THE HORIZONTAL EFFECTIVENESS OF FUNDAMENTAL RIGHTS
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7226677
Autoria de:
Vinícius Matheus Ferreira Lima1
Resumo:
O presente trabalho visa discutir a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, sua aplicabilidade nas relações privadas. Para tanto, será feita uma análise da evolução histórica desses direitos, estudo essencial para compreender como eles surgiram, a quem primordialmente se destinavam quando concebidos (eficácia vertical) e vislumbrar a expansão do seu campo de aplicabilidade. Por fim, será abordada a problemática da nova metodologia de aplicação sob o ponto de vista doutrinário e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assim como questionado se essa nova interpretação conferida aos direitos fundamentais não violaria o princípio da autonomia privada.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Estado. Eficácia Horizontal. Relações Privadas. Aplicabilidade.
Abstract:
The present work aims to discuss the horizontal effectiveness of fundamental rights, it means their applicability in private relations. To this end, an analysis of the historical evolution of these rights will be made, an essential study to understand how they arose, to whom they were primarily intended when conceived (vertical effectiveness) and to glimpse the expansion of their field of applicability. Finally, the problem of the new methodology of application from the doctrinal point of view and the jurisprudence of the Federal Supreme Court will be addressed, as well as whether this new interpretation given to fundamental rights would not violate the principle of private autonomy.
Keywords: Fundamental rights. State. Horizontal effectiveness. Private Relations. Applicability
1. INTRODUÇÃO
Concebidos sob a égide dos ideais liberalistas e consolidados pela Revolução dos Estados Unidos da América e da França, os direitos fundamentais tinham como principal objetivo garantir ao cidadão que o Estado não invadiria sua vida particular. Tratava-se da imposição de obrigações de não fazer ao Poder Público.
Essa concepção mudou, quando se percebeu que forças econômicas, políticas e sociais privadas também eram aptas a desrespeitar a individualidade das pessoas. A partir disso, foram criadas obrigações de fazer ao Estado, a fim de garantir igualdade entre os componentes da sociedade.
Indo mais além, passou a se questionar, também, se esse campo de proteção dos direitos fundamentais, além de obrigar o Poder Público, não poderia compelir os particulares a observar os direitos básicos de cada um no âmbito de suas relações eminentemente privadas.
Porém, admitir que direitos fundamentais regulem os negócios jurídicos não poderia tolher o princípio basilar das relações particulares, qual seja, a Autonomia da Vontade? Por outro lado, a preservação do pacta sunt servanda pode justificar a violação de direitos básicos do ser humano?
A doutrina concebeu uma tese no sentido de que os direitos fundamentais devem, sim, ter incidência nos relacionamentos particulares, não ficando tais direitos restritos apenas às relações verticais entre Estado e Particular. Em razão do patamar igualitário em que se encontram os possíveis novos destinatários desses direitos, essa nova concepção de aplicação foi batizada com a nomenclatura de eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
2. DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1 Evolução Histórica
Atualmente os Direitos Fundamentais do Homem encontram-se positivados em um documento escrito, a Constituição Federal de 1988. Seu artigo 5º traz um rol meramente exemplificativo desses direitos, isso porque há outros deles espalhadas pelo corpo do documento máximo da República.
Para chegar a esta organização formal dos Direitos Fundamentais na Constituição vigente, foram necessários anos de evolução social ao longo da história da humanidade.
Desde os primórdios do Direito Romano, com o veto do tribuno da plebe contra injustiças praticadas pelos patrícios romanos, com a lei de Valério Publícola proibindo penas corporais contra cidadãos e com o Interdicto de Homine Libero Exhibendo – antecedente histórico do habeas corpus –, até os pactos, os forais e as cartas de franquia forjados no bojo da Idade Média (SILVA, 2012, p. 150/151).
Da Inglaterra destacam-se a Magna Carta (1215-1225), a Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus Amendment Act (1679) e o Bill of Rights (1688). Segundo pontuado por Silva (2012, p. 151), não se trata de declarações de direitos como as atualmente conhecidas – que somente surgem com as Revoluções Francesa e Americana (século XVIII) –, porque muitas vezes restringiam sua proteção a determinados estamentos.
Sobre a Magna Carta, Albert Noblet apud Silva (2012, p. 152) faz a seguinte observação a respeito de seus destinatários:
Longe de ser a Carta das liberdades nacionais, é, sobretudo, uma carta feudal, feita para proteger os privilégios dos barões e os direitos dos homens livres. Ora, os homens livres, nesse tempo, ainda eram tão poucos que podiam contar-se, e nada de novo se fazia a favor dos que não eram livres.
Porém Silva (2012, p. 152) faz perspicaz observação sobre a importância histórica do referido documento:
Essa observação de Noblet é verdadeira, mas não exclui o fato de que ela se tornasse um símbolo das liberdades públicas, nela consubstanciando-se o esquema básico do desenvolvimento constitucional inglês e servindo de base a que juristas, especialmente Edward Coke com seus comentários, extraíssem dela os fundamentos da ordem jurídica democrática do povo inglês.
Por fim o Bill of Rights (1688), que criou a monarquia constitucional na Inglaterra ao afirmar a supremacia do Parlamento inglês, impondo a abdicação de um monarca e a designação de novos, cujos poderes foram limitados por tal documento (SILVA, 2012, p. 153).
Avançando no tempo, os séculos XVII e XVIII são regidos por teorias contratualistas que enfatizam a predileção da pessoa sobre o Estado. Sustenta-se que certos direitos são preexistentes ao próprio Estado, porque imanentes à natureza humana (MENDES; BRANCO, 2017, p. 134).
Os autores (MENDES; BRANCO, 2017, p. 134) asseveram que o cristianismo, a partir da doutrina de que o homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus, desempenhou papel importante na construção da ideia de dignidade única do homem.
Partindo dessas premissas, Mendes e Branco (2017, p. 134) afirmam que:
Essas ideias tiveram decisiva influência sobre a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, e sobre a Declaração francesa, de 1789. Talvez, por isso, com maior frequência, situa-se o ponto fulcral do desenvolvimento dos direitos fundamentais na segunda metade do século XVIII, sobretudo com o Bill of Rights de Virgínia (1776), quando se dá a positivação dos direitos tidos como inerentes ao homem.
Consoante Silva, (2012, p. 153), a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (1776) foi o marco inicial das declarações em sentido moderno. Ela trazia em seu corpo legal direitos como: liberdade e igualdade; povo investido de poder; o bem comum como interesse do governo; repartição orgânica das funções do Estado; eleições frequentes, certas e regulares para os Poderes Executivo e Legislativo, nos quais os membros teriam investidura temporária; direito de defesa nos processos criminais; julgamento por órgão imparcial; liberdade de imprensa e outros mais.
O autor (SILVA, 2012, p. 154) conclui que tal documento – ao contrário dos textos ingleses, que buscavam apenas limitar o poder do monarca, proteger o povo de suas arbitrariedades e firmar a preponderância do Parlamento – tinha como escopo estabelecer um sistema de limitações dos poderes do Estado frente aos indivíduos, bem como fixar o regime democrático no seio daquela sociedade.
Posteriormente sobreveio a Declaração Norte Americana, datada de 1787, que não estabelecia inicialmente um rol de direitos fundamentais. Tais direitos foram incluídos no referido documento à exigência de algumas das colônias americanas como condição para aderir ao pacto federativo. Logo em seguida foi editado o Bill of Rights do povo americano, que incluiu uma série de direitos na referida declaração (SILVA, 2012, p. 155).
Por fim, em 1789 surgiu na França a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Consoante constata Silva (2012, p. 155/156), esse documento difere da Carta Americana por ser fundamentado em três pilares básicos: intelectualismo, pois foi um movimento estritamente intelectual que se desenvolveu no plano das ideias; mundialismo, haja vista que seus valores ultrapassam o indivíduo do país para atingir a todos (universalismo); e individualismo, que se traduz na previsão das liberdades individuais levantadas contra o Estado – um marco para o chamado Estado Liberal.
Na visão de Mendes e Branco (2017, p. 134):
Os direitos fundamentais assumem posição de definitivo realce na sociedade quando se inverte a tradicional relação entre Estado e indivíduo e se reconhece que o indivíduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o Estado, e que os direitos que o Estado tem em relação ao indivíduo se ordenam ao objetivo de melhor cuidar das necessidades dos cidadãos.
Com o desenvolvimento social e o advento da Revolução Industrial, surgiu na sociedade a classe operária. A consequente desigualdade econômica instalada no meio social exigiu o surgimento de novos direitos fundamentais, haja vista que aqueles limitadores do poder estatal não atendiam aos anseios do chamado proletariado.
Encabeçando as críticas ao modelo capitalista instalado pela burguesia está o Manifesto Comunista, obra escrita por Karl Marx e Friedrich Engels, publicada em 1848 (SILVA, 2012, p. 159/160). Nascem, então, os denominados direitos sociais.
Na lição de Bulos (2018, p. 529), trata-se dos direitos ligados ao trabalho, ao seguro social, à subsistência do homem, ao amparo à doença e à velhice. Estão retratados no Capítulo II da Constituição Federal de 1988, mais precisamente nos artigos 6º a 11 do texto maior.
A Constituição pioneira na positivação e na organização dos direitos sociais do homem foi a mexicana de 1917, seguida pela Constituição alemã de Weimar, datada de 1919, a qual esculpiu em seu texto os direitos da pessoa individual, os direitos da vida social, os da vida religiosa, os da educação e escola, bem como os da vida econômica (SILVA, 2012, p. 160).
No Brasil, já na primeira Constituição (1824) tem-se a positivação de uma declaração de direitos fundamentais do homem brasileiro e estrangeiro residente no país. Esse documento ditou em seu artigo 179 trinta e cinco incisos devotados aos direitos e garantias individuais (SILVA, 2012, p. 170).
A Constituição de 1934 trouxe para o texto maior, além dos direitos individuais, os direitos políticos e os de nacionalidade, bem como inovou ao incluir em seu corpo o título referente à Ordem Econômica e Social, alçando à categoria de direito fundamental a inviolabilidade aos direitos à subsistência.
A Lei Maior de 1946 trouxe uma estruturação dos referidos direitos em dois capítulos distintos: um tratando sobre nacionalidade e cidadania, e o outro cuidando dos direitos e garantias individuais. No lugar do direito à subsistência – transportado para o parágrafo único do artigo 145, que ratificava a todas as pessoas o direito a trabalho apto a possibilitar existência digna – foi inserido o direito à vida (SILVA, 2012, p. 171).
Por fim, nas palavras de Silva (2012, p. 171), a Constituição Federal de 1988 abraçou técnica mais moderna. Referido documento criou título próprio para tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais (Título II), organizando os temas da seguinte maneira: Capítulo I, Direitos e Deveres Individuais e Coletivos; Capítulo II, Direitos Sociais; Capítulo III, Direitos da Nacionalidade; Capítulo IV, Direitos Políticos; e Capítulo V, Partidos Políticos.
2.2 Gerações/Dimensões
A cada momento histórico da sociedade correspondem direitos fundamentais com diferentes perspectivas e finalidades distintas. Assim como o meio social, os direitos fundamentais também vivenciaram etapas de desenvolvimento. É o que a doutrina tradicional chama de gerações dos direitos fundamentais.
Ocorre que nas palavras de Sarlet, Marinoni e Mitidieiro (2016, p. 310) essa terminologia vem recebendo críticas dos juristas contemporâneos. Segundo os autores, o termo “gerações” pode difundir a ideia equivocada de substituição progressiva de uma por outra, o que de fato não acontece. Por esse motivo é que o termo “dimensões” vem ganhando preferência à terminologia “gerações”.
Bulos (2018, p. 528/529), por outro lado, considera o termo “gerações” como o mais adequado. Nas palavras do autor:
É a melhor, a nosso ver, porque demarca muito bem os períodos de evolução das liberdades públicas. Seu uso, ao contrário do que se pode imaginar, demonstra a ideia de conexão de uma geração à outra. Os direitos de primeira geração, por exemplo, irmanam-se com os de quarta geração, os de segunda com os de terceira, e assim por diante. Ou seja, a geração mais nova não elimina as anteriores.
Passando-se à análise das gerações/dimensões – pois os termos serão usados como sinônimos no presente trabalho –, o que se está pacificado na doutrina é a existência de, no mínimo, três gerações de direitos fundamentais (SARLET; MARINONI; MITIDIEIRO, 2016, p. 310).
A primeira dimensão surgiu no seio do chamado Estado Liberal como forma de assegurar ao indivíduo proteção contra a opressão estatal. Moldados sob o pensamento liberal-burguês existente no século XVIII, são direitos de cunho individualista e patrimonialista. Eles impõem ao Estado obrigações negativas, exigem uma postura de abstenção. Assim, asseguram ao homem uma zona de não intervenção do Estado (SARLET; MARINONI; MITIDIEIRO, 2016, p. 312).
Bulos (2018, p. 529) aponta com exemplos de tais direitos os referentes à vida, à liberdade de locomoção, à expressão, à religião, à associação e outros mais.
Mendes e Branco (2017, p. 135) asseveram tratar-se das liberdades individuais, como a de consciência, de reunião e a inviolabilidade de domicílio. Afirmam que não há nessa geração de direitos preocupação com questões sociais. Do contrário, direitos como a liberdade sindical e de greve eram rechaçados no Estado Liberal. O cuidado era para com a manutenção da propriedade.
Acontece que a negligência frente aos problemas sociais nascidos a partir da crescente industrialização da sociedade acarretou novas reinvindicações (SARLET; MARINONI; MITIDIEIRO, 2016, p. 312/313).
Assim, nas palavras de Mendes e Branco (2017, p. 135), passa a ser cobrado do Estado um papel ativo perante a sociedade, buscando a realização de justiça social. Consequentemente, uma nova gama de direitos (segunda dimensão) surge no rol daqueles considerados fundamentais.
O Estado agora possui obrigações positivas para com o cidadão. Ele deve estabelecer e efetivar a liberdade real e a igualdade para todos (MENDES; BRANCO, 2017, p. 135). Segundo os autores, “os direitos de segunda geração são chamados de direitos sociais, não porque sejam direitos de coletividade, mas por se ligarem a reivindicações de justiça social”. Surge um novo tipo de Estado, o Estado Social.
Segundo Sarlet, Marinoni e Mitidieiro, (2016, p. 313):
A nota distintiva destes direitos é a sua dimensão positiva, uma vez que se cuida não mais de evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual, mas, sim, na lapidar formulação de Celso Lafer, de propiciar um ‘direito de participar do bem-estar social’. Tais direitos fundamentais, que embrionária e isoladamente já haviam sido contemplados nas Constituições francesas de 1793 e 1848, na Constituição brasileira de 1824 e na Constituição alemã de 1849 (que não chegou a entrar efetivamente em vigor), caracterizam-se, ainda hoje, por assegurarem ao indivíduo direitos a prestações sociais por parte do Estado, tais como prestações de assistência social, saúde, educação, trabalho etc., revelando uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas.
Os direitos de segunda dimensão, portanto, têm como principal embasamento a dignidade da pessoa humana e com isso buscam assegurar ao cidadão participação humanamente digna nos planos econômico, social e cultural (CANOTILHO, 2003, p. 385).
São espécies de direitos fundamentais de segunda geração, segundo Bulos (2018, p. 529) os relativos ao trabalho, ao seguro social, à subsistência digna do homem, ao amparo à doença e à velhice.
Os direitos de terceira geração, por sua vez, são aqueles de titularidade transindividual (difusa ou coletiva). Eles foram pensados para proteger não o indivíduo isoladamente, mas a coletividade (MENDES; BRANCO, 2017, p. 135/136).
Também denominados direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como grande marca distintiva a sua titularidade metaindividual, não raro indefinida e indeterminável, a exemplo dos direitos ao meio ambiente e à qualidade de vida. Consoante Sarlet, Marinoni e Mitidieiro (2016, p. 314), integram essa dimensão direitos como a paz, a autodeterminação dos povos, o desenvolvimento, o meio ambiente e a qualidade de vida, a conservação e a utilização do patrimônio histórico e cultural, o direito de comunicação etc.
Há quem sustente a existência de uma quarta geração de direitos fundamentais. Nesse rol estariam direitos ligados à saúde, à informática, softwares, eutanásia, bem como outros relacionados à engenharia genética, como biociências, alimentos transgênicos, sucessão dos filhos gerados por inseminação artificial, clonagens etc. (BULOS, 2018, p. 530).
Igualmente encontra guarida na doutrina a aparição de uma quinta geração de direitos fundamentais, que corresponderia à paz, e até mesmo a manifestação de uma sexta dimensão, que se relaciona à democracia, à liberdade de informação, ao direito de informação e ao pluralismo (BULOS, 2018, p. 530/532).
Paulo Bonavides apud Sarlet, Marinoni e Mitidieiro (2016, p. 315/317) já aponta que a quarta dimensão dos direitos fundamentais compreenderia direitos relacionados à democracia direta, à informação e ao pluralismo. O autor, assim como Bulos, também defende alçar o direito à paz como uma geração autônoma, considerando a sua importância.
Por fim há quem inclua na sexta dimensão o direito humano e fundamental de acesso à agua potável, como defendem Zulmar Fachin e Deise Marcelino da Silva apud Sarlet, Marinoni e Mitidieiro (2016, p. 317), baseados na conjuntura internacional e na relevância desse bem para a sociedade.
Fato é que não há consenso doutrinário a respeito da quarta, da quinta e da sexta gerações de direitos fundamentais. Essas novas dimensões são criticadas por Sarlet, Marinoni e Mitidieiro (2016, p. 317), os quais afirmam tratar-se de direitos que já integrariam as três primeiras gerações.
No capítulo seguinte serão abordados aspectos relacionados aos destinatários imediatos e mediatos dos direitos fundamentais, bem como sua aplicação tradicional em caráter vertical.
3. DESTINATÁRIOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
3.1 A quem se dirigem os direitos fundamentais
Há que se diferenciar os destinatários dos titulares dos direitos fundamentais. Titulares são as pessoas físicas ou jurídicas que gozam de tais direitos, que têm a prerrogativa de invocá-los, enquanto destinatários são as pessoas que estão vinculadas pelos direitos fundamentais, devendo obedecê-los (SARLET; MARINONI; MITIDIEIRO, 2016, p. 372).
Segundo Bulos (2018, p. 536), as normas de direitos fundamentais são destinadas, em primeiro lugar, aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Esses são os destinatários direitos, primeiros ou imediatos de tais direitos, o Estado em geral.
No mesmo sentido são as lições de Mendes e Branco (2017, p. 145/146), os quais asseveram que os direitos fundamentais têm lastro direto no Poder Constituinte – é a constitucionalização dos direitos fundamentais –, razão pela qual são superiores aos poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário), que por sua vez devem atuar em conformidade com referidos direitos, sob pena de invalidação de seus atos.
No âmbito do Legislativo, a vinculação aos direitos fundamentais ocorre na elaboração das leis, que não podem contrariar esse sistema de garantias do cidadão. Também pode apresentar um caráter positivo no sentido de exigir a edição de normas regulamentadoras de certos direitos fundamentais que dependem de concretização infraconstitucional (MENDES; BRANCO, 2017, p. 146).
Os autores continuam (MENDES; BRANCO, 2017, p. 146):
A vinculação do legislador aos direitos fundamentais significa, também, que, mesmo quando a Constituição entrega ao legislador a tarefa de restringir certos direitos (p. ex. o de livre exercício de profissão), há de se respeitar o núcleo essencial do direito, não se legitimando a criação de condições desarrazoadas ou que tornem impraticável o direito previsto pelo constituinte.
Eles concluem pontuando que não só o legislador infraconstitucional está limitado pelos direitos fundamentais, mas também o poder constituído de reforma da Constituição encontra-se submetido a tais direitos, conforme se extrai do artigo 60, § 4º, da Carta de 1988, segundo o qual são vedadas emendas tendentes a aboli-los (MENDES; BRANCO, 2017, p. 147).
No que tange ao Poder Executivo, Mendes e Branco (2017, p. 147/148) observam que a Administração Pública deve considerar os direitos fundamentais na interpretação e na aplicação das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados. Qualquer ofensa a tais direitos acarretará a nulidade dos atos da administração praticados em desconformidade com as garantias do homem perante o Estado.
Por fim, em relação ao Poder Judiciário, além do tradicional controle de constitucionalidade dos atos legislativos, os juristas (MENDES; BRANCO, 2017, p. 150/151) registram que cabe a esse Poder concretizar a efetividade dos direitos fundamentais, independentemente de regulação infraconstitucional. Podem os magistrados dar cumprimento a esses direitos pela via interpretativa, bem como aplicá-los mesmo contra a própria lei, caso ela esteja em descompasso com tais direitos.
Isso decorre do mandamento expresso no § 1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o qual confere aos direitos fundamentais aplicação imediata. Ocorre que em alguns casos, é inevitável a dependência de normatização por parte do legislador para que tal medida constitucional atinja sua plena eficácia. Nesses casos, assinala Celso Bastos apud Mendes e Branco (2017, p. 153):
Quando a norma de direito fundamental não contiver os elementos mínimos indispensáveis que lhe assegurem aplicabilidade, nos casos em que a aplicação do direito pelo juiz importar infringências à competência reservada ao legislador, ou ainda quando a Constituição expressamente remeter a concretização do direto ao legislador, estabelecendo que o direito apenas será exercido na forma prevista em lei –, nessas hipóteses, o princípio do § 1º do artigo 5º da CF haverá de ceder.
Bulos (2018, p. 536) ratifica o raciocínio sobre a destinação dos direitos fundamentais declarando que “é ilusório e utópico dizer que as liberdades públicas são voltadas, num primeiro momento, aos cidadãos. Estes são os destinatários indiretos, secundários ou mediatos dos direitos e garantias fundamentais”.
A partir desse aspecto de destinação direta ao Poder Público é que surge a tradicional eficácia vertical dos direitos fundamentais.
3.2 A eficácia vertical dos direitos fundamentais
O fato de historicamente os direitos fundamentais serem compreendidos inicialmente como destinados apenas ao Estado gera como consequência imediata sua aplicação no âmbito estritamente vertical, ou seja, incide somente na relação Estado-particular. Eles regulam, portanto, as chamadas relações verticais (PAULO; ALEXANDRINO, 2018, p. 101).
A finalidade primordial dos direitos fundamentais – como explanado no primeiro capítulo do presente trabalho – foi estabelecer limites aos poderes estatais frente ao indivíduo, ou seja, criou-se um campo de proteção da pessoa contra as possíveis arbitrariedades do Poder Público (MENDES; BRANCO, 2017, p. 174).
Com base nessa concepção inicial, foi desenvolvida pelo professor alemão Georg Jellinek a teoria dos quatro status em que o titular dos direitos fundamentais pode se encontrar perante o Estado. Consoante tal doutrina, o indivíduo pode assumir os seguintes status: passivo, negativo, positivo ou ativo. (PAULO; ALEXANDRINO, 2018, p. 101).
No status passivo o homem encontra-se em situação de subordinação perante o Poder Público. O indivíduo possui deveres para com o Estado, sendo que esse pode estabelecer obrigações àquele. Já o status ativo permite que a pessoa influencie na formação da vontade estatal, valendo-se de ferramentas como o exercício dos direitos políticos, revelados principalmente pelo voto (PAULO; ALEXANDRINO, 2018, p. 101/102).
O status negativo reflete o ideal primitivo dos direitos fundamentais, ou seja, a imposição ao Estado de obrigações de não fazer, a sua abstenção frente a certas liberdades do cidadão. O status positivo, por sua vez, relaciona-se ao surgimento dos direitos de segunda geração, os quais determinam que o indivíduo é credor de obrigações de fazer por parte do Poder estatal, ou seja, o Estado deve atuar na prestação de determinados serviços ou bens (PAULO; ALEXANDRINO, 2018, p. 101).
Ao longo dos anos percebeu-se que não só o Estado era capaz de oprimir as pessoas, mas também outras forças sociais – e até mesmo outro particular – poderiam promover constrangimentos no seio de suas relações privadas. Assim, alguns juristas passam a defender que a destinação dos direitos fundamentais não se restringe apenas ao Poder Público (MENDES; BRANCO, 2017, p. 174).
No próximo capítulo será trabalhada uma nova compreensão de aplicação dos direitos fundamentais. Trata-se da possibilidade, ou não, de empregá-los nas relações entre particulares.
4. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
4.1 Uma nova perspectiva de aplicação
Em dado momento do ordenamento pátrio passou a se questionar os limites do campo de incidência dos direitos fundamentais. Se eles alcançariam os negócios jurídicos celebrados entre particulares, meio no qual vigora o princípio da autonomia de vontade, ou se ficariam restritos às relações entre Estado e indivíduo (PAULO; ALEXANDRINO, 2018, p. 102).
Constatado que na esfera das relações privadas também é plenamente possível a ocorrência de situações que conduzam à desigualdade e ao desrespeito de direitos fundamentais, passou-se a levantar a hipótese de que tais direitos teriam aplicabilidade no âmbito dos relacionamentos particulares (SARLET; MARINONI; MITIDIEIRO, 2016, p. 376).
Chegou-se à conclusão de que não só o Estado era autor de opressões, mas que determinadas forças sociais e grupos econômicos ou políticos também tinham poder de submeter outros particulares à vassalagem (MENDES; BRANCO, 2017, p. 174).
Nas palavras de Jean Rivero apud Mendes e Branco (2017, p. 174), “escapar da arbitrariedade do Estado para cair sob a dominação dos poderes privados – diz o autor francês – seria apenas mudar de servidão”.
E continuam os doutrinadores brasileiros (MENDES; BRANCO, 2017, p. 174):
A percepção clara da força vinculante e da eficácia imediata dos direitos fundamentais e da sua posição no topo da hierarquia das normas jurídicas reforçou a ideia de que os princípios que informam os direitos fundamentais não poderiam deixar de ter aplicação também no setor do direito privado.
Assim, foi estabelecida uma nova função ao Estado para com os direitos fundamentais, qual seja, garantir que os particulares os respeitem no seio das relações privadas, uma vez que retratam valores básicos da ordem jurídica e social. Tais direitos devem ser evidenciados também na vida civil (MENDES; BRANCO, 2017, p. 174).
Em consonância com tais ideias são as considerações de Melo (2008, p. 302), o qual aduz que os direitos fundamentais não são exclusivamente subjetivos públicos – concretizados contra o Estado. Segundo o autor, também é dever dos particulares defendê-los e respeitá-los, o que caracteriza a relação horizontal.
Farias e Rosenvald (2015, p. 41/42), por sua vez, afirmam que essa aplicação dos direitos fundamentais no campo das relações particulares decorre da chamada constitucionalização do Direito Civil – e do Direito Privado como um todo.
Sarlet, Marinoni e Mitidieiro (2016, p. 377) ratificam as considerações dos juristas citados no parágrafo anterior ao pontuar que não há entre as normas constitucionais e o direito privado um distanciamento, mas, sim, uma relação baseada em um “contínuo fluir”. Segundo eles, “ao aplicar-se uma norma de direito privado, também se está a aplicar a própria Constituição”.
Baseado na teoria da eficácia imediata e direta dos direitos fundamentais, Sarlet apud Melo (2008, p. 303) defende que não pode o Direito Privado formar uma redoma e furtar-se à autoridade de daqueles direitos, criando “uma espécie de gueto à margem da Constituição”, sob o argumento de que apenas o Estado está vinculado aos direitos fundamentais.
Dirley da Cunha Júnior apud Farias e Rosenvald (2015, p. 42) registra que os direitos fundamentais não são praticáveis apenas contra os poderes públicos, mas também são factíveis no seio das relações privadas, “circunstância que autoriza o particular a sacar diretamente da Constituição um direito ou uma garantia fundamental para opô-lo a outro particular”.
Logo, muitos juristas passam a defender a tese de que os direitos e garantias fundamentais têm eficácia horizontal, ou seja, exigem respeito dos particulares e aplicam-se às relações privadas.
Registra-se que, segundo Bulos (2018, p. 540), a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais – também nominada de teoria da eficácia privada, da eficácia externa, da eficácia entre particulares ou da eficácia em relação a terceiros – teve berço na Alemanha (chamada de Drittwirkung) e foi aperfeiçoada entre os anos de 1955 e 1960.
Nos ensinamentos do expert imediatamente citado (BULOS, 2018, p. 541), essa tese perfaz-se a partir dos seguintes princípios: da eficácia direta ou imediata das liberdades públicas; da eficácia irradiante das liberdades públicas (há direitos fundamentais que propagam eficácia a todos os recantos do ordenamento jurídico); da eficácia indireta ou mediata das liberdades públicas; e da eficácia indireta ou mediata negativa (existem direitos que não podem ser barrados pela lei).
O questionamento, então, atinge um novo patamar: começa a indagar-se qual seria a forma da vinculação desses direitos frente ao particular. Há quem defenda haver eficácia mediata (indireta), pelo fato de a Constituição Federal de 1988, em diversos momentos, não fazer referência expressa aos particulares – e devido à finalidade primitiva dos direitos fundamentais, qual seja, vincular o Estado. Por outro lado, há sustentação no sentido de que a filiação é imediata ou direta (SARLET; MARINONI; MITIDIEIRO, 2016, p. 376).
Segundo a doutrina da eficácia mediata, os direitos fundamentais vinculariam imediatamente o legislador e exerceriam eficácia indireta sobre as relações particulares. Já a teoria da eficácia imediata defende a aplicação direta e obrigatória entre os particulares, tendo tais direitos eficácia absoluta, razão pela qual o indivíduo poderia sacar de um direito fundamental contra outro particular independentemente de intermediação do Poder Público (CANOTILHO, 2003, p. 448).
A título de curiosidade sobre como o assunto é tratado no ordenamento jurídico de outros Estados, traz-se o exemplo de Portugal. A Constituição do país ibérico tem previsão expressa em seu artigo 18/1 de que tanto as entidades públicas, quanto as privadas estão vinculadas aos direitos fundamentais (SARLET; MARINONI; MITIDIEIRO, 2016, p. 372).
Na concepção do ordenamento dos Estados Unidos da América, por outro lado, prevalece a tese de que referidos direitos são voltados apenas ao Estado. A Suprema Corte estadunidense não declara sua adesão direta às relações privadas. Ocorre que equiparou ao Poder Público o particular que exerça atividade de interesse estatal ou receba subsídio do governo, logo, nesse caso os direitos fundamentais serão oponíveis a esse particular. É a doutrina do state action (MENDES; BRANCO, 2017, p. 179/180).
Mendes e Branco (2017, p. 175) apontam que em certos casos o Texto Maior brasileiro deixa clara a incidência de um direito frente a outro particular, como ocorre com questões relacionadas ao Direito do Trabalho – por exemplo, a proibição de os empregadores estabelecerem diferenças salariais e critérios admissionais por motivo de sexo, de idade, de cor ou estado civil (art. 7º, inciso XXX, da CF/88).
Em outros momentos a Carta Constitucional de 1988 não permite margem para aplicação do direito ao particular e o direciona estritamente ao Estado. É o caso do direito fundamental à prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes (art. 5º, inciso LXXIV), bem como do dever de o Estado indenizar o condenado por erro judiciário e aquele que ficar preso além do prazo estabelecido na sentença – art. 5º, inciso LXXV (MENDES; BRANCO, 2017, p. 175).
Por fim os doutrinadores (Mendes e Branco, 2017, p. 175) corroboram as considerações de Sarlet, Marinoni e Mitidieiro ao registrar que muitos direitos fundamentais não trazem um destinatário específico, o que permite teorizar sobre seu alcance e sua medida às relações privadas.
Apresentadas essas considerações sobre a forma de vinculação (mediata ou imediata), tem prevalecido na doutrina constitucional brasileira e na jurisprudência que os direitos fundamentais estabelecem eficácia direta prima facie no contexto das relações privadas (SARLET; MARINONI; MITIDIEIRO, 2016, p. 377).
O Supremo Tribunal Federal – em precedente que será desenvolvido ao final deste trabalho – já sinalizou apadrinhar a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais e concedeu-lhe eficácia direta nas relações privadas, especialmente quando se tratar de normas de índole procedimental (MENDES; BRANCO, 2017, p. 180/181).
Nas lições de Farias e Rosenvald (2015, p. 44):
Nessa ordem de ideias, infere-se, com tranquilidade, que o império da Lei Fundamental implica em vincular todo o tecido infraconstitucional, inclusive no que concerne às relações privadas, às garantias fundamentais, que nada mais são do que postulados elementares de proteção do próprio exercício da cidadania.
No mesmo sentido são as considerações de Paulo e Alexandrino (2018, p. 103), que pontuam ser entendimento dominante no ordenamento jurídico pátrio a ideia de que os direitos fundamentais vinculam o Estado (eficácia vertical) e também os particulares (eficácia horizontal).
Conclui-se, então, que os direitos e garantias fundamentais adquiriram uma nova perspectiva de aplicação, qual seja, são realizáveis também nas relações privadas (particular-particular). Aqui os destinatários presumem-se em pé de igualdade, razão pela qual diz-se que a eficácia de tais direitos é horizontal.
4.2. A eficácia horizontal e a autonomia privada
Uma indagação que surge quando da adoção da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais é sobre um possível esvaziamento do princípio da autonomia da vontade, que rege as relações particulares.
Admitir que os direitos fundamentais vinculam os indivíduos nos seus relacionamentos privados não poderia prejudicar a liberdade de contratar?
Mendes e Branco (2017, p. 175/176) sustentam que a autonomia privada consta (ainda que implicitamente) na Constituição Federal de 1988, quando essa estabelece no caput de seu art. 5º uma liberdade geral, bem como eleva a dignidade da pessoa humana – que abarca o poder de autodeterminação – ao status de Princípio Fundamental do Estado brasileiro (art. 1º, inciso III).
A fim de amenizar os efeitos da estatização do Direito Particular e o escoamento da liberdade de contratar, foi desenvolvida teoria antagônica a da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais. Trata-se da teoria da eficácia mediata ou indireta – já citada no tópico anterior –, que defende ser o Poder Legislativo o interprete e integrador inicial das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados que relacionam o Direito Privado ao Direito Constitucional. O Poder Judiciário, por sua vez, somente deveria atuar em caso de inércia do legislador (MELO, 2008, p. 303).
Sobre a temática, Farias e Rosenvald (2015, p. 44) concordam que de fato a incidência de direitos fundamentais nas relações privadas implica uma mitigação da autonomia da vontade. Ocorre que a liberdade de contratar não justifica o desrespeito a esses direitos no meio privado, não podendo compor obstáculo para a sua aplicação entre particulares – o que violaria a própria dignidade humana. Nas palavras dos juristas, “não se pode, pois, tolerar que uma parte venha, através de contratos e negócios em geral, atentar contra as garantias básicas da outra”.
Melo (2008, p. 304) ratifica as observações de Farias e Rosenvald, argumentando que os preceitos fundamentais são dotados de efetividade máxima. Eles revelam superioridade quando defrontados com outros e impõem interpretação conforme suas considerações. E continua dizendo que “os preceitos são fundamentais sobre as relações públicas ou privadas”.
A fim de ilustrar o raciocínio, o autor (MELO, 2008, p. 303) traz precedente de Nipperdey, presidente do Tribunal Federal do Trabalho da Alemanha (berço da teoria da eficácia horizontal):
Nenhuma avença poderá gerar direito subjetivo contrário aos direitos fundamentais e o particular que os desrespeitar torna-se devedor de uma indenização, como ocorre, por exemplo, expressamente previsto, pelo § 826 do BGB (Código Civil da Alemanha), segundo o qual aquele que causa dano a outro, de maneira ofensiva aos bons costumes, está obrigado a repará-lo
Logo, conclui-se que a autonomia da vontade não pode impedir a aplicação dos direitos fundamentais às relações particulares. O modo pelo qual esses direitos acometem os relacionamentos particulares, no entanto, não é uniforme. Cada caso reclama uma solução diferenciada por parte do aplicador do Direito, baseada nas conjunturas do evento concreto (SARLET; MARINONI; MITIDIEIRO, 2016, p. 377/378).
A matéria torna-se mais intrincada, quando os particulares encontram-se relativamente no mesmo patamar. Nesse cenário, deve-se proceder a uma ponderação dos interesses em disputa de modo a harmonizar os direitos fundamentais envolvidos e a autonomia privada, sem que um esvazie o outro (MENDES; BRANCO, 2017, p. 176).
No mesmo sentido são os ensinamentos de Sarlet, Marinoni e Mitidieiro (2016, p. 378), que defendem enfrentar essa situação de maneira análoga ao tratamento dado às colisões entre direitos fundamentais. Utiliza-se a técnica da ponderação de interesses, a fim de evitar o sacrifício completo de um e preservar o outro no que for possível.
Registre-se que ponderação, consoante Barcellos (2005, p. 23), traduz o emprego de uma técnica jurídica alternativa – porque os métodos tradicionais de hermenêutica já não são aptos a resolver o choque – de solução de conflitos instalados entre duas normas principiológicas que prescrevem valores políticos.
A conclusão a que se chega, portanto, reside no fato de que a autonomia privada, embora elevada ao estrato de princípio – especialmente informador das relações privadas –, não pode, abstratamente, subjugar os direitos fundamentais.
A autonomia de vontade deve ceder – não por completo, do contrário o instituto não passaria de algo imaginado e sem funcionalidade – perante os direitos ditos fundamentais, considerando as circunstâncias do caso concreto. Por outro lado não é permitido a esses direitos escoar por completo o sentido dado ao princípio basilar das relações particulares. Deve haver concessões recíprocas de ambos os lados, oportunidade em que um terá maior incidência do que o outro.
4.3. A eficácia horizontal na visão do STF
Conforme anteriormente pincelado no presente trabalho científico, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem seguindo o caminho trilhado pela doutrina brasileira e acatando a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, o STF admite a aplicação desses direitos nas relações privadas (particular-particular).
A teoria foi ganhando espaço aos poucos na Corte Suprema brasileira, quando o Tribunal entendeu no RE 175.161-4 que a devolução nominal de valor pago em caso de desistência nos contratos de consórcio fere o princípio da razoabilidade (BULOS, 2018, p. 542).
Ainda segundo o referido autor (BULOS, 2018, p. 542), no RE 161.243-6/DF o STF assentou entendimento de que o estatuto de empresa que discrimina trabalhadores por razões de sexo, raça, nacionalidade ou credo religioso viola o princípio da igualdade, merecendo o caso ser sanado pela incidência dos direitos fundamentais.
Porém o precedente pioneiro e mais bem desenvolvido no STF abraçando a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais diz respeito à aplicação do direito ao contraditório e à ampla defesa ao caso de um associado excluído de associação privada à qual pertencia, sem oportunidade de se manifestar. Mesmo havendo previsão no estatuto da entidade particular de que tais direitos não eram de observância essencial, o Supremo Tribunal Federal determinou a aplicação dessas garantias à relação (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 42).
Nas palavras do Guardião da Constituição, extraídas do RE 201.819/RJ, julgado em 11 de outubro de 2005, tem-se o seguinte:
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.
I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.
II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.
[…] A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). (STF, Segunda Turma, Relator: MIN. ELLEN GRACIE, Redator do acórdão: MIN. GILMAR MENDES, Data: 11/10/2005).
Na oportunidade, a eminente Ministra Ellen Gracie manifestou-se contrariamente à incidência dos direitos fundamentais no caso debatido. Ocorre que o Excelentíssimo Ministro Gilmar Ferreira Mendes abriu a divergência ao defender a aplicação de tais direitos na relação privada em discussão.
Em seu brilhante voto, o Ministro destacou que grande parte dos direitos privados encontram um referencial dentro dos direitos fundamentais. Embasou suas considerações na jurisprudência precursora do Tribunal Superior do Trabalho alemão, o qual pontuou que os direitos fundamentais estabelecem as bases essenciais da vida social, razão pela qual devem referidos direitos ter aplicação nas relações particulares, não podendo os negócios jurídicos contrariar a ordem pública.
Gilmar ainda trouxe à tona o histórico da Suprema Corte brasileira ao citar jurisprudência que reconhecia a realização dos direitos fundamentais nas relações privadas já no ano de 1996, quando do julgamento do RE 158.215/RS. O caso versava sobre um membro expulso de cooperativa sem o atendimento à garantia do contraditório e da ampla defesa. Na oportunidade, o STF reconheceu a observância do devido processo legal e a consequente execução desses direitos no âmbito privado.
O Ilustríssimo Ministro Joaquim Barbosa votou acompanhando o entendimento divergente. Registrou que os direitos fundamentais têm, sim, aplicação nas relações particulares, mas que essa incidência será verificada conforme o caso concreto a fim de não esvaziar a autonomia privada.
Pontuou como fatores que justificam a ocorrência desse fenômeno o rompimento da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado – ressaltou a constitucionalização do segundo –, bem como o fato de que os direitos fundamentais não figuram mais no ordenamento jurídico como meras limitações ao Estado.
Assim, levando em consideração a doutrina nacional e instrumentos de direito comparado, a Suprema Corte do Brasil assenta em sua jurisprudência a teoria de que os direitos fundamentais incidem sim nas relações privadas, sempre levando em consideração as circunstâncias do caso concreto.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A concepção da existência de um rol de direitos imprescindíveis para que o ser humano viva com dignidade foi fundamental para alcançar todas as conquistas sociais atualmente em vigor.
Esse mínimo existencial inicialmente traçou limites ao Poder Público e agora também o faz nas relações particulares, inovando e aprofundando princípios basilares como o da igualdade, o da isonomia e o da dignidade humana.
Impor limitações aos negócios jurídicos não significa desprezar a autonomia privada que regula os relacionamentos particulares – não se ignora a liberdade de contratar –, mas, sim, garantir que uma parte não extrapole os direitos básicos da outra, condição fundamental para uma relação saudável.
Ademais, admitir essa nova aplicação dos direitos fundamentais não implica esvaziar por completo a autonomia da vontade, pois também alçada à categoria de princípio constitucional (implícito). Trata-se de um conflito aparente de normas principiológicas, oportunidade em que a técnica da ponderação será usada para promover concessões recíprocas e dar maior aplicabilidade a um direito do que ao outro, conforme o caso concreto.
Fato é que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, surgida no seio da doutrina, conquistou a aceitação dos Tribunais nacionais, em especial da Corte Suprema brasileira, não havendo dúvidas de que incidem tanto nas relações entre Estado e particular, quanto entre particulares. Negar esse aspecto seria contradizer o propósito dos direitos fundamentais, qual seja, garantir ao ser humano um mínimo existencial para que viva e conviva com respeitabilidade.
REFERÊNCIAS
BARCELLOS, Ana Paula. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2018.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra/Portugal: Edições Almedina, 2003.
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MELO, José Tarcízio de Almeida. Direito Constitucional do Brasil. Edição única. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 201.819/RJ. Rel. Min. Ellen Gracie. Redator do Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+201819%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+201819%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/be4uyr4> Acesso em: 2 set.de 2022.
1Analista Judiciário no Superior Tribunal Militar
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás
Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes