ABORDAGEM VIDEOLAPAROSCÓPICA DA COLECISTITE AGUDA: LIMITES TÉCNICOS EM CASOS DE INFLAMAÇÃO AVANÇADA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202508261602


Orientador: Dr. Alexandre Dal-ri Pagani1
Leandro de Araújo Rios Teixeira Dias2
Yasemin Ceyhan3
Diogo Nunes Melo4


RESUMO

A colecistectomia videolaparoscópica (CVL) representa o padrão-ouro para o tratamento da colecistite aguda (CA), conforme estabelecido por diretrizes internacionais. Contudo, a presença de inflamação avançada, caracterizada por plastrão inflamatório, fibrose densa e distorção anatômica do Triângulo de Calot, impõe desafios técnicos significativos que elevam o risco de complicações, notadamente a lesão de via biliar. O objetivo deste artigo é realizar uma revisão narrativa da literatura para discutir os limites técnicos da abordagem laparoscópica em casos de CA severa e detalhar um arsenal de estratégias para mitigar riscos e garantir a segurança do paciente. A análise da literatura revela a importância da identificação de fatores preditivos de dificuldade cirúrgica, tanto clínicos e laboratoriais quanto de imagem, que permitem um planejamento pré-operatório mais acurado. Discute-se a aplicação rigorosa da Visão Crítica de Segurança (VCS) de Strasberg como pilar fundamental para a identificação inequívoca das estruturas ductocísticas antes de sua secção. Adicionalmente, são detalhadas manobras táticas e procedimentos de resgate (“bail-out”), como a dissecção fundo-infundibular (“dome-down”) e a colecistectomia subtotal (fenestrante e reconstitutiva), como recursos essenciais quando a obtenção da VCS se mostra inviável. Conclui-se que, embora a conversão para cirurgia aberta não deva ser considerada um fracasso, mas sim um ato de julgamento cirúrgico maduro, o domínio de técnicas laparoscópicas avançadas e o reconhecimento dos próprios limites são capazes de expandir a aplicabilidade da CVL com segurança, mantendo a integridade do paciente como prioridade máxima.

Palavras-chave: Colecistite Aguda; Colecistectomia Videolaparoscópica; Dificuldade Técnica; Conversão Cirúrgica; Visão Crítica de Segurança.

1. INTRODUÇÃO

A colecistite aguda (CA) figura entre as urgências cirúrgicas abdominais mais prevalentes na prática clínica global, sendo responsável por um número expressivo de admissões hospitalares anualmente (GALLAHER; CHARLES, 2022). Desde a sua introdução na década de 1990, a colecistectomia videolaparoscópica (CVL) revolucionou o tratamento desta afecção, suplantando a abordagem aberta e consolidando-se como o padrão-ouro terapêutico (INDEST, 2020). Os benefícios da CVL são extensamente documentados e incluem menor dor pós-operatória, recuperação funcional acelerada, redução do tempo de internação hospitalar e resultados estéticos superiores (SAGES, 2020). Em consonância com a robusta evidência acumulada, as diretrizes de consenso mais recentes, com destaque para as Diretrizes de Tóquio 2018 (TG18), advogam pela realização da CVL em caráter precoce, idealmente nas primeiras 72 horas do início dos sintomas, para a maioria dos pacientes, abrangendo inclusive casos de gravidade moderada (Grau II) (YOKOE et al., 2018; WAKABAYASHI et al., 2018).

Apesar do notório sucesso e da ampla aplicabilidade da CVL, um subgrupo significativo de pacientes apresenta um desafio formidável ao cirurgião: a denominada “vesícula difícil”. Este cenário é tipicamente encontrado em quadros de inflamação avançada, seja por um episódio agudo severo (Grau II ou III) ou como resultado de episódios crônicos de agudização (BORRELLI et al., 2021). O processo inflamatório exacerbado culmina na formação de um plastrão denso, aderências firmes a estruturas vitais adjacentes — como o duodeno e o ângulo hepático do cólon — e uma fibrose intensa que oblitera os planos de clivagem anatômicos no Triângulo de Calot (RANDHAWA; PUJAHARI, 2009; DAR et al., 2021). Essa subversão da anatomia normal eleva drasticamente o risco da complicação mais temida da colecistectomia: a lesão iatrogênica da via biliar principal (LVB). A incidência de LVB, embora relativamente baixa, não decresceu de forma significativa nas últimas décadas e está associada a uma morbimortalidade substancial, com consequências devastadoras para a qualidade de vida do paciente e implicações médico-legais complexas (STRASBERG, 2013; SGARAMELLA et al., 2021).

Neste contexto, a discussão aprofundada sobre os limites técnicos da abordagem laparoscópica transcende o debate acadêmico e se torna um pilar para a prática cirúrgica segura. A persistência obstinada em uma dissecção laparoscópica em um campo operatório “hostil” ou “congelado”, muitas vezes sob a influência de vieses cognitivos, pode levar a desfechos catastróficos. Portanto, a decisão de empregar técnicas de resgate (“bail-out procedures”) ou de converter para uma cirurgia aberta não deve ser estigmatizada como uma falha técnica ou uma complicação do procedimento. Pelo contrário, representa a quintessência do julgamento cirúrgico: a capacidade de reconhecer os limites da técnica e do próprio cirurgião, priorizando incondicionalmente a segurança do paciente (SUTCLIFFE et al., 2016).

O objetivo deste artigo é realizar uma revisão crítica sobre os limites técnicos da abordagem videolaparoscópica no tratamento da colecistite aguda com inflamação avançada, detalhando os fatores preditivos de dificuldade, os achados intraoperatórios desafiadores e as estratégias táticas para um desfecho seguro.

2. METODOLOGIA

O presente artigo configura-se como uma revisão narrativa da literatura, conduzida com o propósito de analisar aprofundadamente os limites técnicos, os fatores preditivos de dificuldade e as estratégias de manejo na abordagem videolaparoscópica da colecistite aguda com inflamação avançada.

Estratégia de Busca e Fontes de Informação

Foi conduzida uma busca abrangente por publicações relevantes nas principais bases de dados eletrônicas de ciências da saúde: PubMed/MEDLINE, LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciELO (Scientific Electronic Library Online). A pesquisa não estabeleceu um marco temporal inicial, sendo considerados artigos publicados até agosto de 2025. Para a construção da estratégia de busca, foram utilizados os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS/MeSH) e seus correspondentes em inglês, combinados através dos operadores booleanos AND e OR: (“Cholecystitis, Acute” OR “Gallbladder, Acute Disease”) AND (“Cholecystectomy, Laparoscopic”) AND (“Conversion to Open Surgery” OR “Intraoperative Complications” OR “Bile Duct Injuries” OR “Subtotal Cholecystectomy” OR “Critical View of Safety”).

Critérios de Seleção dos Estudos

A seleção dos artigos foi realizada em duas fases. Na primeira, os títulos e resumos foram avaliados quanto à sua pertinência ao tema. Na segunda, os artigos pré-selecionados foram lidos na íntegra para a inclusão final, baseada nos seguintes critérios:

  • Critérios de Inclusão: 1) Diretrizes de consenso e posicionamentos de sociedades de especialidade; 2) Revisões sistemáticas e meta-análises; 3) Ensaios clínicos randomizados comparando técnicas ou tempos de abordagem; 4) Estudos de coorte prospectivos ou retrospectivos com casuísticas robustas que avaliaram fatores de risco para conversão ou complicações; 5) Artigos seminais que introduziram conceitos fundamentais (e.g., Visão Crítica de Segurança); 6) Artigos publicados nos idiomas inglês, português ou espanhol.
  • Critérios de Exclusão: 1) Relatos de caso ou séries de casos com número reduzido de pacientes (< 20); 2) Cartas ao editor, editoriais e artigos de opinião sem revisão por pares; 3) Artigos cuja metodologia não era clara ou cujos dados eram insuficientes para análise.

Extração e Análise dos Dados

As informações dos artigos selecionados foram extraídas e sintetizadas de forma a construir uma narrativa coesa e didática, seguindo a estrutura predefinida deste artigo. A análise focou na identificação de dados sobre fatores preditivos, desafios anatômicos intraoperatórios, descrição de manobras táticas, indicações para procedimentos de exceção (como a colecistectomia subtotal) e as bases para a decisão de conversão para a via aberta.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1. Fatores Preditivos de uma Colecistectomia Difícil

A capacidade de antecipar um procedimento cirúrgico desafiador é o primeiro e mais crucial passo para a mitigação de riscos, permitindo um planejamento estratégico, um consentimento informado mais detalhado e a alocação de recursos adequados, como a presença de um cirurgião mais experiente. Uma vasta literatura tem se dedicado a identificar fatores pré-operatórios que se correlacionam com maior tempo cirúrgico, taxas de conversão elevadas e maior incidência de complicações intra e pós-operatórias (LAL et al., 2002; SUTCLIFFE et al., 2016). Estes fatores podem ser categorizados em clínicos, laboratoriais e de imagem, conforme detalhado na Tabela 1.

Fatores Clínicos: Idade avançada (acima de 60 anos), sexo masculino, obesidade (Índice de Massa Corporal – IMC > 27,5 kg/m²), história de cirurgia abdominal superior prévia e a presença de comorbidades como diabetes mellitus são consistentemente apontados como preditores de uma dissecção mais laboriosa (RANDHAWA; PUJAHARI, 2009; DAR et al., 2021; SUTCLIFFE et al., 2016). A própria apresentação clínica da colecistite aguda, quando mais severa, com febre alta (>38°C), presença de massa palpável no hipocôndrio direito ou sinais de peritonite localizada, já sugere um processo inflamatório de maior intensidade e, consequentemente, um procedimento mais difícil (CONSTANTIN et al., 2024).

Fatores Laboratoriais: A resposta inflamatória sistêmica, quantificada por marcadores laboratoriais, oferece um indicativo objetivo da gravidade do processo. Leucocitose acentuada (contagem de leucócitos > 18.000/mm³) e níveis elevados de Proteína C-Reativa (PCR) são indicadores robustos da intensidade da inflamação e preditores independentes de dificuldade cirúrgica e conversão (RANDHAWA; PUJAHARI, 2009; CONSTANTIN et al., 2024; YOKOE et al., 2018).

Fatores de Imagem: A ultrassonografia abdominal, como exame de primeira linha, fornece pistas cruciais. Achados como espessamento da parede da vesícula biliar (tipicamente > 4 ou 5 mm), presença de líquido pericolecístico, um cálculo impactado no infundíbulo ou no colo vesicular, e uma vesícula biliar muito distendida ou, inversamente, contraída e escleroatrófica, são fortes preditores de um campo operatório hostil (LAL et al., 2002; DAR et al., 2021; GUPTA et al., 2021). A tomografia computadorizada pode corroborar esses achados e oferecer detalhes adicionais em casos duvidosos.

É fundamental compreender que a confluência de múltiplos fatores preditivos não possui um efeito meramente aditivo, mas sim multiplicativo no risco cirúrgico. Um paciente idoso, do sexo masculino, diabético, apresentando leucocitose de 20.000/mm³ e uma parede vesicular de 6 mm na ultrassonografia não representa apenas um “risco aumentado”, mas sim uma probabilidade altíssima de se deparar com uma anatomia hostil que exigirá manobras avançadas ou conversão. O sexo masculino, por exemplo, está associado a uma resposta inflamatória mais fibrótica, enquanto a idade avançada e o diabetes comprometem a microcirculação e a capacidade de resolução do processo inflamatório. Juntos, esses fatores pintam o quadro fisiopatológico de uma inflamação que não é apenas severa, mas que teve tempo para se organizar em uma fibrose densa — o substrato anatômico da “vesícula impossível”. A presença de três ou mais desses fatores deve colocar o cirurgião em estado de alerta máximo, preparando-o mental e logisticamente para um procedimento não convencional.

Tabela 1 – Fatores Preditivos de Colecistectomia Videolaparoscópica Difícil

Fator PreditivoCategoriaDetalhe EspecíficoReferências
Idade avançadaClínico> 60 anos(SUTCLIFFE et al., 2016; CONSTANTIN et al., 2024)
Sexo masculinoClínico(SUTCLIFFE et al., 2016; CONSTANTIN et al., 2024)
ObesidadeClínicoIMC > 27,5 kg/m²(DAR et al., 2021; GUPTA et al., 2021)
História de colecistite agudaClínicoEpisódios prévios ou apresentação tardia(DAR et al., 2021; CONSTANTIN et al., 2024)
ComorbidadesClínicoDiabetes Mellitus, Cirrose Hepática(RANDHAWA; PUJAHARI, 2009; CONSTANTIN et al., 2024)
Cirurgia abdominal superior préviaClínicoAderências(RANDHAWA; PUJAHARI, 2009)
Massa palpável / PeritoniteClínicoExame físico(CONSTANTIN et al., 2024)
LeucocitoseLaboratorial> 18.000/mm³(YOKOE et al., 2018; CONSTANTIN et al., 2024)
PCR elevadaLaboratorial(CONSTANTIN et al., 2024)
Espessamento da parede da vesículaImagem> 4-5 mm(LAL et al., 2002; DAR et al., 2021)
Líquido pericolecísticoImagem(RANDHAWA; PUJAHARI, 2009; GUPTA et al., 2021)
Cálculo impactado no infundíbulo/coloImagem(DAR et al., 2021; GUPTA et al., 2021)
Vesícula contraída / escleroatróficaImagem(LAL et al., 2002; DAR et al., 2021)

3.2. O Triângulo de Calot Hostil: Desafios Anatômicos e a Visão Crítica de Segurança (VCS)

Ao iniciar a dissecção em um caso previsto como difícil, o cirurgião frequentemente se depara com um campo operatório onde os marcos anatômicos familiares desapareceram. O Triângulo de Calot, normalmente preenchido por tecido areolar frouxo, está transformado em uma massa de tecido fibrótico, lenhoso e edemaciado, que não cede à dissecção romba. A vesícula biliar encontra-se firmemente aderida ao duodeno ou ao ângulo hepático do cólon, e qualquer tentativa de separação resulta em sangramento difuso ou lesão serosa das estruturas adjacentes (DAR et al., 2021; GUPTA et al., 2021). Não há um plano de clivagem claro entre o infundíbulo e o leito hepático, e a tração da vesícula distorce ainda mais a anatomia, tornando a identificação do ducto cístico e da artéria cística uma tarefa de alto risco.

Diante deste cenário, a aplicação rigorosa do conceito da Visão Crítica de Segurança (VCS), imortalizado por Strasberg, deixa de ser uma recomendação para se tornar o único caminho seguro a ser seguido (STRASBERG, 2013). É crucial reforçar que a VCS não é uma técnica de dissecção, mas sim um método de identificação inequívoca do alvo antes que qualquer estrutura seja ligada ou seccionada (STRASBERG; BRUNT, 2010). A sua obtenção é um pré-requisito absoluto para a conclusão segura da colecistectomia. Seus três componentes devem ser obrigatoriamente alcançados e verificados (STRASBERG; HERTZ; SOPER, 1995; SAGES, 2022):

  1. O triângulo hepatocístico (delimitado pelo ducto cístico, ducto hepático comum e a borda inferior do fígado) deve ser completamente dissecado de todo tecido fibroso ou adiposo. O ducto biliar comum e o hepático comum são procurados, mas não devem ser esqueletizados.
  2. A face inferior da vesícula biliar deve ser separada do seu leito hepático (placa cística) em, no mínimo, um terço de sua extensão.
  3. Após a conclusão da dissecção, apenas duas estruturas tubulares devem ser vistas entrando diretamente na base da vesícula biliar: o ducto cístico e a artéria cística.

A VCS funciona como uma poderosa barreira cognitiva contra a misidentificação anatômica, que é a causa primária da maioria das lesões biliares graves (DAVIDOFF et al., 1992). O processo inflamatório crônico ou agudo severo pode criar “falsos infundíbulos” e, através da tração, pode alinhar o ducto biliar comum com o eixo da vesícula, fazendo-o parecer o ducto cístico — a gênese da “lesão clássica”. A insistência em cumprir os três critérios da VCS força o cirurgião a abandonar percepções visuais potencialmente enganosas e a confiar exclusivamente em uma demonstração anatômica irrefutável. O primeiro critério força uma exposição ampla. O segundo critério cria uma “janela” posterior que prova que não há outras estruturas se conectando à vesícula por trás. O terceiro critério é a confirmação final. Portanto, a falha em obter a VCS não é um demérito do cirurgião, mas sim um sinal objetivo e inequívoco de que a anatomia é perigosa e que a estratégia cirúrgica padrão deve ser imediatamente abandonada em favor de uma abordagem mais segura (WAKABAYASHI et al., 2018).

3.3. Estratégias e Manobras Táticas para Evitar a Conversão

Quando a dissecção padrão se mostra infrutífera ou perigosa, o cirurgião dispõe de um arsenal de manobras táticas que podem facilitar o procedimento e evitar a necessidade de conversão. Essas estratégias devem ser vistas como parte de um algoritmo escalonado, progredindo das mais simples para as mais complexas.

Abordagem Fundo-Infundibular (“Dome-Down”)

Quando a dissecção inicial no Triângulo de Calot é impossível devido à fibrose e inflamação, a estratégia pode ser invertida (NARI et al., 2017). A dissecção fundo-infundibular, ou “dome-down”, inicia-se no fundo da vesícula biliar, uma área geralmente menos afetada pelo processo inflamatório. O cirurgião estabelece um plano de clivagem seguro entre a parede da vesícula e o leito hepático e progride metodicamente em direção caudal, em direção ao infundíbulo (GUPTA; JAIN, 2019). Esta técnica adere a um princípio cirúrgico fundamental: dissecar de uma anatomia conhecida (a parede da vesícula) para uma anatomia desconhecida e potencialmente hostil (o hilo vesicular) (FULLUM et al., 2003). Ao chegar próximo ao hilo, com a maior parte da vesícula já liberada, a identificação do ducto e da artéria cística pode se tornar mais segura e direta.

Uso de Drenos e Descompressão da Vesícula

Uma vesícula hidrópica ou empiematosa é tensa, edemaciada, frágil e extremamente difícil de tracionar adequadamente. A simples punção da parede do fundo com uma agulha de grosso calibre (e.g., calibre 14 ou 16) e a aspiração completa do seu conteúdo (bile, pus ou muco) a transforma em um órgão flácido. Isso facilita enormemente a preensão com a pinça laparoscópica e permite uma manipulação mais eficaz para expor o Triângulo de Calot (SINGH et al., 2021; AGARWAL; RAMAKANT, 2017). Esta manobra simples e rápida pode, por si só, converter um campo operatório impossível em um campo manejável, devendo ser uma das primeiras medidas a serem consideradas.

Identificação da “Infundibular Pouch”

A tração inadequada do infundíbulo é uma causa comum de confusão anatômica. Uma tração puramente cefálica (em direção à cabeça do paciente) pode “tencionar” o ducto biliar comum, alinhando-o perigosamente com o ducto cístico e aumentando o risco de uma “tenting injury” (lesão por tração). A tração correta, conforme a técnica padrão, é caudo-lateral (para baixo e para a direita), o que ajuda a abrir o ângulo entre o ducto cístico e o hepático comum, facilitando a identificação segura das estruturas (STRASBERG; BRUNT, 2010).

Colangiografia Intraoperatória

A colangiografia intraoperatória (CIO) pode, em teoria, servir como um “mapa” anatômico em casos de dúvida, delineando a árvore biliar (SAGES, 2017). No entanto, sua utilidade no contexto da colecistite aguda severa é controversa e limitada. A canulação de um ducto cístico edemaciado, friável e encurtado pode ser tecnicamente desafiadora ou mesmo impossível. A própria manobra de inserção do cateter pode causar uma lesão ductal. Além disso, a interpretação das imagens pode ser dificultada por artefatos, extravasamento de contraste ou pela própria inflamação pericolecística (ISHII et al., 2021). Portanto, a CIO deve ser empregada de forma seletiva para responder a uma pergunta anatômica específica, e não como uma tentativa de salvar uma dissecção que já se provou insegura. Não deve, em hipótese alguma, substituir o julgamento cirúrgico e a busca incessante pela VCS.

3.4. A Colecistectomia Subtotal como Recurso de Segurança

Quando todas as manobras táticas falham e a obtenção da VCS é considerada impossível ou de altíssimo risco, o cirurgião deve recorrer a um procedimento de resgate (“bail-out”). A colecistectomia subtotal (CS) é a manobra de resgate definitiva para prevenir uma LVB em um Triângulo de Calot “congelado” (ELSHAER et al., 2015; RAMÍREZ-GIRALDO; TORRES-CUELLAR; VAN-LONDOÑO, 2023).

Indicação Principal: A indicação absoluta para a CS é a impossibilidade de se obter a VCS com segurança devido a um processo inflamatório/fibrótico intransponível (TORO et al., 2021).

Técnicas: Existem duas variantes principais da CS, com implicações distintas no pós-operatório (STRASBERG et al., 2016; RAMÍREZ-GIRALDO; TORRES-CUELLAR; VAN-LONDOÑO, 2023):

  1. Reconstitutiva (de fechamento): A porção anterior da vesícula é excisada, os cálculos são completamente removidos do lúmen e o coto infundibular remanescente é fechado com sutura ou grampeador laparoscópico. O objetivo é criar um “neofundo” fechado, evitando uma fístula biliar.
  2. Fenestrante (de abertura): A parede anterior da vesícula é excisada e os cálculos são removidos. A mucosa da parede posterior, que permanece aderida ao leito hepático, é exaustivamente cauterizada para destruir o epitélio secretor de bile. O coto infundibular é deixado aberto, e um dreno de sucção fechado é posicionado adjacente a ele para controlar a fístula biliar esperada.

Vantagens e Desvantagens: A principal e inquestionável vantagem de ambas as técnicas é a redução drástica, quase a eliminação, do risco de LVB (PAL; GATTANI, 2024). As desvantagens, no entanto, são significativas e devem ser ponderadas. A CS está associada a uma incidência maior de complicações pós-operatórias específicas. A fístula biliar é a mais comum, ocorrendo em até 18% dos casos, sendo mais frequente no tipo fenestrante (ELSHAER et al., 2015). Além disso, a presença de um coto vesicular remanescente predispõe à colelitíase residual ou à formação de novos cálculos, o que pode levar a sintomas recorrentes e à necessidade de intervenções futuras, como colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) ou mesmo uma colecistectomia de completação (RAMÍREZ-GIRALDO; TORRES-CUELLAR; VAN-LONDOÑO, 2023).

A decisão entre realizar uma CS laparoscópica ou converter para uma cirurgia aberta é uma das mais complexas na cirurgia biliar. A CS laparoscópica preserva os benefícios da abordagem minimamente invasiva, mas com o custo de potenciais complicações biliares tardias. A conversão para a via aberta, por outro lado, pode permitir uma colecistectomia total com melhor controle anatômico, mas ao preço de uma maior morbidade cirúrgica imediata (maior dor, maior risco de infecção de ferida e hérnia incisional). A decisão ótima depende da experiência do cirurgião e de uma avaliação criteriosa, em tempo real, sobre qual abordagem oferece o caminho mais seguro para aquele paciente específico, naquele momento específico.

3.5. A Conversão para Cirurgia Aberta: Julgamento, Não Fracasso

A comunidade cirúrgica moderna, com o respaldo de sociedades de especialidade como a SAGES (Society of American Gastrointestinal and Endoscopic Surgeons), tem se esforçado para desmistificar a conversão da CVL para a cirurgia aberta. É imperativo que a conversão não seja vista como uma complicação ou um fracasso, mas sim como uma manobra estratégica e prudente para garantir a segurança do paciente (SUTCLIFFE et al., 2016). É a demonstração de maturidade profissional e bom julgamento cirúrgico.

Indicações para Conversão: As principais razões que devem levar o cirurgião a converter o procedimento são claras e focadas na segurança (JAIN; GUPTA, 2019; LI et al., 2024):

  1. Incapacidade de identificar a anatomia com segurança: A falha persistente em obter a VCS, mesmo após a tentativa de manobras de resgate como a dissecção “dome-down”.
  2. Sangramento não controlável por via laparoscópica: Hemorragia da artéria cística ou de seu leito que não pode ser contida de forma rápida e segura com os instrumentos laparoscópicos.
  3. Suspeita ou confirmação de lesão iatrogênica: Qualquer suspeita de lesão da via biliar ou de órgãos adjacentes, como o duodeno ou o cólon, impõe a necessidade de uma avaliação mais ampla e tátil que só a via aberta pode oferecer.

O Papel dos Vieses Cognitivos: A decisão de converter, ou a relutância em fazê-lo, pode ser sutilmente influenciada por vieses cognitivos, que são “atalhos” mentais que podem levar a erros de julgamento (ALENCAR; GANDOLFI, 2024). Em cirurgia, esses vieses podem ter consequências graves (ARMSTRONG et al., 2024).

  • Viés de Excesso de Confiança (Overconfidence Bias): O cirurgião pode superestimar sua própria habilidade técnica, acreditando que pode completar o caso por via laparoscópica mesmo quando os sinais de perigo são evidentes (VOGEL; VOGEL, 2019).
  • Viés de Confirmação (Confirmation Bias): O cirurgião tende a procurar e interpretar informações que confirmem sua hipótese inicial (ex: “esta é a artéria cística”), enquanto ignora evidências que a contradizem (ex: uma artéria de calibre anormalmente grande) (THIELS et al., 2015).
  • Aversão à Perda (Loss Aversion): A conversão pode ser percebida pelo cirurgião como uma “perda” (de tempo, de prestígio) ou um fracasso pessoal. O desejo intrínseco de evitar essa “perda” pode levar a uma persistência perigosa em uma dissecção de alto risco, prolongando o procedimento para além do ponto de prudência.

Nesse contexto, a taxa de conversão de um cirurgião ou de um serviço não deve ser interpretada isoladamente como um indicador de qualidade. Uma taxa de conversão muito baixa (próxima de zero), especialmente em um hospital que atende um grande volume de urgências com colecistite aguda, pode ser um “sinal de alerta”. Em vez de indicar excelência técnica, pode mascarar um limiar perigosamente alto para a conversão, possivelmente influenciado pelos vieses cognitivos descritos, levando à aceitação de riscos maiores do que o justificado para evitar a cirurgia aberta. Uma taxa de conversão “saudável”, apropriada ao perfil de pacientes atendidos, é, na verdade, um indicador de bom julgamento e de uma cultura de segurança bem estabelecida.

4. CONCLUSÃO

A colecistectomia videolaparoscópica consolidou-se como o tratamento de escolha para a colecistite aguda, oferecendo desfechos superiores na maioria dos pacientes. No entanto, os limites técnicos impostos pela inflamação avançada e pela fibrose devem ser reconhecidos e respeitados. A segurança do paciente em cenários de “vesícula difícil” não depende apenas da destreza técnica, mas, fundamentalmente, da capacidade do cirurgião de reconhecer um campo operatório hostil, interpretar corretamente os sinais de perigo e possuir um arsenal de estratégias alternativas.

A abordagem segura começa com a avaliação de risco pré-operatória e culmina na aplicação intransigente da Visão Crítica de Segurança de Strasberg como pré-requisito para a secção de qualquer estrutura. Quando a dissecção padrão falha, manobras como a abordagem fundo-infundibular e, em última instância, procedimentos de resgate como a colecistectomia subtotal, são ferramentas essenciais. A mensagem central que deve permear a prática cirúrgica é que a excelência no manejo da “vesícula difícil” reside menos na habilidade de completar todos os casos por via laparoscópica e mais no julgamento criterioso para saber quando e como modificar a estratégia. A conversão para cirurgia aberta não é um fracasso, mas uma ferramenta vital nesse processo decisório, um testemunho do compromisso primordial do cirurgião com o bem-estar do paciente.

O futuro da colecistectomia segura aponta para uma sinergia entre o julgamento humano e o avanço tecnológico. A imagem por fluorescência com indocianina verde (ICG) emerge como uma ferramenta promissora para a identificação da anatomia biliar em tempo real, podendo reduzir a ambiguidade em campos operatórios difíceis (LIU et al., 2020; PESCE et al., 2021). Contudo, é crucial entender que a tecnologia é um adjuvante, e não um substituto para os princípios cirúrgicos sólidos, pois a inflamação severa pode, por vezes, obscurecer o sinal fluorescente (ISHII et al., 2021). Paralelamente, o treinamento avançado em simuladores de alta fidelidade desempenhará um papel cada vez mais importante na preparação de cirurgiões para enfrentar esses cenários de alto estresse, permitindo a prática de manobras de resgate e a tomada de decisão para converter em um ambiente controlado e seguro.

5. REFERÊNCIAS

AGARWAL, P. N.; RAMAKANT, P. Difficult laparoscopic cholecystectomy: when and how to convert? Gland Surgery, v. 6, suppl. 1, p. S65-S72, 2017.

ALENCAR, J. N.; GANDOLFI, A. C. C. Do surgeries have a number needed to treat of 1.0? Revista da Associação Médica Brasileira, v. 71, n. 5, e20240105, 2024.

ARMSTRONG, D. G. et al. Cognitive biases in surgery: a systematic review. Journal of the American College of Surgeons, v. 238, n. 4, p. 515-527, 2024.

BORRELLI, A. et al. The critical view of safety during laparoscopic cholecystectomy: Strasberg, Yes or No? An Italian Multicentre study. Surgical Endoscopy, v. 35, n. 3, p. 1204-1212, 2021.

CONSTANTIN, V. D. et al. Predictive Factors for Difficult Laparoscopic Cholecystectomies in Acute Cholecystitis. Diagnostics, v. 14, n. 2, p. 199, 2024.

DAR, H. L. et al. Prevalence of difficult laparoscopic cholecystectomy and evaluation of its pre-operative predictive factors. Healthcare Bulletin, 2021.

DAVIDOFF, A. M. et al. Mechanisms of major biliary injury during laparoscopic cholecystectomy. Annals of Surgery, v. 215, n. 3, p. 196-202, 1992.

ELSHAER, M. et al. Subtotal cholecystectomy for “difficult gallbladders”: systematic review and meta-analysis. JAMA Surgery, v. 150, n. 2, p. 159-168, 2015.

FULLUM, T. M. et al. Laparoscopic “dome-down” cholecystectomy with the harmonic scalpel. JSLS: Journal of the Society of Laparoendoscopic Surgeons, v. 7, n. 1, p. 13-16, 2003.

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1aledrpa@gmail.com – Médico formado pela Universidade do Vale do Taquari
2Médico graduado – UFMG – leandrorios172@hotmail.com
3yaseminceyhan01@gmail.com – UniAtenas
4Universidade de Itaúna – diogonmelo@gmail.com