A CONSTITUCIONALIDADE DO PODER DE REQUISIÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7102565


Autora:
Francine da Rosa Grings1


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discorrer acerca do poder de requisição, que é uma prerrogativa legal conferida à Defensoria Pública para cumprir a sua missão constitucional, assegurando o acesso à justiça aos necessitados. O estudo é pautado na análise da Constituição, da legislação que assegura essa prerrogativa e da análise da decisão recente proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Poder de requisição. Defensoria Pública. Acesso à justiça.

Introdução

O presente trabalho tem como tema o estudo do poder de requisição da Defensoria Pública, órgão incumbido constitucionalmente de prestar a assistência jurídica aos necessitados, garantindo o direito fundamental de acesso à justiça em sentido amplo.

Em que pese esse tema encontre amparo legal no ordenamento jurídico, sua constitucionalidade foi recentemente questionada, sendo proferida importante decisão pelo Supremo Tribunal Federal, a qual merece ser debatida no âmbito acadêmico.

Assim, este artigo analisará as disposições legais que regulamentam o assunto, a doutrina e a decisão judicial proferida pela Suprema Corte, abordando os direitos fundamentais envolvidos e a relevância desse precedente para a atuação e fortalecimento da Defensoria Pública brasileira.

Desenvolvimento

Inicialmente, cabe destacar que a Constituição Federal atribuiu ao Estado o dever de prestar a “assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, nos termos do artigo 5º, LXXIV, da Carta Maior.

Adotando o modelo público de prestação de assistência judiciária gratuita, foi prevista, no artigo 134 da Constituição, a Defensoria Pública, como instituição permanente e essencial à justiça, com as seguintes funções institucionais:

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal . (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)

Em atenção ao §1º, do artigo 134 da Constituição Federal, a Lei Complementar n.º 80/1994, regulamentou a carreira, organizando as Defensorias, bem como prevendo prerrogativas legais aos membros, a fim de que fossem atingidos os objetivos previstos constitucionalmente, quais sejam: orientação, promoção e defesa de direitos dos necessitados. Dentre os poderes conferidos aos defensores públicos, no exercício de suas atribuições,

surge o poder de requisição (artigo 8º, XVI, artigo 44, X, artigo 89, X, e artigo 128, X, da Lei Complementar n.º 80/94), que permite ao defensor requisitar de autoridade pública ou de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias.

Nessa linha, a doutrina de Franklyn Roger e Diogo Esteves assim explica:

[…] Desse modo, sempre que o membro da Defensoria Pública necessitar de documentos ou de providências para o exercício de suas funções institucionais, poderá expedir requisição diretamente para a autoridade pública competente, não havendo a necessidade de intervenção do judiciário. Com isso, resta assegurada atuação mais independente e dinâmica do Defensor Público na proteção dos direitos fundamentais do indivíduo e na conservação do Estado Democrático de Direito2.

Por sua vez, Tiago Fensterseifer complementa a importância desse poder:

Trata-se o poder de requisição, por certo, de medida indispensável ao adequado exercício das suas funções institucionais, ou seja, de um poder implícito e inerente às atribuições institucionais, já que, sem tal mecanismo para instruir suas ações e mesmo medidas extrajudiciais, o Defensor Público se verá, muitas vezes, com sua atuação obstada3.

A ANADEP (Associação Nacional dos Defensores Públicos) igualmente entende que o poder de requisição é fundamental na atuação dos defensores públicos, especialmente na atuação extrajudicial, argumentando que essa prerrogativa, na verdade, pertence às pessoas em situações de vulnerabilidades, amplia o acesso à justiça, evita maior sobrecarga do Judiciário, promove a democracia e os direitos humanos e, por fim, garante a cidadania4.

Como se vê, o poder requisitório está intimamente ligado à efetividade do acesso à justiça, inclusive oportunizando a solução extrajudicial de conflitos, o que remete à ideia de Justiça Multiportas, conceituada por Leonardo Carneiro da Cunha da seguinte forma:

A expressão multiportas decorre de uma metáfora: seria como se houvesse, no átrio do fórum, várias portas; a depender do problema apresentado, as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação, ou da conciliação, ou da arbitragem, ou da própria justiça estatal5.

Nessa senda, cita-se, também, a sua relação com a terceira onda renovatória de acesso à justiça, conforme obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth6, que aborda os meios alternativos de resolução de conflitos, bem como com o espírito de conciliação previsto no Novo Código de Processo Civil (artigo  3º, §3º, da Lei 13.105/2015).

Apesar dos argumentos demonstrados, o poder de requisição teve a sua constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade sob n.º 6852, que foi julgada improcedente, em fevereiro deste ano, conforme trecho do julgado a seguir colacionado:

Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente. […] A prerrogativa de requisição atribuída aos membros da Defensoria Pública apenas corrobora para que a instituição cumpra sua missão constitucional, ao viabilizar o acesso facilitado e célere da coletividade e dos hipossuficientes à documentos, informações e esclarecimentos. A retirada da prerrogativa de requisição implicaria na prática a criação de obstáculo à atuação da Defensoria Pública, a comprometer sua função primordial, bem como da autonomia que lhe foi garantida. O poder de requisitar de qualquer autoridade pública e de seus agentes foi atribuído aos membros da Defensoria Pública porque eles exercem, e para que continuem a exercer de forma desembaraçada, uma função essencial à Justiça e à democracia, especialmente, no tocante, a sua atuação coletiva e fiscalizadora. Considero a concessão de tal prerrogativa aos membros da Defensoria Pública como verdadeira expressão do princípio da isonomia, e instrumento de acesso à justiça, a viabilizar a prestação de assistência jurídica integral e efetiva, nos temos do art. 5º, XXXV e LXXIV, da Constituição Federal7.

Ao analisar referida ação constitucional, a Corte Suprema entendeu que a concessão de tal prerrogativa legal busca “propiciar condições materiais para o exercício de seu mister, não havendo que se falar em qualquer espécie de violação ao texto constitucional”8.

Nas razões da decisão, foi invocada, também, a “Teoria dos Poderes Implícitos”, que reconhece a órgãos públicos poderes instrumentais para a execução das funções constitucionalmente atribuídas.

Argumentou-se, também, que o poder de requisição permite, aos membros da Defensoria Pública, o exercício, de forma desembaraçada, de uma “função essencial à Justiça e à democracia, especialmente, no tocante, a sua atuação coletiva e fiscalizadora”9.

Além disso, a decisão asseverou que tal prerrogativa constitui “verdadeira expressão do princípio da isonomia, e instrumento de acesso à justiça, a viabilizar a prestação de assistência jurídica integral e efetiva, nos temos do art. 5º, XXXV e LXXIV, da Constituição Federal” 10.

Em um dos votos dos Ministros, além da possibilidade de solução extrajudicial de conflitos, foi ressaltada outra finalidade do poder de requisição: a “potencialização do alcance de sua atuação coletiva”, por constituir um “mecanismo de instrução das demandas em favor de grupos vulneráveis e, ainda, para uma maior proteção dos direitos humanos” 11.

Conforme dados apresentados pela Defensoria Pública à Corte, pesquisas apontam que 77,7% dos defensores consideram que o exercício dessa prerrogativa foi capaz de evitar a judicialização em todos ou quase todos os casos em que foi utilizado12.

Por estas razões, o Supremo entendeu que:

Negar à Defensoria Pública o poder requisitório teria o efeito negativo de esvaziar a capacidade instrutória e de resolução extrajudicial de conflitos, criando grave e inconstitucional obstáculo ao cumprimento efetivo de seu papel constitucional, diminuindo a efetividade de sua atuação em defesa dos direitos fundamentais de todos os cidadãos, e com particular ênfase dos mais necessitados, tendo por resultado o engessamento do exercício de suas funções constitucionais expressas, em contrariedade ao próprio fortalecimento histórico da Instituição13.

Contudo, foi feita uma ressalva acerca desse poder requisitório: não incluem os elementos de informação que dependem de autorização judicial, tais como dados sigilosos14.

Em suma, entendeu o Tribunal Constitucional que a prerrogativa de requisição conferida à Defensoria Pública é plenamente adequada, razoável e proporcional e está de acordo com o cumprimento das disposições constitucionais.

Essa decisão proferida pela mais alta corte do país reforça a posição já defendida pela doutrina institucional e fortalece a Defensoria Pública, reconhecendo a importância de sua atuação e os reflexos à população vulnerável, além de representar uma superação de entendimentos jurisprudenciais anteriores.

Conclusão

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise dos fundamentos que legitimam o poder de requisição da Defensoria Pública, sob o aspecto legal, doutrinário e jurisprudencial, analisando-se os principais argumentos utilizados pela Suprema Corte ao julgar a constitucionalidade dessa prerrogativa.

Conclui-se, portanto, que o poder de requisição é um instrumento de justiça, pois permite aos membros da Defensoria atuarem para a efetivação dos direitos da população necessitada, cumprindo assim o mandamento constitucional de acesso à justiça em sentido amplo.


2 ROGER, Franklyn. Princípios institucionais da defensora pública: De acordo com a EC 74/2013 (Defensoria Pública da União) / Franklyn Roger, Diogo Esteves. Rio de Janeiro : Forense, 2014, p. 1038-1039.

3 FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 72.

4 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS (ANADEP). Poder de requisição da Defensoria Pública: Prerrogativa fundamental da missão constitucional de defensoras e defensores públicos, principalmente na atuação coletiva e extrajudicial da Instituição. Disponível em:<https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:38V_gdCVkesJ:https://www.anadep.org.br/wtksite/c ms/conteudo/51745/PODER_DE_REQUISICAO.pdf&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>.Acesso em: jul. 2022.

5 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 13ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 637. 6 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988, p. 88. 7 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 6852. Plenário. Relator(a): Min. Edson Fachin. Julgado em: 18/02/2022, Julgamento virtual, Processo Eletrônico. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15350407231&ext=.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2022.

8 Ibid., 2022, p. 14

9 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 6852. Plenário. Relator(a): Min. Edson Fachin. Julgado em: 18/02/2022, Julgamento virtual, Processo Eletrônico, p. 19. Disponível em:<https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15350407231&ext=.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2022.

10 Ibid., 2022, p. 20.

11 Ibid., 2022, p. 30.

12 Ibid., 2022, p. 31.

13 Ibid., 2022, p. 32.

14 Ibid., 2022, p. 41.


Referências Bibliográficas

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS (ANADEP). Poder de requisição da Defensoria Pública: Prerrogativa fundamental da missão constitucional de defensoras e defensores públicos, principalmente na atuação coletiva e extrajudicial da Instituição. Disponível em: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:38V_gdCVkesJ:https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/51745/PODER_DE_REQUISICAO.pdf&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>.Acesso em: 29 jul. 2022.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, de 5 de outubro de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 30 jul. 2022.

_________. LEI COMPLEMENTAR Nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp80.htm>. Acesso em: 30 jul. 2022.

_________. LEI Nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105>. Acesso em: 30 jul. 2022.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988.

CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 13ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016.

FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

ROGER, Franklyn. Princípios institucionais da defensora pública: De acordo com a EC 74/2013 (Defensoria Pública da União) / Franklyn Roger, Diogo Esteves. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 6852. Plenário. Relator(a): Min. Edson Fachin. Julgado em: 18/02/2022, Julgamento virtual, Processo Eletrônico. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15350407231&ext=.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2022.


1Graduada em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis com Especialização em Gestão do Sistema Prisional pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Constitucional pela Faculdade UNIBF.
Agente Federal de Execução Penal do Departamento Penitenciário Nacional, Ministério da Justiça.