REDES SOCIAIS: UM NOVO CONCEITO DE ESTADO E POVO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7063414


Autor:
João Roberto Ferreira Franco


RESUMO

O presente artigo pretende discutir a capacidade das redes de mudar as relações sociais e desenvolver um novo conceito de comunidade e nação, com impactos profundos na forma como os indivíduos, empresas e Estado se relacionam ao ponto de já serem consideradas serviço público essencial.

Palavras-chave: Redes sociais; Serviço público; Indivíduos; Sociedade.

ABSTRACT

This article aims to discuss the ability of networks to change social relations and develop a new concept of community and nation, with profound impacts on the way individuals, companies and the State relate to the point of being considered an essential public service.

Keywords: Social networks; Public service; Individuals; Society.

INTRODUÇÃO

As plataformas digitais há muito tempo se tornaram empresas transnacionais que habitam e participam da vida e do cotidiano dos povos em escala global. Com a capacidade de interagir em tempo recorde com as populações ao redor do mundo as plataformas digitais já atingiram o status de comunidade ou se preferir de nação onde dentro deste contexto estão inseridas milhões de pessoas (físicas ou jurídicas) de diversas nacionalidades que interagem de acordo com as regras daquele ambiente social (plataforma) às margens da legislação local.

Cada vez mais os ambientes virtuais moldam os costumes e as tendências de modo que hoje há a influência destas plataformas na política, saúde, consumo, moda, comportamento, conhecimento, liberdade, desenvolvimento entre outros aspectos da vida em sociedade. Os tentáculos do ambiente virtual através destas empresas, cada vez mais adentram o cotidiano das pessoas criando pouco a pouco um modelo de comportamento e conduta universal direcionado e definido de acordo com os interesses de quem detém o controle destas informações.

Exemplos desta nova realidade estão espalhados pelo mundo. O primeiro deles e que mostrou ao mundo o poder e a capacidade dos ambientes virtuais de mudar sociedades inteiras foi a chamada Primavera Árabe (2010 – 2012). Utilizando-se de ferramentas como twitter, facebook e youtube, as sociedades de Tunísia, Egito e Líbia derrubaram os regimes instalados há décadas influenciados pelo anseio na busca de um sistema mais próximo ao Ocidental que as próprias plataformas divulgavam.

Tal acontecimento é prova de que as plataformas digitais ultrapassaram os limites de seus territórios e reúnem o poder de unir povos de diversas nacionalidades para convergirem com os ideias e diretrizes pré-estabelecidos em um ambiente que ainda não conta com o controle estatal e que em alguns momentos pode parecer favorecer e em outros prejudicar a vida em sociedade.

As campanhas de 2016 nos EUA que elegeram Donald Trump como presidente e as do Brasil de 2018 que elegeram Jair Bolsonaro presidente foram massificadas principalmente pelas redes sociais. As mídias televisivas e impressas destes países que tinham papel fundamental na transmissão das propostas dos candidatos foram surpreendidas pelas informações e teias de redes criadas para divulgar informações sobre os candidatos de suas preferencias na grande maioria das vezes inverídicas. No caso do Brasil inclusive, o presidente foi eleito sem participar de nenhum debate presidencial.

Mais recente ainda, na pandemia de COVID, as redes sociais atingiram o patamar de principal meio de interação, repito interação e não comunicação, entre as pessoas. A interatividade digital atingiu níveis inimagináveis com conteúdos sendo produzidos de forma aleatória e sem controle que geraram desencontro de informações principalmente no que tange ao combate a doença. Surgiram duas nações: a dos que acreditavam na vacina e as dos que não acreditavam. Somente com a aplicação das doses no ambiente real e seus resultados é que os que são contra a vacina perderam suas forças.

O fenômeno das redes sociais agora está prestes a atingir um novo patamar, o de se tornar 100% virtual ou metaverso como é conhecido. Não restam dúvidas de que nas últimas décadas vimos as plataformas digitais se tornarem praticamente Estados que são compostos por pessoas de todos os lugares do globo que não precisam de passaporte, não estão obrigados a seguir a regulamentação local e interagem entre si praticando quase todos os atos da vida em sociedade fazendo surgir a dúvida sobre a necessidade de um novo resinificado de povo e de soberania nacional. Sobre este aspecto é que este artigo tentará discorrer.

1. Conceito de povo

A noção de povo há muito vem sendo utilizada nas teorias clássicas onde o estudo deste conceito sempre esteve atrelado ao significado do próprio Estado. Em um primeiro momento o conceito de povo esteve intimamente ligado na Grécia antiga ao próprio sistema de governo defendido por seus filósofos. Os iluministas pensaram a substituição das relações feudais de poder pelo “demo” (povo) + “cratos” (regime), formando a expressão democracia, que significa o governo do povo para o povo.

Fabio Konder Comparato1 em seu trabalho afirma que o conceito de povo como titular da soberania democrática nos tempos modernos surgiu nos EUA na constitucionalização do país com a Constituição da Virgínia (1776), onde Thomas Jefferson propôs que esta constituição fosse promulgada “pela autoridade do povo”.

Friedrich Müller2 questiona este conceito e indaga, que povo é esse? Partindo desta indagação ele traça um conceito/divisão da seguinte maneira: “povo” como povo ativo; “povo” como instância global de atribuição de legitimidade; “povo” como ícone; “povo” como destinatário das prestações civilizatórias do Estado. Povo ativo é aquele titular da nacionalidade de acordo com as normas constitucionais presentes na constituição daquela país. Ou seja, somente são contabilizados como povo àqueles reconhecidos como titulares de nacionalidade definida pela constituição.

Já o povo como instância global de atribuição de legitimidade vincula seus representantes eleitos aos seus interesses (como população) e estes representantes serão responsáveis pela elaboração das leis e normas justificando e dando legitimidade a teoria da democracia. Ao contrário do povo como ativo (definido pela constituição), este conceito de povo pressupõe a existência do povo antes da própria constituição. Pela concepção sociológica, o povo não pode ser considerado apenas como o coletivo do homem. Existe, além dos conceitos que levam sempre a ideia de coletivo a questão individual do animus do homem, como individuo, de participar de determinado povo ou grupo/ambiente cultural. Esta manifestação existencial individual se torna cada vez mais prevalente do que a concepção clássica de povo como grupo pertencente a um Estado em uma determinada região.

Neste sentido volta a ter relevância a concepção de pré-estado, antecedente a sua caracterização como Estado propriamente dito e regulado. Sem fazer aqui uma análise profunda sobre este aspecto o pré-estado que se definiu através de questões complexas nos campos éticos, geográficos, linguísticos, religiosos e políticos que culminaram com a concepção do Estado através, em um primeiro momento, do animus dos indivíduos em se definir como povo daquele Estado. Ou seja, o animus dos indivíduos unidos por estas questões complexas formaram os Estados e determinaram sua própria regulação nestas mesmas questões complexas.

No entanto o avanço de questões sociais dentro da própria sociedade aliada a globalização potencializada a partir da segunda metade do século XX e agora com o advento das tecnologias e redes sociais, permitiram que os indivíduos se tornassem transnacionais compartilhando e modificando as questões éticas, geográficas, linguísticas, religiosas e políticas que fizeram parte da constituição de seus Estados de origem. O individuo passa a compartilhar com indivíduos de outros Estados, este compartilhamento agrega outros indivíduos que concordam com as posições daquele grupo formando uma comunidade de indivíduos não mais se define por uma barreira geográfica ou pela concepção clássica de Estado, mas sim como comunidades globais, alterando em primeira análise o clássico conceito de povo.

2. O PAPEL DAS REDES SOCIAIS GLOBAIS

Não me parece que seja de forma aleatória que lá no surgimento do “Orkut”, uma das primeiras grandes plataformas de interação global, o temo comunidade já era usado. Naquele início, a comunidade dentro do “Orkut” nascia da reunião de indivíduos que compartilhavam de preferências pontuais, mas comuns entre eles em diversos campos e/ou interesses. Criava-se dentro da plataforma um grupo onde estavam inseridos estes indivíduos e ali se discutia e se trocava informações sobre aquelas preferências que os unia.

As comunidades dentro das plataformas evoluíram. A revolução criada por “google” e “facebook” alavancaram o termo comunidade de modo que o fato de o individuo estar presente dentro da própria plataforma o qualificam como dentro da comunidade do “facebook”, “instagram”, “google” entre outras. Os grupos hoje de “what’s zap” nada mais são do que indivíduos unidos por um animo comum. Ou seja, hoje as redes sociais unem as pessoas da mesma forma e com o mesmo animo que as unia na constituição do Estado e formação do conceito de povo.

Merece destaque aqui tentar conceituar o que são as redes sociais. Um conceito que muito se aplica a realidade do fenômeno destas grandes corporações é o de que elas são o ambiente digital organizado por meio de uma interface virtual própria (desenho/mapa de um conceito) que se organiza agregando perfis humanos que possuam afinidades, pensamentos a maneiras de expressão semelhantes e interesses sobre um tema comum. Musso (2006, p.34)3 define rede social como “uma das formas de representação dos relacionamentos afetivos, interações profissionais dos seres humanos entre si ou entre seus agrupamentos de interesses mútuos”.

Observando o conceito de redes sociais percebe-se que em que pese se tratar de um ambiente tecnológico digital online, as interações e situações expostas por estes meios vão além do estudo do desenvolvimento tecnológico da humanidade e suas novas formas de comunicação. Em verdade estes ambientes propiciam uma infinidade de coleta de dados que estão intimamente ligados ao desenvolvimento, modificação e alteração psicossocial das relações humanas. Enquanto a discussão está voltada para o mercantilismo das redes e a proteção de dados dos usuários destas plataformas, por trás delas está um conteúdo diversificado e complexo de interações e relações humanas (não só humanas, mas empresariais) que podem servir de base para alterar o próprio modelo social e a forma como interagimos e vemos o Estado.

Segundo Pierre Lèvy4 quanto mais a tecnologia e o ambiente virtual crescem ampliando seus tentáculos na vida e no cotidiano das pessoas e das empresas, o aumento da comunicação todos com todos também é ampliada de modo a ligar globalmente os indivíduos por centros de interesse, mas com divulgação coletiva. É o mesmo que dizer que hoje é possível que uma ideia (mesmo que de impacto negativo) pode atingir interessados e extrapolar fronteiras a nível global, reunindo pessoas e organizações com o intuito de agregar cada vez mais adeptos.

No entanto o encarceramento espontâneo/obrigatório dos indivíduos dentro do ambiente virtual onde se ligam através de interesses e objetivos comuns cria um dilema: se por um lado hoje é possível unir, divulgar, criar, expor entre outros interesses, objetivos e interesses comuns em nível global, de outro é justamente este anseio dos indivíduos de se expor que gera um conteúdo de dados que podem ser utilizados como parâmetros e paradigmas para futuras mudanças de comportamentos.

A adesão espontânea e nem sempre consciente5 (em muitos casos) concede aos controladores das redes sociais o poder de analisar de forma rápida e quase que imediata o comportamento das pessoas e empresas. É importante ponderar também que não só as empresas de redes sociais conseguem analisar estes dados. Claro que de forma menos rápida (por não possuírem o controle destas organizações), o próprio Estado e indivíduos particulares conseguem analisar dados já que as plataformas são abertas.

Esta organização dos dados de forma criteriosa sempre sob a vigilância das empresas que detêm estas tecnologias são o primeiro passo para uma mudança profunda nas relações sociais que terá como objetivo o direcionamento dos costumes e das relações sociais. O filósofo Byung-Chul Han6 analisou de forma minuciosa o impacto das redes sociais na própria vida em sociedade e percebeu as mudanças que estas tecnologias promoveram nas relações entre os indivíduos que compõem a estrutura do Estado retomando o pensamento de Foucault e a disciplina dos corpos: “o corpo como força produtiva não é mais tão central como na sociedade disciplinar biolítica. Em vez de superar resistências corporais, processo psíquicos e mentais são otimizados para o aumento da produtividade. O disciplinamento corporal dá lugar a otimização mental. Assim, o neuro-enchancement7 se diferencia fundamentalmente das técnicas psiquiátricas disciplinares”.

Ao trazer a discussão do impacto das redes sociais para a psique dos indivíduos e não porque do coletivo social (Estado, empresas e pessoas) percebe-se que estas tecnologias detêm o poder de criar um coletivo desapegado das questões do Estado, políticas, religiosas, de comportamento entre outras, de modo a promover uma mudança radical e profunda na sociedade de forma regional (Primavera Árabe) ou de impacto Global (eleições para presidente dos EUA).

A maioria das pessoas ainda não perceberam que este ente coletivo chamado rede social se retroalimenta a maneira que os indivíduos interagem entre si. Quanto maior o número de informação inserida neste coletivo maior é a capacidade das plataformas de determinarem padrões e tendências. Em que pese haver um consenso comum de que as redes sociais são livres e o controle das informações está nas mãos dos usuários, esta premissa parece equivocada já que com a definição de padrões e tendências é possível moldar comportamentos.

No início do século XX o cinema e a televisão Americanos foram responsáveis por inserir pela primeira vez de modo global, tendências de comportamentos, atingindo não só os Americanos em geral como também diversos países pelo Globo. O famoso e conhecido “estilo de vida Americano” virou sinônimo de felicidade e objetivo de vida consolidando no processo diversas marcas que até hoje seguem firmes no mercado e foram e são responsáveis por criar, alterar e condicionar tendências e comportamentos.

Os países ao perceberem o poder das telas criaram internamente seus próprios filmes e programas de televisão visando moldar tendências e comportamentos. No Brasil não foi diferente. As novelas se tornaram um fenômeno e foram responsáveis por determinar até o estilo de roupas de uma geração toda. Os Estados por sua vez criaram os controles ou censuras para autorizar ou não a exibição de determinado conteúdo de acordo com a idade e outros requisitos. No entanto não foi incomum no século XX e ainda ocorre a utilização destes meios pelo próprio Estado (principalmente se autoritário) ou poder vigente (principalmente econômico) atuando por trás das grandes redes de comunicação com o mesmo objetivo de definir tendências, padrões e costumes.

No atual momento tecnológico e social o grande desafio do Estado é justamente se manter firme contra as grandes corporações proprietárias das grandes redes sociais. Como dito anteriormente, as redes sociais se tornaram um coletivo complexo, dinâmico e abundante de informações, muitas inverídicas é verdade (vide fake news), mas que de uma forma ou de outra estão criando bases para a consolidação de uma nova sociedade e de um novo comportamento humano. A mudança é profunda porque não envolve só a questão de como os indivíduos se comportam, relacionam e agem entre si, mas como eles se comportam, relacionam e agem para consigo mesmo, adentrando a psique do ser.

As redes sociais, portanto, são responsáveis por esta grande mudança de comportamento que experimentamos. Uma mudança profunda na relação entre os indivíduos, empresas e o próprio Estado. Se considerarmos como necessidades básicas humanas a educação, saúde, segurança, alimentação e moradia, todas hoje são passíveis de direcionamento através da internet e nem mesmo o Estado possui mais o monopólio destes interesses. Quando mudanças desta natureza ocorrem dentro do processo de desenvolvimento da humanidade novos conceitos e direcionamentos surgem e é possível estarmos vivendo a criação de um novo conceito de nação ou povo.

3. ESTADO DE DIREITO DIGITAL

Não restam dúvidas de que as redes sociais hoje estão modificando as bases das relações em sociedade. A questão que deve ser repensada para os próximos anos e carece de bastante estudo é quão profundas serão estas mudanças e quais seus impactos no Estado de direito.

A implementação de algoritmos e inteligências artificiais nas plataformas digitais faz com que automaticamente estas gigantes da tecnologia criem seus próprios procedimentos e normas. A impossibilidade do Estado em adentrar nas políticas internas destas empresas aliado ao movimento contra censura nas redes sociais propicia o ambiente perfeito para que uma cadeia de regulamentação surja não só pelos movimentos das gigantes, mas também com a contribuição dos seus usuários que na grande maioria das vezes são defensores das redes sociais.

Por outro lado, a questão econômica também parece pesar. O avanço destas tecnologias já tão grande no cotidiano da visa em sociedade e no novo modelo de existência que dificultar ou regular de maneira mais incisiva o próprio avanço destas tecnologias pode significar colapsos financeiros, coisa que nenhum Estado quer.

Giovanne de Gregorio8 ao escrever sobre o tema esclarece que as plataformas se autorregulam e com isso regulam seus usuários:

“Portanto, os usuários estão sujeitos ao exercício de uma forma “privada” de autoridade exercida pelas plataformas online por meio de uma mistura de direito privado e tecnologias automatizadas (ou seja, o direito das plataformas). Em particular, ao implementar os Termos de Serviço (“ToS”), as plataformas estabelecem unilateralmente o que os usuários podem fazer ao acessar os serviços dos provedores e como seus dados são processados, exercendo assim tarefas de fato geralmente atribuídas às autoridades públicas. Referindo-se a Teubner9, esse quadro poderia ser descrito como “a constitucionalização de uma multiplicidade de subsistemas autônomos da sociedade mundial”.

Desta autorregulação conclui-se que surge no mundo digital um novo constitucionalismo que define as bases do novo Estado digital. O Estado digital surge alheio ao Estado natural e de modo autônomo (alheio aos conceitos clássicos de poder constituinte), cria sua própria constituição. A ideia de constituição como conhecemos surge exatamente do pressuposto de uma existência de um Estado de natureza que passa a existir como Estado de direito regulado por uma constituição através do poder constituinte que surge, da noção de coletividade e não de um desejo individual.

Sem adentrar de forma profunda nas teorias que envolvam a criação do Estado e do poder constituinte, vale aqui algumas linhas tecer comentários sobre a formação do Estado e de um ordenamento jurídico válido para comparação com o que se pretende no modelo digital.

Isto posto, a autoridade necessária para conferir legitimidade e estabilidade a uma ordem jurídica, política e social deriva da própria ordem posta ou da busca em outras ordens de paradigmas que se encaixem no modelo que se quer buscar. A autoridade do ordenamento derivará dos desejos daquela coletividade em seu processo de fundação, desde que iniciado de forma colaborativa, enfrentando o desafio representado pela ação coletiva de uma sociedade plural. Nas palavras de Jeremy Waldron10, “a dignidade da legislação, o fundamento de sua autoridade e a sua pretensão de ser respeitada por nós tem a ver com o tipo de realização que ela é. Nosso respeito pela legislação é em parte o tributo que devemos pagar para a realização da ação concertada, cooperativa, coordenada ou coletiva nas circunstâncias da vida moderna.”

Importante entender que a formação de um novo Estado (mesmo que digital) depende da vontade dos indivíduos que no futuro serão considerados o povo daquele novo Estado. Estes indivíduos é que respeitarão ou não o novo ordenamento se com ele concordarem, de modo que os responsáveis pela criação deste novo ordenamento (os constituídos ou poder constituinte) devem, ao elaborar a Constituição atender aos anseios de quem os constituiu ditando as bases de todo o ordenamento legal.

Já o modelo digital não parece seguir este modelo onde a norma segue a vontade coletiva. Em que pese a grande maioria ter a ilusão de que por vontade própria está inserida neste contexto digital, as normas neste Estado parecem mais ser normas de adesão do que normas para atender aos interesses coletivos.

Com as plataformas digitais ganhando cada vez mais o caráter de função pública e não apenas exercendo a função de uma empresa privada que oferece seus serviços, ao se autorregularem elas praticamente autorregulam uma função pública que até poucos anos nem os indivíduos e nem o Estado era capaz de prever. A União Europeia vem se preocupando com isto e já instituiu diretrizes para tentar regular a atividade destas empresas e já as reconhece como atividade essencial com função pública.

Gregorio11 em seu artigo demonstra esta preocupação:

constitui um novo campo teórico e prático baseado em uma dinâmica dialética entre como as tecnologias digitais afetam a evolução do constitucionalismo e a reação do direito constitucional contra o poder emergente das tecnologias digitais implementadas por atores públicos e privados. Como ressalta Suzor, o projeto do constitucionalismo digital é “repensar como o exercício do poder deve ser limitado (legitimado) na era digital”12. A ascensão do constitucionalismo digital na União foi impulsionada principalmente pelo papel das plataformas on-line transnacionais, que, embora revestidas de atores privados, desempenham cada vez mais tarefas quase públicas.”

No entanto mesmo com estas tentativas ainda as plataformas possuem o poder de regular e direcionar todo este ambiente. E o alcance é praticamente infinito. Partindo do princípio de que hoje as redes sociais são agrupamentos de indivíduos com objetivos e interesses comuns, muitas vezes alheios as normas cogentes e questões do próprio Estado, a capacidade de disciplinar e criar regras que envolvam estas pessoas com intuito de criar tendências de comportamento social parece muito mais poderoso que uma força militar apta a impor suas vontades a outra nação. A questão aqui é que as plataformas já possuem o aval dos indivíduos e o domínio se torna mais fácil.

Como exemplo desde descompasso entre a norma posta e a norma digital, enquanto escrevia este artigo saia o resultado de uma perícia técnica de uma investigação na esfera criminal que envolve dois jogadores de clubes de futebol. De um lado um jogador acusa o outro de racismo ocorrido dentro da partida de futebol onde se enfrentaram os dois times. A perícia versava sobre constatar se na conversa entre os dois atletas houve ou não por parte de um dos atletas ofensas racistas. O resultado do perito oficial foi de inconclusivo, ou seja, impossível identificar se o jogador proferiu ou não ofensas racistas. Em duas perícias apresentadas pelo jogador acusado que embasam o processo o resultado foi de que ele não proferiu ofensas racistas.

Logo após o resultado da perícia oficial o jogador que acusava o outro mudou seu status nas redes sociais colocando como identificação a palavra de cunho racista que ele acusava o outro jogador de ter proferido. Em segundos a internet e as redes sociais já estava cheia de julgamentos e conclusões alheios ao resultado oficial proferido dentro do Estado Democrático de Direito. Vale aqui ressaltar que ainda pode haver desdobramentos dentro do caso que não findou, no entanto neste primeiro resultado a decisão oficial parece não surtir efeito no ambiente virtual que possuem seu próprio regramento13.

4. O QUE PODEMOS ESPERAR?

Uma coisa é certa, os avanços tecnológicos não vão para por aí. A introdução do que se chama de Metaverso14 na vida das pessoas vai ainda mais transferir as relações físicas para as relações digitais. Mesmo que ainda existam gerações que não se acostumem com a ideia de viver conectado 24 horas por dia, toda uma geração que nasceu na era da internet já considera esta possibilidade uma realidade.

Aqui é importante fazer uma quebra do consciente psicológico destes indivíduos. Os indivíduos que de certa forma utilizam as redes e outros sistemas para navegar na internet foram introduzidos ou obrigados a adentrar este mundo, mas sua psique ainda está ligada ao mundo real, o que significa dizer que ainda consideram importantes as relações no mundo real, ou seja, entre indivíduos, empresas, Estado e a sociedade.

Para eles, ainda não se torna plausível ou importante as consequências do relacionamento digital desde que o impacto destas relações não afete a sua imagem ou suas relações no mundo real. Exemplificando, o que acontece no mundo digital como uma imagem, contexto ou até mesmo a publicidade de seus dados, se não causar impacto nos seus direitos fundamentais do mundo real, para este individuo dentro do seu contexto psíquico não tem relevância.

Já para a geração que nasceu e cresceu na era digital o contexto psíquico é outro. Acostumados com a similaridade tênue entre o mundo digital e o mundo real, estes indivíduos tendem a valorizar de forma equânime a sua vida digital com a sua vida real. Este conceito de que a vida digital também é sua vida faz com que estes indivíduos valorem até mais o que acontece no mundo digital.

Todos já vimos notícias de pessoas que chegaram ao ponto de tirarem as próprias vidas por não suportarem as consequências da interação digital e o impacto negativo que determinada interação pode causar em seus estados psicológicos. Isto acontece justamente pelo fato de que para estes indivíduos a vida digital é tão ou mais real que a própria vida real que “a morte digital” (ter que sair das redes por algum motivo sempre negativo) significa também a morte real.

Mas o que isto significa para o conceito de nova sociedade baseada na vida digital. No fato de que não só precisamos observar o conteúdo psíquico que as interações digitais tomaram como também na proteção que é necessária para a sociedade como um todo. Mesmo com os Estado se movimentando para tentar regular as relações digitais, a maioria das interações sociais ainda acontecem sob o regramento dos próprios indivíduos observados de perto pelas plataformas que os controlam.

No atual estágio, onde as grandes corporações controlam todo o ambiente virtual e possuem a capacidade de incutir aos poucos o seu conceito de sociedade e/ou comunidade no universo de indivíduos que as utilizam, não parece loucura imaginar que em determinado momento o Estado não será mais capaz de direcionar ou regrar estas relações.

Por causa do conteúdo psíquico já incutido nos indivíduos que orbitam o mundo digital a interferência do Estado poderá, inclusive, fazer com que a sociedade se volte contra ele, Estado, e não contra as empresas, mesmo que a intenção do poder público seja justamente proteger os usuários das redes sociais. Já existe um movimento mundial classificando a interferência estatal nestas relações (consideradas de utilidade pública) como censura.

As plataformas possuem como trunfo a suposta liberdade que o individuo possui de se manifestar, expor, publicar, apresentar ideias entre outros sem precisar prestar contas a ninguém com potencial de alcance global e sem limitações geográficas, econômicas, culturais, linguísticas ou de outra natureza. No entanto esta liberdade é ilusória porque ela vai até onde a plataforma quer e o individuo não tem a consciência disto.

Ao entrar no mundo digital o individuo simplesmente concorda que o que ele faz no mundo digital fique em poder da plataforma que se quiser e quer, utiliza aquilo visando seus interesses ou até interesses de terceiros (vide eleições) com a finalidade de moldar ou alterar a realidade. Não há auditoria, nem mesmo os próprios indivíduos conferem se tudo o que já fizeram no digital está lá da mesma forma.

Está claro que hoje o mundo digital possui um grande poder sob a vida em sociedade e quem o controla pode exercê-lo para alterar as bases sociais. Em um determinado momento todo um ordenamento jurídico terá que surgir para regular as relações digitais. Como na realidade o que acontece se meu avatar morrer? Roubarem meu carro no metaverso? Me separar? Guarda dos meus pets digitais? Ofenderem minha religião, raça, gênero digital?

E é aí que mora a complexidade da coisa. O mundo digital não tem barreiras ou fronteiras, por conta disto não é possível pensar em um ordenamento regional. Também não possui estrutura de Estado (por enquanto), cabendo este papel hoje aos controladores da plataforma. Ou seja, o mundo digital é uma nação global onde indivíduos e empresas se relacionam motivados por seus interesses e formam uma comunidade ou povo digital. Como um organismo vivo ele cresce e se desenvolve.

Todo este conhecimento e controle hoje está nas mãos das grandes plataformas. Caberá a eles moldar as bases e criar todo um ordenamento para esta sociedade global? O que se pode esperar de um conceito de vida digital regulada sem a participação do Estado? E os indivíduos vão se considerar indivíduos digitais pertencentes a esta nação digital subdividida por interesses? São questões que ainda carecerão de muito debate, mas o que se pode esperar é que quem tiver o controle deste universo digital terá a capacidade de alterar as bases da vida em sociedade como conhecemos.

5. CONCLUSÃO

Não podemos falar que o mundo digital já é uma realidade, em verdade o mundo digital já divide grande parte das relações entre indivíduos, empresas e Estados com o mundo real. Cada vez mais aspectos da vida em sociedade física são transportados para a vida na sociedade digital. As plataformas detêm o controle deste novo modelo de interação social com capacidade para determinar sua evolução.

O conteúdo psíquico das interações sociais digitais já está transformando a forma como os indivíduos vêm aos outros e a si próprios dentro do contexto de sociedade, muito mais global e livre dos conceitos tradicionais. Há uma ilusão geral de que o controle está com o individuo quando o controle está nas mãos de quem controla as plataformas. O apelo pela liberdade de expressão e de viver no mundo digital confronta com a tentativa dos Estados de regularem estes gigantes.

O reconhecimento de que os serviços prestados pelas plataformas é um serviço de utilidade pública só corrobora com a importância e com o poder que estas empresas hoje possuem para determinar inclusive, as tendências sociais. São inúmeros os exemplos da interferência das plataformas na realidade das pessoas, nas decisões dos Estados, eleições e até mesmo na queda de governos.

O Brasil enfrentou um desabastecimento de combustíveis jamais visto 2018 não por conta do aumento do preço do petróleo ou de fatores externos como a guerra, mas sim porque através da plataforma indivíduos com interesses comuns (caminhoneiros) resolveram paralisar suas atividades afetando toda a economia do Brasil e a vida dos brasileiros, o que seria impossível pelos moldes tradicionais previstos pela legislação vigente.

Não restam dúvidas de que em um determinado momento o regramento deste ambiente digital deverá surgir em forma de ordenamento jurídico ou até mesmo o surgimento de uma Constituição de uma nação digital, sem fronteiras e sem limites. A questão que se coloca é quem será o responsável pela criação deste novo modelo social? Veremos a participação do povo na construção das bases de um Estado Digital Democrático de Direito ou as grandes corporações abraçarão para si o poder constituinte?

O que já é possível perceber é o surgimento de um novo individuo, que podemos chamar de digital, capaz de interagir a nível global socialmente, de ser vigiado (sociedade panóptica15) e de vigiar com a ilusão de que detém o controle de suas ações no mundo digital, quando na verdade é controlado pelo poder das grandes corporações que agem de acordo com seus interesses ou daqueles que com elas são capazes de moldar um novo sistema social.

A grande preocupação que surge deste novo modelo social é exatamente com e quem definirá as bases deste novo Estado e deste novo povo.


1 COMPARATO, Fábio Konder. Variações sobre o conceito de povo no regime democrático. Estud. av. [online]. 1997, vol.11, n.31, pp. 211-222.

2 Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia – introdução de Ralph Christensen; tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 4ª ed. ver. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

3 MUSSO, Pierre. Ciberespaço, figura reticular da utopia tecnológica. IN: MORAES, Dênis de. Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

4 LÈVY, Pierre. As tecnologias da inteligência — o futuro do pensamento na era da informática. Trad. Carlos Irineu da Costa, Rio de Janeiro: 34, 1993.

5 Como exemplo, surge a questão envolvendo os chamados algoritmos, que seriam tarefas, direcionamentos ou desvios desenvolvidos por ferramentas, em particular, produzindo “caminhos” para o consumo e para a exposição de dados. Ver: https://dicasdeprogramacao.com.br/o-que-e-algoritimo/

6 HAN, Byung-Chul. Psicopolitica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte/Veneza: Editora Âyiné, 2018.

7 Aumento do rendimento psíquico a partir de psicotrópicos.

8 DE GREGORIO, Giovanne. The Rise of Digital Constitucionalism in the European Union. International Journal of Constitutional law, 2020, pgs. 41-70 (tradução própria).

9 Gunther Teubner, Societal Constitutionalism: Alternatives to State-Centered Constitutional Theory?, in CONSTITUTIONALISM AND TRANSNATIONAL GOVERNANCE, (C. Joerges, I. Sand and G. Teubner eds, 2004) in DE GREGORIO, Giovanne. The Rise of Digital Constitucionalism in the European Union. International Journal of Constitutional law, 2020, pgs. 41-70 (tradução própria).

10 WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 2004, pg. 101 (tradução própria).

11 Idem nota 8.

12 Nicolas Suzor, Digital Constitutionalism: Using the Rule of Law to Evaluate the Legitimacy of Governance by Platforms, 4(3) SM + S (2018), 4 https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/2056305118787812 in DE GREGORIO, Giovanne. The Rise of Digital Constitucionalism in the European Union. International Journal of Constitutional law, 2020, pgs. 41-70 (tradução própria).

13 Fonte: https://ge.globo.com/rs/futebol/brasileirao-serie-a/noticia/2022/06/08/pericia-oficial-diz-que-nao- foi-possivel-identificar-o-que-rafael-ramos-disse-a-edenilson.ghtml. Consultado em 09/06/22.

14 Luli Radfahrer, professor do curso de publicidade e propaganda da USP, afirma que a ideia do metaverso não é algo novo. “É um termo que surge na década de 1980 da literatura cyberpunk, com o livro ‘Snow Crash’”, diz. A ideia representa a possibilidade de acessar uma espécie de realidade paralela, em alguns casos ficcional, em que uma pessoa pode ter uma experiência de imersão. Tecnicamente, o metaverso não é algo real, mas busca passar uma sensação de realidade, e possui toda uma estrutura no mundo real para isso. Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/business/entenda-o-que-e-o-metaverso-e- por-que-ele-pode-nao-estar-tao-distante-de-voce/. Acessado em 09/06/22.

15 A ideia do panóptico seria levada por Michel Foucault, que veria na sociedade de hoje um reflexo desse sistema. Para este autor, a passagem do tempo nos fez mergulhar em uma sociedade disciplinar, que controla o comportamento de seus membros através da imposição de vigilância. Assim, o poder procura atuar através da vigilância, controle e correção do comportamento da cidadania. O panoptismo baseia-se, de acordo com a teoria da panóptica de Michel Foucault, em poder impor comportamentos em toda a população com base na ideia de que estamos sendo observados.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COMPARATO,    Fábio   Konder. Variações sobre o conceito de povo no regime democrático. Estud. av. [online]. 1997, vol.11, n.31, pp. 211-222.

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1Graduado em direito, Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Mackenzie e em Direito Empresarial pela PUCSP, Mestre em Direito Empresarial pela PUCSP, Latin Legum Magister em Direito Americano pela Universidade de Washington, Doutorando em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie.

Artigo apresentado para cumprimento do crédito da disciplina “Dados digitais e os limites do poder econômico” do curso de Doutorado em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie ministrado pelos Professores Vicente Bagnoli e Juliana Abrusio.