OMISSÃO ESTATAL E REMIÇÃO FICTA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7103106


Autor:
Rafael Lima Ribeiro


O trabalho é um direito subjetivo do preso, previsto em diversos artigos da Lei de Execuções Penais (art. 28, 31, 36, 39, 41 e outros), sendo que conforme a lei é um dever social e condição de dignidade da pessoa humana, tendo finalidade educativa e produtiva. A própria lei diz que o trabalho é um dos critérios de avaliação da disciplina, diz ainda que provocar acidente de trabalho é considerado uma falta grave.

Ou seja, a lei é permeada por diversas previsões a respeito do direito ao trabalho do preso, sendo que o trabalho visa a ressocialização e reeducação do sujeito envolvido em infrações penais.

Assim como é um direito subjetivo do preso é também um dever estatal, conforme vemos no art. 83 da LEP com o seguinte texto “Art. 83. O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva.”

Dessa forma o Estado tem o dever de prestar condições de trabalho e diversão do indivíduo.

Além disso, o condenado que cumpre pena em regime fechado ou semi aberto pode remir o tempo de execução da pena pelo trabalho ou pelo estudo. A remição é um importante instituto do direito das execuções penais, posto que viabiliza o cumprimento da pena em menos tempo de cárcere.

A remição é o direito que possui o condenado ou a pessoa presa cautelarmente de reduzir o tempo de cumprimento da pena mediante abatimento. Serve ainda como forma de ressocialização e preparação para saída, sendo uma forma de estimular e premiar o condenado para que ocupe seu tempo com uma atividade produtiva podendo ser reconhecida por práticas laborais ou educativas.

Em que pese tal dever estatal, sabemos que em termos de encarceramento vivemos um estado de coisas inconstitucional.

O Estado de Coisas Inconstitucional gera um litigio estrutural e ocorre quando verifica-se a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem alterar a situação inconstitucional. Obs: conceito baseado nas lições de Carlos Alexandre de Azevedo Campos – O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. (Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural; https://www.dizerodireito.com.br/2015/09/entenda-decisao-do-stf-sobre-o-sistema.html)

O STF reconheceu que há de fato um estado de coisas inconstitucional em que muitas vezes o estado não consegue cumprir seus deveres básicos estabelecidos pela Lei, em especial em termos de sistema penitenciário.

Ná pratica vemos diversos condenados que desejam exercer seu direito ao trabalho e como consequência ter direito a remição, contudo o Estado, não consegue disponibilizar os meios necessários para o exercício desse direito. Gabriel Candido diz:

“O parágrafo 4º, do artigo 126, da LEP traz a garantia ao condenado de continuar remindo a sua pena nas hipóteses de estar impedido de trabalhar ou de estudar por razões de acidente, visto que o motivo pelo qual a atividade fora interrompida foi alheio à sua vontade.
Nesse ponto, cabe apontar a discussão acerca da denominada “remição ficta” ou “remição automática”, que deveria incidir a partir do não oferecimento, pelo Estado, de condições de estudo e de trabalho para o preso, decorrente da ineficiência dos aparelhos estatais em possibilitar tais atividades nas hipóteses que deveriam ser franqueadas aos apenados. O STF não reconheceu como válida essa forma de remição, averbando a necessidade da efetiva realização das atividades para remir a pena.”

Assim, diante da inação do Estado, o condenado poderia se valer da remição ficta ou imaginada em que  o preso deseja trabalhar contudo por omissão estatal não consegue. Desta feita, não poderia o preso perder o direito a remição visto que o ato faltoso vem do Estado, que deveria estar concedendo meios para o exercício da dignidade do preso.

Nos dizeres de Marcio Andre Lopes “O trabalho e o estudo são direitos do preso, conforme prevê o art. 41, II e VI, da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal). Na verdade, o trabalho possui uma natureza híbrida considerando que, além de ser um direito, é também um dever do apenado (art. 31).

Além disso, conforme vimos acima, o trabalho e o estudo são muito interessantes para o apenado considerando que ele poderá diminuir o tempo de cumprimento da pena por meio do instituto da remição.

Ocorre que, na prática, a maioria das unidades prisionais não oferece oportunidades para que o preso trabalhe ou estude.

Diante desse cenário, surgiu a seguinte tese: o Estado deve oferecer aos presos oportunidades de trabalho e estudo. Com isso, o apenado pode se ressocializar e ter direito à remição. Nos presídios onde isso não é oferecido, pode-se dizer que o Poder Público está sendo omisso em seu dever. Ocorre que os presos não podem ser prejudicados pela omissão do Estado. Logo, se a unidade prisional não oferece condições de trabalho ou estudo para os presos, deve-se considerar, de forma ficta, que estes presos estão trabalhando e, portanto, deve-se conceder a eles a remição mesmo sem o efetivo trabalho. Assim, a defesa pede que os presos sejam beneficiados com a remição da pena, na proporção de 3 dias encarcerados por 1, até o efetivo oferecimento de trabalho ou de estudo.

Essa tese ficou conhecida como “remição ficta” ou “remição automática”.”

A questão foi levada aos tribunais superiores, assim vejamos:

“Ementa: Execução Penal. Habeas Corpus originário. Remição ficta ou virtual da pena. Impossibilidade. Ausência de ilegalidade ou abuso de poder. 1. A remição da pena pelo trabalho configura importante instrumento de ressocialização do sentenciado. 2. A orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a remição da pena exige a efetiva realização de atividade laboral ou estudo por parte do reeducando. Precedentes. 3. Não caracteriza ilegalidade flagrante ou abuso de poder a decisão judicial que indefere a pretensão de se contar como remição por trabalho período em relação ao qual não houve trabalho. 4. Habeas Corpus denegado.
(HC 124520, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 15/05/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-127 DIVULG 26-06-2018 PUBLIC 27-06-2018)

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. REMIÇÃO. APROVAÇÃO PARCIAL NO ENEM. ENSINO MÉDIO CONCLUÍDO ANTERIORMENTE À EXECUÇÃO. POSSIBILIDADE DE REMIÇÃO. REMIÇÃO FICTA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE EFETIVA COMPROVAÇÃO DE TRABALHO OU LABOR. ORDEM DENEGADA. AGRAVO REGIMENTAL PARCIALMENTE PROVIDO.
1. “É cabível a remição pela aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM ainda que o Apenado já tenha concluído o ensino médio anteriormente, pois a aprovação no exame demanda estudos por conta própria mesmo para aqueles que, fora do ambiente carcerário, já possuem o referido grau de ensino”; (REsp n. 1854391/DF, relatora Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 22/9/2020, DJe 6/10/2020), ressalvado o acréscimo de 1/3 (um terço) com fundamento no art. 126, § 5º, da Lei de Execução Penal.
2. Não é cabível a remição ficta dos dias em que apenado não trabalhou nem estudou por não lhe ter sido oferecido labor e/ou estudo, uma vez que o entendimento desta Corte é o de que”;a suposta omissão estatal não pode ser utilizada como causa a ensejar a concessão ficta de um benefício que depende de um real envolvimento da pessoa do apenado em seu progresso educativo e ressocializador (AgRg no HC n. 434.636/MG, Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, DJe 6/6/2018).
3. Agravo regimental parcialmente provido para determinar que o Juízo das execuções reexamine o pedido de remição do recorrente, nos termos do art. 1º, inciso I, da Recomendação 44/2013/CNJ, considerando a aprovação parcial do ora agravante no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM.
(AgRg no RHC 118.912/RO, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 03/11/2020, DJe 16/11/2020)”

“Embora o Estado tenha o dever de prover trabalho aos internos que desejem laborar, reconhecer a remição ficta da pena, nesse caso, faria com que todas as pessoas do sistema prisional obtivessem o benefício, fato que causaria substancial mudança na política pública do sistema carcerário, além de invadir a esfera do Poder Executivo.
O instituto da remição exige, necessariamente, a prática de atividade laboral ou educacional. Trata-se de reconhecimento pelo Estado do direito à diminuição da pena em virtude de trabalho efetuado pelo detento. Não sendo realizado trabalho, estudo ou leitura, não há que se falar em direito à remição. STF. 1ª Turma. HC 124520/RO, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 29/5/2018 (Info 904) STJ. 5ª Turma. HC 421.425/MG, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 27/02/2018. STJ. 6ª Turma. HC 425.155/MG, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 06/03/2018.”

Dessa forma, vemos que a dita remição ficta não é aceita no sistema jurídico brasileiro, porém entendemos que tal decisão é injusta porque não poderia um preso ser prejudicado em seus direitos em razão do Estado ser omisso e deixar a sistema carcerário se tornar falho, fracassado e indigno.

Com isso, nos dizeres de Marcio Andre Lopes, “o Min. Roberto Barroso propôs que fosse dada uma indenização e que a indenização não fosse em dinheiro, mas sim por meio de remição da pena. Dessa forma, em vez de receber uma reparação pecuniária, os presos que sofrem danos morais por cumprirem pena em presídios com condições degradantes teriam direito ao “abatimento” de dias da pena (remição ficta).

Assim, pela proposta do Ministro Barroso, os danos morais causados a presos por superlotação ou condições degradantes deveriam ser reparados, preferencialmente, pela remição de parte do tempo da pena – à razão de um dia de remição para cada 3 a 7 dias cumpridos sob essas condições adversas, a critério do juiz da Vara de Execuções Penais competente. Barroso argumentou que, com a solução, ganha o preso, que reduz o tempo de prisão, e ganha o Estado, que se desobriga de despender recursos com indenizações, dinheiro que pode ser, inclusive, usado na melhoria do sistema.

O voto do Min. Barroso foi acompanhado apenas pelos Ministros Luiz Fux e Celso de Mello, ficando, portanto, vencido.”

Em que pese ser vedada a interpretação extensiva adotando a remição ficta, os tribunais superiores tem concedido tal direito em relação a outras atividades, por exemplo, canto coral. Dessa forma, é digno e humano que se permita a remição ficta da pena, e atendimento aos princípios da republica federativa do Brasil e em especial, aos direitos e garantias fundamentais.

Referências Bibliográficas

https://www.conjur.com.br/2022-ago-16/gabriel-candido-defesa-remicao-ficta-execucao-penal

https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/bac49b876d5dfc9cd169c22ef5178ca7

https://www.dizerodireito.com.br/2015/09/entenda-decisao-do-stf-sobre-o-sistema.html