REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202506301629
Murilo Mardock de Oliveira Almeida¹
Maria da Luz Lima Sales²
RESUMO
O presente trabalho apresenta os resultados da análise da transformação das personagens nga Zefa e nga Bina no conto “Estória da Galinha e do Ovo” (2006), de José Luandino Vieira, presente na obra Luuanda, que tem como objeto de pesquisa as articulações dos enunciados ao longo da narrativa em meio à disputa entre as antagonistas pela posse do ovo da galinha Cabíri no musseque de Sambizanga. Dessa forma, este estudo aborda os discursos persuasivos enunciados pelos personagens durante o conflito com uma intencionalidade atrelada à sua posição social. O artigo também expõe as questões linguísticas, históricas e sociais vivenciadas pela população angolana que são denunciadas por meio da escrita do autor. Os resultados encontrados apontam para uma transformação discursiva: inicialmente fundamentada pelo individualismo e ao longo da narrativa se transforma para uma perspectiva pautada no coletivo. Por fim, esta pesquisa bibliográfica parte dos estudos dos discursos por Foucault (1996), Orlandi (2009), e nas reflexões dos críticos literários Rosenfeld (2007) acerca do personagem e Bosi (1996) sobre o conceito de literatura de resistência, além dos pesquisadores que estudaram a literatura de Vieira: Barros (2018), Dantas (2018), Quadros (2021), dentre outros.
PALAVAS-CHAVE: personagens; transformação; enunciados; discursos.
ABSTRACT
This paper presents the results of the analysis of the transformation of the characters Nga Zefa and Nga Bina in the short story “Estória da Galinha e do Ovo” (2006), by José Luandino Vieira, present in the work Luuanda, which has as its object of research the articulations of the statements throughout the narrative amidst the dispute between the antagonists for possession of the egg of the hen Cabíri in the musseque of Sambizanga. Thus, this study addresses the persuasive discourses enunciated by the characters during the conflict with an intentionality linked to their social position. The article also exposes the linguistic, historical and social issues experienced by the Angolan population that are denounced through the author’s writing. The results found point to a discursive transformation: initially based on individualism and throughout the narrative it transforms to a perspective based on the collective. Finally, this bibliographic research is based on studies of the discourses of Foucault (1996), Orlandi (2009), and on the reflections of literary critics Rosenfeld (2007) on the character and Bosi (1996) on the concept of resistance literature, in addition to researchers who studied Vieira’s literature: Barros (2018), Dantas (2018), Quadros (2021), among others.
KEYWORDS: characters; transformation; statements; speeches.
INTRODUÇÃO
A literatura é uma manifestação artística responsável por elucidar as transformações nos seres humanos, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, por meio da criação ou representação de personagens que imitam seres reais, materializando sentimentos genuínos e conflitos que tocam o leitor. Diante disso, o crítico literário Alfredo Bosi (1996) tece comentários acerca da força da ficção e do papel crucial das narrativas, ao afirmar que elas assumem um poder de verdade, se opondo à mentira – uma verdade profunda em relação à existência humana, que perpassa a realidade concreta.
Em um continente como o africano, marcado por lutas, a produção literária assume um papel de resistência em que vozes antes silenciadas passam a ocupar o protagonismo. Nesse contexto, Bosi aponta o conceito de resistência que está ligado a uma questão ética, e não meramente estilística. O autor faz uma aproximação do verbo “resistir” e o “insistir”, realizando o contraste com o antônimo “desistir”. É o que ocorre com o conto “Estória da galinha e do ovo”, presente no livro Luuanda, de José Luandino Vieira (2006), tendo a sua primeira versão sendo publicada em 1963, especialmente no período de luta anticolonial. Assim, a resistência se manifesta como uma força de vontade que se opõe a algo exterior, mas, sobretudo, como a insistência em persistir e não desistir durante esse processo de luta (Bosi, 1996).
A obra de Vieira é composta por uma coletânea de apenas três narrativas: “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, “Estória do ladrão e do papagaio” e “Estória da galinha e do ovo”. O título do livro, Luuanda, faz referência à capital de Angola, no entanto a grafia utilizada reflete a pronúncia popular e local, típica da oralidade dos habitantes da região, que subverte vários termos, a exemplo de “vavó”, “vavô”, nomes dados para vovó e vovô na norma culta da língua portuguesa.
Há uma carência de pesquisas que tenha como objeto de estudo o processo de transformação das personagens femininas no conto em questão. Este trabalho tem como justificativa a importância de se consumir uma literatura que dê visibilidade e voz ao subalterno a fim de que se possibilite o acesso ao conhecimento acerca dos aspectos literários e, principalmente, dos culturais e sociais expostos por essa narrativa, suscitando reflexões necessárias acerca do contexto angolano — não só do passado, mas também do reflexo que persiste. Assim, o estudo visa preencher essa lacuna ao investigar personagens angolanas que transitam por posturas individualistas para uma visão coletiva. A pesquisa contribui para discussões acerca de literatura de resistência e representações do sujeito subalterno no contexto angolano.
O trabalho em questão consiste em fazer uma leitura do conto “Estória da galinha e do ovo”, dando centralidade ao evento da disputa entre as antagonistas pela posse de um ovo, o qual revela a realidade vivenciada pela população do musseque de Sambizanga – expressão que faz referência aos bairros periféricos de Angola habitados pela parcela da população de menor poder aquisitivo. Dessa forma, temos como objetivos expor as mazelas e complexidades sociais descritas pelo autor por meio de sua escrita de caráter denunciativa, abordando a realidade da população de um país que fora historicamente colonizado e em constante processo de reconstrução identitária.
A fim de atingir tal objetivo, este estudo se constitui em duas partes: 1) O ovo e seus pretensos donos e 2) A transformação das personagens nga Zefa e nga Bina. A primeira tratará acerca dos aspectos linguísticos em que o conto foi escrito. O destaque também vai para o contexto social e histórico na obra, observando a questão da formação da identidade angolana, contribuindo para uma pequena análise da condição humana em um país africano que sofre as consequências da colonização portuguesa e suas opressões. Na segunda, dar-se-á a investigação da transformação das protagonistas nga Zefa e nga Bina, analisando de forma crítica as articulações dos enunciados ao longo da narrativa. Além disso, ainda nesta seção, abordam-se as figuras mediadoras durante o processo de conflito e os discursos persuasivos enunciados pelos personagens de acordo com o seu papel social.
Por fim, este trabalho tem como aporte teórico os estudos de Bosi (1996), Rosenfeld (2007), Orlandi (2009), Foucault (1996) e principalmente a escrita literária de Vieira (2006) sendo a base desta pequena análise, além dos pesquisadores que estudaram a literatura de Vieira: Barros (2018), Dantas (2018), Quadros (2021), Silva (2018) e Souza & Oliveira (2024). Assim, este artigo utiliza como metodologia a pesquisa bibliográfica para perceber tais mudanças nas personagens descritas durante a narrativa.
2 O OVO E SEUS PRETENSOS DONOS
A narrativa que escolhemos para estudo mostra um mosaico da oralidade do povo angolano e o contexto no qual sua cultura é inserida. Escrita a sua maior parte no idioma português – do colonizador –, porém nela, o escritor recria a linguagem por meio da mescla deste e do quimbundo ou kimbundo, língua nativa de Angola, resultando em um idioma híbrido. Acerca desse tema, Dantas reforça que:
[…] A oralidade, a presença dessa voz que não fala na Língua Portuguesa do colonizador e sim numa Língua Portuguesa sincretizada com o Quimbundo, unida a este pela tradição oral de toda aquela gente que habita a periferia luandense, é claramente um modo de resistência escolhido por Luandino Vieira para, por meio da sua obra, causar ruído nas estruturas sociais às quais a língua formal do colonizador está atrelada e, assim, dar voz ao subalterno silenciado e impelido para as margens da sociedade (2018, p. 33).
Todavia, essa junção aí citada não é meramente estilística, ela possui uma intencionalidade política e ideológica e, em um contexto colonial, no qual a língua portuguesa era rigidamente imposta como norma oficial. O autor subverte, portanto, essa hegemonia ao acrescentar, em sua obra, expressões, termos e estruturas sintáticas do quimbundo, rompendo com a padronização do português europeu, mas também fazendo uma aproximação da fala cotidiana das comunidades locais. Quadros (2021, p. 153) destaca a complexidade desse processo em:
[…] A gramática reveste-se do pitoresco peculiar à gente do local e se desvia da linguagem culta sem deixar de ser literária. Curiosamente, aproxima-se mais do efeito estético do elemento potencialmente tocante. Essa face da forma não se esvazia, mas se intensifica pelo teor social do conteúdo, tocando mais fundo pelo que se diz e intensificado pelo como se diz, criando a organicidade harmônica entre forma e fundo.
Quadros discorre acerca da autenticidade do texto justamente pelo recurso de incorporação dos elementos característicos da fala do povo angolano, especificamente em Luanda, e de como esse recurso enriquece a literariedade da obra, conferindo-lhe singularidade. O ponto fulcral abordado por essa pesquisadora é a relação entre forma e conteúdo, ou seja, o que se diz e como é dito, pois esse modo de abordagem reforça a consequência estética do texto literário. Isso significa que o impacto social e emocional ocasionado pela obra não decorre apenas da temática abordada, mas também leva em consideração o modo como esta é expressa.
José Vieira Mateus da Graça, popularmente conhecido como José Luandino Vieira, um dos principais escritores da literatura angolana de língua portuguesa, embora tenha nascido em Portugal em 1935, não se considerava português e sim africano. Em vista disso, o fato de o escritor ter vivenciado a realidade angolana terá impacto direto em seus livros. Ele ganha notoriedade como um dos maiores representantes da literatura de resistência, justamente por abordar em suas obras questões culturais e sociopolíticas.
A publicação do conto em questão ocorre na década de 60 do século XX, em 1963, um período de movimentação política e social, com o início dos movimentos de libertação nacional. Luuanda foi produzido em uma época em que o autor estava preso: “O escritor cumpre parte da pena em Luanda, no Pavilhão prisional da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado – a polícia política do regime ditatorial de António de Oliveira Salazar, 1889 -1970)” (Souza e Oliveira, 2024, p. 73, 74). Luandino fora acusado de ser membro de uma associação que havia como pauta a libertação de Angola, mas “Em 1964 a obra recebe o prêmio Mota Veiga e, em 1965, o Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores” (Barros, 2018, p. 97).
O contexto histórico no qual se publicou a obra é o período em que começavam a se manifestar, em Angola, as organizações revolucionárias: “o movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA) – além de outros movimentos anticoloniais, dentre eles UNITA e FNLA” (Silva, 2018, p. 101). Desse modo, eles surgiram como os principais aliados no combate ao colonialismo português, formando resistências armadas e atraindo atenção para as injustiças e opressões vivenciadas pela comunidade angolana diante do governo salazarista.
A narrativa em questão se passa em um musseque, termo utilizado em Angola que indica os locais marcados por precariedade e falta de condições básicas de vida, como moradia digna, saneamento e alimentação adequada, realidade que ganha centralidade no conto. É Dantas quem discorre sobre:
É justamente nesse espaço onde se encontram as raízes, as tradições orais, as histórias de sofrimento e de resistência e a esperança de um futuro mais livre das amarras do colonizador que Luandino busca apresentar ao seu leitor a busca que faz pela construção de uma identidade luandense (2018, p. 32).
Esse espaço abordado demonstra as disparidades entre os bairros urbanos, resididos pelos colonizadores, e os musseques, áreas das habitações da população mais desprovida economicamente, que luta pela sobrevivência, em meio à segregação imposta pelo regime colonial. “Estória do ovo e da galinha” desenvolve-se a partir de um enredo voltado para a posse de um único ovo colocado por Cabíri, ave pertencente à nga Zefa, umas das protagonistas da trama e dona da galinha.
O conflito como descrito pelo narrador heterodiegético ocorre “no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda” (Vieira, 2006, p. 107) e se intensifica quando o ovo é posto no quintal da vizinha nga Bina, grávida e em situação de vulnerabilidade, com desejos de devorar o ovo cru. Ela acredita ter direito a ele, uma vez que alimentou a galinha com milho, embora o alimento que nutria a ave não houvesse sido pago ainda, pois fora comprado fiado no comércio de sô Zé. Este, ao ser defrontado pela situação, acredita ser o real dono do ovo, conforme se lê no excerto: “— Esse milho que deste na Cabíri… é daquele que te vendi ontem? / — Isso mesmo, sô Zé! Ainda bem, o senhor sabe… / — Ah, sim!? O milho que te fiei ontem? E dizes que o ovo é teu? Não tens vergonha?…” (Vieira, 2006, p. 87).
Ao longo da narrativa, surgem outros personagens que medeiam a discussão da posse do ovo e argumentam que este lhes pertencia: além de Sô Zé, o seminarista João Pedro Capita, Sô Vitalino, dono de algumas propriedades do local, e o ajudante de notário, Arthur Lemos. Acerca da pendenga, a autora Aurora Cardoso de Quadros enfatiza que:
As estratégias usadas são instrumentais na produção do resultado egocêntrico que cada um espera, mas não deixa de haver a tentativa de conciliação num suposto assentimento com base na “justiça” que se busca para si. Percebe-se, portanto, a intenção de se estabelecer uma diretriz estética implicada numa engrenagem do poder que, quase sempre, tenta impor um discurso, um saber tomado a priori, hegemônico que, grosso modo, impera sob o signo da verdade, do bem dizer, negando a dialética da razão e a flexibilidade dos sentimentos fraternos, como ordinariamente acontece em função das classes dominantes (2021, p. 150).
Embora aparente que a narrativa de Vieira tenha um teor simples, ela desvela a dura realidade enfrentada pelo povo angolano, que sofria por causa da tirania portuguesa. Com apenas um caso banal de disputa por um ovo, o narrador vai mostrando e denunciando as entranhas do que seja residir em um musseque, comunidade pobre de Angola. A narrativa evolui e o entrave chega ao fim com a presença da polícia que reprime a população envolvida.
3 A TRANSFORMAÇÃO DAS PERSONAGENS NGA ZEFA E NGA BINA
Conforme os estudos do crítico literário Anatol Rosenfeld (2007, p. 21), a figura do personagem é importante pois nos revela “[…] com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza”. O autor nos afirma que a obra ficcional possui uma potência ao nos apresentar a representação de personagens que emanam as diversas dimensões da vida humana – cognitivas, religiosas, morais e sociopolíticas – ao serem defrontados por um contexto de dilemas que suscitam realidades profundas. Nesse sentido, as personagens nga Zefa e nga Bina agem ao encontro do que é defendido pelo autor, pois a disputa mostra valores de subsistência, justiça e solidariedade reflexo da condição humana.
O conto em questão inicia-se em uma atmosfera de tensão, gerada pelo fato das duas vizinhas de Sambizanga e Beto, o filho de nga Zefa. Mãe e filho avistam a galinha presa no quintal de Bina. A narrativa expõe suas perspectivas e justificativas acerca do caso do ovo ao longo da história. Dantas (2018, p. 34) afirma que “fazer falar essas mulheres, então, é um modo de resistência utilizado por Luandino Vieira na obra. Elas são o subalterno que ganha voz. E essa voz que fala é cheia de nuances da oralidade local”. Nesse contexto, os insultos de nga Zefa contra a vizinha iniciam-se de forma incisiva: “ladrona, feiticeira, queria lhe roubar ainda a galinha” (Vieira, 2006, p. 81). A ave, que recebera o nome de Cabíri, é descrita como “uma gorda galinha de pequenas penas brancas e pretas” que olha a todos “desconfiada” (Op. cit., 2006, p. 81), tornando-se um elemento central na disputa entre as personagens.
O marido de nga Zefa, Miguel, buscava apaziguar a situação, pontuando que, embora ela fosse com frequência ao quintal da vizinha, sempre voltava para casa onde botava o ovo e a esposa o recolhia. Ele se compadece com a situação de nga Bina, compreende o contexto, haja vista que ela estava passando por uma situação difícil, grávida e com o marido preso, possivelmente tendo que cuidar do filho sozinha. Sua postura empática é evidenciada na fala “— Deixa, Zefa, pópilas! — apaziguava Miguel. — A senhora está concebida então, homem dela preso e você ainda quer pelejar? Não tens razão!” (Vieira, 2006, p. 82).
O narrador mostra os passos da galinha, sempre preferindo ir ciscar no quintal alheio, causando medo a sua dona:
Zefa […] via-lhe avançar pela areia, ciscando, esgaravatando a procurar os bichos de comer, mas, no fim, o caminho era sempre o mesmo, parecia tinha-lhe posto feitiço (…) a Cabíri entrava no quintal da vizinha e Zefa via-lhe lá debicando, satisfeita, na sombra das frescas mandioqueiras, muitas vezes Bina até dava-lhe milho ou massambala∗. Zefa só via os bagos cair no chão e a galinha primeiro a olhar, banzada, na porta da cubata onde estava sair essa comida; depois começava apanhar, grão a grão, sem depressa (…) nga Zefa não refilava. Mesmo que no coração tinha medo, a galinha ia se habituar lá, pensava o bicho comia bem e, afinal, o ovo vinha-lhe pôr de manhã na capoeira pequena do fundo do quintal dela… (Vieira, 2006, p. 82).
Nesse fragmento, é exposta a rotina de Cabíri. A travessia da ave demonstra as tensões e trocas inevitáveis entre os espaços e as personagens, reforçando a ambiguidade entre os dois polos em que há acolhimento e cuidado; por outro, a insegurança de perder o que é da proprietária da ave, pois já têm tão pouco. Ainda assim, persistia a ideia de que por mais que a galinha se alimentasse bem no terreno da vizinha, o ovo era sempre depositado no quintal da proprietária antes. Não obstante, nga Zefa temia que a ave acabasse se habituando por lá.
Entretanto, o pior aconteceu e Cabíri acabou mesmo pondo o ovo no quintal da vizinha, “Perto dela, em cima de capim posto de propósito, um bonito ovo branco brilhava parecia ainda estava quente, metia raiva em nga Zefa” (Vieira, 2006, p. 83). A escrita do autor é assertiva ao descrever as características de uma forma intimista o tal ovo, pois passa ao leitor a ideia de que sua luminosidade e frescor o tornam apetitoso e digno de um embate que está por vir, revelando as tensões sociais e econômicas desse povo.
A literatura de Luandino assume um papel de denúncia social, quando mostra a realidade vivenciada pelo povo daquela região e, por meio das descrições detalhadas das personagens, ele materializa a denúncia. Um exemplo constitui na protagonista, descrita como “Nga Zefa, as mãos na cintura, estendia o corpo magro, cheio de ossos, os olhos brilhavam assanhados, para falar” (Vieira, 2006, p. 83). Por isso, é notório que a desigualdade social se faça presente, pois a mulher é descrita como alguém que possui fragilidade física, consequência da alimentação insuficiente, até porque dependia do ovo posto por aquela galinha. Ou seja, devido ao contexto social, um simples ovo assume um grande papel “A mercadoria (ovo) como produto representa objeto de necessidade do homem com valor de uso para sua sobrevivência” (Silva, 2018, p. 103). Um detalhe antitético é a distância entre a dona, uma pessoa magra; e a ave, forte e gorda (Op. cit., 2006).
Ao longo do conto, temos a disputa entre as vizinhas: ambas tentam justificar porque são dignas, cada uma, de serem donas do ovo. Nesse contexto surge a figura de uma anciã, personagem responsável por mediar o conflito, por ter mais idade e experiência: “— Então, vavó?!… Fala então, a senhora é que é nossa mais velha… Toda a gente calada, os olhos parados na cara cheia de riscos e sabedoria da senhora.” (Vieira, 2006, p. 86). Vavó Bebeca representa a figura do saber tradicional e o papel das lideranças comunitárias na resolução de embates. Ela sugere que a duas apresentem suas justificativas e pontos de vistas como uma forma de resolver a contenda de uma maneira mais dialogada e levando em consideração as partes:
— Calma então! A cabeça fala, o coração ouve! Pra quê então, se insultar assim? Todas que estão falar no mesmo tempo, ninguém que percebe mesmo. Fala cada qual, a gente vê quem tem a razão dela. Somos pessoas, sukua’, não somos bichos! (Vieira, 2006, p. 84).
Em Análise do Discurso princípios & procedimentos (2009, p. 21), de Eni Orlandi define discurso como “efeito de sentidos entre locutores” e ao pluralizar os termos denota que o sentido não está ligado a uma ideia fixa, mas que se constrói conforme as relações entre os sujeitos. Desta forma, ambas intencionalmente buscam anunciar sentidos por meio de seus enunciados construídos conforme o seu contexto – um baseado na ideia de propriedade, o outro na noção de merecimento – fazendo com que os modos como foram ditos e as condições nos quais foram produzidos gerassem efeitos de sentido.
Nesse momento do conto, o ovo torna-se alvo de uma disputa que exige a habilidade persuasiva e, consequentemente, requer a construção racional de argumentos para que se tenha validação externa sobre a pendenga, buscando, assim, a legitimação do discurso. Como discute Michel Foucault em seu livro A ordem do discurso, ou seja, que o discurso não está ligado apenas ao desejo de expressar algo, mas também de concorrer ao direito de falar e ser ouvido e, principalmente, como objeto de desejo. Para ele, o discurso é “por que, pelo que se luta; o poder do qual nós queremos apoderar” (1996, p. 10). Por meio deste comentário, pode-se associar a fala das personagens que revelam mais que argumentos; elas buscam produzir enunciados que possam persuadir e dominar, tentando conquistar a aprovação do público que acompanhava tal entrave.
A perspectiva de nga Bina é pautada na ideia de que, ao alimentar a ave durante o período de debilidade – quando, segundo ela, não conseguia nem cantar –, então o direito sobre o ovo passava a ser dela. Essa perspectiva está fortemente ligada aos valores do sistema capitalista, pois faz associação do cuidado à ave como um algo que deveria dar retorno. Para essa personagem, a galinha não era de seu interesse, mas apenas o ovo, pois tinha plena convicção de que a ave é propriedade de nga Zefa:
Sukuama! O que é eu preciso dizer mais, vavó? Toda a gente já ouviu mesmo a verdade. Galinha é de Zefa, não lhe quero. Mas então a galinha dela vem no meu quintal, come meu milho, debica minhas mandioquei-ras, dorme na minha sombra, depois põe o ovo aí e o ovo é dela? Sukua’! O ovo foi o meu milho que lhe fez, pópi-las! Se não era eu dar mesmo a comida, a pobre nem que tinha força de cantar… Agora ovo é meu, ovo é meu! No olho!… (Vieira, 2006, p. 84, 85).
A partir do trecho acima, a dona da galinha utiliza desse argumento como uma forma de reforçar que o ovo também lhe pertencia. Assim, exclama “— Vejam só! A galinha é minha, a ladrona mesmo é que disse. Capim está ali, ovo ali. Apalpem-lhe! Apalpem-lhe! Está mesmo quente ainda! E está dizer o ovo é dela! Makutu!∗ Galinha é minha, ovo é meu!” (Vieira, 2006, p. 85 [asterisco do autor]). Seu posicionamento também reverbera um discurso atravessado pela lógica do capital, na qual impera a perspectiva de que a posse da ave é garantia do gozo de tudo que ela pode oferecer; o ovo é tido como fruto de mercadoria, pois a ave pertence à nga Zefa, o que lhe dá direito à retenção do ovo.
Orlandi traz dispositivos primordiais para a análise assertiva do discurso, levando em consideração as condições de produção que impactam a formação discursiva, pois isso é reflexo tanto da individualidade do sujeito quanto do “contexto sócio-histórico, ideológico” (2009, p. 30) no qual ele está inserido. No conto, tais dispositivos permitem identificar que os discursos de nga Zefa e nga Bina são atravessadas por uma ideologia fundamentada na lógica capitalista de propriedade, já mencionada antes, mas que de certa forma ressurge nos enunciados das personagens. A letróloga conceitua este mecanismo como interdiscurso, pois consiste no conjunto de dizeres que foram enunciados previamente por outros indivíduos, isso se dá pelo fato de ambas vivenciarem a realidade da capital angolana, isto é, governada por um poder de dominação pautado na ordem política e econômica.
A vizinha expõe sua perspectiva sobre o motivo pelo qual desejava tanto comer aquele ovo, articulando uma reflexão acerca da maternidade de que, nesse contexto, tem uma vontade que não se pode controlar. O argumento dela é sobre a gravidez, a impor que a mulher seja satisfeita em seu desejo: “Muitas de vocês que tiveram vossas barrigas já. Vavó sabe mesmo, quando chega essa vontade de comer uma coisa, nada que a gente pode fazer. O mona na barriga anda reclamar ovo. Que é eu podia fazer, me digam só?!” (Vieira, 2006, p. 85). Em vista disso, ela utiliza de uma construção discursiva estratégica, que tem a finalidade gerar um efeito de sentido a fim de sensibilizar os espectadores do musseque indo além da visão de mera apropriação.
E Vavó Bebeca, utilizando um dito popular para chegar a um parecer, declara:
— Minhas amigas, a cobra enrolou no muringue! Se pego o muringue, cobra morde; se mato a cobra, o muringue parte!… Você, Zefa, tem razão: galinha é sua, ovo da barriga dela é seu! Mas Bina também tem razão dela: ovo foi posto no quintal dela, galinha comia milho dela… O melhor perguntamos ainda no sô Zé… Ele é branco!… (Vieira, 2006, p. 86).
Diante desse posicionamento, ambas as opções gerarão uma consequência fatal. A experiente senhora reconhece o merecimento de ambas e afirma que ela não tem a capacidade de opinar, decidindo recorrer a terceiros. Essa ação reforça a perspectiva da legitimidade do julgamento externo para resolução de conflitos, “Porém, ainda em uma configuração especular da arbitragem cultural, após a negação das primeiras opiniões dadas, os personagens do centro da disputa mantêm a crença no poder e na legitimidade de pessoas externas ao fato” (Quadros, 2021, p. 149). Contudo, ao final de sua fala, emerge um enunciado permeado de preconceito, mas naturalizado naquele período, no qual o fato fenotípico do homem ser branco e proprietário de uma venda era associado a ele possuir inteligência capaz de solucionar tal impasse.
Assim como as mulheres, o dono da quitanda tenta justificar que o ovo lhe pertence, uma vez que o milho ainda não havia sido pago. Sua argumentação é mal recebida por todos, uma vez que evidencia a prioridade dos seus interesses pessoais em detrimento da resolução do problema apresentado. O posicionamento de sô Zé pauta-se em um discurso de quem possui interesses estritamente delimitados. No entanto, nga Zefa não deixa de manifestar sua oposição e “gritou-lhe quando ele entrou outra vez na loja, a rir, satisfeito: — Sukuama! Já viram? Não chega o que você roubaste no peso, não é, güeta camuelo?!” (Op. cit., 2006, p. 87). Perante o exposto, fica evidente que o posicionamento dele consiste em uma lógica de um homem de negócios, priorizando o lucro, mesmo que isso implique agir à margem da legalidade.
Em seguida, surge outra figura marcante no musseque, um indivíduo que é conhecido pela inteligência e domínio de diversas áreas de conhecimento. O Azulzinho – ou João Pedro Capita, o seminarista – foi convocado por Vavó para solucionar a questão. Todavia, ele utilizava uma linguagem culta e com referências cristãs, provavelmente oriundas do seu círculo social. Em sua intervenção, exclama “— Vós tentais-me com a lisonja! E, como Jesus Cristo aos escribas, eu vos digo: não me tenteis! E peço-vos que me mostrem o ovo, como Ele pediu a moeda…” (Vieira, 2006, p. 90). Isto posto, sugere encaminhar o ovo ao padre Júlio para que ele emitisse sua opinião sobre o caso.
Percebe-se que a tréplica de nga Zefa dá indícios da mudança que estava por vir no trecho: “Já viram? Agora você quer levar o ovo embora no sô padre, não é? Não, não pode! Com a sua sapiência não me intrujas, mesmo que nem sei ler nem escrever, não faz mal!” (Vieira, 2006, p. 90). Nesse fragmento, ela não mostra apenas a realidade, mas reflete sobre a experiência da população inserida no conto, contexto em que esta não tem direito de frequentar o ambiente escolar, embora isso não os torne pessoas tolas. E o seminarista sai de cena, zangado diante da situação.
Devido ao entrave que ainda persiste, Vavó recorre a outra figura emblemática do local: sô Vitalino: dono da maioria das propriedades daquela região e temido por muitos (por inquilinos que não quitam suas pendências), não hesitava em recorrer a métodos coercitivos em situações que tais:
Todo aquele lado do musseque tinha medo de sô Vitalino. O homem, nos dias do fim do mês, descia do maximbombo, vinha com a bengala dele, de castão de prata, velho fato castanho, o grosso capacete cáqui, receber as rendas das cubatas que tinha ali. E nada que perdoava, mesmo que dava encontro o homem da casa deitado na esteira, comido na doença, não fazia mal: sempre arranjava um amigo dele, polícia ou administração, para ajudar correr com os infelizes (Vieira, 2006, p. 91).
Assim como as demais personagens, sô Vitalino se apropria de um discurso persuasivo para, assim, conquistar o ovo. Entretanto, ele se detém na perspectiva de que o terreno em que foi depositado o ovo lhe pertence, o que em sua lógica de cunho liberalista, confere ao homem a posse do objeto: “Foi posto na cubata que é minha! Melhor vou chamar o meu amigo da polícia…” (Vieira, 2006, p. 93). Cada um reclama, de acordo com seu interesse, o seu quinhão, não se importando nem com a dona da galinha, tampouco com o desejo da grávida.
A mediadora da discussão já estava prestes a desistir da causa; ainda assim, surge um homem que é conhecido por ter um grande conhecimento no ramo do Direito: sô Arthur Lemos. Ao ouvir ambos os lados, ele emprega uma linguagem carregada de termos jurídicos: “Pelos vistos, e ouvida a relatora e as partes, trata-se de litígio de propriedade com bases consuetu-dinárias…” (Vieira, 2006, p. 95). Lemos exige o título de propriedade da galinha, o que é considerado inusitado, haja vista que não é convencional dispor de tal documento para esse tipo de animal – o que confere humor à narrativa. Em relação à nga Bina, ele questiona acerca da documentação do milho. E nem chega a proferir um parecer definitivo, pois insiste em levar o caso à justiça para uma resolução e, ao mesmo tempo, reivindica uma quantia em dinheiro para defender ambas as partes.
Podem-se suscitar as ideias de Foucault, ao pontuar que alguns discursos só se compreendem se enunciados por indivíduos que são inseridos no meio em que difundidos, pois demandam um conhecimento prévio e seguem um mecanismo específico. Trata-se de um linguajar que geralmente é compreendido por pessoas que possuem formação na área. Para o filósofo, “o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (…), fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras” (1996, p. 38). Sô Lemos reproduz esse protocolo ao adotar essa linguagem jurídica, reproduzindo, assim, o procedimento de legitimação do discurso, embora a utilização dessa linguagem naquele contexto denote interesses próprios para que assim não solucione o conflito.
Diante do fato de não terem chegado a uma conclusão, as vizinhas recorrem à agressão física, quando surgem dois policiais para cessar a briga. Eles chegaram e, de forma incisiva, agrediram a população, enquanto “mostravam os cassetetes brancos, ameaçando e rindo.” (Vieira, 2006 p. 98). Vavó contextualiza toda a situação aos policiais. Assim como os demais que colocaram os interesses acima do julgamento, os policiais foram diferentes em um ponto, visto que pretendiam levar não o ovo, mas sim a Cabíri. Um dos policiais enuncia que as duas senhoras estavam alterando o sossego público.
A discussão que segue traz à tona a questão acerca das condições de submissão em que o povo angolano era exposto: a população, majoritariamente preta, vivia sob a opressão e domínio do governo colonial português. A dificuldade na resolução de uma questão “simples” sem a interferência de um órgão maior reverbera a ideia da centralização do poder, além de deslegitimar a autonomia das populações locais. Tudo isso se deve aos impactos do colonialismo, submetendo o povo a uma relação de dependência e submissão para controle social, colocando-o à condição de subordinação.
Dessa maneira, a escrita de resistência de Vieira pode ser associada às ideias discutidas por Alfredo Bosi, ao evidenciar, em seus escritos, uma realidade pautada por mecanismos de opressão e dominação – realidade essa que não é característica de uma vida plena e digna, mas do reflexo de um sistema que culmina na alienação. Sendo assim, a literatura assume um papel de denúncia ao abordar “a vida como ela é” (Bosi, 1996, p. 23), demonstrando a realidade vivenciada por um povo e, principalmente, tudo isto sendo consequência de um processo histórico sustentado por forças contrárias que o desumanizam.
A partir daí, inicia-se uma mudança de concepção acerca da problemática que permeava o conto desde o início. Observa-se uma transformação na postura de nga Zefa, que confrontou os policiais com o intuito de proteger o que lhe era próprio e de não se calar diante da realidade que estava enfrentando: “Muitas que fugiram logo, mas nga Zefa era rija, acostumada a lutar sempre, e não ia deixar a galinha dela ir assim para churrasco do soldado” (Vieira, 2006, p. 99). Logo após isso, ocorre a união das crianças Beto e Xico, sendo que Beto, mantendo certa distância, produz um som para que a galinha vá a seu encontro.
Ao longo do processo narrativo:
Cabíri espetou com força as unhas dela no braço do sargento, arranhou fundo, fez toda a força nas asas e as pessoas, batendo palmas, uatobando e rindo, fazendo pouco, viram a gorda galinha sair a voar por cima do quintal, direita e leve, com depressa, parecia era ainda pássaro de voar todas as horas. (…) quando todos quiseram seguir Cabíri no vôo dela na dire-ção do sol, só viram (…) desaparecer na fogueira dos raios do sol… (Vieira, 2006, p. 100, 101).
A revolta de Cabíri evidencia o descontentamento popular diante das condutas e ações incisivas dirigidas contra a população de Sambizanga. O abuso policial, algo recorrente e imposto como uma forma de controle e repressão e, apesar disso, desta vez, os agentes não alcançaram o seu objetivo, pois o povo uniu-se em prol da coletividade. Logo, verifica-se uma mudança de concepção: antes predominava o medo e o individualismo, enquanto agora prevalece o pensamento coletivo, que prioriza o bem-estar de todos e possui um objetivo em comum: a defesa da dignidade de todos.
O voo de Cabíri assume uma libertação simbólica da opressão vivenciada, tendo em vista que a galinha é comumente associada à domesticação e submissão, assim como a população daquele musseque. Contudo, a ave subverte essa perspectiva ao voar, demonstrando a força e perseverança desse povo quando segue em direção ao horizonte. A reação da população indica a formação de um novo senso de coletividade permeado por sentimentos de força e pertencimento conjunto.
O final é emblemático, marcado pela mudança de perspectiva de nga Zefa em relação à propriedade do ovo; inicialmente, este como um objeto de disputa de duas mulheres. Mas, ao longo da narrativa, há uma transformação de sua simbologia, culminando na compreensão e aceitação do contexto em que nga Bina está inserida, adotando, uma postura mais empática e reconhecendo a importância da partilha para com o coletivo “É, sim, vavó! É a gravidez. Essas fomes, eu sei… E depois o mona na barriga reclama!…” (Vieira, 2006, p. 101).
Ademais, o desenlace assume um teor simbólico mais amplo, haja vista que há uma agregação de que o ovo traz a associação à continuidade da vida e do futuro daquela comunidade, que repousa nas mãos das novas gerações, representadas por Beto, Xico e o filho de nga Bina (ainda por nascer), cuja barriga, segundo o autor, assemelhava-se a um ovo grande reforçando a ideia de gestação, fertilidade e renovação. Outro recurso importante empregado pelo autor é a descrição do espaço, que condiz com o desfecho da situação, sugerindo que, ao final, tudo se acomodou como as “ondas mansas da Bahia” (Vieira, 2006, p. 101), criando um ambiente harmonioso após os eventos anteriores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conto “A Estória da Galinha e do Ovo”, de José Luandino Vieira, suscita reflexões importantes sobre a desigualdade social e os discursos de poder, porém, acima de tudo, retrata a coletividade e a resistência de um povo que tanto sofreu durante o governo salazarista, mas que ainda, de certa forma, continua subjugado, uma vez que a pobreza continua a imperar nessas classes subalternas. O autor utiliza a disputa por um mero ovo para evidenciar as tensões vivenciadas pela população do musseque.
Ao longo da narrativa, observa-se a evolução discursiva das personagens, especialmente de nga Zefa, a proprietária da galinha, cuja mudança de perspectiva evidencia uma transformação maior dentro do musseque de Sambizanga. Inicialmente, sua visão estava atrelada ao individualismo e à lógica da mera posse, sem se sensibilizar com a questão da maternidade e seus desejos inerentes a ela, mesmo tratando-se de uma mulher. Contudo, no andar da narrativa, ela compreende, de forma gradual, a importância da partilha e da solidariedade para um bem maior, reforçando, o valor do coletivo sobre o individual.
No final, a revolta e o voo da galinha Cabíri assumem um papel simbólico na narrativa, representando certa resistência e a emancipação do povo angolano diante das opressões vivenciadas naquele período de ditadura militar, momento de repressão, miséria, fome e de falta de liberdade, entre outros dramas reportados pelo autor. O desfecho do conto sugere uma reestruturação da organização social de Sambizanga, tendo como base, acima de tudo, a cooperação e a empatia.
Por fim, pelo fato de o escritor português – mas com alma luandense, haja vista ter escolhido o pseudônimo Luandino – ter contato com a cultura local, deixa inúmeras marcas que transportam o leitor para a realidade de Luanda. Vieira reconstrói a experiência do musseque, local miserável que se encontra em praticamente todas as grandes cidades atuais, ainda assim com outras designações, justamente ao contar a história, pela perspectiva do povo africano, mostrando um espaço que não se resume apenas à violência, mas que também expõe resistência e até solidariedade.
REFERÊNCIAS
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VIEIRA, José. L. Estória da Galinha e do Ovo. In: Luuanda. São Paulo: Ática, 2006.
¹Discente do curso de Letras – Língua Portuguesa, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará campus Belém.
²Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Évora (Portugal), professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), coordenadora do Grupo de Estudos Literários e Linguísticos da Amazônia (GELLA) e pesquisadora do grupo de pesquisa Linguagem, Literatura e Tecnologia na Amazônia, ambos do IFPA.