REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202504301948
Caio César De Lêda Mesquita; Gislane Souza De Andrade; Thaís Alexandre Borges Lopes; Orientador: Dr. Glauber Lutterbach De Oliveira Pires
RESUMO
A Síndrome de Budd-Chiari (SBC) é uma condição rara caracterizada pela obstrução do fluxo venoso hepático, resultando em hipertensão portal, insuficiência hepática e manifestações clínicas variadas, como dor abdominal, ascite e hepatomegalia. Devido à sua apresentação heterogênea e à baixa incidência, o diagnóstico precoce e o manejo adequado representam desafios significativos. Este estudo tem como objetivo relatar um caso clínico de SBC, destacando aspectos clínicos, diagnósticos e terapêuticos, além de realizar uma análise crítica comparativa com a literatura atual. Espera-se contribuir para o avanço do conhecimento sobre esta patologia rara, fornecendo subsídios para estratégias diagnósticas e terapêuticas mais eficazes, com impacto direto na prática médica e no cuidado aos pacientes.
Palavras-chave: Síndrome de Budd-Chiari, Hipertensão portal, Insuficiência hepática, Trombose venosa.
ABSTRACT
Budd-Chiari Syndrome (BCS) is a rare condition characterized by the obstruction of hepatic venous outflow, leading to portal hypertension, liver failure, and varied clinical manifestations such as abdominal pain, ascites, and hepatomegaly. Due to its heterogeneous presentation and low incidence, early diagnosis and appropriate management pose significant challenges. This study aims to report a clinical case of BCS, highlighting its clinical, diagnostic, and therapeutic aspects, while performing a critical comparative analysis with current literature. It is expected to contribute to the advancement of knowledge on this rare pathology, providing insights for more effective diagnostic and therapeutic strategies, with a direct impact on medical practice and patient care.
Keywords: Budd-Chiari syndrome, Portal hypertension, Liver failure, Venous thrombosis.
INTRODUÇÃO
A Síndrome de Budd-Chiari (SBC) é uma doença rara causada pela obstrução do fluxo venoso hepático, geralmente resultante de trombose ou compressão das veias hepáticas e/ou da veia cava inferior. Essa interrupção no fluxo venoso leva a uma cascata de eventos que incluem hipertensão portal, congestão venosa, danos hepáticos progressivos e manifestações clínicas variadas, como dor abdominal, ascite e hepatomegalia. Sem tratamento adequado, a SBC pode evoluir rapidamente para insuficiência hepática grave, com impacto significativo na qualidade de vida e alto risco de mortalidade (GUPTA et al., 2023).
Epidemiologicamente, a SBC é rara, com incidência estimada de 1 a 2 casos por milhão de habitantes por ano. A prevalência é maior em certas regiões da Ásia, como Índia e Nepal, devido a fatores regionais predisponentes, incluindo trombofilias e infecções. No entanto, a doença pode ocorrer em qualquer lugar do mundo, afetando predominantemente mulheres em idade fértil. Sua apresentação clínica heterogênea, que varia de casos assintomáticos a quadros agudos e graves, torna o diagnóstico um desafio, frequentemente resultando em atrasos no início de intervenções terapêuticas (WU et al., 2021).
A SBC representa um desafio na prática médica não apenas por sua raridade, mas também pela complexidade de seu manejo clínico e terapêutico, que pode envolver desde terapias farmacológicas e intervenções endovasculares até transplante hepático em casos avançados. Relatos de caso, como o apresentado neste estudo, são fundamentais para aprofundar o entendimento dessa condição, fornecendo insights práticos e teóricos que podem auxiliar no diagnóstico precoce e no desenvolvimento de estratégias terapêuticas mais eficazes.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, 44 anos, etilista social e com histórico de tabagismo, foi admitida no hospital de referência em Juazeiro (BA) em 18/12/2021, com queixa de aumento do volume abdominal há cerca de dois meses, associado a hiporexia, desconforto respiratório leve, sono irregular e febre nos últimos três dias. Apresentava em mãos exame de ultrassonografia abdominal que evidenciava sinais sugestivos de hepatopatia crônica e ascite.
Ao exame físico, apresentava icterícia discreta, abdome distendido com ascite e presença de circulação colateral. Diante do quadro, foram iniciados exames laboratoriais e de imagem para elucidação diagnóstica e a paciente foi internada em leito da clínica médica. Os exames realizados confirmaram o diagnóstico de doença hepática crônica (DHC). A paciente evoluiu com melhora clínica e recebeu alta hospitalar em 24/12/2021, com orientações ambulatoriais. Durante o ano de 2022, retornou ao serviço em duas ocasiões apenas para realização de paracenteses, sem intercorrências.
Em 24/05/2023, procurou novamente atendimento no mesmo hospital com queixas de dor abdominal moderada, calafrios há cerca de quatro dias, hematúria, oligúria e edema de membros inferiores. Relatava paracenteses recentes. Foi internada com diagnóstico de peritonite bacteriana espontânea (PBE) e lesão renal aguda, tendo sido submetida a múltiplas paracenteses. Ultrassonografia abdominal evidenciou sinais de trombose da veia porta, sendo iniciada anticoagulação plena. Foi solicitada angiotomografia de abdome para investigação de síndrome de Budd-Chiari, que revelou oclusão das veias supra-hepáticas média e esquerda, com afilamento da direita, e veia porta pérvia, confirmando o diagnóstico. Após estabilização clínica e hemodinâmica, recebeu alta em 16/06/2023.
Nos meses subsequentes, a paciente retornou ao hospital em algumas ocasiões para realização de paracenteses e reposição de albumina, mas também compareceu em situações nas quais optou por evadir-se, recusando internação mesmo diante de orientações médicas para seguimento hospitalar.
Em 05/11/2023, deu entrada no serviço em estado grave, com instabilidade hemodinâmica, caquexia e necessidade de suporte com noradrenalina e transferência para UTI. Após estabilização inicial, foi conduzida para leito de clínica médica, e a radiologia intervencionista indicou recanalização de veias supra-hepáticas com possibilidade de realização de TIPS (shunt portossistêmico intra-hepático transjugular).
Evoluiu com síndrome hepatorrenal, sendo novamente admitida na UTI do hospital de referência em 12/12/2023, necessitando de hemodiálise e reposição de albumina associada a drogas vasoativas. No dia 15/12/2023, foi inserido dreno tipo Pigtail para controle da ascite, já que havia sido submetida a várias paracenteses.
Apresentava sinais de falência hepática e aguardava regulação para serviço de hepatologia com possibilidade de TIPS e posteriormente transplante. Mesmo em uso de drogas vasoativas, evoluiu com sinais de sepse, rebaixamento do nível de consciência por encefalopatia hepática e necessidade de intubação. Apesar do suporte intensivo, manteve desconforto respiratório, sendo necessária nova drenagem por Pigtail e recanalização das veias supra-hepáticas.
No dia 23/12/2023, foi submetida ao procedimento intervencionista (recanalização de veias supra-hepáticas). Após retorno à UTI, apresentou estado geral gravemente comprometido, com hipotensão refratária à noradrenalina, evoluindo a óbito.
DISCUSSÃO
A Síndrome de Budd-Chiari (SBC) é uma condição rara, causada pela obstrução do fluxo venoso hepático, podendo acometer as veias hepáticas, a veia cava inferior ou ambas. Essa obstrução gera aumento da pressão sinusoidal, congestão hepática, necrose centrolobular e, progressivamente, falência hepática (VALLA, 2009). A paciente aqui relatada apresentou um quadro clínico compatível com essa fisiopatologia, tendo sido inicialmente acompanhada como portadora de doença hepática crônica, até que, diante de complicações e exames de imagem, chegou-se ao diagnóstico definitivo de SBC.
No ocidente, a principal causa da SBC é a trombose das veias hepáticas, frequentemente associada a estados de hipercoagulabilidade. Doenças mieloproliferativas, trombofilias hereditárias e adquiridas, uso de contraceptivos, gestação e neoplasias estão entre os principais fatores predisponentes. Apesar de não ter sido possível identificar uma causa trombofílica específica na paciente, a presença de trombose da veia porta e oclusão das veias supra-hepáticas reforça a necessidade de investigação etiológica mais aprofundada, inclusive com exames específicos para trombofilias, os quais muitas vezes são inacessíveis em hospitais de média complexidade (PLESSIER et al., 2006).
As manifestações clínicas da SBC variam de acordo com a extensão e a velocidade de instalação da obstrução. Em sua forma aguda, é comum dor abdominal, hepatomegalia dolorosa e ascite de início súbito. Já na forma crônica, há evolução mais lenta, com sintomas progressivos de hipertensão portal, como ascite volumosa, circulação colateral, esplenomegalia e episódios de encefalopatia hepática (DELEVE; VALLA; GARCIA-TSAO, 2009). A paciente acompanhada apresentou sintomas típicos da forma crônica, com múltiplas descompensações ao longo de dois anos, incluindo ascite recorrente, disfunção renal e episódios infecciosos como PBE, demonstrando como a SBC pode evoluir silenciosamente até fases avançadas.
O diagnóstico exige alta suspeição clínica, especialmente em pacientes com ascite de causa indeterminada, sem etiologias comuns confirmadas. A ultrassonografia com Doppler é o exame inicial de escolha, podendo demonstrar ausência de fluxo nas veias hepáticas. A confirmação por angiotomografia ou ressonância magnética é necessária para avaliar a extensão do comprometimento vascular. No caso em questão, embora houvesse sinais clínicos de descompensação hepática desde 2021, o diagnóstico só foi estabelecido em 2023, por angiotomografia. A demora no reconhecimento da SBC pode ter contribuído para a rápida deterioração clínica após o diagnóstico definitivo. (PLANTÉ-BORDENEUVE; VALLA, 1999).
Entre os diagnósticos diferenciais, destacam-se outras causas de hipertensão portal, como cirrose alcoólica, hepatites virais, insuficiência cardíaca direita e pericardite constritiva (JANSEN et al., 2003). A paciente foi inicialmente tratada como portadora de DHC sem etiologia esclarecida, recebendo tratamento de suporte com paracenteses e reposição de albumina. Esse curso clínico demonstra como a SBC pode ser confundida com outras hepatopatias crônicas, sobretudo quando não há acesso imediato a exames de imagem mais avançados.
O tratamento da SBC depende da gravidade da apresentação. A anticoagulação deve ser iniciada precocemente para prevenir a progressão da trombose. Quando há obstruções venosas localizadas, a angioplastia com stent pode restaurar o fluxo. O TIPS é indicado nos casos com hipertensão portal significativa e ascite refratária, criando um desvio entre a veia porta e a veia hepática. Embora tenha sido considerada candidata ao TIPS, a paciente evoluiu com instabilidade clínica antes que o procedimento pudesse ser realizado, sendo necessária tentativa prévia de recanalização das veias hepáticas (ABU-ELMAGD et al., 2001).
Em casos avançados, o transplante hepático representa a única medida curativa. Entretanto, a indicação depende do estado clínico, estabilidade hemodinâmica e adesão ao seguimento. A paciente em questão apresentou caquexia, sepse, falência hepática, encefalopatia e síndrome hepatorrenal, o que inviabilizou tanto o TIPS quanto o transplante hepático, culminando em óbito. Esse desfecho evidencia a gravidade da SBC quando há atraso no diagnóstico, evolução silenciosa e ausência de encaminhamento precoce a centros especializados (VALLA, 2009).
CONCLUSÃO
O caso apresentado evidencia a gravidade da Síndrome de Budd-Chiari (SBC) enquanto etiologia rara, porém severa, da Doença Hepática Crônica (DHC), particularmente quando diagnosticada tardiamente e associada a múltiplas complicações. A evolução clínica da paciente, marcada por encefalopatia hepática recorrente, ascite volumosa, peritonite bacteriana espontânea, disfunção renal e falência hepática progressiva, ressalta a complexidade do manejo desses pacientes.
O relato reforça a importância da identificação precoce de sinais clínicos e radiológicos sugestivos de obstrução venosa hepática e da atuação multidisciplinar no manejo de pacientes com hepatopatias avançadas. Além disso, destaca-se a relevância da vigilância contínua para complicações infecciosas e renais, que frequentemente precipitam desfechos desfavoráveis. Este caso contribui para a literatura ao enfatizar a necessidade de estratégias diagnósticas e terapêuticas precoces, com o objetivo de prevenir a progressão para falência hepática e reduzir a mortalidade associada à SBC.
ANEXO

AngioTc de abdômen

Recanalização de veias supra-hepáticas
REFERÊNCIAS
ABU-ELMAGD, K. M. et al. Transjugular intrahepatic portosystemic shunt for Budd-Chiari syndrome: the role of balloon angioplasty and stenting of hepatic veins and inferior vena cava. *CardioVascular and Interventional Radiology*, v. 24, n. 1, p. 19-24, 2001.
DELEVE, L. D.; VALLA, D. C.; GARCIA-TSAO, G. Budd-Chiari syndrome. *The New England Journal of Medicine*, v. 360, n. 7, p. 705-715, 2009.
FERREIRA, A. L. et al. Síndrome de Budd-Chiari: diagnóstico e conduta clínica. Revista Brasileira de Hepatologia, v. 22, n. 3, p. 198–205, 2020.
GARCIA, T. R.; LOPES, M. B.; SOUZA, L. M. Tromboses hepáticas e síndrome de Budd-Chiari: da fisiopatologia ao tratamento. Arquivos Brasileiros de Medicina, v. 94, n. 1, p. 40–47, 2021.
JANSEN, C. et al. Budd-Chiari syndrome: a review of current therapeutic options. *Journal of vascular and interventional radiology*, v. 14, n. 5, p. 541-547, 2003.
PLANTÉ-BORDENEUVE, V.; VALLA, D. C. Budd-Chiari syndrome: etiological and radiological assessment. *Seminars in liver disease*, v. 19, n. 3, p. 285-294, 1999.
PLESSIER, B. et al. Budd-Chiari syndrome. *Orphanet Journal of Rare Diseases*, v. 1, n. 1, p. 29, 2006.
SILVA, M. F.; MOURA, R. S. Complicações da cirrose hepática: uma revisão atualizada. Jornal de Gastroenterologia e Hepatologia Clínica, v. 15, n. 2, p. 102–110, 2019.
VALLA, D. C. The diagnosis and management of the Budd-Chiari syndrome: consensus and controversies. *Hepatology*, v. 49, n. 5, p. 1753-1763, 2009.