldade com que um grupo de dezoito a vinte adolescentes, adeptos à ideologia neonazista, espancaram Néris até a morte chocou a opinião pública brasileira, chamando a atenção para os crimes motivados por homofobia.
A segunda vítima do ódio e da intolerância, cuja história arrolamos aqui, é a de Luana Barbosa, mulher negra, lésbica, periférica, vítima do abuso do Estado por meio de seus agentes. Durante uma abordagem policial, Barbosa recusou-se a ser revistada por policiais homens, estes que insistiam em levantar a camiseta da suspeita para atestar seu sexo biológico. Isso gerou mais do que desconforto, gerou a violação de direitos básicos. A fim de se esquivar da investida policial, a vítima reagiu, mas foi continuamente espancada por três polícias, vindo a falecer em decorrência das agressões.
Por fim, não que queiramos elencar o mais brutal dos assassinatos, mas, por termos acesso aos registros por vídeo do espancamento e por ouvirmos o som do tiro que deu fim à vida de Dandara, em 2017, este, talvez, seja um dos mais chocantes pelo rigor de crueldade e de desejo de apagar e de extinguir qualquer vestígio de humanidade que tocasse a Dandara. A jovem travesti foi assassinada por motivo torpe, sem possibilidade de reagir às violências. Tal qual Geni, sua razão de ser no mundo era satisfazer a luxúria de seus parceiros e satisfazer também o ódio e a ânsia por exterminar o diferente.
Em comum, os crimes que arrolamos acima tiveram como vítimas pessoas LGBTQIA+ vítimas de violência extrema que as levaram à morte. Por estarem, na maioria das vezes, associadas a motivos torpes e rigor de crueldade, com impedimentos de defesa das vítimas, neste artigo buscaremos discutir quais ações o Estado brasileiro empreende e/ou pode empreender, a fim de proteger esta parcela da população vulnerável ao ódio e a à intolerância, com direitos constantemente violados. Para isso, partiremos da revisão bibliográfica, articulando conceitualmente as noções de Direitos Humanos, crimes de ódio, LGBTfobia, visando a uma problematização acerca das noções de moral versus Direito e a consequente dificuldade em se aprovar o PL 7582/2014, de autoria da Deputada Maria do Rosário, do Partido dos Trabalhadores, no qual “define os crimes de ódio e intolerância e cria mecanismos para coibi-los, nos termos do inciso III do art. 1 o e caput do art. 5o da Constituição Federal, e dá outras providências” (BRASIL, 2014).
Revisando e ampliando conceitos, não: ampliando a visibilidade
Oliva (2015), em sua dissertação de mestrado, O discurso de ódio contra as minorias sexuais e os limites da liberdade de expressão no Brasil, faz um levantamento bastante interessante acerca da violência contra as minorias sexuais, pensadas não em termos numéricos, mas em questão de representatividade social e política. Assim, minoria é entendida em termos deleuzianos, que pensa os dissidentes como aqueles que escapam à norma e à regra. No caso das políticas de gênero e sexualidades, a norma é a heterossexualidade compulsória, que restringe, priva, normatiza e criminaliza as dissidências. Assim, Oliva afirma:
O discurso de ódio constitui, assim, também uma forma de violência contra as minorias em questão, pois reproduz o heterossexismo - uma ideologia alicerçada na hierarquia das sexualidade contribuindo de forma decisiva para aumento da hostilidade frente a gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis. Ademais, resulta na internalização de preconceitos e estereótipos por parte das próprias vítimas, trazendo uma série de consequências nefastas à sua autoestima. É nesse discurso que, encontrando eco no âmbito de instituições como a família, a escola e a mídia, alimenta uma ordem social de exclusão e constrói uma ideologia que se encontra por trás da permanente violação de direitos de indivíduos LGBT (OLIVA, 2015, p.16).
É possível perceber que, embora Oliva traga em seu discurso a ampla violência contra pessoas LGBTQIA+, insiste, ao longo de sua argumentação, no termo “homofobia”, pensando nas tecnologias do sistema heterossexista que criaria imediatamente o seu antípoda como homossexista. Ainda que concordemos com as definições trazidas pelo pesquisador, quando nos debruçamos sobre os casos apresentados nesta introdução, percebemos como “homofobia” torna-se um termo pouco preciso para descrever a violências contras as sexualidades e identidades dissidentes que se baseiam não apenas na veiculação e circulação de desejos.
A gênese de tal conceito é atribuída ao psicólogo norteamericano George Weinberg, em seu livro Society and the Healthy Homosexual, publicado em 1971 e, originalmente, visava a denotar o ódio contra pessoas homossexuais, mas, contemporaneamente, é empregada como sinônimo de aversão contra pessoas homossexuais e contra suas práticas eróticas. Nesse sentido, a questão não se centra na complexidade que abrange diversas representações identitárias, tais como as pessoas lésbicas, que sofrem violências não apenas pelo fato de amarem outras mulheres, mas também pelo fato de serem mulheres. No caso de mulheres trans e pessoas travestis, a questão está para além do desejo e para além da identidade de gênero, pois coloca também o aspecto da biologia na cena, criando a necessidade de uma abordagem interseccional para entender os motivos de violações e violências. Assim, LGBTfobia torna-se uma forma mais abrangente que traz luz às violências contra as minorias sexuais e de dissidência de gênero que não apenas pessoas homossexuais. Assim, concordamos com Ferreira (2018), que em sua tese de doutorado emprega o conceito LGBTfobia como uma forma de ampliar e abranger o espectro das diferenças baseadas nos ordenamentos de gênero, sexo e desejo.
Ferreira ainda elenca dois momentos significativos na política brasileira, por meio de dois Projetos de Lei, enunciadas pela ex-deputada paulista, Iara Bernardi, que visava inicialmente a criminalização da homofobia, por meio do PL 5003/2001, que “determina sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas”, e o PLC 122/2006, que visava a alteração
da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, dá nova redação ao § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e ao art. 5º da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e dá outras providências (BRASIL, 2006).
As iniciativas de Bernardi foram bastante significativas em prol da garantia de Direitos Fundamentais, da população LGBTQIA+. Ambas as iniciativas não vieram a se tornar realidade, isto é, Lei efetiva, mas trouxeram luz à problemática dos altos índices de violência, resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Certamente, as polêmicas provocadas por seus Projetos de Lei chamaram mais atenção do que se houvesse sido aprovada de fato. A publicidade indireta gerada pela bancada evangélica do legislativo, encabeçada pelos então parlamentares Marcelo Crivella e Magno Malta, foi bastante eficiente, uma vez que levou a sociedade civil a pressionar as instâncias de poder e governo do Estado brasileiro.
Antes de analisarmos aspectos morais da sociedade brasileira que tem dificultado a criminalização da LGBTfobia e do enquadramento desta como crime de ódio, convém analisarmos mais detidamente o Projeto de Lei da deputada Maria do Rosário, deputada pelo Partido dos Trabalhadores, do Rio Grande do Sul. Antes de prosseguirmos, convém mencionar que o compromisso das instâncias de poder com a criminalização de violências contra pessoas LGBTQIA+ não foi apenas e nem é apenas um atributo de partidos de esquerda. Esta é uma questão que atravessa diversos partidos de orientações distintas. MDB e PSDB foram dois partidos bastante engajados em garantir direitos fundamentais e sociais a esta parcela da sociedade.
PL 7582/2014
Diferente de sua correligionária, Maria do Rosário propôs em seu PL 7582, primeiramente a definição de crimes de ódio e intolerância, além disso, pensou também mecanismos para coibi-los. Avançando assim, em matéria de proposições e intervenções concretas no real. No seu terceiro artigo, propõe uma definição de crime de ódio:
Constitui crime de ódio a ofensa a vida, a integridade corporal, ou a saúde de outrem motivada por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência (BRASIL, 2014, p.3).
Além é claro de estabelecer que crimes em que se identificam as motivações acima, serviria como um agravante para o crime, aumentando a pena de acordo com a gravidade da ação de um sexto, até metade da punição proposta. Estabelece também os chamados crimes de intolerância,
Constituem crimes de intolerância, quando não configuram crime mais grave, aqueles praticados por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência (Idem, 2014, p.4).
Somados aos aspectos penais e punitivos, o projeto de lei de autoria de Maria do Rosário ainda a necessidade de um compromissos institucionais na valorização e respeito às diferenças de sexo, gênero, orientação e identidade sexual, origem, situação social, ideadade entre outros aspectos que venham a compor os chamados marcadores sociais da diferença. Ainda prevê assistência às vítimas dos crimes de ódio e de intolerância, conforme previsto nas Leis do Sistema Único de Assistência Social.
Quando nos voltamos às justificativas para a entrada em vigor de tal projeto de Lei, a parlamentar aponta que
O enfrentamento de toda e qualquer forma de discriminação fortalece o Estado de Democrático de Direito, especialmente quando as normas se voltam à proteção daqueles grupos em situação de maior vulnerabilidade social. Há lacunas legislativas que, portanto, não podem ser toleradas, pois ignoram a necessidade de proteção de alguns grupos que sofrem de forma direta e constante agressões e violações de direitos humanos. (Idem, 2014, p.8).
Na sequência da argumentação, recorre aos estudos de Ariadne Natal, que, em sua tese, relaciona a violência, ou melhor, as práticas de linchamento, como forma de desumanização de pessoas LGBTQIA+, resultando em jusitciamentos sumários. Convém notar ainda a perspicácia de Natal na associação que faz entre os grupos vulneráveis, aos quais o PL visa a proteger, e a noção de estigma e a deterioração de identidades, como definido por Erving Goffman (2008), ou seja, pessoas LGBTQIA+ carregam em seus corpos e subjetividades, marcas indeléveis que as distinguem dos demais e essas marcas justificariam as violências físicas e simbólicas. Não à toa que, o assassinato de Néris, de Barbosa e de Dandara, tenham em comum os elementos vinculados às práticas de linchamento, tal qual aqueles praticados contra a Geni, de Chico Buarque.
Nesse sentido, os motivos pelos quais a aprovação da criminalização da LGBTfobia urge, tornam-se cada vez mais evidentes. Agora, vamos retroceder e analisar o porquê de ainda não ter acontecido.
Moral x Direito
Em A história da Sexualidade: a vontade de saber, o filósofo francês Michel Foucault, descreveu práticas discursivas e sociais às quais chamou de dispositivo da sexualidade. Identificou uma série de práticas normativas que colocaram o sexo e a sexualidade como atributos para a construção de subjetividades e identidades. De modo que, resgatou e reformulou uma afirmação de Aristóteles, em que o filósofo grego dizia ser o homem um animal capaz de existência política. Foucault, por sua vez, afirmou que, na modernidade, o homem se tornou um animal cuja vida passou a ser objeto de política (FOUCAULT, 2001, p.134). É nesse campo das disputas acerca dos modos de governo dos homens que a vida passou a ser um objeto de disputa política.
Assim, o filósofo francês observou também que a docilização de corpos, a fim de enquadrá-los em estruturas normativas, passou a visar também o sexo e a sexualidade como modelo de investimento sobre a vida. À semelhança do que a Igreja sempre fizera em suas práticas confessionais, as instituições no Ocidente passam a buscar confissões dos indivíduos acerca de seus desejos e prazeres, determinando desviantes, os que não não praticam o sexo verdaderio ou repeitam o continuum sexo-gênero-desejo. Instituições médicas, psicológicas, psicanalíticas, escolas e presídios, tornam-se espaços de construção de técnicas de governo que visam ao controle de corpos e de subjetividades, isto é, os meios pelos quais um indivíduo emprega os discursos para se dizer e se estabelecer como sujeito no mundo.
Dessa forma, todos os desviantes passaram a ser objetos de investimentos e de exercícios de poder tal qual a lógica do pastorado. Novamente, mais uma metáfora bíblica de que Foucault lança mão para demonstrar as práticas de controle e de exercício do saber-poder. De modo que, à imagem da parábola bíblicas em que o pastor, responsável por um rebanho, sabedor de que uma unidade dentre tantas havia se desgarrado, só se alegraria se a perdida fosse enquadrada e restabelecida ao bando, desprezando as demais que permaneceram ao seu alcance.
Essa imposição moral, que visa a correção de práticas vinculadas ao sexo, ao gênero e ao desejo até hoje ainda são empregadas como subterfúgios para práticas de controle e de normalização/normatização de condutas sociais. Não é à toa que a busca por pautas conservadoras em nossa sociedade conta com um grupo de legisladores identificados como a bancada da bíblia ou bancada evangélica. Como se percebe, esse tipo de prática vai de encontro ao que se enuncia no artigo terceiro da Constituição de 1988, em que preconiza-se como objetivos fundamentais do Estado brasileiro a “promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988).
Durante a legislatura da primeira década dos anos 2000, os embates entre a chamada bancada evangélica e a proponente do PL 122/2006, foram bastante noticiados pela mídia, sobretudo porque os defensores de pautas de costumes, em atitude claramente discriminatória e inconstitucional, pregava a invisibilização das reivindicações de direitos assegurados, dentre eles, a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Correntemente, o argumento dessa bancada conservadora é apresentado em defesa de um padrão familiar constituído em torno da chamada família tradicional, em que se estabelece a figura do homem e da mulher, ambos, cisgênero, heterossexuais, como centrais.
Para a defesa desse modelo estrutural de família, os argumentos apresentados pautam-se pelo criacionismo e por discursos que desconsideram a ciência e a razão na interpretação de fenômenos biológicos e sociais. Assim, colocam a fé como princípio estruturante de seus argumentos. No entanto, quando estabelecem este elemento como princípio organizador da sociedade, impõem uma visão única acerca da constituição de pessoas e credos religiosos, ignorando a possibilidade de diferenças. Novamente, contrariando o modo plural que o Estado brasileiro se organiza, inclusive, atentando contra a laicidade, que deve ser um dos princípios norteadores da sociedade.
Esse princípio, ficou bastante em xeque durante o processo vexatório de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, quando no plenário da câmara, a grande maioria dos parlamentares empregava os argumentos “Deus” e “família” como motivos do afastamento de uma presidenta legitimamente eleita pelo povo. Esse evento chamou a atenção para questões bastante delicadas e para o prenúncio de um Estado totalitário e fundamentalista. Além do processo de impedimento da presidenta, a eleição de Marcelo Crivella, bispo da neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus, para prefeito da cidade do Rio de Janeiro serviu como alerta para o atentado contra o caráter laico do Estado.
Convém lembrarmos que, aqui, não estamos praticando discrimanção contra as religiões ditas evangélicas, rótulo que abarca uma diversidade de modos de pensar o cristianismo. Apenas estamos pensando algo que já é de garantia constitucional, como o preconizado no artigo 5º da Constituição, inciso sexto, em que se afirma: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (BRASIL, 1988). Sabemos, inclusive, pelo que observamos da História, a confusão entre Estado e Religião e as consequências sobre quem pensa e professa ou não a fé de modo diferente do que é preconizado.
Ainda sobre o posicionamento dessa bancada evangélica, não raro, buscam devolver às sexualidades dissidentes o rótulo de doença, propondo curas por meio de práticas médicas, psiquiátricas e psicológicas, quando não, atribuindo a possessões demoníacas o desejo e as sexualidades dissidentes. Esse tipo de prática, viola não apenas direitos básicos, como atenta contra conhecimentos científicos, tais como os organizados pela Organização Mundial da Saúde, que há muito despatologizou a homossexualiade, tirando-a de seu Cadastro Internacional de Doenças, assim como, em 2018, tirou de seu rol de doenças-psi a transexualidade.
Não raro, essas disputas que colocam o corpo, o desejo e a identidade de pessoas LGBTQIA+ no centro das disputas políticas promovem a incitação à violência e o ódio contra o diferente, o que remonta, muitas vezes, aos Tribunais da Santa Inquisição da Igraja Católica, que associavam a homossexualidade e práticas sexuais não normativas à possessões demoníacas e à bruxaria, levando diversos indivíduos considerados anormais – os quais, hoje, se encontram sob o guarda-chuva político da sigla LGBTQIA+ -, à fogueira e a tipos de mortes brutais. Nesse sentido, percebemos como as práticas sociais e morais da sociedade ainda empregam tecnologias medievais para vigiar e punir práticas eróticas, sociais e identitárias.
Analisando as estruturas morais que condicionam a homofobia na Inglaterra, bem como suas representações na Literatura inglesa, Eve Kosofsky Sedgwick, comenta a existência de um pânico homossocial, estruturado não necessariamente pelas práticas eróticas, mas sim pela exposição de marcas e traços que possam vincular os indivíduos às práticas desviantes. Ou seja, esse pânico, de acordo com a autora de Between men, decorre da visibilidade e da exposição do que alguns grupos consideram como não permitido, como não padrão para o espaço público. Isso gera uma dissonância entre os universos público e privado, tensionando muitas vezes a existência dupla de alguns indivíduos cujo desejo é reprimido diante de uma esfera pública altamente repressiva.
Quando adaptamos as reflexões de Sedgwick ao contexto da LGBTfobia, percebemos que o pânico decorre da existência pública de identidades, subjetividades e desejos que atentam contra a moral e os bons costumes de indivíduos que empregam argumentos excludentes, vexatórios, além de inconstitucionais, para preservar o ambiente público da existência amedrontadora de pessoas travestis, trans, lésbicas, gays e bissexuais, além de uma gama identitária abarcada pela sigla do arco-íris. Assim, podemos problematizar se as disputas pelos espaços públicos justificam a expressão da LGBTfobia e poderia apontar para um dos motivos pelos quais os projetos de Lei que visam a criminalização de violências praticadas contra as dissidências sexuais sejam tão atacadas por indivíduos que se consideram e defendem pautas conservadoras.
Reivindicação da diferença e orgulho de ser diferente
O movimento por reivindicação de direitos e garantias constitucionais pela população LGBTQIA+ surge à esteira do movimento norte-americano. À esteira do movimento das mulheres e dos movimentos que pediam o fim das guerras coloniais, o movimento encabeçado pelos frequentadores do bar Stonewall Inn, em Nova York, que ficou conhecido como rebelião de Stonewall, teve como objetivo marcar posição diante das violências e agressões do Estado. Este, que não apenas patologizava as práticas sexuais e eróticas consideradas desviantes, também criminalizava e punia indivíduos que se identificavam como dissidentes da heterossexualidade compulsória.
Essa rebelião repercutiu mundialmente, dando força para que, ao redor do mundo, o movimento arco-íris pregasse o amor e não a guerra, o ódio e a intolerância. Sob esse guarda-chuva, pessoas lésbicas, gays, travestis, transexuais, bissexuais e queers, uniram-se a fim de reivindicar o direito à diferença e o direito à vida plena e sem discriminação. No Brasil, essas reivindicações tiveram de ser veladas, pois perdurava o regime militar. Ainda assim, não foi o suficiente para que militantes subversivos se organizassem a fim de viverem suas sexualidades e identidades de modo amplo, aberto e com dignidade. Na década de 1970, organizou-se em São Paulo o Grupo SOMOS, um grupo de jovens intelectuais, em torno da publicação do jornal Lampião na esquina, objetivando criar uma cultura LGBTQIA+, fomentando o orgulho e a reivindicação da diferença como uma forma de existência plena. Simultaneamente, em Salvador, organizava-se o Grupo Gay da Bahia, outra instituição atuante e comprometida com a existência e a resistência diante das violações de direitos pelo Estado brasileiro:
A fundação do primeiro grupo brasileiro a afirmar uma proposta de politização da questão da homossexualidade, o Somos, de São Paulo, ocorreu em 1978, num contexto marcado pela contracultura, pela ditadura militar, por intensa atividade de grupos de esquerda e pelo surgimento e a visibilização das versões modernas do movimento feminista e negro (MacRae, 1990). O grupo nasceu já marcado por uma polarização entre a “esquerda” e a “autonomia das lutas das minorias” que, posteriormente, seria responsável por alguns de seus graves conflitos internos. Num primeiro momento, o Somos era composto exclusivamente por homens, passando posteriormente a ser frequentado por mulheres, que se organizam em grupo separado – o Grupo Lésbico-Feminista – a partir de 1981 (FACCHINI, 2009, p.51).
A movimentação desses grupos levou a uma sistemática problematização acerca da criminalização de orientações sexuais dissidentes, sendo solicitada a inclusão da proibição de discriminação por orientação sexual a ser incluída no Título II da Constituição, junto a outras garantias individuais, como as que constam no Art. 5º. No entanto, argumentos com o fundo moral, tais comos os que consideravam anormais as pessoas LGBTQIA+, além de outros que consideravam a homossexualidade “maldição”, impossibilitaram a inclusão do tópico na Carta Magna (BAHIA&SANTOS, 2010).
O posicionamento deste grupo conservador não se dava aleatoriamente. Ao longo da década de 1980, a pandemia de HIV/AIDS, acentuou o estigma das práticas eróticas homossexuais como sendo veiculadora do que se considerava o “câncer gay”. Uma pauta que era de política pública e sanitária, tornou-se um cabo de guerra para as disputas políticas e controle dos corpos de pessoas LGBTQIA+. De acordo com Facchini:
Se a política de prevenção à aids adotada no Brasil direcionou temporariamente as pautas para a saúde, estimulou a expansão do movimento para fora das capitais e dos circuitos de classe média e manteve o foco da atenção no nível das políticas federais, outros processos, como o de descentralização da política de saúde e o de preparação da Conferência GLBT em âmbitos municipal, estadual e federal, têm exigido o fortalecimento do controle social em nível local, recolocando a polaridade entre Estado e sociedade civil e exigindo maior capilaridade do próprio movimento. Sob pressão da sociedade civil e de processos políticos internacionais, as agências estatais especializam-se em públicos e questões cada vez mais específicas – políticas para “negros”, “mulheres”, “comunidades tradicionais”, de “combate à homofobia” – e retroalimentam a multiplicação de “sujeitos vulneráveis”. Por outro lado, cada vez mais se fala em “transversalidade” nas políticas públicas (FACHHINI, 2009, p. 52).
No entanto, paulatinamente, a organização e ocupação de espaços públicos, sobretudo por meio das Paradas do Orgulho LGBTQIA+ e pela “saída do armário” de pessoas públicas e influentes na sociedade, fizeram com que as pautas e as reivindicações deste grupo fossem cada dia mais ouvidas, culminando, por exemplo na legalização da União Civil de pessoas do mesmo sexo e questões vinculadas ao direito de herança, ou no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, em 2019, do enquadramento da homofobia e da transfobia como crime de racismo.
Sobre este ponto em especial, que demonstra um processo de evolução das instituições brasileiras e sua adequação à proteção integral da dignidade da pessoa, como preconizado pela Constituição, simultaneamente, chama a atenção para o legislativo. O STF, na referida ação previu que o Congresso:
edite lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, se enquadram nos crimes previstos na Lei 7.716/2018 e, no caso de homicídio doloso, constitui circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe. No segundo ponto, a tese prevê que a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe o exercício da liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio. Finalmente, a tese estabelece que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis.
Como se percebe, portanto, do despacho do STF, noticiado em sua página institucional, a queda de braço que se estabelece, hoje, na sociedade brasileira não é com o judiciário brasileiro, sim, com o legislativo. Assim, percebemos o perigo quando religião e política se misturam, levando-nos a questionar o verdadeiro sentido da representatividade.
A igualdade é colorida
Em agosto de 2007, o então Ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro publicou um artigo de opinião, no jornal Folha de São Paulo, intitulado A igualdade é colorida. Na ocasião, tramitava no legislativo o Projeto de Lei que visava à criminalização da homofobia e, por isso, o Ministro veio a público questionar: “são 18 milhões de cidadãos considerados de segunda categoria: pagam impostos, votam, sujeitam-se a normas legais, mas, ainda assim, são vítimas de preconceitos, discriminações, insultos e chacotas” (MELLO, 2007). A partir dessa pergunta retórica, ao longo de sua explanação, pontua algumas conquistas, no âmbito estadual e municipal, que contribuíram para ampliar a dignidade das pessoas LGBTQIA+ no Brasil.
Além disso, pontua ainda as contradições que vêm sempre do âmbito federal: como os representantes legitimamente eleitos pelo povo ainda desconsideram as movimentações por reivindicações não apenas de direitos, mas também de uma garantia básica que é o direito à vida, à segurança e à dignidade. Direitos constantemente negados por pautas ideológicas que estabelecem padrões de comportamentos e que se estendem a todo e qualquer indivíduo na sociedade brasileira, objetivando uma homogeneização que o real não permite.
Nesse sentido, ainda concordando com o Ministro Marco Aurélio, a igualdade é colorida, é diversa. Para que consigamos manter essa diversidade viva e pulsante, torna-se, cada vez mais, necessário distinguir e pautar as garantias constitucionais pela Lei, não por costumes.
Por fim, ainda que saibamos que a criminalização e o arrojo das penas e punições para quem pratica crimes motivados pelo ódio contra pessoas LGBTQIA+ não seja o suficiente as amplas transformações sociais de que necessitamos, é um caminho para a garantia de direitos fundamentais para esta minoria. Minoria que tem se mostrado cada vez mais barulhenta e atuante politicamente. Não apenas nos pleitos de câmaras de deputados ou do senado, mas também na vida prática, no dia a dia. O orgulho e a visibilidade pintam cada vez mais o símbolo da justiça de arco-íris.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
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1Disponível em: https://despatologizacao.cfp.org.br/transexualidade-nao-e-transtorno-mental-oficializa-oms/
2“STF enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa”. Fonte: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010