CONTROVÉRSIAS SOBRE O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL: SISTEMA DE JUSTIÇA, NATUREZA JURÍDICA, CONFISSÃO E RETROATIVIDADE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7094863


Autor:
Jorge Bernardo Oliveira da Silva1


1. INTRODUÇÃO

O acordo de não persecução penal (ANPP), inspirado no plea barganing estadunidense, tem sua primeira previsão normativa no Brasil editada por meio da Resolução nº 181, de 7 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Logo após sua publicação, a Resolução nº 181 do CNMP foi objeto de controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (STF) em duas ações diretas de inconstitucionalidade2.

Posteriormente, a previsão do ANPP em lei3 em sentido formal, apesar de superar a questão da reserva legal discutida nas ações de controle de constitucionalidade, ainda não foi capaz de solucionar algumas controvérsias.

Discute-se desde questões epistemológicas de adequação da sua tradução para o sistema de justiça brasileiro, sob a perspectiva adversarial e inquisitorial, até questões de aplicação de regras de direito intertemporal.

A ausência de previsão expressa na norma instituidora do ANPP sobre regras de direito intertemporal tem ensejado divergências no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF). De forma que há insegurança jurídica e casuísmo na aplicação do ANPP às infrações penais praticadas em data anterior à vigência da Lei 13.964/2019.

Para a definição da aplicação retroativa da norma instituidora do ANPP, os tribunais superiores têm abordado em seus fundamentos a finalidade do ANPP, a natureza e a utilidade da confissão e a distinção entre as fases processuais, para vedar a modificação do ato jurídico perfeito.

Além de afetar a definição do marco temporal de retroação da norma (recebimento da denúncia4, prolação da sentença5 ou trânsito em julgado6), a natureza jurídica da confissão do ANPP e do próprio acordo contribuem para a compreensão da existência ou não de efeitos secundários da decisão de homologação, como efeitos civis, ou mesmo a possibilidade ou não de utilização da prova emprestada em processo administrativo.

Nesse contexto, visando a resolução dos problemas e incertezas da aplicação do ANPP, o presente artigo cotejará os argumentos utilizados nos votos dos ministros do STJ e do STF, nos precedentes de cada uma das teses de aplicação de direito intertemporal, bem como, analisará doutrina especializada sobre o tema.

Qual a natureza e os efeitos da confissão no ANPP? Trata-se de elemento de prova? A confissão pode produzir efeitos fora do ANPP? É possível utilizá-la como prova emprestada? Qual a finalidade do ANPP? Qual o marco para a aplicação retroativa da norma?

2. JUSTIFICATIVA E RELEVÂNCIA DO PROBLEMA

A abertura do direito penal brasileiro à justiça negociada, iniciada por meio da Lei nº 9.099/1995, com a transação penal, inspirada no direito português e italiano, e ampliada pela Lei nº 12.850/2013, com a colaboração premiada, e pela Lei nº 13.964/2019, com acordo de não persecução penal, tem amparado diversas discussões doutrinárias e judiciais sobre os limites e adequações desses institutos ao sistema de justiça brasileiro.

São princípios como o da não autoincriminação e da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública que permeiam as discussões sobre a aplicação dos institutos da justiça negociada.

Por outro lado, há forte apelo para a adesão a formas mais céleres de aplicação do direito penal, bem como, a busca de medidas alternativas à prisão, tendo em vista a longa duração dos processos judiciais e a falência do sistema prisional na função de ressocialização do preso.

Nesse contexto, o acordo de não persecução penal, visando desonerar os tribunais brasileiros e conferir celeridade à resposta estatal para infrações penais, vem mitigando o princípio da obrigatoriedade da ação penal, em aplicação da 2ª velocidade7 do direito penal.

Contudo, a tradução do plea barganing não exigiu apenas adaptações no próprio instituto nacionalizado na figura do ANPP, mas também alterações na matriz do sistema de justiça nacional.

(…) novos instrumentos de política criminal foram incorporados em nosso sistema processual penal para racionalizar a atuação do titular da ação penal, transformando a antiga obrigatoriedade da ação penal em verdadeira discricionariedade mitigada.8

A comunhão de institutos do common law com o civil law não se reduz a mera importação. Conforme pontua Máximo Langer9, no caso dos institutos de justiça negociada pressupõe-se um sistema adversarial (modelo de disputa) e não um sistema inquisitorial (modelo de investigação oficial). Enquanto no primeiro o juiz é inerte diante de partes em igualdade no processo, no segundo o juiz tem papel mais ativo na produção de provas, pois o processo, nessa matriz do direito, é guiado pela busca da verdade.

Nesse sentido, a lei de criação do ANPP também criou diversos dispositivos próprios de um sistema adversarial, como o juiz das garantias, confirmando a tese da americanização10 de Máximo Langer, o qual percebe a expansão dos institutos penais do sistema estadunidense para a Europa e para a América Latina.

Entretanto, o sistema brasileiro permanece com a fase pré-processual marcadamente inquisitorial, como é o caso do inquérito policial, bem como, a fase processual mantém dispositivos inquisitoriais, como a possibilidade de o juiz produzir provas (art. 156 do Código de Processo Penal), ou decidir de ofício a aplicação de medidas assecuratórias (art. 127 do Código de Processo Penal).

Somada às contradições inquisitoriais e adversariais no Brasil, a suspensão liminar da eficácia dos dispositivos legais referentes ao juiz das garantias pelo STF11 torna frágil o substrato sistêmico de justiça brasileiro para o florescimento da justiça negocial, especialmente na consolidação das garantias necessárias para preservar a igualdade entre as partes no negócio processual.

Nesse conflito se insere a confissão, que, para o sistema adversarial, significa admissão de culpa, mas que não seria suficiente para a condenação do acusado no sistema inquisitorial se não apresentada em conjunto com outras provas, pois a premissa desse sistema é a busca da verdade, não bastando a simples declaração do acusado.

São numerosas as dificuldades para tradução do plea barganing ao direito brasileiro ou a qualquer outro direito de origem no civil law. Maximo Langer12, ao analisar a expansão dos institutos de direito penal estadunidenses para a Europa e América Latina, advertiu que, ante as diferenças entre os sistemas legais, a tradução do plea barganinig pode funcionar como Cavalo de Troia, pois não seria apenas a importação de um instituto, mas implicaria mudanças estruturais e nas relações de poder no país de destino.

Além disso, Ricardo Gloeckner13 critica o uso da “racionalidade empresarial” e da linguagem do mercado no processo penal, em uma busca de eficiência do processo que desemboca na exclusão do próprio processo, mediante a justificativa das autoridades nacionais de salvar o falido processo penal.

Contudo, o instituto do plea barganing tem sido aplicado e aceito mundialmente. No caso Natsvlishvili e Togonidze contra Georgia, a Corte Europeia de Direitos Humanos14 reconheceu que o plea barganing está de acordo com o art. 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos e que não há afronta ao contraditório ou ampla defesa no procedimento, uma vez que é válida a renúncia desses direitos pelo acusado, em exercício de seu livre arbítrio.

Apesar de se tratar de forma de justiça consensual, considerando que o próprio acusado negocia e adere às condições do ANPP, a tradução do instituto estadunidense requer adaptações no direito brasileiro e a viabilização de meios para que sejam mantidas as garantias e o devido processo legal.

Nesse sentido, cumpre analisar e interpretar a confissão formal no ANPP, bem como, a natureza e finalidade do acordo, para propor soluções e evitar consequências indesejadas, buscando-se garantir a máxima eficácia almejada com o instituto, ao tempo em que se preserva as garantias individuais e a coerência do sistema de justiça brasileiro.

3. POSSÍVEIS SOLUÇÕES, SUGESTÕES OU FORMAS DE ENFRENTAMENTO DO PROBLEMA

O acordo de não persecução penal, cuja natureza jurídica é majoritariamente reconhecida como negócio jurídico pré-processual15, tem como objeto de negociação as “condições ajustadas cumulativa e alternativamente” (art. 28-A do Código de Processo Penal) entre o acusado, seu defensor e o Ministério Público, com a posterior homologação pelo Poder Judiciário.

Essas condições a serem cumpridas pelo investigado, caso o ANPP seja homologado judicialmente, não consistem em penas ou substitutos de pena, mas sim em obrigações decorrentes do negócio jurídico fixado, as quais não são dotadas de imperatividade16, podendo o investigado cumprir ou não as obrigações. Caso cumpra terá extinta a punibilidade e caso não cumpra se sujeitará ao ajuizamento de processo penal a partir da denúncia do Ministério Público.

Adicionalmente, o mesmo dispositivo legal dispõe que são requisitos para o ANPP17: (i) existência de procedimento investigatório (ii) não ser caso de arquivamento; (iii) confissão formal e circunstanciada; (iv) infração penal sem violência ou grave ameaça; (v) pena mínima inferior a 4 anos; e (vi) o ANPP ser necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

Nota-se que a lei não permite a negociação sobre a verdade dos fatos, mas apenas sobre as condições de cumprimento do ANPP. Essa interpretação é coerente com o sistema brasileiro de justiça, tendo em vista que, conforme afirma Máximo Langer18, no sistema adversarial a verdade é relativa e consensual, já no sistema inquisitorial a verdade tende a ser absoluta, não existindo espaço para as partes negociarem sobre a verdade dos fatos.

Demais disso, as questões relacionadas ao fato criminoso devem ser analisadas previamente pelo Ministério Público, pelo investigado e pelo magistrado.

De certo que não se trata da mesma cognição exauriente que ocorre durante um processo judicial. Mas ao Ministério Público incumbe verificar se não é o caso de arquivamento, bem como ter clara a definição típica do crime para verificar o cumprimento dos requisitos objetivos relacionados à infração, como a pena mínima inferior a 4 anos, além de analisar a adequação do ANPP para prevenção e repressão do crime, o que naturalmente requer delimitação fática e de direito.

Da mesma forma, o investigado ao confessar formal e circunstanciadamente o crime deve se ater ao detalhamento do fato criminoso.

E por fim, o magistrado, para homologar o acordo, analisa o cumprimento de todos os requisitos legais, incluindo os anteriormente citados.

Nesse sentido, do ponto de vista epistemológico, a confissão exigida no ANPP não pode ser concebida como declaração de culpa (culpa no sentido penal), pois o sistema de justiça brasileiro atribuiu exclusivamente ao Poder Judiciário a declaração de culpa, diversamente do que ocorre no sistema estadunidense (adversarial), que admite a negociação sobre os fatos. Como bem observa Rogério Sanches19, no ANPP:

(…) não há reconhecimento expresso de culpa pelo investigado. Há, se tanto, uma admissão implícita de culpa, de índole puramente moral, sem repercussão jurídica. A culpa, para ser efetivamente reconhecida, demanda o devido processo legal.

Acerca da existência ou não de efeitos da confissão fora do ANPP, destaca- se que apesar de a lei ter permanecido silente sobre a ausência de efeitos civis do acordo, nota-se que a Lei nº 9.099/1995 trouxe essa previsão expressa no art. 76, § 6º, para a transação penal. O que parece também se aplicar ao ANPP.

Nesse sentido, e corroborando com o entendimento acima citado de Rogério Sanches, a Procuradora da República, Luciana Vassalli20, afasta a existência de juízo de responsabilidade ou efeitos civis e administrativos no ANPP.

Ademais, a despeito da confissão, a decisão judicial que homologa o ANPP não comporta juízo sobre a responsabilidade do aceitante, e por isso não produz efeitos civis ou administrativos.

Igualmente, Juarez Tavares21 leciona que:

(…) a finalidade do acordo não é probatória, não se busca a confissão do imputado, mas ela é um requisito ao consenso exatamente para viabilizar o controle judicial sobre o mecanismo negocial.

Nota-se que o ANPP é um instituto de política criminal que visa definir consensualmente o cumprimento da sanção decorrente de ilícito penal, provocando soluções reparadoras, preventivas e repressivas, além de evitar o estigma de uma ação penal para o acusado e de reduzir para o Estado o custo e a quantidade de processos que abarrotam as varas criminais.

A possibilidade de exclusão do processo judicial, caso haja cumprimento das obrigações definidas no acordo, exige, para a coerência com o sistema brasileiro de justiça, a homologação judicial, especialmente em razão da natureza pública da ação penal e do princípio da obrigatoriedade.

Contudo, a exigência de homologação judicial do acordo não desnatura sua natureza de negócio jurídico, o qual pode ser avaliado sob o prisma civilista.

Nesse sentido, a confissão no ANPP tem natureza jurídica de pressuposto negocial. Trata-se, sob a perspectiva da escala ponteana, de requisito de existência do negócio jurídico processual.

Assim, não tendo a confissão no ANPP natureza probatória, não há o que falar em prova emprestada, tampouco em efeitos civis ou administrativos. Nem mesmo pode ser utilizada como fundamento único para oferecimento da denúncia em caso de descumprimento do acordo.

Superada a questão do requisito da confissão no ANPP, retorna-se ao oferecimento do acordo, para avaliação do marco de retroação da norma, já ciente de que o acordo não possui, via de regra22, efeitos extranegociais.

Cabe destacar que finalidade do ANPP ou o momento de seu oferecimento, não se confundem ou alteram a natureza jurídica do acordo. Não se trata de condição de procedibilidade ou de prosseguibilidade da ação penal. Conforme decisão do STJ23: “não existe condição de procedibilidade não prevista em lei.”

Aprofundando a questão, no mesmo precedente do STJ24, foi afirmado que o ANPP não constitui direito subjetivo público do acusado. Trata-se, novamente, de assunto polêmico e que resvala nas dificuldades de tradução de institutos originários de sistema de justiça alienígena.

Nesse contexto, ao tempo em que Aury Lopes Jr. defende que o ANPP consiste em direito público subjetivo do acusado, no mesmo artigo25, Higyna Josita argumenta em sentido oposto.

Apesar de ambos os argumentos serem da mais elevada envergadura, avalia- se que, ante o princípio da inafastabilidade de jurisdição (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal), mais lógico é conceber o oferecimento do ANPP como faculdade do Ministério Público, pois a lei apresenta o seu oferecimento ou não como assunto indene26 de controle judicial, mas afeto à competência exclusiva do Ministério Público e seu próprio órgão revisional.

Assim, a verificação pelo Ministério Público do requisito de o ANPP ser necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime nitidamente transcreve a discricionariedade do oferecimento do instituto, decorrente da exigência de interpretação dos conceitos jurídicos abertos que compõe esse requisito.

Nota-se que, ante a possibilidade de o negócio jurídico do ANPP, caso cumprido, afastar a sanção penal e o próprio processo penal, mediante a extinção da punibilidade, o ANPP apresenta natureza híbrida, de direito processual-material. O que parece ser consenso na doutrina e na jurisprudência, indicando que, em razão da existência de aspectos materiais na norma, é o caso de se admitir a retroatividade da norma penal benéfica ao acusado.

Contudo, a fixação do marco de retroação da norma ainda é incerta. Basicamente, são três teses nos precedentes judiais para aplicação retroativa do ANPP a infrações penais praticadas em data anterior à vigência da Lei nº 13.964/2019: a) antes do recebimento da denúncia; b) antes de prolatada a sentença; c) antes do trânsito em julgado.

Para a primeira tese, destacam-se os argumentos do Ministro Luís Roberto Barroso, nos autos do HC 191464 AgR/SC, que fixou o recebimento da denúncia como limite para retroação da norma. Nesse precedente, argumentou-se que fixar a retroação da norma em outro momento afetaria a finalidade do ANPP de evitar o início do processo penal.

Também foi realizado o distinguishing em relação ao HC 74305, para não aplicar a tese de retroação fixada no caso da Lei nº 9.099/1995 para a suspensão condicional do processo, pois enquanto essa se aplica à fase processual, o ANPP é próprio da fase pré-processual e afeta diretamente o ius puniendi estatal.

Adicionalmente, foi deferido maior relevo aos aspectos processuais da norma, em face de sua natureza híbrida, para não admitir a retroação da norma após o recebimento da denúncia. Nesse sentido, cabe destacar importante lição sobre retroação de normas de caráter híbrido constante desse precedente27:

Em se tratando de leis penais híbridas, possível haver conformação entre os postulados, de forma que, de um lado, a aplicação da lei não necessariamente retroagirá em seu grau máximo (inclusive após o trânsito em julgado); e, de outro lado, não necessariamente será o caso de considerar válidos todos os atos já realizados sob a vigência da lei anterior. Se a conformação não for realizada expressamente pelo legislador, cabe ao intérprete fazê-la.

É notável o brilhantismo das argumentações tecidas nesse precedente. Entretanto, não parece haver incompatibilidade entre a finalidade do ANPP e a retroação da norma em momento posterior ao recebimento da denúncia. Tendo em vista que mesmo na fase processual é possível que haja economia processual ao Estado, bem como se concretize vantagem para o acusado.

No tocante à segunda tese, Carmen Lúcia, adotando o posicionamento de Aury Lopes Jr. e Higyna Josita28 e no mesmo sentido lecionado por Rodrigo Leite Cabral29, reconhece que é possível retroagir a aplicação do ANPP, desde que não haja sentença proferida nos autos, conforme se verifica nos fundamentos da decisão proferida em sede de recurso ordinário em habeas corpus30:

Até essa fase processual, a confissão do acusado é útil à acusação, além de ser possível a mitigação da obrigatoriedade da ação penal pública antes desse marco temporal.

Para essa tese, são considerados os seguintes argumentos: i) após a sentença condenatória, a confissão do acusado seria inservível ao Ministério Público; ii) não seria possível revogar ou anular a sentença já proferida; e iii) uso analógico da tese de retroação da suspensão condicional do processo da Lei nº 9.099/1995 fixada pelo STF no HC 74305.

Nota-se a coerência e bela fundamentação dessa tese. Contudo, como visto, a confissão não consiste em elemento de prova, mas em conformação do acusado com os termos acordo. Por isso, pondera-se que, ainda após a sentença, é possível a confissão e o acordo possuírem utilidade para o Ministério Público. Demais disso, a retroatividade de normas materiais, por preceito constitucional, pode superar até o trânsito em julgado, assim, uma sentença não seria obstáculo para sua aplicação. E em relação à aplicação dos fundamentos do HC 74305, o Ministro Barroso, já elucidou acima que se trata de caso distinto, não admitindo a aplicação ao ANPP.

Por fim, a terceira tese31 privilegia o aspecto material da norma em detrimento do aspecto processual relevado pelas demais teses e aplica a retroação da norma até o trânsito em julgado, considerando que se trata de interpretação mais benéfica ao réu em atenção ao art. 5º, XL, da Constituição Federal. Para esses casos, o Ministério Público deve se manifestar motivadamente sobre a viabilidade da propositura do acordo.

Atento a essas divergências o Ministro Gilmar Mendes32 afetou a questão ao Plenário do STF, o qual ainda está pendente de julgamento na data de conclusão deste artigo. Mas ao que consta da minuta33 de voto do ministro relator, datada de 17/09/2021, será proposta a terceira tese acima mencionada ao crivo do plenário.

A fixação do trânsito em julgado como limite temporal da retroação da norma considera que a persecução penal é encerrada com o trânsito em julgado, por isso não caberia proposição de acordo de não persecução penal após esse momento.

Verifica-se, portanto que se está diante de questão ainda aberta e repleta de nuances, exigindo aprofundamento em estudos futuros. Mas é possível propor solução às questões aventadas, com a cautela que o caso requer.

Em vista do debate realizado neste artigo com os votos dos Ministros e a doutrina selecionada, propõe-se os seguintes caminhos para solução das questões colocadas de início: i) compreensão da natureza jurídica da confissão no ANPP como pressuposto negocial, com efeito exclusivo de adesão do acusado aos termos do acordo; ii) percepção de que a confissão no ANPP não pode ser tratada como elemento de prova no sistema de justiça brasileiro; iii) verificação da impossibilidade de a confissão produzir efeitos fora do ANPP; iv) inviabilidade da utilização da confissão em ANPP como prova emprestada; v) entendimento de que a finalidade do ANPP é a conformidade do acusado e a redução de processos penais, bem como, de que o ANPP não consiste em condição de procedibilidade, nem em direito subjetivo do acusado, mas sim em negócio jurídico; vi) aplicação da tese da retroatividade da norma limitada temporalmente ao trânsito em julgado.


2 Foram ajuizadas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pela Associação dos Magistrados Brasileiros a ADI nº 5793 e a ADI nº 5790, ambas de relatoria do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Na data de conclusão deste artigo, verifica-se a existência de manifestação da Procuradoria-Geral da República pela perda superveniente do objeto, em razão da edição da Lei nº 13.964/2019, e pela improcedência dos pedidos, ainda sem decisão do STF.

3 Lei nº 13.964/2019, conhecida como Lei do Pacote Anticrime.

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 191464 SC AgR, Relator: Min. Roberto Barroso. Brasília, 11 nov. 2020.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC 207259 SC, Relator: Min. Cármen Lúcia. Brasília, 13 out. 2021. p. 16

6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 625601 SC, Relator: Min. Nefi Cordeiro. Brasília, 02 fev. 2021.

7 “(…) para os casos em que, por não se tratar já de prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcional à menor intensidade da sanção.” (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 148)

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 201610 RS AgR, Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Brasília,                      21  jun. 2021. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=756262481.

9 LANGER, Máximo. From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure. In: Harvard International Law Journal, v. 45, n. 1, p. 36-37.

10 Idem. p. 26-27

11 Em janeiro de 2020, o presidente do STF, Luiz Fux, em sede de liminar, nas ADI 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, suspendeu a implementação do juiz das garantias, até que a matéria seja julgada em plenário.

12 LANGER, Máximo. From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure. In: Harvard International Law Journal, v. 45, n. 1, p. 38.

13 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Um ‘’novo’’ liberalismo processual penal autoritário? In: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Plea Bargaining . São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 179-185.

14 COUNCIL OF EUROPE, European Court of Human Rights (CEDH), Caso Natsvlishvili e Togonidzev. Georgia. Application n. 9043/05. Julgado em 8 set. 2014.

15 VASSALLI, Luciana Sperb Duarte. Acordos entre Ministério Público e imputado no Brasil e na Itália: aplicação da pena a pedido das partes, transação penal e acordo de não persecução penal. In: Direito Hoje, TRF4, abr. 2021.

16 CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal. ed. 2. Salvador: Juspodivm, 2021, p.92.

17 CARVALHO. Sandro Carvalho Lobato de. Questões sobre o acordo de não persecução penal no juízo de execução penal. In: Pacote Anticrime, v.2. Organizadores: Eduardo Cambi, Dani Sales Silva, Fernando Marinela. Curitiba: Escola Superior do MPPR, 2021, p. 308.

18 LANGER, Máximo. From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure. In: Harvard International Law Journal, v. 45, n. 1, p. 10.

19 CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 129.

20 VASSALLI, Luciana Sperb Duarte. Acordos entre Ministério Público e imputado no Brasil e na Itália: aplicação da pena a pedido das partes, transação penal e acordo de não persecução penal. In: Direito Hoje, TRF4, abr. 2021.

21 TAVAREZ, Juarez; CASARA, Rubens. Prova e verdade. 1. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p.19.

22 Essa regra é excepcionada pela previsão legal de não oferecimento da suspensão condicional do processo no caso de descumprimento do ANPP (art. 28-A, § 11, do Código de Processo Penal).

23 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1948350 RS, Relator: Min. Jesuíno Rissato. Brasília, 09 nov. 2021.

24 Idem.

25 LOPES JÚNIOR, Aury; JOSITA, Higyna. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal.

26 Aqui surge um aparente conflito de aplicação, em razão da suspensão liminar do art. 28 do CPP, nas ADI 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Uma vez que o art. 28-A, § 14, exige a forma do art. 28 para tratar da recusa do Ministério Público em oferecer o ANPP e a suspensão liminar do dispositivo provoca a repristinação do antigo art. 28, mantendo o controle judicial sobre o arquivamento. Contudo, a suspensão liminar não afetou o §1º do art. 28, que permanece vigente e consiste nos elementos de forma sobre a revisão ministerial. Portanto, não se verifica prejudicada a sistemática originalmente adotada na Lei nº 13.964/2019 para a revisão do ANPP pelo próprio Ministério Público. Apesar de se tratar de assunto que mereceria um capítulo inteiro, registra-se o delineamento da questão para não perder o foco do artigo e manter o leitor informado das nuances do assunto.

27 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 191464 SC AgR, Relator: Min. Roberto Barroso. Brasília, 11 nov. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15345082439&ext=.pdf. Acesso em 05 fev. 2022, p. 2-3.

28 LOPES JÚNIOR, Aury; JOSITA, Higyna. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal.

29 CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal. ed. 2. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 213.

30 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC 207259 SC, Relator: Min. Cármen Lúcia. Brasília, 13 out. 2021. p. 16

31 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 625601 SC, Relator: Min. Nefi Cordeiro. Brasília, 02 fev. 2021.

32 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 185913 DF, Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, 23 set. 2020.

33 Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/voto-gilmar-anpp.pdf. Acesso em: 12 fev. 2022.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1Pós-Graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS, Pós-Graduado em Direito Público pela PUC/MG, Bacharel em Direito pela UnB.