MALÁRIA: UMA DAS DOENÇAS TROPICAIS NEGLIGENCIADAS NO BRASIL EM PLENO SÉCULO XXI

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202509111238


Agnes Caroline Andrade Araújo; Antonio Rodrigo Sousa Lima; Brenda Mota de Souza; Francielle Macedo Cataldo; Joao Vittor Fayad de Moraes; Luisa Álvares de Oliveira; Maria Alinne Dias Gouveia; Matheus Rangell Rodrigues de Souza; Nicolas Borges Marinho; Nicole Kazmierczak Aguiar; Taiana de Andrade Pereira.


Resumo: A malária é um grave problema de saúde pública, com impacto global, especialmente em países tropicais. No Brasil, é predominante na região amazônica, responsável por mais de 99% dos casos autóctones. Em 2023, houve 263 milhões de casos no mundo e 589 registros na região extra-amazônica, dos quais 5,1% foram de transmissão local. Essa região apresenta letalidade 51,1 vezes maior que a amazônica, devido à semelhança da malária com outras doenças febris e ao diagnóstico tardio. O vetor Anophelinae está presente em quase todo o território nacional, mantendo o risco de surtos. Mudanças ambientais, como desmatamento, e a mobilidade humana contribuem para a persistência da transmissão. Entre 2018 e 2023, foram registrados 911.751 casos no país, com maior incidência entre homens de 20 a 39 anos e nas áreas indígenas e rurais. A análise dos dados evidenciou inconsistências entre plataformas, sendo utilizados apenas os dados do Ministério da Saúde. As emergências sanitárias prejudicam o diagnóstico e o controle da doença. A malária fora da Amazônia é agravada por fatores ecológicos, institucionais e sociais, caracterizando-a como Doença Tropical Negligenciada. A eliminação requer vigilância integrada, capacitação dos profissionais e enfrentamento das desigualdades estruturais.

Palavras Chave: Malária, Epidemiologia e Brasil

Introdução: A malária é reconhecida mundialmente como um grave problema de saúde pública, impactando significativamente a morbidade e a mortalidade em países tropicais e subtropicais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), foram registrados 263 milhões de casos da doença em 83 países endêmicos no ano de 2023. No contexto brasileiro, a malária é causada principalmente pelas espécies Plasmodium vivax e Plasmodium falciparum (GARCIA et al., 2022). Historicamente, já em 1909, Arthur Neiva destacava a biologia, ecologia e distribuição dos mosquitos do subgênero Anophelinae e suas conexões com o impaludismo (malária), ressaltando a necessidade de mais estudos taxonômicos no Brasil, anos após a demonstração do papel dos mosquitos na transmissão do Plasmodium (SALLUM et al., 2025).

Atualmente, a geografia da malária no Brasil está concentrada na Região Norte, sendo a Amazônia brasileira considerada a principal área endêmica, responsável por mais de 99% dos casos autóctones (transmissão local) do país (GARCIA et al., 2022). Segundo o Ministério da Saúde, a região extra-amazônica apresenta uma frequência muito menor de casos, respondendo por menos de 1% do total nacional, mas enfrentando desafios distintos. Em 2023, por exemplo, foram registrados 589 casos nessa região, dos quais 30 (5,1%) foram de transmissão local.

Um aspecto crucial da malária na região extra-amazônica é a sua maior letalidade em comparação com a região amazônica. Em 2023, a letalidade nesta área foi 51,1 vezes maior, atingindo 1,87%. Esse fenômeno decorre principalmente da semelhança sintomática da malária com outras doenças febris infecciosas prevalentes na região, como dengue, leptospirose, doença de Chagas aguda e leishmaniose visceral. Tal similaridade provoca atrasos na suspeição clínica, aumentando o risco de agravamento dos casos. Diante disso, o histórico de saúde e de viagem do paciente torna-se fundamental para a investigação epidemiológica.

Apesar da baixa incidência na região extra-amazônica, a presença do mosquito vetor Anophelinae em praticamente todo o território nacional mantém o risco de surtos localizados. Os desafios para a eliminação da malária no Brasil são multifatoriais e complexos. A diversidade dos ecossistemas brasileiros, somada às intensas mudanças ambientais antrópicas desde meados do século XX (como alterações no uso da terra e desmatamento), impacta a distribuição e a proliferação dos mosquitos vetores (SALLUM et al., 2025). Além disso, a mobilidade humana contribui significativamente para a persistência da malária, especialmente em áreas de fronteira e regiões afetadas pela expansão das fronteiras econômicas (GOMES et al., 2020). A distribuição geográfica dos mosquitos Anophelinae e os fatores ecológicos e antrópicos que a influenciam são discutidos em articulação com o plano nacional de eliminação da malária (SALLUM et al., 2025).

Diante desse cenário, compreender a dinâmica da malária, particularmente em áreas onde a prevalência é baixa, mas o risco é elevado, é essencial para estratégias de controle eficazes e para o enfrentamento da doença como um desafio persistente no século XXI.

Objetivos:

– Analisar o cenário epidemiológico atual da malária no Brasil no século XXI, com ênfase nos desafios e fatores que contribuem para sua persistência, particularmente na região extra-amazônica, considerando seu enquadramento como Doença Tropical Negligenciada.

– Caracterizar o perfil epidemiológico atual da malária no Brasil, distinguindo as particularidades da região extra-amazônica, como a maior letalidade e os desafios diagnósticos relacionados à similaridade sintomática com outras doenças febris.

– Investigar a influência de fatores ecológicos, ambientais (incluindo mudanças no uso da terra e desmatamento) e climáticos na distribuição dos mosquitos vetores do gênero Anophelinae e no risco de transmissão da malária no Brasil.

– Analisar o papel da mobilidade humana na dinâmica da transmissão da malária e identificar os desafios e vulnerabilidades do sistema de saúde (tais como atrasos diagnósticos e impacto de emergências de saúde pública) que contribuem para a persistência da doença no contexto brasileiro contemporâneo.

Materiais e Métodos: Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo, retrospectivo e de abordagem quantitativa, fundamentado em dados secundários provenientes do Centro Nacional de Inteligência Epidemiológica e Vigilância Genômica do Ministério da Saúde. A base foi acessada em 23 de abril de 2025 e utilizada para analisar a distribuição de casos de malária no Brasil entre os anos de 2018 a 2023.

Foram aplicados filtros específicos por região geográfica, distinguindo-se região amazônica e região extra-amazônica, bem como por espécies parasitárias (Plasmodium falciparum, P. vivax, entre outros), sexo (masculino e feminino), faixas etárias e o período de notificação dos casos. Complementarmente, realizou-se uma revisão integrativa da literatura na base de dados PubMed, utilizando os descritores controlados “Brazil” AND “Malaria”. Foram aplicados filtros para delimitar o intervalo temporal de 2018 a 2023, restringindo-se a artigos com texto completo disponível. Do total de 1.109 artigos identificados, foram selecionados sete estudos que atenderam aos critérios de elegibilidade previamente estabelecidos. Estes foram analisados na íntegra para complementar e embasar os dados obtidos na análise epidemiológica.

Estrutura PICO

– P (População): Casos notificados de malária no Brasil entre 2018 e 2023, considerando variáveis regionais, etárias e de gênero.

– I (Intervenção/Exposição): Análise da distribuição temporal e espacial da malária e sua relação com fatores socioambientais e demográficos.

– C (Comparação): Comparação entre os dados da região amazônica e região extraamazônica, com ênfase na variação entre espécies parasitárias.

– O (Desfecho): Identificação de padrões epidemiológicos, populações mais afetadas e possíveis lacunas na vigilância.

População do Estudo

Incluem-se todos os casos notificados de malária registrados no território brasileiro, no período de 2018 a 2023, conforme informações disponibilizadas pela base de dados do Ministério da Saúde.

Amostragem

A amostra foi censitária, composta por todos os registros disponíveis e validados na base de dados oficial, dispensando cálculo amostral devido à natureza retrospectiva e ao caráter populacional do estudo.

Análise de Dados

Os dados foram organizados em planilhas eletrônicas e submetidos a análise descritiva. Foram construídas frequências absolutas e relativas, além de indicadores epidemiológicos simples. As comparações entre as regiões foram realizadas por meio da estratificação das variáveis selecionadas.

Limitações do Estudo

Entre as limitações identificadas, destacam-se:

– A possibilidade de subnotificação de casos, especialmente em áreas remotas;

– Inconsistência ou ausência de dados em determinadas variáveis (ex: espécie parasitária);

– A dependência de dados secundários, que pode comprometer a completude e a qualidade das informações;

Resultados e Discussão: A malária permanece como um importante problema de saúde pública no Brasil, com predominância dos casos na região amazônica (GARCIA et al., 2022). Na região extra-amazônica, apesar da baixa ocorrência, foram registrados 11 óbitos em 2023. Um achado crítico refere-se à maior letalidade da malária nessa região: em 2023, a taxa foi de 1,87%, sendo 51,1 vezes superior à registrada na região amazônica. Essa letalidade elevada é atribuída, sobretudo, à semelhança clínica entre a malária e outras doenças infecciosas febris prevalentes na região, como dengue, leptospirose, doença de Chagas aguda e leishmaniose visceral. Tal similaridade dificulta o diagnóstico precoce, resultando em atrasos que elevam a gravidade dos casos e aumentam o risco de óbito. Nesse contexto, torna-se essencial considerar o histórico de saúde e deslocamento do paciente para subsidiar a investigação epidemiológica.

A distribuição dos mosquitos Anophelinae, vetores do Plasmodium, é um aspecto central para o controle da doença. A literatura aponta para o conhecimento ainda limitado sobre essas espécies no Brasil, especialmente devido à complexidade dos ecossistemas e às mudanças ambientais antrópicas intensificadas a partir da segunda metade do século XX (SALLUM et al., 2025). Alterações no uso da terra, como o desmatamento, impactam diretamente a ecologia dos vetores. Estudos indicam que a expansão de fronteiras econômicas e ambientais na Amazônia está associada ao aumento do risco de transmissão da malária (ALBUQUERQUE et al., 2025). A necessidade de aprofundamento em estudos taxonômicos, biológicos e ecológicos sobre os vetores já havia sido destacada por Neiva (1909). A ampla distribuição dos mosquitos Anophelinae no território nacional mantém o risco de surtos localizados mesmo em áreas consideradas de baixa endemicidade (GARCIA et al., 2022).

Segundo o Ministério da Saúde, entre 2018 e 2023 foram notificados 911.751 casos de malária no Brasil, dos quais 892.213 ocorreram na região amazônica e 517 na região extraamazônica. Do total, 11.867 casos ocorreram em gestantes. As áreas indígenas e rurais foram as mais afetadas. A faixa etária com maior incidência foi de 20 a 39 anos, com 318.297 casos, e o sexo masculino representou 61% das notificações. Esses dados sugerem maior exposição ocupacional dos homens e um impacto significativo da doença sobre a população economicamente ativa. As gestantes, por sua vez, constituem um grupo vulnerável a complicações graves, o que reforça a necessidade de estratégias específicas de prevenção e cuidado. Durante a análise dos dados, foi observada uma discrepância entre os números fornecidos pelo Ministério da Saúde e pela plataforma DATASUS (TABNET); por esse motivo, foram utilizados exclusivamente os dados do Ministério da Saúde.

Fonte: Ministério da Saúde, 2025
Fonte: Tabela própria

As emergências de saúde pública de importância internacional agravam as vulnerabilidades do sistema de saúde. De acordo com De Araujo et al. (2023), tais crises provocam uma redução nos serviços de saúde, incluindo a cadeia de diagnóstico, além do redirecionamento de recursos e atenção. Tais impactos intensificam os atrasos diagnósticos já observados na região extra-amazônica, contribuindo para a subnotificação e agravamento dos casos. A desigualdade socioeconômica, considerada um determinante central nesses contextos, torna as populações mais vulneráveis ainda mais suscetíveis à negligência.

Fonte: Tabela própria

A mobilidade humana também se destaca como fator importante para a manutenção da transmissão da malária, especialmente em áreas de fronteira e em regiões com expansão econômica. A literatura aponta que a mobilidade influencia diretamente a dinâmica de transmissão da doença. Em relação às vulnerabilidades do sistema de saúde, uma revisão sistemática sobre os efeitos das emergências de saúde pública de importância internacional indicou a redução do acesso a consultas médicas, falhas na cadeia de diagnóstico, queda na cobertura vacinal e aumento na subnotificação de doenças de notificação compulsória, como a malária (GOMES et al., 2020). A transferência de atenção das autoridades sanitárias e o enfraquecimento dos sistemas de saúde ao longo do tempo também foram destacados como consequências diretas.

Fonte: Ministério da Saúde (dados agregados, 2018–2023)

Em síntese, a malária na região extra-amazônica, marcada por sua elevada letalidade e desafios diagnósticos, reflete a interação de fatores epidemiológicos, ecológicos, ambientais, demográficos e institucionais (GARCIA et al., 2022; SALLUM et al., 2025). Essa combinação de elementos, fora do contexto amazônico de alta endemicidade, reforça o caráter de Doença Tropical Negligenciada da malária, exigindo estratégias específicas de vigilância e controle, com ênfase na atenção primária e no diagnóstico precoce (GOMES et al., 2020; DE ARAUJO et al., 2023).

Conclusão: A malária permanece como um desafio relevante para a saúde pública brasileira no século XXI, com predominância na região amazônica, mas apresentando características que a aproximam do conceito de Doença Tropical Negligenciada quando analisado o cenário extraamazônico. A literatura e os dados analisados evidenciam uma letalidade significativamente maior fora da Amazônia, impulsionada por atrasos no diagnóstico, que, por sua vez, decorrem da similaridade sintomática com outras arboviroses e doenças infecciosas, da menor familiaridade dos profissionais de saúde com a doença nessas regiões e da fragilidade dos serviços de saúde, agravada por emergências sanitárias. A presença generalizada do vetor Anopheles, a constante mobilidade populacional e os determinantes socioambientais complexos mantêm o risco de transmissão e reintrodução do parasita mesmo em áreas de baixa endemicidade. Portanto, a eliminação da malária no Brasil requer uma abordagem estratégica que considere essa heterogeneidade regional, fortalecendo a vigilância integrada, investindo na capacitação para diagnóstico precoce fora do epicentro amazônico e atuando sobre os múltiplos fatores subjacentes que perpetuam a persistência e letalidade da doença.

Referências:

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7. Sallum, Maria Anice Mureb et al. Distribution of Anophelinae (Diptera: Culicidae) and challenges for malaria elimination in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz, v. 120, e240247, 2025. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC11852321/. Acesso em: 23 de abril de 2025.

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