REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202510061110
Felipe Menezes de Miranda Santos
RESUMO
O presente artigo desenvolve uma crítica fundamental e urgente ao fenômeno do ativismo judicial, cada vez mais presente no cenário jurídico brasileiro, em especial no Supremo Tribunal Federal. O objetivo principal é demonstrar que essa prática constitui uma grave violação ao princípio constitucional da Separação dos Poderes. Para sustentar essa tese, o trabalho reconstrói a origem da doutrina da separação de poderes, desde suas bases em Aristóteles e Locke, até o modelo definitivo de Montesquieu, que introduziu o sistema de freios e contrapesos e inspirou a Constituição Brasileira. Analisam-se, então, o papel constitucional do Poder Judiciário e os limites impostos pela Constituição Federal de 1988 — que consagra a Separação de Poderes como cláusula pétrea. Argumenta-se que, ao invadir a competência do Legislativo, o Judiciário, que é um poder técnico e não eleito, usurpa a função legiferante, agindo como legislador positivo. Tal prática carece de legitimidade democrática e compromete a estabilidade institucional e a segurança jurídica do país, transformando o juízo particular do magistrado em lei e subvertendo a essência do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Ativismo Judicial. Separação de Poderes. Poder Judiciário. Ilegitimidade Democrática.
1. INTRODUÇÃO
Este presente artigo tem por fito tecer uma análise crítica acerca do ativismo judicial, especialmente no que diz respeito à afronta ao princípio da separação de poderes, princípio este —basilar de uma democracia–, que vem sendo severamente atingido por subjetivismos de vários magistrados ao redor do país, que, tornam-se verdadeiros legisladores, ao lançarem mão do ativismo judicial para fundamentarem suas decisões (em nome da “justiça social”, garantir direitos fundamentais, etc), e com isso, gerar inevitável insegurança jurídica e solapar cristalinamente o Estado Democrático de Direito.
Num primeiro momento, como resposta provisória ao problema apontado, faz-se necessário explanar que, de fato, a prática do ativismo judicial termina por conflitar frontalmente o princípio da separação dos poderes, haja vista que, muito embora tal prática seja aplaudida por diversos setores da sociedade civil e da intelligentsia jurídica, o princípio da separação dos poderes deve prevalecer e ser respeitado. Ainda que sob o pretexto de se fazer “justiça social” ou “efetivar direitos fundamentais”, o juiz deve se ater à sua função e respeitar este sagrado princípio, corolário da Democracia.
É indubitável que o país passa por uma grave crise de representatividade dos Poderes Eleitos da República, porém um tribunal não pode se imiscuir na função destes poderes, –que possuem a legitimidade do voto–, ao querer arrogar para si a prerrogativa de editar leis por meio de decisões ativistas.
Isto posto, será evidenciado neste artigo como o ativismo judicial viola o princípio da separação dos poderes, e para tanto será tecida uma análise histórica acerca do aludido princípio, bem como do surgimento do Poder Judiciário a partir dele e o porquê de tal prática ser tão danosa ao Estado Democrático de Direito.
2. O ATIVISMO JUDICIAL E A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA TRIPARTIÇÃO DOS PODERES
2.1 Do princípio da tripartição dos poderes e o papel do Poder Judiciário em um Estado Democrático de Direito
Antes de adentrarmos o terreno de críticas ao ativismo judicial, especialmente no que concerne ao princípio da separação de poderes, faz-se necessário frisar o papel do Poder Judiciário numa República, isto é, quais são suas funções típicas e atípicas, bem como seus limites, no qual será demonstrado um aspecto histórico de seu surgimento por meio do princípio da separação dos poderes, que há muito já sedimentou o papel deste Poder e a importância deste princípio para um Estado Democrático de Direito e porque a prática do ativismo judicial o fere.
Nesse sentido, tem-se que o Poder Judiciário é responsável pela interpretação e aplicação do direito, devendo abster-se completamente do front político, adotando um papel de contenção e retração, não devendo interferir na esfera de atuação de outros Poderes.
Para que isso seja observado, deve-se seguir à risca o princípio da separação dos Poderes, o qual fora mencionado pela primeira vez por Aristóteles, em sua obra Política, na qual o filósofo introduziu a idéia de tripartição do Poder central em Poder Deliberativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. (ARISTÓTELES, 1998).
John Locke foi outro que, de certa forma, introduziu modernamente o princípio da separação dos poderes, na medida em que o aludido Autor conferia protagonismo ao Poder Legislativo, já que em sua visão este era um poder supremo e deveria fixar-se apenas na edição de leis, e não em sua execução, pois, conforme preceitua o filósofo iluminista:
A tentação de ascender ao poder, não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis, pois elas poderiam se isentar da obediência às leis que fizeram, e adequar a lei a sua vontade, tanto no momento de fazê-la quanto no ato de sua execução, e ela teria interesses distintos daqueles do resto da comunidade, contrários à finalidade da sociedade e do governo. (LOCKE, 2006, p.75)
Isto posto, observa-se que nas democracias, o Poder Legislativo é confiado aos representantes eleitos exclusivamente pelo Povo, que se reúnem na incumbência e possuem a legitimidade do voto para legislar, ao passo que devem estes mesmos se submeter às leis que editaram, e tais leis podem ser editadas num tempo exíguo e, dessa forma perpetuam-se na sociedade. Por isso, para o filósofo iluminista, é necessário e imprescindível que se garanta a sua execução com continuidade, ou, quando menos, que a lei esteja pronta para sua execução.
Por isso, faz-se necessária a existência de um Poder Executivo, que, na visão do aludido Autor, deve garantir a execução das leis à medida que são elaboradas e pelo tempo em que permanecerem em vigor; daí o porquê de separar-se o Legislativo do Executivo (LOCKE, 2006).
No que tange ao Poder Judiciário, este ainda não foi mencionado por Locke como um poder independente dos outros dois, sendo denominado pelo Autor como Poder Federativo, o qual tinha por função a administração da segurança e do interesse do público externo, devendo submissão ao Poder Legislativo, este que, como supratranscrito, era considerado por Locke como o poder Supremo (LOCKE, 2006).
Todavia, foi a partir de Montesquieu, em sua magnum opus, “O espírito das Leis”, que a teoria da tripartição dos Poderes adotada atualmente na maioria das democracias ocidentais foi elaborada, isto é, a separação dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, o qual o filósofo chamou de “Poder de Julgar”.
Neste sentido, o filósofo assim os elencou:
Em cada Estado há três espécies de Poderes: o Legislativo; o Executivo das coisas que dependem do Direito das Gentes; e o Executivo das que dependem do Direito Civil. Pelo primeiro, o Príncipe ou o Magistrado faz leis para algum tempo ou para sempre, e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes, ou julga as demandas dos particulares. A este último chamar-se-á Poder de Julgar; e ao anterior, simplesmente Poder Executivo do Estado. A liberdade política em um cidadão é aquela tranquilidade de espírito que provém da convicção que cada um tem da sua segurança. Para ter-se essa liberdade, precisa que o Governo seja tal que cada cidadão não possa temer outro. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de príncipes ou de nobres, ou do povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares (MONTESQUIEU, 2004, p.164-165)
Em sua obra, Montesquieu já alertava para o autoritarismo que acometeria a sociedade se o Poder Judiciário (poder de julgar) não fosse apartado do Poder Legislativo ou Executivo, isto é, independente e harmônico, cumpridor unicamente de sua função, qual seja a de julgar os crimes e conflitos entre particulares, sem ingerência indevida em outro poder, senão vejamos:
Quando se reúne na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo e o poder executivo, não existe liberdade, porque pode-se temer que o próprio monarca, ou o próprio Senado, faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do poder executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. (MONTESQUIEU, 2004, p. 169-170)
Logo, foi a partir da obra do aludido filósofo que se deu o reconhecimento da autonomia e independência do Poder Judiciário, separando-se dos demais poderes, ou seja, houve efetivamente a tripartição dos Poderes, ao contrário do que preconizava Locke, que embora já assentasse a divisão dos três poderes, não reconhecia a autonomia do Poder Judiciário.
Isto posto, tem-se que tal modelo de tripartição dos Poderes formulado por Montesquieu é o adotado até os dias de hoje pelas democracias ocidentais modernas. Nesta senda, Alexandre de Moraes assevera:
A divisão segundo o critério funcional é a célebre “separação de poderes”, que consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgão autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, foi esboçada pela primeira vez por Aristóteles, na obra “Política”, detalhada posteriormente, por John Locke, no Segundo Tratado de Governo Civil, que também reconheceu três funções distintas, entre elas a executiva, consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e o direito, e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças. E, finalmente, consagrada na obra de Montesquieu O Espírito das Leis, a quem devemos a divisão e distribuição clássicas, tornando-se princípio fundamental da organização política liberal e transformando-se em dogma pelo art.16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e é prevista no art. 2º de nossa Constituição Federal. (MORAES, 2007, p.385)
Portanto, a partir da análise da obra de Montesquieu, tem-se que os três poderes têm funções distintas, independentes e harmônicas entre si, servindo de condição de possibilidade para o Estado Democrático de Direito, já que o poder não mais estaria concentrado nas mãos de um soberano, mas sim a divisão em três funções distintas, independentes, porém completivas e correlatas, isto é, harmônicas, visando o equilíbrio institucional e o pleno exercício de uma democracia, limitando assim o poder estatal e, precipuamente, como dito alhures, estabelecendo funções típicas e atípicas aos três poderes, o que por certo, não admite-se, em regra, a ingerência de um sobre o outro, mas sim um controle e vigilância recíproco de um sobre o outro, como será melhor explicitado no decorrer deste capítulo.
Dessa forma, coube então, no âmbito de suas competências, o exercício por cada poder de suas funções típicas, como no caso do Judiciário, interpretar e aplicar o direito, ao Legislativo caberia a edição de leis e ao Executivo coube governar a sociedade e cuidar da administração pública, executando políticas públicas e atos administrativos que visem o bem comum, organizando e dividindo as funções estatais, como leciona Canotilho:
[…] o princípio da separação na qualidade de princípio positivo assegura uma justa e adequada ordenação das funções do estado e, consequentemente, intervém como esquema relacional de competências tarefas, funções e responsabilidades dos órgãos constitucionais de soberania. Nesta prescritiva, separação ou divisão de poderes significa responsabilidade pelo exercício de um poder. (CANOTILHO, 2003, p. 50)
Outro Autor que elucida essa questão é Norberto Bobbio, a partir da explanação acerca de teorias que visam limitar o poder estatal, evidenciando o fato de que, na teoria da tripartição dos poderes, o poder será limitado através de uma quebra, na qual dividir-se-ão as funções do Estado em órgãos distintos:
Teoria da separação dos poderes. Existem outras teorias que impõem ao Estado limites internos: independentemente do fato que o poder estatal tenha que deter-se frente a direitos preexistentes ao Estado, as mesmas sustentam que a melhor maneira de limitar este poder é quebrá-lo. Trata-se de conseguir que: a) a massa do poder estatal não seja concentrada numa só pessoa, mas distribuída entre diversas pessoas; b) que as diferentes funções estatais não sejam confundidas num só poder, mas sejam atribuídas a órgãos distintos. Segundo essa teoria, o limite do poder nasce da sua própria distribuição, por duas razões: 1) não existirá mais uma só pessoa que tenha todo o poder, mas cada uma terá somente uma porção do mesmo; 2) os órgãos distintos aos quais serão atribuídas funções distintas se controlarão reciprocamente (balança ou equilíbrio dos poderes) de maneira que ninguém poderá abusar do poder que lhe foi confiado. Se se consideram como funções fundamentais do Estado a função legislativa, a executiva e a judiciária, a teoria da separação dos poderes exige que existam tantos poderes quantas são as funções e que cada um dos poderes exerça uma só função, assim que possa surgir o Estado desejado por essa teoria, Estado que foi também chamado de Estado Constitucional, quer dizer aquele Estado no qual os poderes legislativo, executivo e judiciário são independentes um do outro e em posição tal que podem controlar-se reciprocamente. (BOBBIO, 1997, p. 16)
Retornando ao criador da teoria tripartite moderna da separação dos Poderes, tem-se que Montesquieu inovou ao trazer o sistema de freios e contrapesos (checks and balances), o qual preceitua que cada poder, além de independente e harmônico, possui limites, e caso algum extrapole tal limite, deverá ser passível de controle por outro poder (PERRET, 2013). Só o poder controla o poder, e esta é a função dos freios e contrapesos: conter os abusos perpetrados por outros poderes para manter o equilíbrio institucional, ou seja do próprio Estado Democrático de Direito. (PERRET, 2013)
Evidente é que Montesquieu, embora tenha alertado que se o Poder Judiciário não fosse apartado dos outros poderes poder-se-ia haver um governo tirânico, como dito alhures, não via o Poder Judiciário como sendo do mesmo nível dos outros Poderes, conferindo-lhe um caráter secundário; no entanto, é notório, como já supradelineado, que reconhecia sua independência dos demais, preconizando desta maneira que deveria haver formas de um poder controlar o outro para que se pudesse evitar o arbítrio, e isto seria factível por meio dos freios e contrapesos, que, na visão de Emilly Azevedo de Souza, seria:
A contenção do Poder pelo Poder, ou seja, cada Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) deve ser autônomo e exercer determinada função, porém o exercício desta função deve ser controlado por outros Poderes. Ou seja, os poderes são independentes, porém harmônicos entre si. (SOUZA, 2015, p.21)
Ademais, a constitucionalização da teoria da separação dos poderes, bem como sua modernização, deu-se com a elaboração da Constituição americana de 1787, cujos criadores, os chamados pais fundadores americanos (founding fathers), não apenas inspiraram-se na teoria de Montesquieu, mas também a otimizaram e a modernizaram ainda mais, quando, através de manifestações por meio dos chamados artigos Federalistas, (série de artigos publicados por alguns dos pais fundadores americanos, como Alexander Hamilton, James Madson e John Jay, que tinham por objetivo aprovar a Constituição dos Estados americanos) evidenciaram o perigo de uma supremacia do legislativo,-esta que era presente nas obras de Locke e do próprio Montesquieu-, construindo, assim, um modelo de tripartição dos poderes mais equilibrado, isto é, um modelo de separação que efetivamente mitigou a supremacia do Poder Legislativo, conferindo um mesmo nível hierárquico entre os poderes Executivo e Legislativo, garantindo equilíbrio às relações entre si, com o fito de fortalecer o Poder Executivo, o que decerto sacramentou e fortaleceu o mecanismo de freios e contrapesos, já que no modelo Europeu era o legislativo que tinha papel predominante sobre os demais poderes. (MALDONADO, S.D, 2017)
Tendo em vista tal fato, Hamilton, Madison e Jay propuseram mecanismos que tiveram por fito atribuir equilíbrio entre os poderes,–desenvolvendo profundamente, como supranarrado, os mecanismos de freios e contrapesos—ao conceder mais poderes ao Poder Executivo, como por exemplo o veto presidencial, ferramenta essencial e histórica do mecanismo de checks and balances; senão vejamos nas próprias palavras dos Autores, publicado nos artigos federalistas, no âmbito dos debates sobre a aprovação da Constituição americana:
Mas a desgraça é que, como nos governos republicanos o Poder Legislativo há de necessariamente predominar, não é possível dar a cada um dos outros meios suficientes para a sua própria defesa. O único recurso consiste em dividir a legislatura em muitas frações e em desligá-las umas das outras, já pela diferente maneira de elegê- las, já pela diversidade dos seus princípios de ação, tanto quanto o permite a natureza das suas funções comuns e a dependência comum em que elas se acham da sociedade. Mas este mesmo meio ainda não basta para evitar todo o perigo das usurpações. Se o excesso da influência do corpo legislativo exige que ele seja assim dividido, a fraqueza do Poder Executivo, pela sua parte, pede que seja fortificado. O veto absoluto é, à primeira vista, a arma mais natural que pode dar-se ao Poder Executivo para que se defenda: mas o uso que ele pode fazer dela pode ser perigoso e mesmo insuficiente. (…) Para manter a separação dos poderes, que todos assentam ser essencial à manutenção da liberdade, é de toda necessidade que cada um deles tenha uma vontade própria; e, por conseqüência, que seja organizado de tal modo que aqueles que o exercitam tenham a menor influência possível na nomeação dos depositários dos outros poderes. (MADSON in: Federalist Papers. N.51, 1979, p. 130-131)
Nesse contexto, as inovações trazidas ao princípio da tripartição dos Poderes no bojo do desenvolvimento do Estado Democrático de Direito americano não pararam por aí, haja vista que foi a Suprema Corte desta nação que alçou também o Poder Judiciário ao mesmo patamar hierárquico dos demais poderes, configurando sua moderna função no mundo, visto que, como já dito, embora Montesquieu já houvesse reconhecido a independência do Poder Judiciário, este ainda o via como um poder secundário, sem grande importância. (MALDONADO, S.D, 2017)
Faz-se mister frisar que a própria noção que se tem de constitucionalismo moderno, aquela assentada em divisão de poder, é a que se identifica com o princípio da tripartição de Poderes, havendo precedentes também desta identificação desde a declaração dos direitos do homem de 1789, que preceitua em seu artigo 16 que toda sociedade onde não houver a garantia dos direitos individuais e a separação dos poderes não tem Constituição, o que nos permite concluir que o Constitucionalismo moderno está diretamente ligado à separação de Poderes, juntamente com o Sistema de freios e contrapesos. (MATTEUCCI, 1998)
Dando prosseguimento, foi graças à famosa decisão no caso Marbury v. Madison, em 1803, cujo presidente da Suprema Corte era o justice John Marshall, que a Corte inaugurou o judicial review (revisão judicial), que preceitua que qualquer lei ou ato normativo que confrontar o texto constitucional não será válido, ou seja, competiu ao Judiciário elaborar o controle de constitucionalidade das leis, que neste caso, trata-se do controle difuso de constitucionalidade; o que decerto, como já dito inclusive no primeiro capítulo, tratou-se de uma decisão que definitivamente fincou o protagonismo equitativo do Poder Judiciário perante os outros dois poderes, isto é, inseriu este poder no mesmo nível dos outros poderes, cujo modelo a ser seguido está presente até os dias de hoje, fundando a partir dali a doutrina americana da supremacia judicial e, inclusive, servindo de inspiração principiológica para a Constituição republicana brasileira de 1891 até a promulgação de nossa Constituição cidadã de 1988, vigente até os dias atuais. (MALDONADO, S.D, 2017)
Daí depreende-se que o judicial review (revisão judicial) é mais uma inovação e fortalecimento do mecanismo de freios e contrapesos, haja vista que evidencia uma situação na qual um poder exerce um controle sobre o outro (o Judiciário controlando lei inconstitucional elaborada pelo Poder Legislativo ou até mesmo derrubando ato administrativo emanado do Poder Executivo) para assegurar a estabilidade das instituições e por conseguinte o Estado Democrático de Direito, o que nos permite concluir que tal sistema foi plenamente desenvolvido na democracia americana, principalmente pelos founding fathers, visto que estes elevaram o princípio da tripartição dos poderes ao patamar constitucional.
2.2 A separação de poderes no Brasil: O papel do Poder Judiciário no país
Destarte, no modelo de democracia adotado pelo Brasil, o Estado Democrático de Direito tem como alicerce a separação de poderes, previsto já no artigo 2° da Carta Magna de 1988, que preceitua, nestes termos, que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988), sendo este princípio classificado como cláusula pétrea, (art. 60, §4, III) o que depreende-se, portanto, que é vedada a interferência de um Poder sobre o outro.
Nesse sentido, necessário frisar que os poderes devem ser exercidos conforme estabelecem suas competências insculpidas na Carta Magna, e a despeito da independência e harmonia destes poderes, deve haver um controle recíproco de um sobre o outro, no intuito de se garantir o bom funcionamento da democracia, sem inviabilizar o exercício do poder, isto é, havendo harmonia, cada um exercendo suas funções (CAVAZZANI, 2015).
Insta pontuar, neste momento, a grande realização que se deu a partir da Constituição de 1988 no que tange especificamente à separação dos poderes. Tal fato é bem observado pelo jurista Ives Gandra da Silva Martins, que atribui o equilíbrio de Poderes contidos na Carta política de 1988 à verdadeira causa de estabilidade do Estado Democrático de Direito no país (MARTINS, 2016).
Nesta toada, assevera o jurista que o maior mérito da Constituição Federal de 1988 foi o de ter criado um sistema no qual o equilíbrio dos poderes da República é inconteste, em razão da ampla liberdade que tiveram os constituintes de discutir um verdadeiro modelo de Constituição Democrática, sendo que, este desenvolvido em 1988 foi inegavelmente alvissareiro, superando até mesmo o desenvolvido nos Estados Unidos. Nesse sentido, preleciona o jurista:
[…] Sem equilíbrio de poderes não há segurança jurídica. Em nenhum texto anterior (1824, 1831, 1934, 1937, 1946 e 1967, com suas emendas) tal realidade revelou-se de maneira tão nítida como no de 1988. Nem mesmo os Estados Unidos, pátria do presidencialismo, seguem a teoria da tripartição dos poderes de Montesquieu-que a própria França não hospeda-, com separação tão nítida como no Brasil, nada obstante o instituto das medidas provisórias ofertar impressão diversa. (MARTINS, 2016, p. 277)
Ou seja, o fato é que, apesar de o princípio da tripartição dos Poderes já figurar no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição Republicana de 1891, este nunca fora tão bem implementado e fortalecido como na Carta Política de 1988, superando até mesmo o modelo adotado nos Estados Unidos da América, nação que desenvolveu o princípio de Montesquieu e foi a primeira a inseri-lo em um texto constitucional. Desta forma, no caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 delineou de maneira clarividente e de inspiração para outras nações as funções e competências de cada poder estatal, quais sejam o Executivo, Legislativo e Judiciário, garantindo-lhes independência e harmonia, além de ter-lhes conferido o status de autoridade soberana do Estado. (COURCEIRO, 2011)
Nesse contexto tem-se a criação de um Poder Executivo (artigos 76 a 91) dentro das normas constitucionais limitadoras, que lhe outorgam a possibilidade de tomar com eficiência as medidas administrativas essenciais para que o país cresça e mantenha-se integralmente em um Estado Democrático de Direito, de modo a evitar autoritarismos por parte de seus presidentes, um poder Legislativo com plenos poderes para legislar para o bem comum, tendo, inclusive, rejeitado, por meio dos mecanismos de freios e contrapesos, diversas medidas provisórias do Poder Executivo (artigos 44 a 69) e, por fim, mas não menos importante, um Poder Judiciário (artigos 92 a 126) como guardião da Carta Magna, (artigo 102), cuja função tem sido exercida com maestria, no sentido de assegurar o pleno funcionamento do regime democrático, conquanto esteja passando por um momento exagerado de ativismo judicial, que deverá ser combatido para que se garanta o bem do povo. (MARTINS, 2016)
Em se tratando da independência dos Poderes, bem como a divisão de competências insculpidas em nossa Lei Maior de 1988, faz-se mister realçar a lição de José Afonso da Silva, que assevera:
A independência dos poderes significa: (a) que a investidura e a permanência das pessoas num órgão do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais; assim é que cabe ao Presidente da República prover e extinguir cargos públicos da Administração federal, bem como exonerar ou demitir seus ocupantes, enquanto é da competência do Congresso Nacional ou dos Tribunais prover os cargos dos respectivos serviços administrativos, exonerar ou demitir seus ocupantes; às Câmaras do Congresso e aos Tribunais compete elaborar os respectivos regimentos internos, em que se consubstanciam as regras de seu funcionamento, sua organização, direção e polícia, ao passo que o Chefe do Executivo incumbe a organização da Administração Pública, estabelecer seus regimentos e regulamentos. Agora, a independência e autonomia do Poder Judiciário se tornaram ainda mais pronunciadas, pois passou para a sua competência também a nomeação dos juízes e tomar outras providências referentes à sua estrutura e funcionamento, inclusive em matéria orçamentária (arts. 95, 96, e 99). (SILVA, 2005, p. 110)
Nesta senda, Manoel Gonçalves Ferreira Filho alude que o fato de o princípio insculpido no texto constitucional ora em comento preconizar a independência e harmonia dos poderes, um não invade o âmbito de competência do outro, tampouco é permitido pelo texto constitucional a delegação de competências de um para o outro, ao passo que o Poder Judiciário, como já dito alhures, tem por função constitucionalmente definida a de dizer o direito, já que, prossegue o jurista, este é o sentido da jurisdição, de jus (direito) e dicere (dizer) nos casos concretos, no qual, certas vezes, se vê instado a apreciar ato de outro poder, sem, contudo, controlar ou fiscalizar o outro poder, mas apenas para assegurar o império da lei, não escapando de sua apreciação atos de outros poderes que firam direitos fundamentais, a partir do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, que também se faz presente no texto constitucional de 1988, o que nos leva a concluir que, deste modo, o Judiciário apenas cumpre sua função definida pelo texto constitucional. (FERREIRA FILHO, 1994)
Todavia, o judiciário não é competente para intervir no mérito das decisões de outro poder, salvo se a execução das mesmas, isto é, a forma como são feitas, violarem dispositivo legal ou constitucional. Nesse contexto, preceitua Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
Não lhe cabe, jamais, examinar do ângulo da conveniência ou da oportunidade os atos comissivos ou omissivos, do Legislativo ou do Executivo. É o que exprime a famosa doutrina do “ato político” ou “ato de governo” a limitar a apreciação pelo Judiciário dos atos de outros Poderes. (FERREIRA FILHO, 1994)
Desta análise conclui-se que o Judiciário deve intervir apenas quando houver ofensa à ordem constitucional ou legal; por mais injusto que seus membros possam achar o status quo, estes só devem interferir no sentido de garantir a estrita legalidade, jamais interferindo no mérito de decisões tomadas pelos outros poderes.
2.3 A ilegitimidade do Poder Judiciário em arrogar-se legislador e o ativismo judicial como violador do princípio tripartição dos poderes
Ademais, cumpre ressaltar que o Poder Judiciário é dotado de tecnicidade, isto é, dos três Poderes da República, este é o único Poder efetivamente técnico, e que por isso, faz-se mister acentuar que aceitar que um poder técnico, não eleito pelo voto popular, por meio de suas decisões em casos concretos, na prática se torne um legislador, é decidir à revelia do Povo, que não os elegeu, e na prática, é isto que caracteriza o ativismo judicial. Ou seja, é inconcebível que o Poder Judiciário, não eleito, exerça atividade legislativa do Estado, esta que pertence ao Congresso Nacional, eleito diretamente pela sociedade, portanto, legítimo para edição de leis.
Desse modo, incumbe exclusivamente ao Poder Legislativo a atividade legiferante, não se permitindo qualquer concessão desta atividade, já assentada no Princípio da tripartição dos Poderes de Montesquieu, adotado e fortalecido pela nossa Carta Magna de 1988; conforme preleciona Ives Gandra Martins, sobre a ilegitimidade do Poder Judiciário em tomar posições ativistas, o que na prática o transforma em legislador:
Tenho para mim que aceitar que o Poder Judiciário seja um legislador positivo, é admitir que pessoas não escolhidas pelo povo façam a lei em lugar dos representantes eleitos pela sociedade. Vale dizer, é admitir, numa democracia, que técnicos – o Poder Judiciário é um poder técnico, integrado por magistrados admitidos por concurso público, exceção feita, nos Tribunais, ao décimo constitucional (a cota dos advogados no quinto constitucional, pois os membros do Ministério Público foram no “Parquet” admitidos por concurso), ou no STF, indicados por um homem só, cargos estes preenchidos por nomeação dos Governos dos Estados ou pelo Presidente da República e aprovação do Senado – decidam independente da vontade do povo, que não os elegeu. (MARTINS, 2016, p. 134)
Logo, se o Poder Judiciário arvorar-se em tal postura de legislador positivo, na prática elaborando leis por meio de decisões judiciais, estará caracterizada uma decisão que, além de carecer de legitimidade popular e por conseguinte democrática, gerará profunda insegurança jurídica, haja vista que não será mais a lei,-elaborada por órgão legitimamente eleito pela sociedade-que ditará os rumos da vida do cidadão, mas sim o magistrado, não eleito, e portanto incompetente para legislar em favor do cidadão, já que não é esta a sua função prescrita na Carta Magna, o que decerto eleva o Judiciário ao status de superpoder da República, interferindo nas ações dos demais poderes, ferindo de morte o princípio da separação dos poderes e por conseguinte o próprio texto constitucional, que veda a atividade legislativa pelo Poder Judiciário, culminando em enorme insegurança jurídica (MARTINS, 2016)
No entanto, necessário frisar que nada impede que o Poder Judiciário declare a inconstitucionalidade formal ou material de uma norma, ou mesmo por omissão de uma norma, competindo-lhe apenas, como preceitua o §2 do artigo 103 da Constituição Federal, declarar a mora legislativa e dar “ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988); sendo vedado a Suprema Corte legislar em face da ausência de uma norma, como a Corte vem fazendo por meio do ativismo judicial, como por exemplo o fez no caso de aborto de anencéfalos ou aprovando a união de casais homossexuais. Sobre esta matéria, ensina Alexandre de Moraes:
Na conduta negativa, o legislador constituinte brasileiro adotou o modelo constitucional português que determina que, declarada a inconstitucionalidade por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exigíveis as normas constitucionais, o Tribunal Constitucional português dará conhecimento ao órgão legislativo competente. Tratou-se de inovação do legislador de 1976, em sede de fiscalização abstrata e sucessiva de Constitucionalidade, tendo como finalidade o combate ao que Canotilho denomina silêncio legislativo, para garantir a plena efetividade das normas constitucionais (MORAES, 2011, p.1411)
Como se depreende da análise supra, o que o Supremo Tribunal Federal, -com a outorga do texto constitucional-, pode realmente fazer é comunicar, apenas, ao Congresso Nacional que sua omissão é inconstitucional, para que então aquele, que é o poder competente, elabore a norma faltante, sendo vedado a imposição de prazos ou a edição por meio do ativismo judicial. (MARTINS, 2016)
Nesta senda, Manoel Gonçalves Ferreira Filho elucida que o Judiciário só pode ser legislador negativo, ao comentar o § 2º do artigo 103, dizendo: “Ciência. A declaração da omissão de órgão legislativo redunda numa comunicação: “será dada ciência” (FILHO, 2000, p. 518)
Logo, é evidente que o Supremo Tribunal Federal não pode legislar por meio do ativismo judicial, e se o fizer, estará flagrantemente violando a Constituição,a qual lhe incumbe a sua guarda, e em decorrência disto, pode-se concluir que, por mais que hajam problemas de toda sorte (ineficiência do Congresso Nacional, corrupção, lentidão, etc) em prover as leis necessárias à efetivação de direitos, o máximo que a Suprema Corte brasileira pode fazer é, quando provocada, declarar a omissão de uma norma, mas nunca elaborá-la, pois se o fizer, trará enorme insegurança jurídica, bem como usurpará funções de outros poderes, o que decerto é inconstitucional.
Conceder ao Poder Judiciário a prerrogativa de tornar-se legislador, invadindo competência do Poder Legislativo é atentar contra a Democracia brasileira, haja vista que viola também o próprio princípio da legalidade insculpido no artigo 5° da Carta Magna, pois o indivíduo que eventualmente cumprir uma lei editada pelo Legislativo ou agir ante a omissão legislativa, poderá surpreender-se de que sua conduta será reputada como ilegal, por não encaixar-se nas convicções morais do julgador, não eleito pelo povo, que arrogou para si o poder de legislador, e tal fato gera profunda insegurança jurídica, pois fere de morte o princípio da separação dos poderes, como já dito. (MARTINS, 2016b) Desta maneira, conclui Ives Gandra:
Diria, mesmo, que a cidadania depende da separação de poderes. Se o cidadão não puder confiar que a Lei promulgada pelo Congresso garante-lhe a certeza de que o Judiciário irá cumpri-la, e ficar na dependência dos julgamentos particulares dos magistrados, individual ou coletivamente, por melhores que sejam, certamente viverá em tensão permanente, sem qualquer segurança . A lei pode não agradar, mas a certeza de que é aquela que deve ser seguida, oferta a segurança a que se refere o texto supremo. Por melhor que seja a solução legislativa do Judiciário, sempre acarretará a incerteza e a insegurança, pois o que vige passa a ser revogado por determinação não do Legislativo, mas do Judiciário. E tal confusão entre as funções dos Poderes amesquinha a democracia e dá um poder fantástico à magistratura, que, apesar de ser, a meu ver, o mais preparado dos Poderes, não é eleito pelo povo. O mais grave, todavia, é que, se o próprio Judiciário se transformar de poder legislativo negativo em positivo, não haverá a quem recorrer, pois quem fará a lei será o seu próprio julgador. (MARTINS, 2016, p. 142-143)
Destarte, conclui-se que o Estado Democrático de Direito reside no princípio da Separação dos Poderes, e qualquer forma de ativismo judicial seria um atentado contra o aludido princípio, o que fragilizaria a democracia do país, portanto não é legítimo que o Poder judiciário, ainda que sob o pretexto de se efetivar direitos fundamentais, torne-se na prática um legislador, tentando, por meio de uma decisão judicial, sanar uma omissão do Congresso nacional. Tal princípio deve ser respeitado sob qualquer hipótese, e uma decisão de caráter minimamente ativista já deve ser considerada como violadora deste princípio, ainda que seja para sanar omissões dos outros poderes da República como forma de se efetivar direitos fundamentais.
3. CONCLUSÃO
Conforme exposto no decorrer deste artigo, há de se concluir que a prática do ativismo judicial traz possíveis danos ao conceito de Estado Democrático de Direito consistente na separação de poderes, pois ao Poder Judiciário cabe precipuamente e, unicamente, interpretar as leis e aplicá-las a um caso concreto, já que é um poder técnico, não eleito pelo voto popular, com suas atribuições nitidamente insculpidas na Constituição.
Desta forma, evidenciou-se que o ativismo judicial conflita com o princípio da tripartição de Poderes, elencando desde o surgimento deste princípio a partir das teorias de filósofos como Aristóteles, Locke e Montesquieu, passando pela sua otimização pelos pais fundadores americanos até a sua previsão e configuração no bojo da Constituição Federal de 1988; onde, no fim, demonstrou-se que o ativismo judicial viola tal princípio porque o Poder Judiciário invade a esfera de competência dos outros Poderes da República.
Destarte, quando o Poder Judiciário arvora-se em legislador, isto é, decide um caso concreto não baseando-se na lei escrita e positiva, mas sim conferindo o seu sentido pessoal, seus argumentos de política e moral à norma, subvertendo seu texto, ou seja, decidindo como ela deve adequar-se ao caso, atribuindo-lhe sentidos morais ou convicções pessoais, termina por, na prática, legislar, o que culmina em grave usurpação de função do poder Legislativo, o qual é o único Poder cuja função é legislar e por conseguinte representar o povo, que o elegeu diretamente.
Por isso a periculosidade do ativismo judicial para uma democracia, pois um juiz que deveria apenas interpretar uma lei, acaba por definir sentido diverso ao texto de acordo com sua convicção, ou seja, determina como a lei deve ser para aquele caso, o que de fato, na prática, insere uma nova lei no ordenamento jurídico, ainda que diferentemente de uma lei aprovada em seu sentido originário e de maneira democrática pelo Congresso Nacional, pois tal lei vem de dentro de um tribunal e de acordo com a vontade pessoal de um magistrado que se auto-intitulou legislador e por isso atribuiu sentido diferente a uma lei, não aplicando-a ao caso de acordo com o sentido textual da norma, mas sim a sua vontade, o que traz enorme insegurança jurídica ao ferir de morte o sagrado princípio da separação de poderes, mesmo que venha sob o manto de promover mudanças positivas na sociedade, como alega a grande maioria de defensores do ativismo judicial.
Faz-se mister asseverar que sempre quando se recorre a algum malabarismo jurídico para satisfazer clamores sociais, este suposto “benefício” e “efetivação de direitos fundamentais” de hoje poderá ser o retrocesso de amanhã, quando estes supostos direitos efetivados mediante decisões ativistas poderão ser derrubados e dificilmente serão restabelecidos, pois na verdade o que se comemora hoje não é fato a efetivação de tais direitos, mas um simulacro de efetivação destes supostos “avanços”, que decorrem não da lei, mas sim do arbítrio dos juízes. Faz-se mister pontuar que Suprema Corte não faz milagres, pelo contrário, é contramajoritária, um remédio contra maiorias, por isso não deve, por meio do ativismo judicial, atender às causas sociais, pois é ilegítimo para tanto, devendo apenas salvaguardar a Constituição, ou seja, cumprir sua função.
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