REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202508061230
Eduardo Ramos de Freitas1
Marcio Resende e Silva2
Lívia Sabino Cardozo3
Gyzele Cristina Xavier Santos4
Resumo: A reprodução simulada, instituto processual de natureza técnico-pericial previsto no ordenamento jurídico pátrio, é empregada para aferir a plausibilidade fática e técnica das versões apresentadas na apuração de delitos de trânsito. O presente artigo analisa, por meio de uma revisão sistemática da literatura, a aplicabilidade e a eficácia de distintos métodos de reprodução simulada. A análise abrangeu metodologias que incluem a simulação em escala, a fotogrametria computacional e a análise de energia de deformação veicular. Os resultados evidenciam que tais técnicas, quando parametrizadas por critérios rigorosos, alcançam elevado grau de confiabilidade, contribuindo decisivamente para a elucidação da dinâmica dos eventos e para a elaboração de laudos periciais de maior precisão. Evidenciaram-se, contudo, lacunas na literatura, como a limitada diversidade metodológica, a ausência de protocolos padronizados e a escassez de estudos empíricos no cenário forense brasileiro. Conclui-se que a reprodução simulada constitui ferramenta de elevada eficácia potencial, condicionada à sua execução por peritos qualificados e com recursos tecnológicos adequados. Representa, assim, um instrumento fundamental para o fortalecimento da prova técnica no âmbito da persecução penal em crimes de trânsito.
Palavras-chave: Reprodução simulada. Delitos de trânsito. Perícia Criminal. Direito Penal. Direito Processual Penal.
Abstract: Simulated reconstruction, a technical-forensic procedural mechanism established under Brazilian law, is employed to ascertain the factual and technical plausibility of accounts provided during the investigation of traffic crimes. This article analyzes, through a systematic literature review, the applicability and effectiveness of distinct methods of simulated reconstruction. The analysis encompasses methodologies that include scale modeling, computational photogrammetry, and vehicular deformation energy analysis. The results demonstrate that such techniques, when based on rigorous criteria, achieve a high degree of reliability, contributing decisively to the elucidation of event dynamics and to the elaboration of more precise forensic reports. The review, however, revealed gaps in the literature, such as limited methodological diversity, an absence of standardized protocols, and a scarcity of empirical studies within the Brazilian forensic context. It is concluded that simulated reconstruction constitutes a tool of high potential effectiveness, conditional upon its execution by qualified experts with adequate technological resources. It thus represents a fundamental instrument for strengthening technical evidence within the scope of criminal prosecution for traffic crimes.
Keywords: Simulated Reconstruction. Traffic Crimes. Criminal Forensics. Criminal Law. Criminal Procedure Law.
1- INTRODUÇÃO
A reprodução simulada, aplicada aos delitos de trânsito, configura-se como um instrumento probatório de fundamental importância nas fases investigativa e judicial da persecução penal. No contexto de um sistema de justiça que almeja maior celeridade e confiabilidade, esta diligência pericial permite reconstruir, de forma científica e objetiva, a dinâmica de eventos que resultaram em lesão, morte ou dano, sendo crucial para a determinação de responsabilidades civis e penais.
Preliminarmente, impõe-se uma distinção terminológica essencial: o instituto da reprodução simulada é frequentemente confundido com a “reconstituição do crime”. Conforme leciona Stumvoll (2017), o vocábulo “reconstituição” denota a ideia de refazer o fato delituoso em sua essência — uma impossibilidade fática e ontológica. Em contrapartida, a designação legalmente correta, “reprodução simulada” (BRASIL, 1941), refere-se a uma encenação metódica e controlada da dinâmica do evento, cujo propósito é testar hipóteses pela comparação com os vestígios materiais.
A aplicação do instituto, contudo, depara-se com desafios. A doutrina e a praxis forense recomendam que esta diligência seja conduzida, preferencialmente, pelos mesmos peritos que atuaram no levantamento de local. Tal preferência visa assegurar maior rigor técnico e fidelidade na análise das hipóteses. No entanto, a ausência de um impeditivo legal explícito fomenta uma heterogeneidade de protocolos, uma preocupação que motiva a busca por padronização em toda a ciência forense. Exemplo disso é a proposta de aprimoramento metodológico de Lincoln e Miranda (2022) para a aplicação do exame em crimes contra a vida de modo geral, o que evidencia a relevância de se aprofundar em nichos específicos, como o dos delitos de trânsito, objeto deste estudo.
Modernamente, a eficácia desta perícia tem sido ampliada por ferramentas computacionais, modelagens tridimensionais e análise de vestígios por softwares específicos. Apesar da utilização crescente e do potencial elucidativo, ainda persistem lacunas significativas quanto à padronização metodológica, à aferição da eficácia prática e aos limites de sua aplicação. Diante deste cenário, o presente estudo justifica-se pela necessidade de reunir, analisar e sistematizar a produção científica sobre o tema, a fim de compreender o real impacto e a aplicabilidade da reprodução simulada na qualidade das perícias de delitos de trânsito.
2- METODOLOGIA
Delineamento da Pesquisa
O presente estudo foi desenvolvido sob a abordagem da pesquisa qualitativa, um método que se aprofunda na compreensão de um fenômeno em seu contexto particular, valorizando os aspectos descritivos e interpretativos. O delineamento metodológico adotado combinou a pesquisa bibliográfica e a documental. A pesquisa bibliográfica concentrou-se na análise de materiais já publicados e consolidados, como livros, teses, dissertações e artigos científicos, enquanto a pesquisa documental debruçou-se sobre fontes primárias, que não receberam tratamento analítico prévio, como a própria legislação.
A análise teve como alicerce o arcabouço normativo brasileiro. Foi examinado, com especial atenção, o CPP/ Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), com ênfase nos artigos 7º, 158 e 167, que regulamentam, respectivamente, a reprodução simulada, a indispensabilidade do exame de corpo de delito e a valoração da prova testemunhal na ausência de vestígios. Adicionalmente, foi analisada a Lei nº 12.030/2009 (BRASIL, 2009), que dispõe sobre as perícias oficiais e consolida a natureza técnica e autônoma da atividade pericial no país.
No campo teórico, a pesquisa buscou suporte em obras doutrinárias de autores consagrados na área da Criminalística e do Direito Processual Penal. As contribuições de Stumvoll (2017) e Espindula (2013,02024), por exemplo, foram fundamentais, especialmente no que tange à distinção conceitual rigorosa entre os termos “reprodução simulada” e “reconstituição do crime”, um ponto de partida essencial para a correta compreensão do instituto.
Revisão sistemática da literatura: protocolo e justificativa
Para a coleta e análise da produção científica, adotou-se como procedimento técnico a revisão sistemática da literatura. Este método se diferencia de uma revisão tradicional por seguir um protocolo predefinido e explícito, cujas etapas podem ser replicadas, garantindo maior transparência e rigor científico ao processo. A escolha pela revisão sistemática justificou-se pela necessidade de mapear um campo de conhecimento heterogêneo, onde coexistem diversas abordagens técnicas e lacunas de padronização, conforme apontado na introdução deste trabalho. O objetivo foi identificar, selecionar, avaliar criticamente e sintetizar as evidências disponíveis sobre a aplicação e a eficácia da reprodução simulada na perícia de delitos de trânsito, proporcionando uma visão ampla e crítica do estado da arte.
Critérios de Elegibilidade dos Estudos
Para garantir o foco e a relevância da análise, foram delineados de maneira criteriosa os parâmetros para a inclusão e exclusão dos trabalhos científicos.
Os critérios de inclusão foram:
– Período de Publicação: Artigos publicados entre os anos de 2015 e 2025, período selecionado para capturar o estado da arte mais recente da tecnologia e da prática pericial;
– Idioma: Publicações redigidas em português, inglês ou espanhol, visando abranger a produção científica nacional, regional e a internacional de maior impacto na área;
– Foco Temático: Trabalhos que abordassem diretamente a aplicação da reprodução simulada, ou técnicas análogas de simulação e reconstrução, especificamente no contexto da perícia de trânsito;
– Natureza do Estudo: Estudos que apresentassem metodologia clara e resultados que pudessem ser aplicados ou considerados dentro do contexto pericial, incluindo estudos de caso, análises empíricas e relatórios técnicos.
Os critérios de exclusão, por sua vez, abrangeram:
– Desvio Temático: Estudos cuja temática central não estivesse relacionada à perícia de trânsito (como simulações aplicadas a contextos puramente médicos, industriais ou de outra natureza criminal que não envolvesse trânsito);
– Acessibilidade e Duplicidade: Trabalhos encontrados em duplicidade nas bases de dados ou cujo acesso integral ao conteúdo não estivesse disponível;
– Tipo de Publicação: Artigos de opinião, editoriais ou trabalhos que não apresentassem fundamentação empírica, técnica ou analítica válida.
4. FONTES DE INFORMAÇÃO E ESTRATÉGIA DE BUSCA
A busca dos estudos foi realizada em três bases de dados eletrônicas. A Scientific Electronic Library Online (Scielo) foi escolhida por sua forte representatividade da produção científica latino-americana. O Google Acadêmico foi empregado por sua ampla capacidade de indexação, que permite localizar trabalhos em repositórios institucionais e outras fontes diversas. Por fim, o portal de Periódicos da CAPES foi incluído por oferecer acesso a um vasto acervo de publicações internacionais de alto impacto nas áreas de interesse.
A estratégia de busca foi desenhada para maximizar a captação de estudos pertinentes, utilizando descritores (palavras-chave) combinados através de operadores booleanos (AND, OR). Os termos de busca utilizados, em suas variações nos três idiomas definidos, foram:
– “reprodução simulada” AND “perícia de trânsito”
– “acidente de trânsito” AND “simulação”
– “investigação de acidentes” AND “modelagem computacional”
– “dinâmica veicular” AND “análise pericial”
A busca foi complementada pela aplicação de filtros de ano e idioma disponíveis nas próprias bases, em conformidade com os critérios de inclusão previamente descritos.
5. PROCESSO DE SELEÇÃO E EXTRAÇÃO DE DADOS
O processo de seleção dos artigos foi conduzido em duas fases. Na primeira fase, realizou-se a triagem inicial a partir da leitura dos títulos e resumos de todos os trabalhos retornados pela busca. Aqueles que claramente não atendiam aos critérios de elegibilidade foram descartados. Na segunda fase, os artigos pré-selecionados foram submetidos à leitura integral. Nesta etapa, aplicaram-se novamente os critérios de inclusão e exclusão de forma definitiva, com o devido registro das justificativas para cada estudo excluído.
Os dados extraídos dos estudos que compuseram a amostra final foram organizados em uma tabela padronizada em uma planilha eletrônica. Esta matriz de extração foi desenhada para permitir a coleta sistemática e a posterior análise comparativa, contendo os seguintes campos: autor(es) e ano; local de publicação; objetivo da pesquisa; metodologia empregada; tipo de simulação utilizada; principais resultados; contribuições para a prática pericial; e limitações identificadas no estudo.
6. ANÁLISE E SÍNTESE DOS DADOS
Concluída a extração dos dados, adotou-se a técnica de análise de conteúdo na modalidade temática para a síntese qualitativa dos resultados. Este método consiste na identificação de núcleos de sentido (temas) que se repetem ou se destacam no conjunto dos dados, permitindo a categorização das informações. As categorias de análise foram definidas a partir dos objetivos da pesquisa e dos padrões emergentes da própria literatura, incluindo:
– Tipos de simulação (física, computacional, em escala);
– Tecnologias e softwares aplicados;
– Finalidades da simulação (reconstrução da dinâmica, validação de versões, aferição de velocidade, etc.);
– Impacto da prova nos processos judiciais;
– Limitações metodológicas e éticas apontadas.
Essa análise buscou identificar padrões, divergências, lacunas e avanços no uso da reprodução simulada como instrumento técnico-pericial, com foco na contribuição de cada estudo para a compreensão da eficácia e aplicabilidade da técnica na perícia de trânsito.
7. SÍNTESE FINAL E APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS
Finalmente, os resultados da análise temática foram sintetizados e discutidos à luz da literatura especializada e da legislação vigente. Este processo buscou responder à pergunta central da pesquisa: quais são os métodos, aplicações e a eficácia da reprodução simulada em perícias de delitos de trânsito? Espera-se que, com esta abordagem detalhada e rigorosa, o presente estudo apresente não apenas um panorama atual do uso da reprodução simulada, mas também subsídios para futuras investigações e para o aprimoramento contínuo dos procedimentos periciais no Brasil.
8- RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise da literatura científica e técnica confirma que a reprodução simulada se consolidou como uma ferramenta de elevada relevância na apuração de delitos de trânsito. Diante da complexidade inerente a tais eventos e, não raro, da escassez ou degradação de vestígios, as técnicas de simulação revelaram-se essenciais para a reconstrução fidedigna da dinâmica do sinistro. Os estudos analisados demonstram a aplicação recorrente de métodos como a fotogrametria digital, a simulação em escala e as modelagens computacionais. Tais abordagens mostraram-se particularmente eficazes na determinação de parâmetros físicos cruciais, como a velocidade dos veículos, a energia dissipada na colisão e a análise das deformações estruturais.
Um dos métodos de destaque, identificado na literatura analisada, é a aplicação da fotogrametria digital com o auxílio do software ImageJ, conforme detalhado no estudo de Arantes Neto e Gomes (2022). A referida abordagem consiste na análise pormenorizada das deformações em veículos sinistrados a partir de imagens digitais devidamente calibradas, das quais são extraídas medidas lineares e angulares com alto grau de precisão. A metodologia procede com a conversão dessas imagens para escalas de cinza e, por meio de interpolação de dados, viabiliza a aplicação do consolidado método de energia de deformação (CAMPBELL, 1974) para estimar a velocidade dos veículos no momento da colisão. Os autores reportaram que a validação do método em estudos de caso demonstrou uma variação inferior a 5% entre as velocidades reais e as calculadas, o que atesta sua elevada confiabilidade e eficácia para a reconstrução de colisões.
Outra abordagem metodológica relevante, identificada na literatura, foi a reprodução simulada em escala reduzida. O estudo de Mello (2016), por exemplo, descreveu o desenvolvimento de uma bancada experimental para a análise de colisões frontais em veículos na escala de 1:10. Segundo o autor, a metodologia permitiu replicar variáveis cruciais do impacto — como tração, padrões de deformação e posição final dos veículos — com margens de erro apuradas entre 6% e 14% quando comparadas a testes em escala real. A principal vantagem desta técnica reside no baixo custo operacional e na alta repetibilidade dos ensaios, o que viabiliza a análise de múltiplos cenários e configurações veiculares sem incorrer em perdas materiais irreversíveis.
Para além dos modelos em escala e das simulações computacionais, uma modalidade fundamental da reprodução simulada, e talvez a mais canônica, é aquela realizada em escala real (1:1). Esta abordagem emprega, sempre que possível, o próprio local do delito e utiliza veículos, objetos e atores com características análogas às dos elementos originais. O objetivo primordial desta técnica é a verificação da dinâmica espaciotemporal de uma hipótese fática, permitindo analisar de forma concreta as linhas de visada, a exequibilidade de movimentos, as relações de distância e tempo, e a compatibilidade geral de uma narrativa com as leis da física e com os vestígios materiais já periciados. Esta é a forma de reprodução que mais se alinha ao espírito do Art. 7º do CPP (BRASIL, 1941, possuindo um inestimável valor didático, pois materializa visualmente uma sequência de eventos para a apreciação de juízes, jurados e demais partes processuais. Sua execução, contudo, implica em desafios logísticos e de segurança significativos — como a interdição de vias e a obtenção de veículos com danos semelhantes —, além de suscitar importantes discussões ético-jurídicas, especialmente no que tange à participação dos envolvidos e à proteção contra a revitimização. Apesar de sua complexidade, esta modalidade permanece como um recurso de grande força probante para o teste de hipóteses que envolvem a interação humana direta com o cenário do crime.
Em contraste com os métodos empíricos publicados, a revisão sistemática revelou uma notável lacuna de artigos sobre o uso de simulações computacionais tridimensionais nas bases de dados consultadas. Embora softwares especializados sejam amplamente reconhecidos na engenharia forense como ferramentas eficazes para a modelagem matemática de colisões, esta importância não se refletiu em estudos aplicados no escopo desta pesquisa. Tais plataformas permitem a reconstrução virtual precisa do evento com base nos dados de local. Contudo, seu emprego demanda elevado conhecimento técnico e infraestrutura computacional robusta, fatores que podem explicar sua sub-representação na literatura científica e limitar sua implementação em instituições periciais com recursos mais restritos.
Da análise comparativa dos métodos, depreende-se que todos convergem para o objetivo comum de suprir lacunas probatórias decorrentes da ausência de vestígios materiais. Cada técnica apresenta particularidades: a fotogrametria digital destaca-se pela acessibilidade e precisão; os modelos em escala, pela capacidade de experimentação controlada e repetitiva; e os softwares de simulação, pela abrangência analítica e riqueza de detalhes. A escolha da abordagem mais adequada, contudo, é casuística e condicionada por fatores como a natureza do evento, a disponibilidade de dados e a infraestrutura da instituição pericial.
A literatura analisada converge, ainda, ao apontar a eficácia da reprodução simulada como ferramenta complementar na apuração de delitos de trânsito com vítimas. Fica evidente que a aplicação integrada de simulações e análises físicas proporciona maior robustez técnica ao laudo pericial, contribuindo não apenas para a elucidação do fato, mas também para a correta aplicação da justiça. Ressalta-se, entretanto, que a validação empírica dos modelos é condição imprescindível para sua admissibilidade e confiabilidade, especialmente quando se objetiva a quantificação de variáveis como velocidade ou energia de impacto.
Um ponto de discussão fundamental, emergente da literatura, refere-se à necessidade de padronização dos métodos e de capacitação técnica dos profissionais. Conforme apontado por Mello (2016), a fidedignidade de um modelo em escala, por exemplo, só é alcançada sob a observância de restrições rigorosas de parâmetros como centro de massa, rigidez estrutural e velocidades de impacto. De modo análogo, a correta aplicação da fotogrametria demanda do perito formação específica e domínio das ferramentas analíticas para a interpretação dos dados imagéticos.
A análise comparativa também evidencia que os diferentes métodos possuem nichos de aplicação distintos, mas complementares. A análise via fotogrametria mostra-se particularmente indicada para a reconstrução de eventos pretéritos, nos quais a prova material se resume a registros fotográficos. Por outro lado, o modelo físico em escala revela-se uma ferramenta valiosa para estudos prospectivos, como o desenvolvimento e teste de sistemas de segurança veicular ou a análise de dinâmicas de colisão em condições laboratoriais controladas.
É imperativo, contudo, ponderar as limitações inerentes a cada abordagem. A técnica fotogramétrica, como apontado, é intrinsecamente dependente da qualidade e da calibração das imagens disponíveis. Os modelos em escala, por sua vez, demandam um controle minucioso da semelhança física e dinâmica. Mello (2016) ilustra essa complexidade ao relatar a necessidade de ajustar coeficientes de atrito e as propriedades mecânicas do material para emular adequadamente o comportamento de um veículo real. Adicionalmente, a ausência de manequins de teste instrumentados (dummies) nos ensaios em escala limita a análise de lesões e a avaliação da segurança dos ocupantes.
No que tange à eficácia, a literatura aponta que a reprodução simulada pode gerar dados de alta confiabilidade, condição potencializada quando a diligência é conduzida pelos peritos que atuaram no exame do local do delito (ESPÍNDULA apud STUMVOLL, 2021). Tal envolvimento direto assegura maior coerência na aplicação do método e mitiga o risco de interpretações equivocadas. Evidencia-se, contudo, a premente necessidade de uma padronização nacional, uma vez que a prática de concentrar tais exames em setores especializados, adotada por alguns institutos, tende a fomentar um nível superior de expertise e uniformidade. A relevância dos resultados desta revisão é, portanto, inequívoca. Eles indicam que, diante de delitos de trânsito, especialmente naqueles cenários com desaparecimento de vestígios — conforme hipótese do Art. 167 do CPP (BRASIL, 1941) —, a reprodução simulada e os modelos análogos representam alternativas técnico-científicas robustas para a reconstrução da dinâmica fática, permitindo que a perícia cumpra seu papel elucidativo mesmo diante de um quadro probatório limitado.
Recomendações para Trabalhos Futuros
Com base nas lacunas e potencialidades identificadas na presente revisão, sugerem-se as seguintes linhas de pesquisa para o avanço da área:
– Desenvolvimento de Bancos de Dados: Ampliação e criação de bancos de dados públicos e colaborativos sobre deformações veiculares, correlacionando tipos de colisão, modelos de veículos e velocidades de impacto.
– Estudos de Integração Metodológica: Realização de pesquisas que testem a integração entre os métodos digitais (fotogrametria, simulação computacional) e físicos (ensaios em escala), avaliando a precisão e a eficiência dos resultados combinados.
– Análise de Novos Cenários: Execução de testes que envolvam diferentes tipos de obstáculos (postes, defensas metálicas, etc.) e condições de pista, a fim de validar os modelos em uma gama mais ampla de situações.
– Criação de Protocolos Nacionais: Proposição de estudos que visem à criação e validação de diretrizes e protocolos nacionais para a aplicação da reprodução simulada em perícias de trânsito, buscando fortalecer a uniformidade e a confiabilidade dos laudos em todo o território nacional.
Limitações do estudo
Apesar do rigor metodológico adotado, o presente estudo possui limitações inerentes ao seu escopo e ao corpus documental analisado, as quais são detalhadas a seguir para garantir a transparência da pesquisa e nortear trabalhos futuros:
– Escopo da Amostra Bibliográfica: A revisão sistemática, após a aplicação dos critérios de elegibilidade, resultou em um número restrito de artigos para análise aprofundada. Esta limitação não reflete uma escolha arbitrária, mas sim um achado sobre a escassez de publicações científicas que atendem a todos os critérios de rigor sobre o tema específico nas bases de dados consultadas. Portanto, os resultados, embora válidos para a amostra, podem não abranger a totalidade de inovações da área.
– Heterogeneidade dos Estudos: Os trabalhos que compuseram a amostra final apresentam considerável diversidade em termos de metodologia, escopo e objetivos. Tal heterogeneidade, ao mesmo tempo que enriquece a análise qualitativa, impôs desafios à padronização de indicadores e impediu a realização de uma meta-análise quantitativa para mensurar a eficácia das técnicas de forma unificada.
– Natureza Documental da Pesquisa: O estudo limitou-se à análise da literatura publicada. Não foram incluídos dados empíricos primários, como o acesso a autos de processos judiciais ou laudos periciais sigilosos. A ausência de uma triangulação com dados de casos reais com repercussão jurídica é uma limitação que impede a verificação direta da aplicabilidade e do impacto dos métodos no desfecho legal.
– Validade Externa dos Métodos Analisados: As próprias técnicas descritas na literatura possuem limitações intrínsecas. O modelo em escala de Mello (2016), embora robusto, apresenta desafios na extrapolação direta dos dados para sinistros em escala 1:1. Similarmente, a fotogrametria detalhada por Arantes Neto e Gomes (2022) requer recursos tecnológicos e condições de aquisição de imagem que podem não ser a realidade de todas as instituições periciais brasileiras.
– Ausência da Perspectiva Profissional: A pesquisa possui um viés teórico-documental, não incluindo dados de campo, como entrevistas ou questionários com peritos criminais. A falta desta perspectiva prática limita a compreensão sobre os desafios operacionais, logísticos e institucionais enfrentados no cotidiano forense para a implementação das técnicas de reprodução simulada.
9- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa permite concluir que a reprodução simulada se afirma como uma ferramenta científica versátil, eficaz e de alta relevância na perícia de delitos de trânsito, especialmente diante da efemeridade dos vestígios físicos e da complexidade dos eventos automobilísticos. Por meio da revisão sistemática, foi possível identificar métodos diversos, notadamente a modelagem em escala reduzida e a fotogrametria digital, que apresentaram resultados expressivos em precisão e coerência com dados de eventos reais.
A análise conjunta destes resultados atesta que a correta adoção da técnica é um recurso analiticamente decisivo para a elaboração de laudos periciais mais completos e robustos. Consequentemente, sua aplicação contribui de maneira significativa para a análise técnica das versões apresentadas pelas partes e para a formação do convencimento do julgador. Contudo, a eficácia da reprodução simulada é condicionada não apenas pela aplicação com o devido rigor e transparência metodológica, mas também por investimentos contínuos em capacitação profissional, tecnologia e, crucialmente, pela necessidade premente de padronização dos protocolos em nível nacional.
Dessa forma, este estudo contribui para o fortalecimento do debate técnico-científico sobre a perícia de trânsito. À medida que novas tecnologias e estudos empíricos forem incorporados à prática forense, a tendência é que a reprodução simulada consolide ainda mais sua posição como um elemento de prova técnica de elevada força probante e confiabilidade no sistema de justiça criminal brasileiro.
REFERÊNCIAS:
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BRASIL. Lei nº 12.030, de 17 de setembro de 2009. Dispõe sobre as perícias oficiais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 set. 2009.
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ESPINDULA, Alberi. Perícia Criminal e Cível: uma visão geral para peritos e usuários da perícia. 5. ed. Campinas, SP: Millennium Editora, 2024.
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MARTINS, Hugo Lincoln; MIRANDA, Guilherme Henrique Braga de. Exame pericial de reprodução simulada em crimes contra a vida: uma proposta de aprimoramento metodológico. Revista Brasileira de Ciências Policiais, Brasília, DF, v. 13, n. 10, p. [inserir páginas], 2022.
MELLO, M. S. Desenvolvimento de bancada para simulação em escalada de choque de veículos. 2016. 25 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Engenharia Mecânica) – Escola de Engenharia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.
STUMVOLL, Victor Paulo. Criminalística. 4. ed. Campinas, SP: Millennium Editora, 2017.
1Perito Criminal da Seção Especializada em Perícias de Crimes de Trânsito – SECTRAN/ICLR/SPTCGO. Pós-Graduado em: CSI- Crime Scene Invesgigarion e em Ciência Forense e Perícia Criminal. E-mail: eduardofreitasramos@hotmail.com
2Perito Criminal, Coordenador da Seção Especializada em Perícias de Crimes de Trânsito-SECTRAN/ICLR/SPTCGO. Especialista em Altos Estudos de Segurança Pública (CAESP/UEG) e Especialista em Engenharia de Segurança do Trabalho (UFG). E-mail: engmarcioperito@gmail.com.
3Perita Criminal da Seção Especializada em Perícias de Crimes de Trânsito – SECTRAN/ICLR/SPTCGO. Especialista em Altos Estudos de Segurança Pública (CAESP/UEG). E-mail: liviasabinocardoso@gmail.com.
4Perita Criminal da Seção Especializada em Perícias de Crimes de Trânsito – SECTRAN/ICLR/SPTCGO. Mestra e doutoranda em Direitos Humanos (PPGIDH/UFG). https://lattes.cnpq.br/9906972852332166. E-mail: gyzele@gmail.com.