GLOMERULOPATHY SECONDARY TO LATE SCHISTOSOMIASIS INFECTION – A REPORT OF TWO CASES IN A TERTIARY HOSPITAL IN THE FEDERAL DISTRICT
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202504251222
Lara Gabriela Fonseca Martins1
Natalia Correa Vieira de Melo2
Luana Cicília Sousa da Silva3
Resumo
A esquistossomose é uma infecção parasitária causada pelo Schistosoma mansoni, altamente prevalente em áreas com baixa infraestrutura sanitária. Embora classicamente associada às manifestações hepáticas e intestinais, a doença pode provocar acometimento renal por meio de mecanismos imunológicos mediados por imunocomplexos. Este estudo apresenta dois casos clínicos de glomerulopatia associada à esquistossomose, com diferentes padrões histológicos: Nefropatia por IgA e Glomerulopatia membranosa com características membranoproliferativas. Ambos os pacientes apresentaram história de hepatopatia crônica e hipertensão portal, condições que favorecem o desvio portossistêmico e a exposição renal a antígenos intestinais. O diagnóstico foi confirmado por biópsia renal e os pacientes evoluíram satisfatoriamente após tratamento específico. A diversidade de apresentações clínicas reforça a necessidade de incluir a esquistossomose no diagnóstico diferencial das glomerulopatias, principalmente em regiões endêmicas. O diagnóstico precoce permite o manejo adequado e pode prevenir a progressão para doença renal terminal. Assim, é necessário a implantação de políticas públicas voltadas à melhoria do saneamento básico, com controle do hospedeiro intermediário e ampliação do acesso ao diagnóstico e tratamento, como estratégias essenciais para a redução da morbidade renal associada à esquistossomose.
Palavras-chave: Esquistossomose. Schistossoma mansoni. Glomerulopatia. Doença renal crônica.
Abstract
Schistosomiasis is a parasitic infection caused by Schistosoma mansoni, highly prevalent in areas with poor sanitation infrastructure. Although classically associated with hepatic and intestinal manifestations, the disease can also lead to renal involvement through immune-mediated mechanisms involving immune complexes. This study presents two clinical cases of glomerulopathy associated with schistosomiasis, with different histological patterns: IgA nephropathy and membranous glomerulopathy with membranoproliferative features. Both patients had a history of chronic liver disease and portal hypertension, conditions that favor portosystemic shunting and renal exposure to intestinal antigens. The diagnosis was confirmed through renal biopsy, and both patients showed satisfactory outcomes following specific treatment. The diversity of clinical presentations highlights the importance of including schistosomiasis in the differential diagnosis of glomerulopathies, particularly in endemic regions. Early diagnosis enables appropriate management and can prevent progression to end-stage renal disease. Therefore, the implementation of public policies aimed at improving basic sanitation, controlling the intermediate host, and expanding access to diagnosis and treatment is essential for reducing renal morbidity associated with schistosomiasis.
Keywords: Schistosomiasis. Schistosoma mansoni. Glomerulopathy. Chronic kidney disease.
Introdução
A esquistossomose é uma doença infecciosa provocada pelo helminto Schistosoma, que tem como hospedeiro intermediário caramujos de água doce do tipo Biomphalaria (GONÇALVES, F. O. et al, 2016). A disseminação da doença está diretamente ligada a condições de saneamento básico, sendo mais prevalente em países subdesenvolvidos devido a piores condições socioeconômicas, com dificuldade de acesso a saúde e tratamento de água precário (LIMA, C. W. R. et al, 2017). Assim, tais condições favorecem a perpetuação do caramujo e consequente disseminação do parasita. Entre os anos de 2017 e 2021, segundo o DataSUS, foram 79.879 casos positivos para esquistossomose no Brasil, sendo mais de 90% deles na região nordeste.
A contaminação ocorre a partir da penetração da forma infecciosa do parasita através da pele do homem, atingindo a corrente sanguínea e consequente disseminação sistêmica. O habitat natural do Schistossoma é o sistema porta, porém diversos órgãos podem ser acometidos por complicações decorrentes da doença além do fígado e intestino, com identificação de lesões ectópicas em cerca de 20% dos pacientes (LIMA, C. W. R. et al, 2017).
Cerca de 10 a 15% dos pacientes com a forma hepatoesplênica cursam com comprometimento renal, sendo uma importante causa de doença renal terminal (RODRIGUES, V. L. et al, 2010; GONÇALVES, F. O. et al, 2016; BRITO, T. de et al, 1999; DOS-SANTOS, W. L. C. et al, 2011; BARSOUM, R. S., 1993).
O acometimento renal na esquistossomose tem etiologia multifatorial, sugerindo desde mecanismos imunogênicos com a formação de complexos imunes e depósitos glomerulares, em decorrência do shunt portossistêmico secundário a hipertensão portal, como a fatores geográficos e patogenéticos que interferem no curso clínico da doença (DOS-SANTOS, W. L. C. et al, 2011; BRITO, T. de et al, 1999; BARSOUM, R. S., 1993).
A hipertensão arterial sistêmica, o edema, a proteinúria e a hematúria glomerular são os principais sinais sugestivos de dano renal na glomerulopatia esquistossomótica (RODRIGUES, V. L. et al, 2010), porém até 35% dos casos evoluem de forma assintomática (GONÇALVES, F. O. et al, 2016). O consumo de complemento pode estar presente, devido a formação de complexos imunes, além da hipótese de que há a presença de receptores na superfície do Schistossoma, bloqueando a cascata do complemento e evitando a morte do parasita pelo sistema imune do hospedeiro (RODRIGUES, V. L. et al, 2010).
Devido a inúmeros padrões de acometimento glomerular identificados na glomerulopatia esquitossomótica, foi proposto por BARSOUM, uma classificação histopatológica, sendo a Classe I – Glomerulonefrite Mesangial; Classe II – Glomerulonefrite Exsudativa; Classe III – Glomerulonefrite Membranoproliferativa; Classe IV – Glomeruloesclerose segmentar e focal e Classe V – Amiloidose.
Além disso, acredita-se que haja um aumento da produção de imunoglobulina A pela mucosa intestinal e uma redução do clearence de antígenos liberados pelos vermes, colaborando ainda para a resposta imunológica associada a partículas antigênicas, decorrente da fibrose hepática induzida pela doença.
Diante disso, a glomerulopatia esquistossomótica é um diagnóstico diferencial importante, que deve sempre ser considerado principalmente em países subdesenvolvidos, onde a prevalência da esquistossomose é de fato maior.
Metodologia
Relato de dois casos atendidos no serviço de Nefrologia do Hospital Regional de Taguatinga, no período de 2019 a 2021, que cursaram com glomerulopatia secundária a esquistossomose tardia. Realizada análise retrospectiva do prontuário eletrônico dos pacientes, com revisão da literatura utilizando as bases Scielo (Scientific Eletronic Library Online) e PubMed (National Library of Medicine). O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS) da SES/DF, e aprovado sob parecer 5.938.026.
Caso 01
Paciente do sexo masculino, 75 anos, sabidamente portador de cirrose hepática por esquistossomose há mais de 40 anos, com esplenectomia na ocasião, deu entrada no HRT em novembro de 2021 devido a dor e distensão abdominal. À admissão apresentava-se hipertenso, com identificação de ascite leve a moderada ao exame físico. Durante investigação de quadro abdominal evoluiu com piora de função renal progressiva, IRA KIDGO 3 oligúrica, atingindo ureia e creatinina de 175 e 8,3, respectivamente, sendo a creatinina basal de 1,1. Exame de urina apresentou padrão proliferativo, com 5,5g de proteinúria em análise de 24h. Além disso, houve consumo de complemento – somente fração C3, com C4 normal. Diante do quadro de glomerulonefrite rapidamente progressiva, e descartado possíveis causas extrarrenais, optado pela biópsia renal que evidenciou aumento da matriz e da celularidade mesangial, com infiltrado inflamatório túbulo-intersticial, além de discreta fibrose e atrofia tubular à microscopia de luz (ML). A imunofluorescência (IF) apresentou deposição granular grosseira em mesângio de IgA de forte intensidade e C3 moderada, achados esses compatíveis com Nefropatia por IgA. No contexto de IRA em paciente cirrótico, ele foi submetido a administração de albumina seguido de terlipressina, além de antibioticoterapia para tratamento de peritonite bacteriana espontânea, cursando com evolução satisfatória. Após cerca de 45 dias internado, paciente recebeu alta hospitalar com remissão parcial da proteinúria e em melhora de função renal, sem necessidade de terapia renal substitutiva, com medidas anti proteinúricas. Em janeiro de 2022, paciente retornou ambulatorialmente em remissão completa, com retorno da função renal ao seu nível basal.
Caso 02
Paciente do sexo masculino, 62 anos, etilista e ex-tabagista, sem histórico de demais comorbidades, procurou atendimento em agosto de 2019 devido a edema de membros inferiores progressivo. Apresentou à admissão hipertensão e anasarca, sem alteração do volume urinário. Exames laboratoriais evidenciaram alteração de função renal, com creatinina prévia de 1,3, atingindo 2,9 durante evolução – IRA KDIGO 2, associado a hipoalbuminemia e dislipidemia. Exame de urina demonstrou padrão proliferativo e proteinúria de 20g em 24h. Sorologias negativas, marcadores imunológicos negativos (Complemento, FAN, anti DNA e crioglobulinemia). Avaliação radiológica demonstrou sinais de hepatopatia crônica com hipertensão portal e rins de aspecto normal. Eletroforese de proteínas com pico policlonal de gamaglobulinas. Diante do quadro de síndrome nefrótica com componente nefrítico, paciente foi submetido à biópsia renal. Microscopia de luz (ML) revelou espículas em região subepitelial corroborando o diagnóstico de glomerulopatia membranosa em fase II com crescentes fibrosos, além de atrofia tubular e fibrose intersticial moderada. Imunofluorescência demonstrou depósitos granulares de IgG, IgM e C3 no mesângio, de leve intensidade. Na microscopia eletrônica (ME) foram identificados depósitos eletrodensos subepiteliais e subendoteliais, confluentes, com projeção em espículas, caracterizando lesão mediada por imunocomplexos de provável etiologia sistêmica. Diante do exposto, o paciente foi submetido a imunossupressão com metilprednisolona e micofenolato de mofetila (MMF), considerando o diagnóstico de glomerulopatia membranoproliferativa sobreposta a membranosa, evoluindo com remissão parcial do quadro. Optado assim por terapia de manutenção com MMF, e após 1 ano cursou com remissão completa. Atualmente, segue em acompanhamento ambulatorial com creatinina de 1,0 e sem proteinúria.
Discussão
A esquistossomose, apesar de ser uma enfermidade tropical amplamente conhecida, ainda apresenta manifestações clínicas que permanecem subestimadas, especialmente no que diz respeito ao comprometimento renal. A glomerulopatia associada à esquistossomose representa uma complicação relevante, frequentemente subdiagnosticada, que pode evoluir para insuficiência renal terminal, especialmente em pacientes oriundos de áreas endêmicas. Os dois casos apresentados ilustram de forma clara a diversidade de manifestações clínicas e histopatológicas relacionadas a essa condição, além de reforçarem a importância de sua inclusão no diagnóstico diferencial das doenças glomerulares em regiões onde a esquistossomose é prevalente.
No primeiro caso, o paciente apresentava história de longa data de esquistossomose hepatoesplênica, com evidências clínicas e laboratoriais de glomerulonefrite rapidamente progressiva. O achado histológico compatível com nefropatia por IgA, associado ao consumo isolado de C3, sugere uma resposta imunológica mediada por complexos imunes, mecanismo já descrito na literatura como uma das vias de lesãoglomerular na esquistossomose. A presença de fibrose hepática com hipertensão portal favorece o shunt portossistêmico e, consequentemente, a disseminação de antígenos intestinais para a circulação sistêmica, o que pode estimular a deposição mesangial de imunoglobulinas, em especial a IgA. Esses elementos sustentam a relação entre a infecção crônica pelo Schistosoma e o desencadeamento de glomerulopatias mediadas por mecanismos imunológicos.
O segundo caso, por sua vez, evidencia uma apresentação distinta, com síndrome nefrótica importante e achados histológicos compatíveis com glomerulopatia membranosa associada a lesões proliferativas. Embora o paciente não apresentasse diagnóstico prévio de esquistossomose, a presença de sinais clínicos e radiológicos de hepatopatia crônica e hipertensão portal permite considerar a infecção esquistossomótica pregressa como possível fator etiológico. Esse achado reforça a diversidade das apresentações histológicas descritas por Barsoum, e demonstra que a glomerulopatia esquistossomótica pode mimetizar outras doenças renais de base imunológica, exigindo uma abordagem diagnóstica criteriosa.
Vale destacar que ambos os pacientes evoluíram favoravelmente após o tratamento específico para suas respectivas condições, o que reforça a importância do diagnóstico precoce e da abordagem individualizada. No primeiro caso, o manejo clínico com suporte hemodinâmico e tratamento da peritonite resultou em recuperação da função renal. No segundo, o uso de imunossupressores promoveu remissão completa da síndrome nefrótica. Esses desfechos positivos demonstram que, mesmo em casos de glomerulopatia associada à esquistossomose, intervenções terapêuticas adequadas podem evitar a progressão para doença renal terminal.
Conclusão
A glomerulopatia esquistossomótica configura-se como uma importante, porém frequentemente negligenciada, complicação da esquistossomose, especialmente em sua forma hepatoesplênica crônica. Os casos apresentados demonstram como o comprometimento renal decorrente da infecção pelo Schistosoma mansoni pode assumir diferentes padrões histopatológicos, refletindo a complexidade da resposta imunológica desencadeada pelo parasita. Tais achados reforçam a necessidade de uma abordagem diagnóstica criteriosa e individualizada, sobretudo em pacientes provenientes de áreas endêmicas.
Além disso, a possibilidade de manifestações renais subclínicas exige atenção redobrada por parte dos profissionais de saúde, com a inclusão da avaliação nefrológica como parte do acompanhamento de pacientes com esquistossomose crônica. O reconhecimento precoce da glomerulopatia associada à esquistossomose permite intervenções terapêuticas eficazes, com potencial para evitar a progressão para doença renal terminal, como observado na evolução dos casos descritos.
Por fim, é fundamental ressaltar a importância de políticas públicas voltadas à melhoria do saneamento básico, controle do hospedeiro intermediário e acesso ao diagnóstico precoce. Essas medidas são essenciais não apenas para reduzir a incidência da esquistossomose, mas também para prevenir suas complicações sistêmicas, incluindo o impacto significativo sobre a saúde renal da população afetada.
REFERÊNCIAS
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1Médico Residente no Hospital Regional de Taguatinga. E-mail: laragabrielafm@gmail.com
2Professora Orientadora no Hospital Regional de Taguatinga. E-mail: ncvmelo@gmail.com
3Professora Orientadora no Hospital Regional de Taguatinga. E-mail: luana.cicilia@gmail.com