TEORIA GERAL DA PROVA E SUA RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO PENAL NO PROCESSO BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202506261037


Emily Hitomi Tokashiki


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar os fundamentos da teoria geral da prova e sua influência na formação da decisão penal no ordenamento jurídico brasileiro. Através de uma abordagem doutrinária e normativa, explora-se a natureza das provas, seus princípios orientadores, classificações, limites legais, bem como o papel do magistrado e das partes na produção e valoração probatória. A análise destaca ainda os instrumentos processuais que asseguram a legitimidade da prova, como o contraditório, a vedação à prova ilícita e o respeito ao devido processo legal, à luz da Constituição Federal de 1988 e do Código de Processo Penal. Discutem-se, também, os critérios epistemológicos aplicáveis à valoração racional da prova, com ênfase na superação do modelo tradicional do livre convencimento motivado em favor de um modelo fundamentado na coerência, corroboração e confiabilidade dos elementos probatórios. A partir do exame de jurisprudências relevantes e da teoria dos frutos da árvore envenenada, o artigo destaca a centralidade da prova lícita e confiável como condição para um processo penal democrático, legítimo e garantidor de direitos fundamentais.

Palavras-chave: prova penal; decisão judicial; contraditório; prova ilícita; processo penal.

1. INTRODUÇÃO

A prova constitui o alicerce sobre o qual se constrói a verdade processual e, consequentemente, a decisão penal. No âmbito do processo penal brasileiro, sua relevância é tamanha que sua correta obtenção, admissibilidade e valoração condicionam a própria legitimidade da jurisdição penal. Em uma sociedade pautada pelos princípios do Estado Democrático de Direito, a atividade probatória deve ser compreendida não apenas como um conjunto de técnicas procedimentais, mas como uma expressão concreta do respeito às garantias fundamentais da pessoa humana.

A centralidade do direito à prova revela-se especialmente evidente quando se considera que o processo penal não lida apenas com interesses patrimoniais, mas com a liberdade, a honra, a integridade física e psíquica do indivíduo. Nessa perspectiva, a prova não é neutra nem mecânica; ela é fruto de escolhas normativas, de disputas entre as partes e de estratégias argumentativas que devem ser controladas juridicamente. A sua instrumentalização indevida pode levar a condenações injustas, afrontando os direitos humanos e comprometendo a credibilidade do sistema de justiça criminal.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou um modelo de processo penal pautado pela dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), pela presunção de inocência (art. 5º, LVII), pelo contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV), e pela inadmissibilidade das provas ilícitas (art. 5º, LVI). Esses dispositivos refletem um marco civilizatório que impõe ao Estado o dever de exercer a persecução penal com base em critérios jurídicos estritos, vedando qualquer forma de arbitrariedade ou abuso de poder.

Ademais, o processo penal moderno exige que a atividade probatória seja submetida a critérios epistemológicos rigorosos, que permitam avaliar a confiabilidade, coerência e relevância dos elementos colhidos. A prova deve ser vista como um instrumento de conhecimento, inserido num modelo argumentativo racional. Assim, o julgador não pode decidir com base em impressões subjetivas ou convicções pessoais: a decisão penal precisa ser justificada de forma transparente e fundamentada, conforme determina o princípio do livre convencimento motivado (art. 93, IX, CF/88), cuja interpretação contemporânea exige motivação racional e controlável, conforme defendido por autores como Michele Taruffo e Gustavo Badaró.

Nesse cenário, a teoria geral da prova emerge como uma disciplina essencial à compreensão crítica e técnica do processo penal. Ela fornece os parâmetros para a análise dos meios de prova, sua produção, admissibilidade, valoração e os limites impostos por normas de direito material e processual. Ao sistematizar os fundamentos dessa teoria, o presente artigo tem por objetivo contribuir para o aprimoramento do debate sobre a prova no processo penal, abordando desde seus aspectos conceituais até os desafios contemporâneos, como o uso de tecnologias probatórias, a validade das provas digitais e os riscos decorrentes da desinformação ou da manipulação de narrativas no curso da instrução criminal.

Além disso, pretende-se examinar a função das provas ilícitas no sistema brasileiro, discutindo as balizas constitucionais, legais e jurisprudenciais que orientam sua admissibilidade ou exclusão. Serão analisadas também as implicações práticas das provas obtidas com violação de direitos, à luz da teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), bem como as exceções admitidas em favor do réu, quando estiver em jogo a demonstração de sua inocência.

Por fim, busca-se refletir sobre o papel do magistrado na valoração da prova e sobre a importância da fundamentação racional como meio de controle democrático das decisões judiciais. A consolidação de um processo penal garantidor, legítimo e democrático passa, necessariamente, pela compreensão de que a prova não é um mero instrumento processual, mas uma instância de proteção dos direitos fundamentais, de legitimação da autoridade judicial e de resistência ao arbítrio estatal.

2. FUNDAMENTOS E CONCEITO DE PROVA PENAL

A teoria geral da prova, segundo o que destaca o Jusfy (2024), constitui um ramo autônomo do Direito Processual que se debruça sobre o estudo sistemático dos princípios, conceitos, métodos e critérios aplicáveis à obtenção, admissibilidade, produção e valoração das provas no processo. Trata-se de uma disciplina essencial para a estruturação do processo penal, cuja função é assegurar que a apuração dos fatos e a formação da convicção judicial se deem com base em parâmetros racionais, objetivos e juridicamente controláveis.

No âmbito do processo penal, a prova adquire contornos particularmente sensíveis, pois se refere à apuração de comportamentos humanos potencialmente delituosos, cuja consequência pode resultar na restrição de um dos bens jurídicos mais valiosos: a liberdade individual. Por essa razão, a atividade probatória deve ser conduzida com especial rigor, em observância aos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, como o contraditório, a ampla defesa, a legalidade, a presunção de inocência, a proporcionalidade e a vedação à utilização de provas ilícitas.

Sob o ponto de vista conceitual, a doutrina clássica define a prova como todo meio legítimo, idôneo e juridicamente admissível destinado a demonstrar a veracidade ou falsidade dos fatos relevantes para a solução do litígio. Aury Lopes Jr. (2023), um dos principais processualistas brasileiros contemporâneos, propõe uma abordagem tridimensional da prova: como meio (instrumento), como atividade (ato de provar) e como resultado (formação do convencimento do juiz). Essa concepção multifacetada evidencia que a prova não é um dado estático, mas um fenômeno processual que se constrói ao longo do tempo, por meio da interação entre os sujeitos processuais e sob controle jurisdicional.

A prova penal, portanto, deve ser compreendida não apenas como um instrumento técnico, mas como expressão de uma função cognitiva e argumentativa do processo. Sua finalidade é permitir que o juiz reconstrua, de forma racional e segura, os fatos relevantes à imputação penal. Isso exige que a produção probatória seja realizada em conformidade com os requisitos legais, de maneira transparente, leal e sujeita à crítica pelas partes. A atuação do juiz na valoração da prova, por sua vez, deve obedecer a critérios de coerência, consistência e corroboração, e não à mera intuição ou experiência pessoal.

A atividade probatória penal envolve, ainda, uma dimensão ética e política. Não se trata apenas de demonstrar a verdade dos fatos, mas de fazê-lo dentro dos limites impostos por um ordenamento jurídico comprometido com os direitos humanos e com a contenção do poder punitivo do Estado. A prova que viola a dignidade da pessoa humana, mesmo que tecnicamente eficaz, não pode ser admitida no processo penal, sob pena de legitimar práticas autoritárias e desvirtuar a finalidade democrática da jurisdição.

No que tange aos elementos fáticos que demandam prova, o processo penal visa à demonstração da materialidade do delito, da autoria, das circunstâncias qualificadoras ou atenuantes, das causas excludentes de ilicitude ou de culpabilidade e, eventualmente, da reincidência ou antecedentes do acusado para fins de dosimetria da pena. A delimitação precisa desses elementos é essencial, pois delimita o objeto da prova e orienta a atividade das partes e do juiz.

Outro aspecto fundamental é a distinção entre verdade real e verdade processual. Enquanto a verdade real refere-se àquilo que de fato ocorreu no mundo empírico, a verdade processual corresponde àquela que pode ser reconstruída no processo com base nas provas legalmente produzidas e submetidas ao contraditório. O ideal da verdade real é mitigado pelo respeito às garantias constitucionais: não se pode admitir, por exemplo, a obtenção de provas por meio de tortura ou invasão de domicílio sem ordem judicial, mesmo que tais meios possam teoricamente conduzir à verdade fática.

O art. 155 do Código de Processo Penal é claro ao afirmar que o juiz formará sua convicção com base nas provas produzidas em contraditório judicial, vedando-se a utilização exclusiva de provas colhidas na fase inquisitorial, exceto se forem provas cautelares, não repetíveis ou antecipadas. Essa exigência reforça a centralidade do contraditório na legitimação da atividade probatória e na construção de uma decisão penal justa.

Ademais, a admissibilidade da prova depende da observância de critérios formais e substanciais. O meio de prova deve ser pertinente, necessário, proporcional e possível, devendo ser excluído do processo aquele que for manifestamente ilícito ou abusivo. A doutrina e a jurisprudência brasileiras têm reforçado a importância da cadeia de custódia, especialmente em provas materiais e periciais, como forma de garantir sua integridade e confiabilidade.

A epistemologia jurídica contemporânea contribui para esse debate ao oferecer ferramentas para o controle racional da prova e da motivação judicial. Autores como Michele Taruffo defendem que a prova deve ser submetida a critérios argumentativos claros, de forma a permitir que o raciocínio decisório seja compreendido, debatido e eventualmente refutado. A justiça penal, nesse modelo, não é um ato de fé, mas o resultado de um processo argumentativo público, controlado e justificável.

Em síntese, a teoria geral da prova no processo penal não pode ser compreendida como um conjunto meramente técnico de regras. Ela se articula com os valores mais fundamentais do processo penal democrático e garantidor, oferecendo os parâmetros para que a atividade jurisdicional seja exercida com legitimidade, racionalidade e responsabilidade. É por meio dela que o processo penal realiza sua função essencial: a proteção simultânea da sociedade contra o crime e do indivíduo contra o arbítrio estatal.

3. PRINCÍPIOS QUE REGEM A PROVA PENAL

A atividade probatória no processo penal é regida por um conjunto de princípios constitucionais, legais e doutrinários que conferem legitimidade, racionalidade e previsibilidade à formação da decisão judicial. Esses princípios funcionam como garantias materiais e processuais que limitam o poder punitivo do Estado, asseguram os direitos fundamentais do acusado e preservam a integridade do processo como instrumento democrático de resolução de conflitos penais.

Dentre os princípios fundamentais, destacam-se: o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal, a legalidade da prova, a lealdade processual, a busca pela verdade, a imparcialidade judicial, a presunção de inocência, e a proporcionalidade. A observância rigorosa desses princípios não apenas assegura a justiça da decisão final, mas também protege o processo contra arbitrariedades, nulidades e violações à dignidade humana.

O princípio do contraditório, previsto no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988, impõe que todas as provas sejam produzidas de forma pública e com a participação efetiva das partes. O contraditório vai além da mera ciência dos atos processuais; trata-se da efetiva possibilidade de interferir na produção, análise e valoração da prova, influenciando diretamente o convencimento do magistrado. Como ressalta Flávio Cardoso (2024), a ausência de contraditório sobre determinado elemento probatório compromete sua validade e a própria legitimidade da decisão que dele se valha.

A ampla defesa, também garantida constitucionalmente, complementa o contraditório ao assegurar que o acusado disponha de todos os meios e recursos admitidos em direito para resistir à imputação penal. Isso inclui o direito de produzir provas, de impugnar as provas produzidas pela acusação, de apresentar versões alternativas dos fatos e de influenciar na construção da narrativa processual. A prova penal, portanto, é um campo de disputa, cuja legitimidade decorre da paridade de armas entre acusação e defesa.

O devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88) exige que toda atividade probatória obedeça às garantias formais e substanciais que integram o ordenamento jurídico. Isso implica, por exemplo, que a produção da prova deve ser feita por meios autorizados, dentro dos prazos legais, respeitando a forma prevista e com controle jurisdicional. O devido processo não admite “atalhos” nem justificativas de eficácia em detrimento das garantias fundamentais.

Outro princípio central é o da legalidade da prova, que impõe que somente provas obtidas por meios lícitos possam ser admitidas no processo penal. Trata-se de uma exigência derivada do art. 5º, LVI, da Constituição, que proíbe expressamente o uso de provas ilícitas, mesmo que potencialmente úteis para o esclarecimento dos fatos. Essa proibição se fundamenta no respeito à dignidade da pessoa humana e na impossibilidade de o Estado valer-se de métodos ilegítimos, como tortura, invasão de domicílio ou interceptações clandestinas, para atingir fins processuais. A teoria dos frutos da árvore envenenada, incorporada ao direito brasileiro, estende essa vedação às provas derivadas de uma fonte ilícita, salvo se demonstrada a existência de uma fonte independente ou a descoberta inevitável.

A lealdade processual é um princípio de ordem ética que exige dos sujeitos processuais, especialmente do Ministério Público e da autoridade policial, atuação de boa-fé, com respeito à integridade da prova e ao equilíbrio processual. A produção de provas por meio de fraude, simulação ou coação compromete não apenas sua admissibilidade, mas a credibilidade de todo o processo. O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou, por exemplo, sobre a inadmissibilidade de “provas plantadas” ou manipuladas com o objetivo de induzir o magistrado em erro.

O princípio da busca pela verdade ainda desempenha papel relevante no processo penal, embora relativizado pelos limites constitucionais. Essa busca deve ser realizada com respeito às garantias processuais, evitando que o desejo de “descobrir a verdade real” justifique a violação de direitos. O processo penal moderno reconhece que a verdade obtida no processo é sempre uma verdade possível, construída a partir das provas válidas e da atuação leal das partes, dentro das balizas do contraditório e da imparcialidade judicial.

O princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF/88) atua como barreira contra decisões antecipadas e como vetor interpretativo da atividade probatória. Ao impor à acusação o ônus de demonstrar a culpabilidade do réu “além de dúvida razoável”, esse princípio reforça a exigência de que as provas sejam robustas, confiáveis e submetidas ao contraditório. O acusado, por sua vez, não tem o dever de provar sua inocência — sua defesa pode se limitar a provocar dúvidas racionais quanto à tese acusatória, sendo o estado de dúvida interpretado sempre a seu favor (in dubio pro reo).

A proporcionalidade e a necessidade funcionam como princípios auxiliares na admissibilidade e valoração das provas. Medidas invasivas, como interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário ou buscas domiciliares, só podem ser autorizadas quando houver fundamento concreto de que são imprescindíveis à elucidação do fato e desde que não haja meio menos gravoso para atingir o mesmo objetivo. A jurisprudência do STJ e do STF tem reiteradamente declarado a nulidade de provas obtidas por meio de ordens judiciais genéricas, desprovidas de fundamentação individualizada.

Além disso, os princípios da publicidade e da transparência também regem a prova penal, exigindo que ela seja produzida em ambiente controlado, preferencialmente na audiência pública, diante do juiz natural da causa. A publicidade garante o controle social e democrático do processo, enquanto a transparência impede manipulações e assegura a legitimidade da atuação judicial.

Dessa forma, os princípios que regem a prova penal não se limitam à função de orientação abstrata. Eles operam como regras de validade, critérios de exclusão de provas viciadas e parâmetros de controle da motivação judicial. A sua observância é indispensável para garantir que o processo penal cumpra sua finalidade primordial: assegurar a responsabilização legítima de quem cometeu um crime e, ao mesmo tempo, proteger o inocente da persecução indevida.

4. A EPISTEMOLOGIA, A PROVA ILÍCITA E SEUS REFLEXOS NO PROCESSO PENAL

A compreensão da prova no processo penal não pode se limitar à sua função meramente instrumental. É necessário compreender sua dimensão epistemológica, ou seja, como meio de produção de conhecimento confiável, controlável e racional no âmbito da jurisdição criminal. A decisão penal, quando baseada em provas, deve ser o resultado de um processo lógico-argumentativo que reconstrói os fatos sob critérios objetivos, afastando arbitrariedades, subjetivismos e intuições pessoais do julgador.

Nesse sentido, a epistemologia jurídica busca estabelecer critérios para distinguir o que pode ser considerado como evidência válida e confiável daquilo que constitui mera suspeita, crença ou impressão pessoal. Gustavo Badaró (2018) propõe a substituição da ideia tradicional de “livre convencimento motivado” — frequentemente utilizada para legitimar decisões subjetivas — por um modelo de convencimento racional fundamentado, em que o juiz é obrigado a demonstrar como se deu a valoração da prova, a partir de elementos objetivos e passíveis de crítica.

Para a doutrina garantista, representada por autores como Michele Taruffo, a prova deve ser analisada com base em critérios como coerência narrativa, corroboração recíproca, plausibilidade factual, confiabilidade da fonte, e ausência de contradições internas ou externas. A motivação da decisão judicial deve explicitar por que determinado elemento foi considerado confiável ou insuficiente, demonstrando o nexo lógico entre a prova e a conclusão extraída. Essa exigência está diretamente conectada ao princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88).

Nesse contexto, não basta que o juiz diga estar convencido: é necessário que justifique sua convicção por meio de uma reconstrução argumentativa do fato, sustentada nas provas produzidas sob contraditório judicial. Essa postura está em sintonia com os modelos de justiça penal garantista, nos quais a imparcialidade, a transparência e o controle das decisões são elementos centrais para a preservação da legitimidade do poder jurisdicional.

Paralelamente, a temática da prova ilícita representa um dos pontos mais delicados do processo penal contemporâneo. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso LVI, é taxativa ao afirmar que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Essa norma não é meramente instrumental: ela reflete um postulado ético-funcional que impede o Estado de se beneficiar de sua própria transgressão às regras legais e às garantias fundamentais.

A ilicitude da prova pode decorrer da violação a direitos materiais (como a integridade física, a intimidade ou a privacidade) ou processuais (como o contraditório ou a presença do defensor). Entre os exemplos mais comuns de prova ilícita estão: confissões obtidas mediante tortura, interceptações telefônicas sem autorização judicial, quebras de sigilo bancário genéricas, invasões domiciliares sem mandado e reconhecimentos pessoais realizados sem observância das formalidades legais do art. 226 do CPP.

No plano teórico, a inadmissibilidade da prova ilícita está associada à teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), oriunda do direito norte-americano, mas amplamente recepcionada na doutrina e jurisprudência brasileiras. Essa teoria estabelece que a prova derivada de uma fonte ilícita também está contaminada e, por isso, deve ser desentranhada dos autos, salvo se for demonstrada a existência de fonte independente, descoberta inevitável ou ausência de nexo de causalidade entre a prova ilícita e a derivada, conforme prevê o §1º do art. 157 do CPP.

O Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR, 2023), por exemplo, reafirma que a prova ilícita, além de não poder fundamentar a condenação, pode gerar a nulidade de todos os atos subsequentes que dela decorram direta ou indiretamente. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) também é firme ao declarar a nulidade de condenações fundadas exclusivamente em reconhecimento fotográfico irregular, sem observância das cautelas legais, como no caso paradigmático do HC 712.781/SP, em que o réu foi absolvido por ausência de provas válidas.

Entretanto, a doutrina e a jurisprudência brasileiras reconhecem uma exceção relevante: a chamada prova ilícita em favor do réu. Essa construção, baseada no princípio da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, permite que provas ilícitas possam ser admitidas quando forem o único meio de comprovar a inocência do acusado, ou quando a sua exclusão implicaria manifesta injustiça. Trata-se de uma ponderação entre o valor da legalidade processual e o valor da justiça material, em que se opta pela proteção da liberdade do indivíduo.

Além disso, a epistemologia aplicada ao processo penal alerta para os riscos de se considerar prova aquilo que, sob critérios racionais, não passa de suposição ou indução. Isso é particularmente grave nos tempos atuais, em que novas tecnologias de vigilância — como o reconhecimento facial, a análise de dados em massa (big data) e a inteligência artificial — são utilizadas na persecução penal. A ausência de critérios objetivos, a opacidade algorítmica e os vieses estruturais desses sistemas colocam em xeque a confiabilidade e a licitude dessas provas, exigindo um controle jurídico rigoroso.

A atuação do juiz frente à prova ilícita também exige cautela. Não se admite que o julgador valide provas com base em critérios utilitaristas, nem que minimize a gravidade da violação de direitos sob a justificativa de eficiência ou combate à criminalidade. O juiz que acolhe provas ilícitas incorre em nulidade absoluta do processo, devendo ser responsabilizado funcionalmente, na forma da legislação processual e administrativa.

Dessa forma, a epistemologia da prova penal, aliada ao regime jurídico das provas ilícitas, constitui um dos pilares de sustentação de um processo penal justo, racional e compatível com os princípios do Estado Democrático de Direito. O conhecimento que serve de base à condenação deve ser resultado de um procedimento legítimo, transparente e controlável, fundado em evidências válidas, discutidas contraditoriamente e valoradas com base em critérios epistemológicos verificáveis.

5. CONCLUSÃO

A teoria geral da prova exerce papel central na construção de um processo penal verdadeiramente justo, equilibrado e eficaz. Através do estudo sistemático de seus fundamentos, princípios, instrumentos e limitações, é possível garantir que a função jurisdicional não se afaste de seu compromisso com a legalidade, a racionalidade e a proteção dos direitos fundamentais. A atividade probatória, mais do que um procedimento técnico, representa o alicerce sobre o qual se erige o juízo de valor do magistrado, sendo, portanto, determinante para a legitimidade da condenação ou absolvição do réu.

No contexto do Estado Democrático de Direito, o respeito aos princípios do contraditório, da ampla defesa, da legalidade, da imparcialidade judicial e da presunção de inocência constitui a espinha dorsal da atuação probatória no processo penal. A violação dessas garantias implica não apenas nulidades formais, mas também o risco de condenações injustas, baseadas em elementos frágeis ou obtidos à margem da legalidade. A atuação dos órgãos estatais responsáveis pela produção da prova deve estar inteiramente submetida à Constituição, pois somente assim se evita que o processo penal seja utilizado como instrumento de opressão, seletividade ou arbitrariedade.

A valoração da prova deve se dar sob critérios epistemológicos objetivos, afastando o subjetivismo judicial e promovendo decisões fundamentadas, transparentes e controláveis. O julgador não é livre para crer como desejar, mas sim para decidir com base em parâmetros racionais e justificados. O modelo tradicional do “livre convencimento motivado”, se mal compreendido, pode ser utilizado como escudo para decisões autoritárias. Por isso, o processo penal contemporâneo exige uma ruptura com práticas intuitivas ou meramente formalistas de apreciação da prova, dando lugar a uma cultura de justificação pública e argumentação coerente.

Autores como Gustavo Badaró e Michele Taruffo oferecem importantes contribuições para o desenvolvimento de uma epistemologia garantista da prova, pautada na racionalidade argumentativa, na coerência lógica, na corroboração intersubjetiva e na confiabilidade das fontes. O objetivo não é apenas conhecer os fatos, mas reconstruí-los de modo a preservar a dignidade da pessoa humana e os limites éticos da atuação estatal. O processo penal não deve se contentar com uma verdade parcial ou construída com base em expedientes ilegítimos: ele deve aspirar à verdade possível, obtida de forma legítima, com pleno respeito aos direitos das partes.

A análise da prova ilícita e de seus reflexos no processo penal reforça a necessidade de que o conteúdo probatório seja inseparável de sua origem. Provas obtidas mediante violação de direitos fundamentais, ainda que revelem fatos verdadeiros, contaminam o processo e comprometem a integridade da jurisdição penal. O ordenamento jurídico brasileiro, ao vedar expressamente o uso de provas ilícitas, reafirma seu compromisso com a ética processual e com a dignidade da pessoa humana. A teoria dos frutos da árvore envenenada, incorporada à jurisprudência nacional, constitui salvaguarda essencial contra o abuso do poder investigativo. Ao mesmo tempo, a possibilidade excepcional de admissão da prova ilícita em favor do réu reflete a primazia da justiça material sobre formalismos que poderiam gerar condenações indevidas.

A dinâmica da prova penal, no entanto, não se esgota em seu arcabouço teórico ou normativo. O cenário atual apresenta novos e complexos desafios à teoria geral da prova, tais como o uso de inteligência artificial na investigação criminal, o aumento da vigilância digital, a obtenção de dados pessoais sem consentimento judicial, e o crescente protagonismo das redes sociais como fontes de informação. Esses fenômenos exigem que a doutrina e a jurisprudência se atualizem constantemente, para evitar a legitimação de práticas invasivas, desleais ou discriminatórias sob o pretexto da eficácia punitiva.

Por isso, a teoria geral da prova deve ser compreendida como um instrumento dinâmico, orientador e limitador da atividade jurisdicional, cuja função principal é garantir que nenhuma pessoa seja condenada sem fundamento empírico sólido, obtido e valorado de forma legal, ética e racional. O fortalecimento dessa teoria passa pela formação contínua de magistrados, promotores e defensores, pelo uso responsável da tecnologia e pela democratização do acesso à prova no processo penal.

Assim, conclui-se que a teoria geral da prova não apenas estrutura os mecanismos técnicos do processo penal, mas representa um verdadeiro instrumento de controle do poder punitivo do Estado. A efetivação de um processo penal verdadeiramente democrático exige que a atividade probatória seja tratada com o rigor teórico e a sensibilidade prática que ela requer. O fortalecimento da cultura dos direitos fundamentais, aliado à adoção de critérios epistemológicos de valoração da prova, constitui uma exigência inafastável para a consolidação de um sistema penal justo, equitativo e comprometido com os valores constitucionais da liberdade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A prova no processo penal: à luz de uma epistemologia jurídica garantista. IBRASPP, v. 4, n. 1, 2018.

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

CARDOSO, Flávio. Meios e princípios da prova no processo penal.
EDUCAPES. Prova no processo penal. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/586107/2/LIVRO%20DIGITAL%20PROVA%20PROCESSO%20PENAL.pdf

ETIC. A prova como elemento de motivação da sentença penal. Revista ETIC, Toledo Prudente, 2023.

JUSFY. Teoria geral da prova: conceitos, princípios e sua importância no direito processual. 2024. Disponível em: https://jusfy.com.br/blog/teoria-geral-da-prova-conceitos-principios-e-sua-importancia-no-direito-processual

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2023.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

STF, HC 91.361/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 30/06/2009.

STJ, HC 712.781/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 15/03/2022.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ. As provas ilícitas no processo penal. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br/documents/18319/47149551/50.+Artigo+As+provas+il%C3%ADcitas.pdf