IDEOLOGIA DE GÊNERO E DIREITO A PRISÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7103141


Autor:
Rafael Lima Ribeiro


“Ideologia de gênero” é um conceito, ou seja, um termo que busca representar uma realidade. No dizeres de Márcio André Lopes “Utilizamos a palavra gênero quando queremos tratar do conjunto de características socialmente atribuídas aos diferentes sexos. Enquanto o sexo se refere à biologia, o gênero se refere à cultura. Quando pensamos em um homem ou em uma mulher, não pensamos apenas em suas características biológicas; pensamos também em uma série de construções sociais, referentes aos papéis socialmente atribuídos aos grupos: gostos, destinos e expectativas quanto a comportamentos. Da mesma forma, como é comum presentear meninas com bonecas, é comum presentear meninos com carrinhos ou bolas. Nenhum dos dois grupos têm uma inclinação necessária a gostar de bonecas ou carrinhos, mas, culturalmente, criou-se essa ideia – que é tão enraizada que, muitas vezes, pode parecer natural e imutável. A atribuição de características diferentes a grupos diferentes não é, entretanto, homogênea. Pessoas de um mesmo grupo são também diferentes entre si, na medida em que são afetadas por diversos marcadores sociais, como raça, idade e classe, por exemplo. Dessa forma, é importante ter em mente que são atribuídos papéis e características diferentes a diferentes mulheres.

Com isso, percebe-se que a questão do gênero tem permeado os debates jurídicos modernos, em especial no que tange a ausência de lei pra regular tais situações, sendo necessário que seja feita uma interpretação extensiva para que tal grupo vulnerável não seja discriminado.

A jurisprudência está atenta a esse movimento e tem se desvencilhado dos critérios unicamente biológicos para o exercício dos mais diversos direitos. Nesse ponto é interessante trazermos a baila a decisão do STF a respeito da aplicabilidade da Lei Maria da Penha para a mulher trans:

RECURSO ESPECIAL. MULHER TRANS. VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. APLICAÇÃO DA LEI N. 11.340/2006, LEI MARIA DA PENHA. CRITÉRIO EXCLUSIVAMENTE BIOLÓGICO. AFASTAMENTO. DISTINÇÃO ENTRE SEXO E GÊNERO. IDENTIDADE. VIOLÊNCIA NO AMBIENTE DOMÉSTICO. RELAÇÃO DE PODER E MODUS OPERANDI. ALCANCE TELEOLÓGICO DA LEI. MEDIDAS PROTETIVAS. NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO.
1. A aplicação da Lei Maria da Penha não reclama considerações sobre a motivação da conduta do agressor, mas tão somente que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico, familiar ou em relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida.
2. É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. Efetivamente, conquanto o acórdão recorrido reconheça diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha.
3. A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida tão somente à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas.
4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher.
5. A balizada doutrina sobre o tema leva à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina. Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é.
6. Na espécie, não apenas a agressão se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei n. 11.340/2006, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente – especializado – para processar e julgar a ação penal.
7. As condutas descritas nos autos são tipicamen te influenciadas pela relação patriarcal e misógina que o pai estabeleceu com a filha. O modus operandi das agressões – segurar pelos pulsos, causando lesões visíveis, arremessar diversas vezes contra a parede, tentar agredir com pedaço de pau e perseguir a vítima – são elementos próprios da estrutura de violência contra pessoas do sexo feminino. Isso significa que o modo de agir do agressor revela o caráter especialíssimo do delito e a necessidade de imposição de medidas protetivas.
8. Recurso especial provido, a fim de reconhecer a violação do art. 5º da Lei n. 11.340/2006 e cassar o acórdão de origem para determinar a imposição das medidas protetivas requeridas pela vítima L. E. S. F. contra o ora recorrido.
(REsp n. 1.977.124/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 5/4/2022, DJe de 22/4/2022.).

A mulher trans é uma pessoa que nasceu com sexo biológico masculino, mas se identifica socialmente e culturalmente como mulher. Assim:

“O termo trans é utilizado para se referir a uma pessoa que não se identifica com o gênero ao qual foi designado em seu nascimento. Quando nascemos, nossos gêneros são determinados pelo nosso sexo. Assim, uma pessoa que nasce com um pênis é considerada como um homem e uma pessoa que nasce com uma vagina, como uma mulher. Contudo, algumas pessoas percebem que se identificam com outro gênero e passam a viver como assim desejam e se sentem melhor consigo mesmas.

Dessa forma, podemos utilizar ‘mulher trans’ ou ‘pessoa transfeminina’ para se referir a alguém que foi designado homem, mas se entende como uma figura feminina. Já o termo “homem trans’ ou “pessoa transmasculina’ é indicado para tratar uma pessoa que foi designada mulher, mas se identifica com uma imagem pessoal masculina.” (https://transcendemos.com.br/transcendemosexplica/trans/)

Assim, vemos que a Lei Maria da Penha é aplicável na situação porque o conceito de gênero não se confunde com o critério biológico, mas, será que tal entendimento seria aplicável também em relação ao encarceramento, posto que nossa constituição estabelece que a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado(art. 5º XLVIII da CF/1988). A mulher trans ficaria em presídios femininos ou masculinos?

Evidentemente essa escolha seria da própria pessoa que está sendo presa, mas é interessante dizer que a LEP prevê em seu art. 41 que é direito do preso ter chamamento nominal, ser tratado com respeito, bem como o respeito a sua integridade física e moral. Nas regras mínimas das nações unidas para o tratamento de recluso – Regras de Mandela, há também a previsão do principio da não discriminação em relação ao sexo e outros, além de que as administrações prisionais respeitem as necessidades pessoais e morais de cada individuo.

Além disso, a regra numero 5 das regras de Mandela dispõe que “1. O regime prisional deve procurar minimizar as diferenças entre a vida durante a detenção e aquela em liberdade que tendem a reduzir a responsabilidade dos reclusos ou o respeito à sua dignidade como seres humanos.”

Diga-se ainda que existe um dever de respeito a dignidade da pessoa humana por parte das autoridades, sendo a escolha de gênero e a opção sexual conceitos integrantes dessa dignidade, prevista no bojo da nossa CF/88.

Assim, vemos que embora não haja previsão expressa a respeito do direito a mulher trans integrar o presídio feminino, temos que é possível extrair dos dispositivos mencionados, bem como da decisão do STF colacionada a cima que no âmbito do sistema carcerário o direito a opção sexual e ao gênero devem também ser exercidos, de modo que o próprio individuo escolha em qual prisão deseja cumprir pena, se no presídio para homens ou para mulheres.

Referências Bibliográficas

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) é aplicável às mulheres trans em situação de violência doméstica. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/7b3403f79b478699224bb449509694cf>. Acesso em: 21/09/2022