A EDUCAÇÃO DE UM MEDALHÃO: MACHADO LEITOR DE CÍCERO?

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7299449


Sinei Ferreira Sales1


RESUMO

Neste ensaio, ao realizarmos uma leitura do conto clássico “Teoria do medalhão”, de Machado de Assis, à luz de “De Officcis”, do legislador latino Cícero, buscamos discutir os processos que condicionaram a educação do homem brasileiro do século dezenove moldado às avessas do ideal preconizado pelo autor latino. Nesse sentido, o presente ensaio busca iluminar a ideia de que a Literatura é um espelho da sociedade, porém, não um espelho plano mas côncavo, que ao compreender o objeto real em seu centro, projeta sua representação invertida. Assim, a argumentação desenvolvida parte do objeto real, tal como idealizado por Cícero, e o realoca no centro de curvatura do espelho literário de Machado de Assis. 

PALAVRAS-CHAVE:
1. Literatura e sociedade; 2. Machado de Assis; 3. Cícero; 4. Gênero; 5. Século XIX

ABSTRACT

 In this essay, we propose a reading of Machado de Assis’s classic short story “Teoria do medalhão” with the lens of Cicero, the Latin legislator, in “De Officcis”, and to discuss the processes that conditioned the education of Brazilian nineteenth century men molded in reverse of the ideal advocated by the Latin author. In this sense, the present essay aims to illuminate the idea that Literature is a mirror of society, not a flat but concave mirror, which, in capturing the real object at its center, projects its inverted representation. Thus, the argument starts developing from the real object, as idealized by Cicero, and reallocates it in the center of curvature of Machado de Assis’s literary mirror. 

KEYWORDS
1. Literature and society; 2. Machado de Assis; 3. Cícero; 4. Gender; 5. Nineteenth century.

Introdução
Em lágrimas Anquises: “não me inquiras”/ dos teus o luto ingente; apenas, filho, / à terra o mostrará destino avaro
(Virgílio, A Eneida, Canto VI) 

Diálogos filosóficos, tais quais desenvolvidos por Cícero em seus escritos, como aponta Lima (2009), não foram uma novidade no universo latino. Outras figuras ilustres se apropriaram do gênero por meio da imitatio, trasladando a experiência helênica para o universo romano. Ainda assim, Cicero foi um dos que mais se destacou e direcionou seus escritos para o campo da moral, não se atendo tanto à metafísica. À semelhança de Platão, buscou trazer a filosofia para as questões práticas da vida. Quanto às regras de composição do gênero, Lima traçou uma análise arqueológica, trazendo luz aos métodos de composição de tal gênero, aproximando-o da poética. Além disso, por mais que as regras de composição desse gênero não tenham um manual específico, melhor, que não tenha resistido ao tempo, Lima nos mostra que esse gênero dialógico ganha contornos originais nos escritos de Cícero. 

Assim, diferente de Platão, cujos diálogos mantinham a unidade baseada na ação, Cícero buscou a unidade na lógica, ou, como afirma o próprio Lima ao discutir a unidade de De finibus, “trata-se de uma unidade, poderíamos dizer, que está mais próxima daquela que encontramos nos discursos públicos ou na poesia didática” (LIMA, 2009, p.127). Pensando nesse aspecto didático dos trabalhos de Cícero, neste ensaio, abordaremos os diálogos entabulados pelo autor com seu filho, Marco, na obra De officcis, interessando-nos pensar a construção das personagens que interagem e quais os aconselhamentos que são dados ao jovem Cícero para uma vida pública decorosa. Após isso, discutiremos como essa cena é apropriada por Machado de Assis, no conto “Teoria do medalhão”, e quais são os aconselhamentos dados por um pai ao seu filho, numa cena semelhante à criada por Cícero, no aniversário de 21 anos do rapaz. Com isso, problematizaremos a gênese do homem público brasileiro, a partir desses diálogos com a tradição latina.

Aproximações à De Officiis 

A educação filosófica por meio de textos literários foi uma constante, ao longo da história ocidental. No livro X da República, Platão mostra como isso se dá. Poemas épicos, como Ilíada e Odisseia, guardam conhecimentos ancestrais sobre história, religião, ética, entre outros, de modo que, na execução desses poemas, esses saberes são presentificados e fincados no solo da cultura local. Além da tradição poética, uma outra tradição foi amplamente difundida na educação dos cidadãos gregos, posteriormente, retomada e ampliada por Cícero, na Roma Antiga, isto é, a tradição das disputas filosóficas que, de modo dialógico, tratavam de temas elevados em conjunto com a retórica, visando não apenas o desenvolvimento de uma filosofia abstrata, mas também de uma filosofia prática, que organizaria e regularia o bom viver em sociedade. Nesse sentido, De Officiis, – ou, como traduzem, Dos deveres tornou-se célebre não apenas por ser a última obra filosófica de Cícero, mas por ser um exercício filosófico no campo da política e da ética. 

Desencantado com os rumos que a res publica tomava, em De officiis, Cícero, apartado inclusive da vida pública e política, estabelece seu segundo filho, Marco, como o interlocutor virtual de uma série de diálogos que visam à complementação da educação do rapaz ao completar 21 anos. Nesse sentido, como aponta Angélica Chiapeta no texto introdutório de sua tradução para o português de De officiis, Cícero evidencia que o fim último de seu livro seria a educação do filho, já que este deveria satisfazer as expectativas criadas por sua educação e por sua ascendência ilustre. Esse lugar-comum aparece em diversos textos épicos e dramáticos. Para exemplificar, podemos retomar A Eneida. Ainda que posterior ao último livro de Cícero, guarda elementos que aqui nos interessa comentar, além disso, é uma excelente representação de nosso argumento no campo da poesia épica. 

Virgílio, no canto VI de sua epopeia, Eneias, ao descer aos Infernos, reencontra Anquises, seu pai, e lá, o ancião guia o herói, mostrando-lhe o passado e o futuro, conjugados na eternidade que amalgama os tempos. Figuras ilustres do passado comum de ambos são justapostas aos descendentes romanos. A partir disso, o ancião demonstra ao herói que haverá guerras inevitáveis, mas pede que a pátria não seja maculada e que o destino manifesto de Roma se cumpra, isto é, que o imperialismo romano se cumpra e que as leis latinas sejam levadas pelo mundo. Finda as visões e explicações acerca de seu destino, Eneias é conduzido por seu pai à saída dos infernos, retornando ao mundo das aparências para, enfim, cumprir aquilo que lhe foi predito. 

Ainda que tenham sido predições, interessante notar que os aconselhamentos do pai vão na direção da manutenção da ordem do mundo deixada pelos ancestrais. Ainda que na eternidade, os tempos se sobreponham, Anquises fixa em Enéias a consciência do resultado da progressão histórica e de uma ancestralidade na construção do presente e do futuro. Nesse sentido, a única garantia da manutenção da ordem, seria garantido pelas leis que regem a vida pública. Cabe lembrar também que o pai de Eneias atribui aos latinos o encargo de manter e expandir essas normas.  Em suma, aos anciães cabe o lugar de preservação das leis e da manutenção da ordem. À exemplo do que faz Virgílio, mantendo o decoro na representação de Anquises e de Eneias, Cícero, na introdução de De Officiis, coloca-se na figura do sujeito a conduzir seu filho Marco. Por mais que a educação básica tenha sido delegada a Cratipo, em Atenas, a educação prática, para a vida, Cícero toma para si:  

Há um ano, Marco, meu filho, ouves os ensinamentos de Cratipo, e isso em Atenas! Deves, pois, estar amplamente informado dos preceitos e doutrinas filosóficas em razão do elevado prestígio de teu mestre e da cidade – um pode enriquecer-te com sua ciência, a outra com seus exemplos. Não obstante, como pessoalmente sempre associei para meu proveito os estudos gregos aos latinos – e não só em filosofia, mas também no exercício da oratória –, julgo que o mesmo deves fazer, para alcançar igual proficiência em ambos os discursos (CÍCERO, 1999, p.3).

É possível notar nesse excerto como o interesse do pai recai não apenas na formação acadêmica do filho, mas na formação prática, para ser um homem público. De modo que suas intervenções públicas sejam não apenas ouvidas, como respeitadas e críveis, levando em conta as teorizações normativas dos manuais de retórica. Além disso, o espírito cosmopolita proporcionado por Atenas contribui para a formação política de Marco para uma futura atuação em Roma. Vejamos:

Todavia, lendo os nossos escritos, não muito distanciados dos peripatéticos – pois uns e outros queremos ser socráticos e platônicos –, a respeito do próprio conteúdo empregarás teu tirocínio (com efeito, nada proíbo) e decerto produzirás, graças à leitura deles, um discurso latino muito apurado. Nem desejaria, é óbvio, que se considerasse ter isso sido dito em tom arrogante, porquanto, considerasse ter isso sido dito em tom arrogante, porquanto, concedendo a muitos a erudição filosófica, se para mim assumo as qualidades do orador – falar de forma conveniente, clara e elegante –, parece-me que o reivindico como por direito próprio, pois nesse esforço consumi toda a minha vida (Idem, p.4)

Após exortar o filho a seguir seus passos, lendo não apenas seus discursos, mas também seus livros, Cícero se coloca como alguém que conseguiu sintetizar o paradigma filosófico de um Platão, aliando-o à eloquência retórica, deixada de lado pela maioria dos filósofos.  

Na continuidade de sua argumentação, Cicero, textualmente, marca a adequação de suas reflexões ao caráter de seu interlocutor, e diz: “mas, como se tivesse decidido escrever-te algo neste momento, e muitas coisas depois, quis começar de preferência por aquilo que fosse mais conveniente à tua idade e à minha aptidão” (Idem, p.5). Quanto à questão temática dos aconselhamentos que tecerá ao filho afirma:

pois, embora tenham sido discutidos acurada e abundantemente, na filosofia, diversos assuntos não só graves como úteis, parecem muito amplos aqueles que, a propósito dos deveres, foram transmitidos e prescritos por ela. De fato, parcela alguma da vida, quer nos negócios públicos, quer nos privados, quer nos forenses, quer nos domésticos, quer nos da esfera estritamente pessoal pode prescindir do dever. E não só no cultivá-lo reside toda honestidade da vida como, no negligenciá-lo, toda torpeza (idem, p.5).

Nesse ponto, fica claro como Cícero pensa a filosofia moral, isso é, como algo da esfera prática da vida, da obrigação moral dos cidadãos e, ao contrário do que propunham os estóicos, isto é, de que “a finalidade da vida era a virtude” (CHIAPETA, 2009, p. XLI), para Cícero, “nada é bom, exceto aquilo que é honesto” (idem, p. XLI). Como ainda aponta o autor de De officiis, a honestidade é o elemento que vai direcionar a virtude para que o sujeito não ceda aos prazeres individuais, de modo a não prejudicar o convívio em sociedade. Isso pois, quando o sujeito consegue ser honesto consigo mesmo, consegue permanecer coerente a suas convicções, sem se deixar vencer por ações instintivas, podendo, enfim, cultivar a amizade, a justiça e a liberalidade. 

Ao longo dos três livros que compõem De officiis, examina ainda as quatro virtudes, como colocadas pelo estóico Panécio, sendo elas: sabedoria, justiça, coragem ou magnanimidade e decoro. Inevitavelmente, a grande crítica de Cícero foi àqueles que encaravam o fim último das virtudes como sendo o próprio prazer. No livro II, de forma bastante didática, explana sobre como reconhecer o lugar que as virtudes ocupam na prática. Primeiro, consiste em examinar o que é verdadeiro e sincero, de onde provém cada coisa; consiste também em coibir os movimentos desordenados da alma, tornando-os dóceis à razão; além de tratar de modo respeitoso aqueles com os quais nos congregamos (CÍCERO, 2009, p.86). 

Convém notar também que ao longo de sua argumentação, Cícero ainda desdobra por meio de exemplos práticos as possibilidades de se aplicar sua teorização. Um dentre tantos exemplos, é a questão da utilidade versus à honestidade, lavrada à prática dos comerciantes de Rodes, ou quando discute a relação entre astúcia e malícia, aplicada a questão dos imóveis. Com essas exemplificações todas, o pensador latino acaba clarificando sua percepção acerca do que é desejável para o bom viver na República, de modo que, se todos os homens fossem sábios, conjugariam honestidade e virtude. Certamente, algo que ele também esperava de seu filho, já que se encontrava em intensa preparação para a vida pública. 

Por vezes, temos a impressão de que o jovem Cícero não tivesse a mesma aptidão que o pai para a vida pública. De qualquer forma, o pai lhe requere, “(…) assim eu também te peço, meu Cícero, que me concedas, se possível, que nada afora o honesto deve ser buscado por si mesmo (idem, p.140) ”.

Cícero finaliza sua obra, retomando o diálogo direto com Marco:

Ganhas um presente de teu pai, Marco, meu filho, presente que considero de valor inestimável. Vejamos, porém, como o acolhes. Em verdade, terás de admitir estes três livros, como hóspedes, entre as lições de Cratipo. Assim como me ouvirias, se eu fosse pessoalmente a Atenas – o que teria feito se, em altos brados, a pátria não me chamasse de volta no meio do caminho –, assim, uma vez que com estes volumes minha voz parte para ti, tu lhes concederás o tempo que puder – e isso farás, se o quiseres. Quando eu tiver certeza de que este gênero de saber te agrada, em pouco tempo estarei contigo, segundo espero. Mas enquanto estiverdes longe, de longe te falarei. Adeus então, meu Cícero, e fica sabendo que me és muito caro, mas muito mais o será se te alegrares com estas obras e preceitos (idem, p. 183).

Para chegar à sua formulação dos deveres, Cícero se apoiou principalmente nos escritos do estóico Panécio. Algo que por si já proporcionaria um interessante diálogo entre pai e filho, já que a corrente filosófica aprendida por Marco, através de seu mestre, diferencia-se da perspectiva paterna de pensar os aspectos práticos da vida. Cratipo, mestre de Marco seguia de perto os ensinamentos da Academia de Platão. No entanto, Cícero, quando formula sua figuração e a de seu filho no diálogo, tem de adequá-las ao lugar social ocupados pelos sujeitos em interação no discurso. No excerto acima, fica claro que pai e filho não estão em posição de dialogar. Ao segundo, resta a posição de discípulo, de preferência, com uma boa capacidade de síntese daquilo aprendido formalmente na academia e dos ensinamentos paternos, que visa a uma fixação mais contundente no campo da vida cotidiana. Como um bom pai, usa de doçura na condução do diálogo, mas como um bom pai, usa da firmeza para levar o filho às boas escolhas. 

De fato, se fossemos definir em poucas palavras, a motivação didática de De officiis vai na direção de conduzir o jovem Cícero a fazer boas escolhas, estas, como dito anteriormente, pautadas pela honestidade e pela virtude. Sabendo que a reunião dessas por um indivíduo é muito difícil de acontecer quando o sujeito tem tão pouca idade, o velho Cícero resguarda ao filho a possibilidade da consulta permanente a seus discursos e seus escritos. 

Sabendo das inclinações didáticas de Cícero na condução e na formação do homem latino, por que não imaginar certa audácia e uma ampla tentativa de educar os jovens que se preparavam naquele momento para viver intensamente a vida pública? Por ora, não temos condições de responder a esse questionamento. No entanto, podemos pensar em como a filosofia didática de Cícero acerca dos deveres ultrapassou seu tempo, bem como previra o ancião Anquises, quando mostrou a Enéias o destino do povo latino na expansão de suas leis aos descendentes. No entanto, resta-nos indagar se as condições de produção e apropriação dos discursos e escritos de Cícero se alteram. 

Nesse sentido, adiante, veremos um movimento bastante semelhante à relação paterna estabelecida entre Cícero e Marco. No conto, “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis, publicado pela primeira vez, em 1881, na Gazeta de Notícias. Apartados por quase dois mil anos, vejamos quais os deveres e as virtudes ensinadas por um pai a seu filho.

Machado lê De officiis?

Antes de discutirmos a aproximação de Machado a Cícero, é interessante notar que o conto “Teoria do Medalhão” é um clássico da Literatura Brasileira. Desde sua publicação, inúmeras leituras foram feitas desse conto, mas nenhuma delas esgotou todas as possibilidades de significação. É como se o próprio conto, ao mesmo tempo que acolhesse e rechaçasse as leituras que fazem dele. 

Nesse sentindo, como afirma Ítalo Calvino, no ensaio “Por que ler os clássicos?”: 

6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. (...)7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). (...) 8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe (CALVINO, 1993, pp. 11-2). 

A leitura que ora propomos, isto é, a aproximação do conto presente em Papéis avulsos (1882) da obra clássica de Cícero é inusitada. Por que não dizer original? Afinal, não temos conhecimento de leitura que tenham traçado tão paralelo/ continuum entre essas obras e aqui nos esforçaremos, abarcando o processo didático na condução de um jovem rapaz por seu pai à vida pública. 

Raymundo Faoro (2001), por exemplo, ao ler esse conto, afirma ser ele uma “metafísica política” do que acontecia no Brasil de meados do Século XIX, nessa linha argumentativa é que segue Selma Vital (2009). Cilene Rohr (2010), num esforço exegético, faz uma leitura interessante do conto, seguindo os passos de Maria Rosa Duarte de Oliveira, que argumenta ser Machado um leitor de si mesmo, que está sempre se reeditando, de modo antropofágico. 

Não discordamos frontalmente de nenhuma dessas leituras, todas válidas, por vezes complementar à leitura que teceremos, como o caso de Cilene Rohr, que usa as teorias da paródia, de Linda Hutcheon, para discutir aspectos da intertextualidade desenvolvida por Machado de Assis. No entanto, não se atentaram ao fato de que “Teoria do Medalhão” remete imediatamente ao De officiis por se tratar um diálogo, trazendo essa marca quase que como um subtítulo, demonstrando, verbalmente, ao leitor que não se tratará do desdobramento de um enredo convencional, em prosa, mas sim, que traz elementos dos gêneros dramáticos. 

Retomando os contextos de produção e de circulação de “Teoria do medalhão”, esse conto foi publicado um ano após Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), a grande obra de Machado de Assis.  Papéis avulsos (1882), livro de contos cuja organicidade, como o próprio autor sugere, poderia ser questionada pela perspectiva dos gêneros literários. Ciente do embaraço no qual se colocava, ao aproximar numa mesma edição textos como “O Alienista” e “Teoria do medalhão”, chama para si a responsabilidade da autoria. 

Na “Advertência”, uma espécie de apresentação, afirma que a coerência é dada pelo trabalho do próprio autor e, ao leitor, cabe a interpretação. Para que este tenha sucesso nessa empreitada, Machado dá as pistas para que escolha a lupa adequada para enxergar os fatos. 

Nesse sentido, o horizonte exegético de um bom leitor para compreender a reunião de textos em papéis avulsos, teria de ser balizado pelas palavras de S. João, o evangelista, e pelas de Diderot. Do evangelista, Machado recupera a noção de que a construção de sentidos em um texto se dá pela capacidade do leitor em mobilizar seu conhecimento enciclopédico na compreensão dos diálogos intertextuais. Já de Diderot, o bruxo do Cosme-Velho recupera a noção de que a brevidade que importa, em um conto, é a da vida que se retrata e não necessariamente na quantidade de páginas que compõem a narrativa.

Como é possível perceber, os sentidos construídos pelos textos de Machado de Assis são efeitos de diálogos com uma vasta tradição, da qual ele se apropria, não de modo estanque, mas dinâmico, fazendo pastiche das convenções literárias. Acima, podemos perceber que Machado subverte as expectativas de um leitor tradicional do Evangelho de S. João, isto é, o Apocalipse, assim como, subverte as expectativas de leitura de um enciclopedista, como Diderot. Nesse sentido, convém guardarmos esses pressupostos na leitura que faremos de “Teoria do medalhão”.

Ainda sobre o aspecto formal dos contos, no já mencionado “O Alienista”, o enredo sintético que se espera de um conto é distendido ao longo de mais de cinquenta páginas e treze capítulos, levando o leitor mais conservador a questionar a máxima da brevidade das “histórias curtas”. Ainda pensando em aspectos formais dos contos de Papéis Avulsos, “Teoria do medalhão” e “O anel de Polícrates” trazem aspectos pouco tradicionais, como o desenvolvimento do enredo de forma dialógica. À exemplo de De officis, como já foi dito, atuam duas personagens, respectivamente pai e filho, este que responde pelo nome de Janjão. A ancoragem no tempo, mostra que o diálogo teria sido entabulado no dia 5 de agosto de 1875, em ocasião do aniversário de 21 anos de Janjão, consequentemente, momento no qual seu pai comemorava a maioridade do filho, bem como a plenitude de atuação pública e política do rapaz na corte do Rio de Janeiro. Vejamos:

Diálogo
- Estás com sono?
- Não, senhor.
- Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?
- Onze.
- Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
- Papai...
- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
- Sim, senhor (...)
(ASSIS, 1962, p.288)

Nessa cena inicial, os aspectos mais importantes do gênero dialógico já estão dispostos: personagens, cena, tema… inclusive, para que o leitor menos capaz não se confunda acerca do que está sendo dito, o autor deixa bem claro “diálogo”, entronizando a ação que se dá por meio dos diálogos. A temática, como já dissemos, assemelha-se à de de De officiis. Na cena de comemoração do aniversário do jovem Janjão, o pai desenvolve, em um tom sóbrio, com muito didatismo quais serão os encaminhamentos para o futuro do jovem rapaz. 

Nesse momento, as coincidências com Cícero cessam. Se nos lembrarmos da figuração de pai e filho, veremos que o artifício despendido pelo romano para manter o decoro na representação de si e de Marco foi o distanciamento e o diálogo como se fosse uma carta. A tutoria se dava à distância. No conto de Machado, a tutoria para vida prática se dá na interação direta e também na estrutura de pergunta e resposta. Ambos têm voz, mas o turno do filho é reduzido, em comparação ao do pai. 

Nos instantes iniciais, o pai mira ao filho, observando como sua atuação mais perfeita gerou frutos, não necessariamente como o pai esperava, pois o filho tem traços que o levam a ser um tanto inferior ao pai e inferior às expectativas que este criou para o descendente. Como por exemplo, no momento em que o rapaz vai se queixar das apreciações que o pai faz de seu corpo, revelando assim a fragilidade do rapaz:

- Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
- Papai...
(p.288)

O pai imediatamente repreende o garoto e muda o rumo da conversa

- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos.
(p.288)

Considerando que neste diálogo haverá a condução do mais novo pelo ancião, vale a pena nos recordarmos de Anquises e de Cícero. Em nenhum momento os dois anciãos se colocaram na posição de amigos de seus filhos. Por mais amor que lhes devotassem, era necessário a manutenção do decoro na condução do mais jovem, no sentido de trilhar um caminho de correção moral e de trabalho em prol da coisa pública. 

Em “Teoria do Medalhão”, ao contrário, as personagens colocam suas conveniências ante à honestidade e às virtudes necessárias, visando assim ao próprio prazer, não há parâmetros para a vida em sociedade que não sejam o próprio prazer como fim. Levando ao cabo o pensamento de Cícero em De officiis, nem a amizade eles conseguiriam cultivar pois se deixam vencer pela própria natureza e pelas aspirações individuais. 

Interessante notar como no Brasil do Século XIX, com o surgimento e a ascensão de uma classe burguesa, houve uma individualização massiva dos sujeitos. O projeto nacional que ainda se consolidava, foi assaltada por uma classe degenerada, sem a menor preocupação com o coletivo. Como afirma Cícero a respeito dos deveres “e não só no cultivá-lo reside toda honestidade da vida como, no negligenciá-lo, toda torpeza” (CÍCERO, 1999, p.5). Persistir na torpeza, ensinada sistematicamente pelos anciãos eram indícios de que algo ia muito mal na construção da sociedade brasileira. Com muita argúcia, Machado de Assis mostra o avesso dos deveres em seu conto.  

Esse apagamento do público em detrimento do privado é algo que não apenas se faz presente, mas se torna o desejo do pai para o filho. Ou seja, ele não espera que o jovem seja alguém virtuoso, que consiga projeção na sociedade e se destaque das massas. Isso é, que se aparte cada vez mais do público: “Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum”. A consciência de um ordenamento social que decorre do esvaziamento da vida pública e a secularidade que se vinculam à imanência produzem sujeitos que queiram se destacar das massas não por outro motivo se não por aquilo que aparentam. Isto é, os objetos ganham dimensão psicológica no Século XIX e se tornam capazes de distinguir sujeitos. 

 É nesse sentido que ainda encontramos o conselho máximo do pai de Janjão, que compara a vida a uma grande loteria e exorta o filho a ser um bom jogador, que aceita as regras tácitas da imanência e da naturalização das diferenças sociais: “ A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra” (p.288). O aconselhamento do pai vai na contramão de alguém que educa, visando aos deveres e compromissos de um indivíduo com a coisa pública. O individualismo e a imanência na satisfação dos prazeres individuais levam, portanto, à “dissociação do consórcio humano”, figuras como o pai de Janjão “não aceitam nenhum direito, não reconhecem nenhuma sociedade visando ao bem comum” (CÍCERO, 1999, p.137). 

Para finalizar o primeiro bloco de aconselhamentos, o pai diz ao jovem rapaz: 

- Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade (p.289).

Dessa fala, decorre que o sumo bem almejado pelo pai, algo que ele aconselha ao filho, visando a uma vida virtuosa, se dá no campo, novamente, das aspirações individuais, haja vista que as ambições e as aspirações que ambos estão a construir dialogicamente podem sofrer reveses de atuações políticas que não privilegiam atuações parasíticas como a padronizada como um comportamento familiar. Não é necessário dizer o quanto esse aconselhamento fere os princípios de uma vida virtuosa e justa. 

Agora, sobre o ofício ao qual se dedicaria o jovem Janjão, bem, o pai lhe recomenda tornar-se medalhão. O que seria um medalhão na atualidade? Apostamos que seria algo parecido com as atuais subcelebridades judiciárias, ou os youtubers-filósofos, que buscam estar em evidência e usufruir da vida pública, mantendo-se alheio às questões que a movimentam. Isto é, uma vida de aparências. Um medalhão seria algo vistoso e desejável. Alguém apto a dar opinião sobre todos os assuntos, incluindo ciência, política, mas sem necessariamente se aprofundar em nenhuma dessas questões. 

Selma Vital (2009) discute como os ensinamentos do pai, levam Janjão a trilhar o caminho de um Medalhão. Alguém cuja retórica esvaziada se adequa ao Brasil oitocentista pré e pós-República:

- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até a morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida (p.290).

Aqui, cabe lembrar o que Cícero dizia a Marco. Sobre a questão da oratória, para desfrutar a vida pública com plenitude, o ancião recomendava ao filho que não apenas aprendesse o que lhe era ensinado na academia no campo da filosofia metafísica e que conjugasse à vida prática, além de aprender a arte retórica. Nisso, residia o projeto educacional do homem latino, uma vez que a reunião da eloquência aos temas mais importantes a serem discutidos.

Novamente, é como se Machado lançasse mão de um espelho invertido. Todos os elementos que figurariam para o bom viver, preconizado pela filosofia didática de Cícero, são esgarçados. Quanto à habilidade com as palavras, o ideal é que elas sejam inócuas e nada comuniquem, que o ornamento e a adjetivação prevaleçam em detrimentos da substância, das ideias concretas: “E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário” (p.293).  Janjão, por mais que quisesse refutar a construção de sua carreira como Medalhão, nada poderia fazer. A convicção de seu pai, de que ele se daria bem em um ofício que não dependesse do intelecto também vem à tona nesse discurso, mostrando a inaptidão do rapaz para determinados assuntos da vida pública:

(...) Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança (...) (p.290).

No decorrer do diálogo e da instrução, rumo à produção do medalhão perfeito, vão sendo reveladas uma infinidade de vícios. Evidenciam-se através das falas do pai de Janjão a capacidade de tomar as coisas desconhecidas por conhecidas; além de aplicar esforço excessivo a coisas desconhecidas e desnecessárias. Esses vícios não incomodam a dupla. Pelo contrário. O pai zeloso pelo futuro do filho, finaliza a noite de aconselhamentos: “- Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir” (p.295).

A conclusão a que chegou o pai, demonstra a falta de compromisso de ambos com as virtudes. Afinal, o pai considera que seus aconselhamentos têm o mesmo valor que o Príncipe, de Maquiavel, no que tange o acesso ao poder e ao domínio do Estado. Retomando o início do conto, em um dos primeiros diálogos, no qual o pai chama o filho para se comportar como amigo. Cícero era muito cauteloso, principalmente quando o assunto era a amizade. O cuidado em não ser desonesto com a República é de difícil avaliação, quando há amizade permeando as relações de justiça. Nessa finalização de argumentação a conclusão a que podemos chegar é que “o homem bom, ademais, por causa de um amigo, não agirá contra a república, um juramento e a boa-fé, nem mesmo se tiver de ser juiz do próprio amigo”. 

À guisa de conclusão

Tradição e ruptura”: esta é a máxima que Machado de Assis leva ao cabo em “Teoria do Medalhão”. Trazer a cena clássica, em que pese as relações familiares, conservadora por excelência, mas que conjuga um discurso liberal ao positivismo corrente no cotidiano brasileiro do Século XIX, é de uma maestria desoladora. É como se o brasileiro, portando um espelho, olhasse para Cícero e projetasse a imagem formada na sociedade brasileira do Século XIX. Uma imagem invertida do que seriam os deveres de alguém com a coisa pública. 

Cícero no Livro I de De Officiis, ao explorar a natureza e a força do honesto, afirma ser algo que decorre da aprendizagem do verdadeiro. Quem estaria apto a esse tipo de condução, se não os anciãos, pessoas que ao longo da vida tenham desenvolvido as virtudes necessárias para a manutenção da vida em sociedade, levado a cabo os ideais de justiça, virtude, benevolência, bondade ou liberalidade. Bem, como vimos a partir do conto de Machado de Assis, não foi o que se processou na prática cotidiana da educação familiar. A sugestão de tornar-se um medalhão mostra, como diz Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, “nossa tendência para exaltar acima de tudo a personalidade individual como valor próprio, superior às contingências” (HOLANDA, 1995, p.157).  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1962. V. II

CALVINO, Italo. Por que ler os Clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres [tradução do latim de Angélica Chiapeta]. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 

FAORO, Raymundo. Machado de Assis – a pirâmide e o trapézio. 4. ed. São Paulo: Globo, 2001. p. 188.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Novos tempos. In: Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995. 

LIMA, Sidney Calheiros de. Aspectos do gênero dialógico no De finibus de Cícero / Sidney Calheiros de Lima. — Campinas, SP : [s.n.], 2009. Orientador : Paulo Sérgio de Vasconcellos. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

MAFRA, Johnny José. O canto VI da Eneida, a descida aos infernos ou a prefiguração da história de Roma. Cadernos de Linguística e Teoria da Literatura, [S.l.], n. 12, p. 103-119, dec. 2016. ISSN 0101-3548. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cltl/article/view/9966/8874>. 

OLIVEIRA, Maria Rosa Duarte de. Memórias Póstumas entre o ver e o verme: uma poética da leitura In: MARIANO, Ana Salles e OLIVEIRA, Maria Rosa Duarte de (Orgs). Recortes machadianos. São Paulo: Nanquin; Edusp, Educ, 2008

ROHR, Cilene. A Teoria de Machado de Assis. In: Machado de Assis em linha. Ano 3, número 5, junho 2010. Disponível em: 

http://machadodeassis.fflch.usp.br/sites/machadodeassis.fflch.usp.br/files/u73/num05artigo10.pdf

VITAL, Selma. O medalhão que sabia javanês: uma leitura comparativa entre Machado de Assis e lima Barreto. Machado de Assis em linha, ano 2, número 3, junho 2009. Disponível em: 

http://machadodeassis.fflch.usp.br/sites/machadodeassis.fflch.usp.br/files/u73/num03artigo08.pdf


1Doutorando do Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, FFLCH-USP, sob a orientação da Prof. Dr. Simone Caputo Gomes.