ESTRATÉGIAS DE PREVENÇÃO AOS DANOS DAS APOSTAS VIRTUAIS: EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS E O CONTEXTO BRASILEIRO

DAMAGE PREVENTION STRATEGIES FROM VIRTUAL BETTING: INTERNATIONAL EXPERIENCES AND THE BRAZILIAN CONTEXT

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202506282040


Sérgio Ricardo Schierholt1
Pedro de Andrade Calil Jabur2


RESUMO 

O crescimento das apostas virtuais e seus impactos negativos sobre a saúde pública têm exigido respostas intersetoriais que articulem regulação e proteção dos grupos mais vulneráveis. Este estudo realiza uma análise comparada das estratégias de prevenção aos danos relacionados às apostas virtuais implementadas no Reino Unido, Austrália, Estados Unidos e Brasil. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritivo-analítica, fundamentada em revisão narrativa da literatura científica e análise documental de campanhas, políticas públicas e normativas regulatórias. Os resultados evidenciam que países com maior maturidade regulatória priorizam abordagens estruturadas em saúde pública, com campanhas educativas baseadas em evidências, regulamentação da publicidade, mecanismos de suporte psicossocial e políticas voltadas à proteção de jovens e populações vulneráveis. Em contraste, o contexto brasileiro, embora tenha avançado na normatização e regulamentação, ainda carece de ações preventivas estruturadas, de fiscalização eficaz e de integração entre as áreas da saúde, educação e comunicação. Conclui-se que a prevenção dos danos das apostas deve ser tratada como tema estratégico na agenda de saúde coletiva, exigindo políticas públicas intersetoriais que enfrentem a influência da indústria do jogo e ampliem o acesso à informação e aos serviços de cuidado. 

Palavras-chave: Apostas virtuais; Jogo patológico; Políticas públicas; Educação em saúde.

ABSTRACT

The growth of virtual gambling and its negative impacts on public health have demanded intersectoral responses that articulate regulation, critical education, and the protection of the most vulnerable groups. This study conducts a comparative analysis of strategies for preventing harms related to virtual gambling implemented in the United Kingdom, Australia, the United States, and Brazil. It is a qualitative, descriptive-analytical study, based on a narrative review of scientific literature and documentary analysis of campaigns, public policies, and regulatory norms. The results show that countries with greater regulatory maturity prioritize public health-based approaches, with evidence-based educational campaigns, advertising regulations, psychosocial support mechanisms, and policies aimed at protecting young people and vulnerable populations. In contrast, the Brazilian context, although it has advanced in standardization and regulation, still lacks structured preventive actions, effective enforcement, and integration among the health, education, and communication sectors. It is concluded that the prevention of gambling-related harms should be treated as a strategic issue in the collective health agenda, requiring intersectoral public policies that confront the influence of the gambling industry, promote critical education, and expand access to information and care services. 

Keywords: Online betting; Public policy; Health education; Public health.

1. INTRODUÇÃO 

Nas últimas décadas, o crescimento exponencial da indústria global de apostas tem suscitado preocupações crescentes no campo da saúde pública, especialmente diante do aumento dos transtornos relacionados ao jogo virtual e de seus impactos sociais, econômicos e sanitários. A consolidação das apostas online e sua massiva difusão por meio de plataformas digitais, frequentemente associadas à publicidade dirigida e à gamificação de comportamentos de risco configuram um cenário de alta exposição e vulnerabilidade, particularmente entre adolescentes e jovens adultos (THE LANCET PUBLIC HEALTH COMMISSION ON GAMBLING, 2024). 

A emergência de danos associados às apostas tem provocado respostas variadas nos âmbitos regulatório, dos sistemas de saúde e da sociedade em diferentes países, com destaque para a formulação de campanhas educativas e políticas públicas voltadas à mitigação de riscos e à promoção do jogo responsável. Essas estratégias compartilham o reconhecimento de que os danos do jogo extrapolam a esfera individual, demandando abordagens intersetoriais ancoradas na promoção da saúde, na educação crítica da população e na regulação dos fatores que facilitam o comportamento aditivo (LIVINGSTONE & RINTOUL, 2020). 

No Brasil, o debate sobre os riscos das apostas ganhou centralidade com a recente regulamentação do setor, que embora representem avanços no marco normativo, ainda carecem de uma abordagem estruturada em saúde pública, com ações de prevenção, acolhimento e cuidado adequadas à magnitude do problema. A ausência de campanhas governamentais permanentes, a fragilidade da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a ampla exposição da população à publicidade de apostas configuram um cenário preocupante, que exige análise crítica e proposição de caminhos baseados em evidências. 

Neste contexto, o presente estudo busca analisar comparativamente as experiências de Reino Unido, Austrália, Estados Unidos e Brasil na implementação de políticas públicas e campanhas educativas voltadas à conscientização dos riscos das apostas. A escolha desses países se justifica por apresentarem distintos estágios de regulação e respostas institucionais à problemática, o que permite identificar boas práticas, lacunas estruturais e desafios compartilhados. O estudo pretende contribuir para o debate sobre a necessária incorporação das apostas como tema estratégico nas agendas de saúde pública, educação em saúde e regulação da comunicação. 

2. METODOLOGIA 

Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, de caráter descritivo e analítico, fundamentada na abordagem de análise documental e revisão narrativa da literatura científica. A opção metodológica justifica-se pela necessidade de compreender os modelos de políticas públicas de conscientização sobre os riscos das apostas, considerando seus aspectos sociais, regulatórios, sanitários e culturais em diferentes países. 

A análise comparativa envolveu quatro contextos nacionais — Reino Unido, Austrália, Estados Unidos e Brasil — selecionados intencionalmente por apresentarem diferentes estágios de desenvolvimento em relação à regulação das apostas e à implementação de políticas de mitigação de danos. A escolha desses países fundamenta-se na heterogeneidade de seus modelos regulatórios e nas dinâmicas dos respectivos sistemas de saúde, permitindo ampliar a compreensão sobre fatores que condicionam o sucesso ou as limitações das estratégias de prevenção no campo da saúde pública. 

Foram analisados documentos oficiais, legislações, marcos regulatórios, relatórios institucionais, materiais de campanhas educativas, bem como artigos científicos indexados nas bases PubMed, Scopus, Web of Science e SciELO. Os descritores utilizados nas buscas foram: “gambling”, “online betting”, “public policy”, “health promotion”, “gambling harm reduction” e seus correspondentes em português. 

Os critérios de inclusão abrangeram publicações que discutem políticas públicas, estratégias de prevenção, educação em saúde e mitigação de danos relacionados às apostas. Foram excluídos estudos que abordam exclusivamente aspectos clínicos, biomédicos ou terapêuticos sem interface com políticas públicas ou promoção da saúde. 

As categorias analíticas foram definidas a priori com base nos objetivos da pesquisa, sendo elas: (1) Modelos regulatórios; (2) Estratégias de educação e comunicação; (3) Tecnologias de mitigação de riscos; (4) Produção de conhecimento científico; e (5) Lacunas e desafios nas políticas públicas. 

Este estudo não envolveu seres humanos diretamente e, portanto, não demandou apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, conforme a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que isenta pesquisas exclusivamente documentais e de domínio público dessa exigência. 

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO 

A análise do material revelou que as campanhas de conscientização e as iniciativas voltadas ao jogo responsável têm desempenhado papel central na mitigação dos danos associados às práticas de jogo. Observou-se a crescente preocupação com os impactos do jogo na saúde pública, o que tem mobilizado governos e organizações da sociedade civil na formulação de estratégias preventivas, educativas e de enfrentamento dos danos. 

Os dados apontam que as campanhas operam a partir de uma abordagem multifacetada, estruturando-se sobre eixos que incluem a promoção da conscientização, o estímulo a práticas de jogo mais seguras, o direcionamento para serviços de apoio, a desconstrução de narrativas de normalização, a incidência sobre marcos regulatórios e a proteção de grupos vulneráveis (McCULLOCK et al., 2024). 

Sobre a conscientização dos riscos e danos, foi identificado que as campanhas transcendem a ênfase exclusiva nas perdas financeiras, passando a incorporar discussões sobre os efeitos negativos do jogo na saúde mental, nos vínculos familiares, no desempenho acadêmico e profissional. Destaca-se, nesse sentido, a campanha “Spot the Harm, Stop the Harm”, desenvolvida na Austrália, que tem como foco a identificação precoce dos sinais de danos relacionados ao jogo, com ênfase nos impactos subjetivos e sociais (SOUTH AUSTRALIA, 2025). 

Paralelamente, as algumas campanhas analisadas demonstram preocupação em promover práticas de jogo mais seguras e responsáveis, sobretudo entre públicos jovens e engajados nas apostas esportivas. A campanha “Betiquette”, também na Austrália, constitui exemplo emblemático dessa estratégia, ao trabalhar com códigos de conduta que articulam etiqueta social e responsabilidade no jogo, buscando reforçar limites pessoais e o autocontrole (GAMBLEAWARE, 2025). De forma semelhante, a campanha “The Talk”, promovida pela rede ESPN nos Estados Unidos, busca naturalizar o diálogo sobre os riscos associados às apostas esportivas, fornecendo informações e orientações práticas para que os indivíduos possam adotar comportamentos de menor risco (ESPN, 2025). 

Outro achado relevante diz respeito às estratégias de encaminhamento para suporte e tratamento, que deveriam constar como pilares centrais das campanhas contemporâneas. A modernização da Linha de Ajuda Nacional para Problemas com Jogos de Azar nos Estados Unidos (1-800-GAMBLER), demonstrou aumento expressivo no seu uso, registrando crescimento de 104% após as ações de divulgação e fortalecimento da rede de suporte (NATIONAL COUNCIL ON PROBLEM GAMBLING, 2025). No Reino Unido, observa-se a consolidação do programa “Chapter One”, que visa facilitar o acesso da população afetada a tratamentos especializados oferecidos pelo National Health Service (NHS), ancorados em evidências científicas (CHAPTER ONE, 2025). 

As campanhas também desempenham papel relevante no enfrentamento da normalização do jogo e combate ao estigma associado aos danos. Este eixo de atuação busca desconstruir a ideia propagada pela indústria de que o jogo é uma prática socialmente neutra e exclusivamente recreativa. A campanha “Odds Are: They Win” por exemplo, realizada em Manchester (Reino Unido), exemplifica essa estratégia ao adotar uma abordagem comunicacional que evidencia os riscos estruturais dos produtos de jogo, deslocando a ênfase da responsabilidade individual para os mecanismos de funcionamento da própria indústria (GREATER MANCHESTER COMBINED AUTHORITY, 2023). A campanha surgiu como uma resposta crítica ao crescimento alarmante dos danos associados na região da grande Manchester. Com um aumento de 62% nas receitas da indústria de apostas nos últimos cinco anos, a iniciativa buscou desconstruir a narrativa promovida pelo setor, que retrata as apostas como uma atividade meramente recreativa e lucrativa (MILLS et al., 2023). Diferentemente de campanhas tradicionais, a campanha adotou uma abordagem inovadora expondo as táticas predatórias da indústria, destacando que as probabilidades sempre favorecem a casa. O público-alvo incluiu homens jovens (18-40 anos) que apostam em eventos esportivos e famílias vulneráveis economicamente, grupos particularmente suscetíveis a aumentar a frequência de apostas ou a recorrer a jogos como escape para crises financeiras. 

Adicionalmente, também observa-se a atuação de coletivos como a GaMHive, formado por pessoas com experiência vivida nos danos do jogo, cuja participação tem sido fundamental na ressignificação social do problema e na redução do estigma. A iniciativa visa facilitar acesso das pessoas afetadas, sejam jogadores ou familiares, a serviços especializados de apoio e orientação, por meio de uma rede integrada de colaboração entre organizações locais. Além disso, a campanha atua na defesa de mudanças políticas que fortaleçam a prevenção e o tratamento dos problemas relacionados ao jogo (GAMEHIVE, 2025). 

No campo da política, as campanhas analisadas revelam forte articulação com agendas de reforma regulatória. Organizações como a Gambling with Lives, no Reino Unido, exercem pressão sobre o Parlamento e os formuladores de políticas públicas para que o jogo seja tratado como uma questão de saúde pública, demandando, entre outras medidas, a restrição da oferta de produtos de alto risco e ações efetivas de prevenção ao suicídio relacionado ao jogo (GAMBLING WITH LIVES, 2025). 

Do ponto de vista educativo, destaca-se a implementação piloto de um programa nacional em escolas do Reino Unido, voltado à prevenção precoce dos danos do jogo, com foco em jovens em situação de vulnerabilidade. O material didático aborda os mecanismos de manipulação utilizados pelas plataformas de apostas e os riscos de dependência, buscando construir uma consciência crítica sobre a natureza dos jogos comerciais (GAMBLING WITH LIVES, 2025). A organização também atua com forte incidência política, dentre suas principais demandas estão a investigação sistemática de suicídios relacionados ao jogo, a regulamentação que reconheça o jogo como problema de saúde pública, e a adoção de medidas de segurança, como limites de apostas e restrições nos algoritmos de recompensa. 

Situação semelhante sobre a tentativa de interface envolvendo conscientização com a política regulatória é observada na Austrália, onde o Parlamento recomendou, um conjunto de 31 medidas para conter a expansão das apostas, abrangendo desde a regulação da publicidade até intervenções educativas voltadas a escolas e famílias (HOUSE OF REPRESENTATIVES STANDING COMMITTEE ON SOCIAL POLICY AND LEGAL AFFAIRS, 2023). 

A perspectiva da saúde pública emerge como eixo estruturante em algumas dessas iniciativas. As campanhas analisadas não apenas reconhecem que os danos do jogo extrapolam a esfera individual, mas também enfatizam seus efeitos sobre redes familiares, sociais e comunitárias. O Greater Manchester Gambling Harms Action Plan, por exemplo, adota uma abordagem integrada de saúde pública baseada no conceito de “sistema inteiro”, articulando ações com reconhecimento explícito de que o jogo constitui fator de risco significativo para a saúde da população (GREATER MANCHESTER COMBINED AUTHORITY, 2023). 

Por fim, destaca-se que parte considerável das campanhas tem direcionado esforços específicos para grupos vulneráveis, em especial adolescentes e jovens adultos que apresentam maior suscetibilidade aos danos do jogo em função do desenvolvimento neuropsicológico, como menor controle inibitório e maior impulsividade. Nesse contexto, ressalta-se a campanha australiana “What’s Gambling Really Costing You?”, que foi desenvolvida de forma a considerar as especificidades culturais e linguísticas de diferentes comunidades tornando as mensagens mais acessíveis e eficazes (DEPARTMENT OF LOCAL GOVERNMENT, SPORT AND CULTURAL INDUSTRIES, 2024). 

Em síntese, os resultados evidenciam que as campanhas de conscientização e prevenção dos danos relacionados ao jogo combinam estratégias de educação, comunicação, suporte psicossocial, advocacy e incidência regulatória. Essas ações configuram-se como instrumentos na consolidação da abordagem de saúde pública voltada à redução dos danos associados ao jogo. Apesar da existência de iniciativas educativas e comunitárias, há limitações quanto à cobertura e efetividade, especialmente em territórios marcados por desigualdades sociais e econômicas.

O contexto brasileiro 

O cenário brasileiro revela um conjunto de fragilidades na formulação e implementação de políticas voltadas à prevenção dos danos associados às apostas. A recente regulamentação do setor — sancionada pela Lei nº 14.790/2023 — prioriza aspectos econômicos, arrecadatórios e de formalização do mercado, sem contemplar, de forma estruturada, estratégias de prevenção e proteção à saúde pública (Brasil, 2023). A análise da Portaria SPA/MF nº 1.231/2024 (BRASIL, 2024) revela avanços na consolidação de um marco regulatório que visa garantir os direitos dos jogadores e mitigar os riscos associados à dependência em apostas online no Brasil. Ela estabelece regras e diretrizes para o jogo responsável e para as ações de comunicação, de publicidade e propaganda e de marketing, e regulamenta os direitos e deveres de apostadores e de agentes operadores, a serem observados na exploração comercial da modalidade lotérica de apostas de quota fixa.

A normativa demonstra alinhamento com práticas internacionais de proteção ao consumidor e de promoção do jogo responsável, conforme diretrizes da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2025) e de agências reguladoras como a britânica Gambling Commission (GAMBLING COMMISSION, 2025) e do governo australiano (AUSTRALIAN GOVERNMENT, 2025). 

Entre os direitos assegurados pela Portaria, destacam-se medidas que visam estabelecer relações comerciais equilibradas entre apostadores e operadores. Conforme o texto, os jogadores têm direito à liberdade de aposta, respeitados os limites definidos pelo próprio usuário e os limites prudenciais impostos pelo operador, como forma de prevenção de comportamentos compulsivos (BRASIL, 2024). A exigência de informações claras sobre os produtos oferecidos, incluindo as probabilidades de ganho, regras dos jogos e os riscos envolvidos, constitui uma estratégia de transparência e educação do consumidor. Essa diretriz segue recomendações da International Gambling Guidance (WHO, 2024), que destaca a importância do acesso à informação como ferramenta de redução de danos. 

Além disso, a Portaria obriga os operadores a disponibilizarem mecanismos de autoproteção acessíveis ao usuário (autoexclusão voluntária, limites de tempo e valores apostados e alertas de uso prolongado da plataforma). Estas medidas em tese reforçam a autonomia do apostador na gestão de seus hábitos e refletem práticas similares às adotadas no Reino Unido e na Austrália, onde a autorregulação assistida é parte central da política de jogo responsável. 

A Portaria reconhece o transtorno do jogo (ludopatia) como um problema de saúde pública e exige que os operadores implementem sistemas de monitoramento comportamental, com uso de algoritmos para identificar padrões de risco, como aumento repentino de valores apostados, sessões prolongadas e comportamentos compulsivos. A identificação de tais sinais deveria levar à suspensão temporária da conta ou à recomendação de uso de ferramentas de autorrestrição, porém, ainda não foi implementada na prática. 

Em linha com experiências internacionais, a Portaria dedica atenção à publicidade responsável, proibindo anúncios que associem o jogo a sucesso financeiro ou estilos de vida de luxo. As peças publicitárias devem conter advertências claras sobre os riscos de dependência, à semelhança do que é exigido pela legislação britânica, onde mensagens como “When the fun stops, stop” são obrigatórias desde 2015. Finalmente, impõe aos operadores o dever de promover campanhas educativas sobre jogo responsável, em parceria com o poder público e instituições de saúde. Essa iniciativa é convergente com a abordagem adotada por países que reconhecem a necessidade de intervenção intersetorial na prevenção da ludopatia. 

Apesar de representar um avanço formal na tentativa de regulamentação, a normativa brasileira revela-se de eficácia duvidosa frente à realidade sociocultural e institucional do país. Um dos principais problemas reside na pressuposição de que os mecanismos de autoproteção serão eficazes em um país marcado por profundas desigualdades sociais, baixa literacia digital e precário acesso à informação em saúde. Em contextos onde a vulnerabilidade econômica impulsiona o comportamento de risco e a ilusão de ascensão financeira por meio do jogo, atribuir ao indivíduo a responsabilidade exclusiva de se autorregular é, no mínimo, uma negligência do papel protetivo do Estado. A lógica da “autorregulação assistida”, bem-sucedida em países com sólidas políticas de bem-estar social, tende a fracassar em um ambiente onde o apostador é frequentemente levado ao jogo por desespero econômico e desinformação. 

Adicionalmente, a exigência de sistemas de monitoramento comportamental baseados em algoritmos para detecção de padrões de risco esbarra em dois grandes obstáculos: a ausência de infraestrutura técnica e a falta de mecanismos públicos eficazes de fiscalização. A Portaria mencionada por exemplo, delega aos próprios operadores a responsabilidade por desenvolver e aplicar essas ferramentas, o que configura evidente conflito de interesses. Esperar que empresas cuja receita depende da maximização do tempo e do volume de apostas ajam de maneira proativa na identificação de comportamento compulsivo é acreditar em uma autorregulação que historicamente não se sustenta, sobretudo em mercados emergentes onde a regulação estatal é frágil e a captura regulatória é uma realidade recorrente. 

No campo da publicidade, embora a Portaria proíba associações entre jogo e sucesso financeiro, o monitoramento dessas campanhas segue ineficaz. A profusão de influenciadores digitais promovendo apostas como fonte de renda alternativa evidencia o descompasso entre a norma e a prática. A exigência de advertências sobre os riscos da ludopatia é facilmente driblada por estratégias de marketing emocional, altamente eficazes em públicos jovens e hipervulneráveis. A ausência de campanhas educativas consistentes, sustentadas por políticas intersetoriais e investimento público, agrava o cenário e revela a fragilidade do compromisso estatal com a prevenção de danos. 

Sobre ações e campanhas de prevenção aos danos dos jogos no Brasil, há pouca produção na literatura consultada. Mas algumas ações, mesmo que pontuais e ainda não institucionalizadas, merecem destaque pelo desafio e ineditismo a que se propõem. Nesse sentido é válido destacar que o Serviço Social da Indústria (2025) lançou recentemente uma campanha nacional de conscientização voltada para os riscos associados às apostas online. A iniciativa foi estruturada em cinco eixos: conscientização sobre dependência, impactos sociais das apostas, educação financeira, promoção de alternativas saudáveis de lazer e estímulo ao autoconhecimento. A campanha se apoia em ampla divulgação nas redes sociais e baseia-se em evidências que indicam comportamentos típicos de risco, como negligência de responsabilidades, endividamento e problemas emocionais. 

Outro exemplo pontual mas digno de nota é a campanha de conscientização promovida pelo Exército Brasileiro (BRASIL, 2024), que constitui uma iniciativa para prevenção do vício em apostas no contexto militar. As ações foram organizadas em três frentes principais: (1) produção e divulgação de materiais informativos abordando os riscos e consequências do jogo patológico; (2) disponibilização de palestras educativas para uso em organizações militares; e (3) proposição de um protocolo de acolhimento e encaminhamento para militares em situação de vulnerabilidade em articulação com os serviços de apoio psicossocial. Como estratégia de enfrentamento, a campanha valoriza o acolhimento sem julgamento, a escuta ativa e a criação de um ambiente seguro para que o militar afetado perceba a possibilidade de tratamento e recuperação (BRASIL, 2024). 

Ainda sobre a inexistência de campanhas preventivas no Brasil, é válido ressaltar o relatório produzido pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que avaliou as ações do governo federal voltadas à prevenção e ao tratamento do transtorno do jogo relacionado às apostas on-line. O TCU destacou o crescimento significativo do setor desde a regulamentação recente, com impactos financeiros negativos sobre famílias vulneráveis e aumento dos casos de ludopatia. O levantamento apontou deficiências na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), além da insuficiência de campanhas públicas de conscientização frente à intensa divulgação comercial das empresas de apostas. Identificou-se também fragilidades na coordenação governamental, ausência de indicadores específicos e limitações na detecção precoce da dependência, levando o TCU a recomendar o aprimoramento das estratégias de prevenção, capacitação e monitoramento das ações públicas (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2025). 

Além disso, a ausência de uma política nacional de educação em saúde sobre os riscos das apostas e a fragilidade na regulação da publicidade contribuem para a ampliação das vulnerabilidades sociais e sanitárias. O Brasil carece, ainda, de investimentos estruturados em pesquisa acadêmica que possibilitem a compreensão dos impactos desse fenômeno sobre diferentes grupos populacionais e territórios. 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A análise comparativa das campanhas educativas e políticas públicas voltadas à prevenção dos danos associados às apostas no Reino Unido, Austrália, Estados Unidos e Brasil evidenciou a consolidação de uma abordagem de saúde pública como eixo estruturante das ações mais eficazes. Os países com maior maturidade regulatória compartilham características como o investimento em campanhas intersetoriais, a promoção de práticas de jogo responsável, a proteção de grupos vulneráveis, o estímulo à produção de conhecimento científico e a integração entre regulação, comunicação e serviços de apoio psicossocial. 

Verificou-se que estratégias centradas exclusivamente na responsabilização individual, mesmo quando acompanhadas de mecanismos tecnológicos de autorrestrição, tendem a ser insuficientes frente à complexidade dos danos associados ao jogo. As experiências internacionais mais exitosas são aquelas que reconhecem a influência estrutural da indústria das apostas sobre os comportamentos aditivos e que adotam medidas regulatórias rigorosas, com foco na transparência, na educação crítica da população e no enfrentamento das narrativas de normalização e glamourização do jogo. 

No contexto brasileiro, embora a recente regulamentação represente um avanço normativo, ela ainda não se traduz em uma política pública robusta de prevenção e cuidado. A ausência de campanhas permanentes, a fragilidade da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a insuficiente fiscalização da publicidade e a baixa articulação entre saúde, educação e comunicação revelam uma lacuna entre a norma e sua aplicação concreta. Além disso, a transferência da responsabilidade pelo controle de danos aos próprios operadores do mercado configura um obstáculo ético e técnico para a efetiva proteção dos apostadores, especialmente em um cenário marcado por desigualdades sociais, baixa literacia digital e vulnerabilidade econômica. 

Diante disso, este estudo reforça a necessidade de que as apostas sejam incorporadas de forma estratégica nas agendas de saúde pública e educação em saúde no Brasil, com a formulação de políticas intersetoriais baseadas em evidências, sensíveis às especificidades socioculturais do país e capazes de enfrentar a crescente influência da indústria de jogos. Recomenda-se, ainda, o fortalecimento da capacidade regulatória do Estado, a ampliação de pesquisas nacionais sobre o tema e a criação de programas educativos voltados a públicos vulneráveis, com especial atenção à juventude, aos contextos escolares e à população exposta à precariedade econômica. 

REFERÊNCIAS 

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1Docente do Curso de Saúde Coletiva da UnB Ceilândia – Faculdade de Ciências e Tecnologia em Saúde
e-mail: sergiors@unb.br Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8295-219X

2Docente do Curso de Saúde Coletiva da UnB Ceilândia – Faculdade de Ciências e Tecnologia em Saúde
e-mail: pedrojabur@unb.br Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5921-8993