REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202504162330
Fátima Aparecida Lopes de Moura
RESUMO
Este estudo examina o poder da persuasão de um editorial de jornal considerando a interação das escolhas linguísticas lexicogramaticais e as posições avaliativas responsáveis pela construção de estratégias retóricas no fluxo do significado com a finalidade de persuadir o leitor. O editorial examinado “As falsas crises, e a verdadeira” trata da inércia do governo frente aos desafios causados pela pandemia do coronavírus no Brasil. O objetivo deste artigo é o exame linguístico de como as posições avaliativas são configuradas para convencer o leitor sobre os valores expressos no texto. Assim, com o aporte da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), uma proposta teórico-metodológica, da análise crítica da metáfora, uma intersecção entre a análise crítica do discurso, da teoria da metáfora conceptual e de alguns recursos de persuasão, pretende-se responder às seguintes perguntas de pesquisa: (a) Como a retórica persuasiva é utilizada para construir e disseminar a narrativa de que determinadas crises são ‘falsas’? (b) De que modo a construção discursiva do editorial utiliza as estratégias persuasivas para promover a reciprocidade do leitor com os valores (ideológicos) compartilhados no jornal? Este artigo contribui para a compreensão de como a linguagem, nos editoriais de jornal, é utilizada como ferramenta de persuasão e moldagem da opinião pública, principalmente em momentos de crise como a pandemia de COVID-19. A pesquisa evidencia que o apoio de várias estratégias retóricas permite ao editorial o gerenciamento de posições ideológicas, influenciando crenças, valores e práticas políticas.
Palavras-chave: Editorial. Persuasão. Metáfora. Linguística Sistêmico-Funcional.
ABSTRACT
This study examines the persuasive power of a newspaper editorial considering the interaction of lexicogrammatical linguistic choices and the evaluative positions responsible for the construction of rhetorical strategies in the flow of meaning with the purpose of persuading the reader. The editorial examined “The false crises, and the true one” deals with the government’s inertia in the face of the challenges caused by the coronavirus pandemic in Brazil. The objective of this article is the linguistic examination of how evaluative positions are defined to convince the reader about the values expressed in the text. Thus, with the contribution of Systemic-Functional Linguistics (SFL), a theoretical-methodological proposal, of the critical analysis of metaphor, an intersection between critical discourse analysis, the theory of conceptual metaphor and some persuasion resources, we intend to answer the following research questions: (a) How is persuasive rhetoric used to construct and disseminate the narrative that certain crises are ‘false’? (b) How does the discursive construction of the editorial use persuasive strategies to promote reader reciprocity with the (ideological) values shared in the newspaper? This article contributes to the understanding of how language, in newspaper editorials, is used as a tool for persuasion and shaping public opinion, especially in times of crisis such as the COVID-19 pandemic. Research shows that the support of various rhetorical strategies allows the editorial to manage ideological positions, influencing political proposals, values, and practices.
Keywords: Editorial. Persuasion. Metaphor. Systemic-Functional Linguistics.
Introdução
A mídia desempenha um papel importante na divulgação dos acontecimentos, sendo uma fonte de informação para a sociedade. Assim, o construto não-neutro de pessoas e eventos na mídia é uma questão de considerável significado (Liu e Hood, 2019). O gerenciamento das posições ideológicas funciona tanto explícita quanto implicitamente, influenciando crenças, valores e práticas políticas das comunidades de leitores (Happer; Philo, 2016; Van Dijk, 1996).
Nesse ponto, o editorial fornece um material rico para pesquisas que incluem o estudo do discurso e construção da argumentação retórica para o convencimento do leitor, promovendo uma interpretação crítica, reflexiva e atuante nos acontecimentos sociais, culturais e políticos. O presente artigo pretende pesquisar a persuasão retórica no editorial para o convencimento do leitor analisando, por meio da Linguística Sistêmico-Funcional e escolha de léxicos avaliativos, a condução do processo da persuasão implícita ou explícita. Em estudos top-down (de cima) a persuasão é analisada no contexto dos gêneros textuais específicos. Já a análise bottom-up de editoriais concentra-se em examinar escolhas sintáticas, lexicogramaticais e discursivas específicas, revelando sua contribuição para a persuasão.
Este artigo contribui para a compreensão de como a língua, nos editoriais de jornal, é utilizada como ferramenta de persuasão e moldagem da opinião pública, principalmente em momentos de crise como a pandemia de COVID-19. Ao analisar as estratégias persuasão pretende-se observar os mecanismos utilizados para influenciar a opinião pública sobre a crise mundial instalada naquele momento, as políticas e as ações de enfrentamento da situação no Brasil e, assim, contribuir para o processo de formação de um cidadão mais crítico e com competência para avaliar a qualidade de informação que recebe. O editorial examinado neste artigo trata da inércia do governo frente aos desafios causados pela pandemia do coronavírus e faz uma crítica pela sua incapacidade de lidar com as crises pelas quais o país passava. Nessa época, sua gestão foi marcada pela minimização dos riscos enfrentados e pela falta de um plano de ação. A argumentação do editorial é que a maior crise enfrentada pelo Brasil nesse período é não ter um governo competente.
Esse artigo foca na análise linguística e condução retórica de como as posições avaliativas são configuradas para convencer o leitor sobre os valores expressos no texto. Para tanto, deve responder às seguintes perguntas: (a) Como a retórica persuasiva é utilizada para construir e disseminar a narrativa de que determinadas crises são ‘falsas’? (b) De que modo a construção discursiva do editorial utiliza as estratégias persuasivas para promover a reciprocidade do leitor com os valores (ideológicos) compartilhados no jornal?
Este estudo utiliza a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) como base teórico-metodológica para analisar a construção dinâmica de estratégias retóricas em editoriais. A LSF envolve a noção de avaliatividade, bem como a noção de escolha, sugerindo que o que se escreve adquire significado contra um fundo em que se encontram as escolhas que poderiam ter sido feitas, mas que não o foram, fato importante na Linguística Crítica.
1. Apoio teórico
Apresentamos a seguir as teorias que apoiam a análise de “As falsas crises, e a verdadeira”: Linguística Sistêmico-Funcional (Halliday, 1994), avaliatividade (Martin, 2000), que analisa os sentimentos e julgamentos expressos no desenvolvimento do texto. As análises têm o apoio da Linguística Crítica (Fowler, 1991) e alguns recursos de persuasão.
1.1 Linguística Sistêmico-Funcional
A Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) é uma proposta teórico-metodológica de Halliday (1994), Halliday e Matthiessen (2004) e seus colaboradores. Sistêmico porque faz referência à gramática como um processo semiótico de fazer significado por meio de escolhas paradigmáticas e funcional que abrange a habilidade de construir significados ou metafunções concomitantes (ideacional, interpessoal e textual) (Halliday, 1994; Martin, 2000a, 2000b). De acordo com Martin e White (2005) a LSF é “um modelo multiperspectivo, designado a dar aos analistas lentes complementares para a interpretação da língua em uso”.
A metafunção ideacional representa os eventos das orações por meio da transitividade, o que envolve processos (material, comportamental, mental, existencial, relacional e verbal), participantes e circunstâncias. Nesse contexto, os processos permitem evidenciar as manipulações nas representações sociais.
Já a metafunção interpessoal, além de informar organiza evento interativo, envolvendo falante e audiência. Os tipos interpessoais de papel de fala são para Halliday (1994): dar e pedir informação ou bens e serviços (Halliday, 1994). Essa metafunção, também, inclui o sistema da modalidade, que envolve a modalização (probabilidade e frequência) e modulação (obrigação e desejabilidade). O que tendeu a ser omitido pela LSF é a semântica de avaliação – como os interlocutores estão se sentindo, os julgamentos que fazem e a apreciação de vários fenômenos de sua experiência. Nesse contexto, Martin (2000) inclui a noção de avaliatividade (tradução de appraisal), uma proposta que examina o léxico avaliativo que expressa a opinião do autor do texto sobre o parâmetro bom/mau. A avaliatividade é constituída por três subsistemas: Atitude podendo envolver uma força maior ou menor em sua expressão: afeto (expressão de emoções), julgamento (avaliação moral), apreciação (avaliação estética) e avaliação social (avaliação de produtos, atividades, processos ou fenômenos sociais). O Engajamento e Graduação, pode ser expressa compartilhando a mesma e única visão de mundo (monoglossia), ou adotar uma posição que reconhece a diversidade entre várias vozes de forma dialógica (heteroglossia).
Martin (2000), em seus trabalhos, apresentou uma distinção entre avaliatividade explícita e implícita, o que chamou de inscrita e evocada, respectivamente. Nesse contexto, Martin chama de token de atitude, a avaliatividade – se positiva ou negativa – à medida que o texto sutilmente transmite nas interpretações do leitor.
A metafunção textual estrutura os significados ideacionais e interpessoais da oração como um todo coerente, organiza o “fluxo de informação” dentro da oração simples em uma estrutura temática de Tema → Rema, utilizando a ordem das palavras para facilitar o compartilhamento de informações entre falante e interlocutor (Halliday; Matthiessen, 2004). Um elemento dentro da oração é anunciado como Tema, este serve como ponto de partida da mensagem, o restante da mensagem é chamado de Rema.
Importante para a LSF é a noção de escolhas. Assim, quando se faz uma escolha no sistema linguístico, o que se escreve ou o que se diz adquire significado contra um fundo em que se encontram as escolhas que poderiam ter sido feitas, mas que não o foram, fato importante na análise do discurso. Por outro lado, é imprescindível para a LSF, a consideração da interrelação entre língua e contexto.
1.2 Análise do Discurso Crítica (ADC)
A análise do discurso crítica (ADC) é uma abordagem interdisciplinar que enfatiza o papel da língua como uma forma de prática social (Hodge; Kress, 1993; Fairclough, 1997). Um dos principais princípios da ADC é de que a língua exerce um papel na expressão não só de uma mensagem proposicional, mas, mais importante, uma mensagem ideológica, desta forma a ADC busca compreender o papel da língua usada para construir, manter e transformar relações de poder na sociedade. Como afirma Van Dijk (1991, p. 42), “o poder tem mais uma natureza discursiva nas modernas sociedades democráticas”, especialmente na seleção dos eventos mais propícios para serem cobertos pela mídia.
Para Fowler (1991), na medida em que há, sempre, valores implicados no uso da língua, deve ser justificável praticar um tipo de linguística direcionada para a compreensão de tais valores. Esse é o ramo que se tornou conhecido como “linguística crítica”, que tem na Linguística Sistêmico-Funcional o seu ponto de apoio.
1.3 Teoria da metáfora conceptual
A metáfora conceitual, um recurso cognitivo fundamental, atua como ponte entre a linguagem concreta e as idéias abstratas tais como ideologias e valores culturais. Nessa tarefa, a metáfora se apoia na metonímia, “um processo cognitivo que “evoca um frame e não meramente uma questão da substituição de expressões linguísticas” (Panther; Radden, 1999; Panther, Thornburg, 2004), no qual uma entidade conceitual (fonte), fornece acesso mental a outra entidade conceitual (alvo), dentro do mesmo modelo cognitivo idealizado, graças à noção de um frame, conjunto de informações culturalmente compartilhadas que orientam a interpretação de qualquer escolha lexical. Assim, essas escolhas desempenham um papel crucial em relação à metonímia, pois a preferência por um léxico específico em detrimento de outros evidencia avaliações positivas ou negativas.
A metonímia é, então, considerada como precedente à metáfora conceitual. Assim, nos exemplos negritados a seguir, de Lakoff e Johnson (1980), ou nas “expressões metafóricas” de Charteris-Black (2004), que hoje seriam as “expressões metonímicas” é possível ter uma ideia do que significa um conceito metafórico e por tal conceito estruturarmos nossa atividade diária, Lakoff e Johnson exemplificam com o conceito ARGUMENTO e a metáfora conceitual ARGUMENTO É GUERRA:
Suas reivindicações são indefensáveis. – Ele atacou todos os pontos fracos do meu argumento. – Suas críticas foram diretas no alvo. – Eu demoli seu argumento. – Nunca venci uma discussão com ele. – Você discorda? Ok, atire! – Se você usar essa estratégia, ele vai acabar com você. – Ele derrubou todos os meus argumentos.
1.4 Persuasão
Latour e Woolgar (1979, p. 240) afirmam que “o resultado de uma persuasão retórica é que os participantes devem ser convencidos de que não foram convencidos”. Portanto, a persuasão tende a ser implícita e a evitar a linguagem atitudinal normalmente associada ao significado interpessoal, dependendo, majoritariamente, do sistema de valores partilhados (Halliday, 1985). Esse tipo de persuasão, que acontece cumulativamente conforme o texto se desenrola pode ser extremamente eficaz em certos contextos. A seguir, serão apresentados alguns recursos da retórica persuasiva:
(a) Mundo textual – Downing (2003) refere-se à teoria de “mundo textual” uma importante implicação de que as escolhas linguísticas dão lugar a diferentes significados, pois a escolha linguística também determina interpretações diferentes da realidade, criando diferentes visões de mundo;
(b) Crypto-argumentação – Kitis e Milapides (1997) falam em crypto-argumentação – ou argumentação secreta – aquela que subjaz a um texto narrativo e descritivo, através de recursos utilizados para implicitamente persuadir o leitor. Além disso, a persuasão envolve: (I) a convicção (através de evidências) e (II) a sedução (através do apelo à emoção);
(c) Legitimização – No enquadre interdisciplinar ancorado na Análise do Discurso Crítica (ADC) e usando os instrumentos da LSF, Reyes (2011) trata de um uso importante da linguagem na sociedade: o processo de legitimização, doravante (LEG). O processo da LEG busca legitimar ações, ideias e declarações sociais por meio de argumentos que visam a adesão do interlocutor. Reyes (2011) enfoca as escolhas linguísticas específicas pelas quais a língua representa um instrumento de controle (Bordieu, 2001) no discurso e nas práticas sociais. Reyes (2011) aplica os instrumentos metodológicos da Linguística Sistêmico-funcional para analisar as representações linguísticas da LEG e propõe as seguintes ligimitimizações: (i) LEG por meio de emoções (o apelo às emoções); (ii) LEG por meio de futuro hipotético (colocar uma ameaça que requeira uma ação no presente – Dunmire, 2007); (iii) LEG por meio da racionalidade hipotética (atores políticos apresentam o processo da legitimização como um processo em que as decisões seriam resultado de um procedimento examinado, avaliado e pensado); (iv) LEG por meio de vozes de experts (as vozes de experts são colocadas no discurso para mostrar à audiência que especialistas estão apoiando as propostas políticas); e (v) LEG por meio do altruísmo (os atores sociais garantem que suas propostas não representam interesses sociais).
(d) Nominalização – De acordo com Eggins (1994), à nominalização (verbo e adjetivo transformados em substantivo abstrato), refere-se aos seguintes efeitos textuais, que, no discurso, pode contribuir para implicitar certas intenções do escritor: (i) a nominalização proporciona abstração teórica e, assim, o distanciamento do escritor em relação ao leitor,; (ii) aumenta o nível de complexidade gramatical (condensa orações); (iii) o nível de complexidade coloca o autor numa posição de expert e relega o leitor a uma posição de leigo; (iv) graças à nominalização, o substantivo agora pode ocupar o lugar de Tema da oração, orientando a interpretação do leitor (Figueiredo, 2006); (v) organiza retoricamente o texto em torno de ideais, razões e causas.
(e) Textura – Reynolds (2000), examinando um conjunto de editoriais dos jornais londrinos, acerca das eleições gerais britânicas de 1997, descreve como a textura do conjunto pode ser explicada em termos de apenas três modos de textura representacional – narrativa, descrição e argumento – e mostra como o argumento predomina no gênero editorial. Em termos do modo textual, o editorial é predominantemente um modo argumentativo fundido com a narrativa e a descrição.
2 METODOLOGIA
A análise segue um procedimento envolvendo estudos que exploram escolhas discretas, sintáticas, lexicogramaticais ou discursivas, interpretadas como contribuição para a função persuasiva do texto. Para tanto, tem o apoio da Linguística Sistêmico-Funcional, uma proposta teórico-metodológica, que procura desenvolver uma teoria sobre a língua como um processo social e uma metodologia que permite uma descrição detalhada e sistemática dos padrões linguísticos.
Levo em conta, de acordo com Fowler (1991), Charteris-Black (2004) e de Kerbrat-Orecchioni (2004), que o apoio teórico em pesquisa de linguística aplicada tende a ser eclético, empregando metodologia mista, “já que os mesmos recursos não são apropriados para descrever diferentes níveis e componentes da interação, sendo necessário o apelo a várias tradições descritivas” (Kerbrat-Orecchioni, 2004, p. 9).
2.1 Corpus
Esta pesquisa analisa o editorial sobre a inércia do governo brasileiro diante dos desafios causados pela pandemia do coronavírus no Brasil e a incapacidade do então presidente em lidar com as crises pelas quais o país passava na época, publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo em 15/03/2020.
O editorial tem uma função simbólica importante, parecendo partilhar da “opinião” do jornal, ao sustentar implicitamente a asserção de que as demais seções, por contraste, sejam puros “fatos” ou “reportagens” (Fowler, 1991). O simbolismo textual é salientado por uma disposição e uma tipografia, sendo o editorial geralmente impresso na mesma posição e na mesma página todos os dias.
(a) “As falsas crises, e a verdadeira” O Estado de S. Paulo (15/03/2020) https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,as-falsas-crises-e-a-verdadeira,70003233516?utm_source=twitter:newsfeed&utm_medium=social-organic&utm_campaign=redes-sociais:032020:e&utm_content=:::&utm_term=
O Estado de S. Paulo, também conhecido como Estadão, é um jornal brasileiro e publicado na cidade de São Paulo, um dos principais jornais de referência do Brasil. Fundado por um grupo de republicanos, liderados por Manoel Ferraz de Campos Salles e Américo Brasiliense, em 4 de janeiro de 1875, para combater a monarquia e a escravidão. Em 2015 o jornal era o quarto em circulação, com uma média diária de 157.761 mil exemplares, o terceiro na versão digital com 78.410 visitas e o segundo na Grande São Paulo, com média diária de 159,9 mil exemplares em 2007. (https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Estado_de_S._Paulo)
SARS-CoV-2: vírus da família dos coronavírus que, ao infectar humanos, causa uma doença chamada Covid-19. Por ser um microrganismo que até pouco tempo não era transmitido entre humanos, ele ficou conhecido, no início da pandemia, como “novo coronavírus”. Covid-19: doença que se manifesta em nós, seres humanos, após a infecção causada pelo vírus SARS-CoV-2. https://butantan.gov.br/covid/butantan-tira-duvida/tira-duvida-noticias/qual-a-diferenca-entre-sars-cov-2-e-covid-19-prevalencia-e-incidencia-sao-a-mesma-coisa-e-mortalidade-e-letalidade
2.2 Procedimentos de análise
Este artigo visa responder às seguintes perguntas de pesquisa: (a) Como a retórica persuasiva é utilizada para construir e disseminar a narrativa de que determinadas crises são ‘falsas’? (b) De que modo a construção discursiva do editorial utiliza as estratégias persuasivas para promover a reciprocidade do leitor com os valores (ideológicos) compartilhados no jornal? Para tanto, seguiremos o seguinte procedimento:
(a) cada parágrafo do editorial será enumerado;
(b) análise das escolhas léxico-gramaticais feitas no texto com foco na metafunção ideacional das expressões metafóricas, tendo em vista a persuasão do leitor, serão indicadas entre colchetes;
(c) na análise da metafunção interpessoal, por meio da avaliatividade explícita ou implícita, sublinharemos o(s) termo(s) e indicaremos: (+) ou (-) se a avaliatividade for positiva ou negativa, respectivamente e (↑) ou (↓) se a avaliatividade for intensificada ou diminuída;
(d) a seguir, no item Discussão, serão comentados os efeitos dos recursos persuasivos verificados no parágrafo;
(e) discussão final.
3. ANÁLISE E DISCUSSÃO
As falsas crises, e a verdadeira
(1) Já é possível dizer que a grande crise que o Brasil enfrenta não é a economia travada ou a ameaça do coronavírus; a verdadeira crise é não ter governo quando ele é mais necessário.
Discussão: O editorial inicia fazendo o uso de modalização de probabilidade “é possível” tornando a afirmação mais aceitável para o leitor, o que pode aumentar a confiança nas informações e menciona a “grande crise” [apreciação (-)↑] pela qual o Brasil está passando. Aqui o leitor pode imaginar que essa crise seria na economia ou a Covid-19, no entanto, o editorialista mostra a seriedade da situação e explica que a grande crise é a falta de governo para tomar medidas necessárias para combater essa crise.
(2) A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a disseminação do coronavírus atingiu a proporção de pandemia global. A designação é, na prática, pouco mais que simbólica, mas com ela a OMS pretende chamar a atenção de todo o planeta para os graves riscos econômicos e de saúde pública associados à expansão desenfreada da doença. “Estamos profundamente preocupados tanto com os alarmantes níveis de disseminação e de severidade da pandemia como com os alarmantes níveis de inação”, disse o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Discussão: Nesse trecho, faz-se uso do recurso da persuasão de legitimização (Reyes, 2011) por voz de expert ao citar a OMS uma organização composta por cientistas e autoridades em saúde pública, que declara a disseminação do coronavírus e sustenta a ideia de que há uma crise mundial. O uso de nominalizações (Eggins, 1994) “organização, disseminação, designação, riscos, econômicos, expansão” promove o distanciamento em relação ao leitor e organiza o texto chamando a atenção para as ideias contidas no editorial, ou seja, a gravidade de uma pandemia não só para a saúde, mas também para a economia. Percebe-se, ainda, a persuasão por meio das avaliações explícitas: “pouco mais que simbólica” [apreciação (-)↓] com isso, ameniza o impacto da declaração, “graves riscos” [avaliação social (-)↑], depois, potencializa a gravidade e a urgência da situação, influenciando o olhar crítico do leitor com “expansão desenfreada” [avaliação social (-)↑]. Na época, a declaração de Tedros Adhanom Ghebreyesus diretor da OMS, “estamos profundamente preocupados” [julgamento (-)↑] intensificada pela palavra “profundamente”, mostra uma reação negativa com relação ao cenário da pandemia. Os “alarmantes níveis de disseminação” [avaliação social (-)↑] e “alarmantes níveis de inação” [julgamento (-)↑] indicam preocupação com o ritmo em que a doença avança e a falta de uma atitude para combatê-la.
(3) Assim, a OMS torna oficial o que já era a conclusão de epidemiologistas de várias partes do mundo, inclusive do Brasil. A crise do coronavírus é concreta, não uma “fantasia” criada pela “grande mídia”, como disse o presidente Jair Bolsonaro. Preocupa sobremaneira que o governo brasileiro, a julgar pelas declarações inconsequentes do presidente, esteja propenso a considerar a pandemia como sendo apenas uma “pequena crise”. Isso é “brincar com fogo” , como comentou o biólogo Fernando Reinach em sua coluna no Estado. “E provavelmente vamos nos queimar”, completou ele, ao lembrar que o sistema de saúde da Itália já entrou em colapso e que tal perspectiva levou diversos países a adotar medidas drásticas para tentar frear a expansão do vírus. No Brasil, contudo, as autoridades nem sequer decidiram quais são os cenários possíveis e, como escreveu Reinach, parecem preferir “esperar para ver”.
Discussão: No texto, para mostrar que a “crise do coronavírus é concreta” e a gravidade de pandemia em todo o mundo, o editorialista recorre ao uso de legitimização (Reyes, 2011) por voz de expert e algumas nominalizações (Eggins, 1994), condena as falas do então presidente Jair Bolsonaro que diz que a pandemia é uma “fantasia criada pela mídia” [apreciação (-)], esses recursos contribuem para a persuasão e influencia a opinião do leitor. Dando continuidade a análise, usa mais uma legitimização por voz de expert (Reyes, 2011) ao citar o biólogo que critica as declarações do então presidente ao dizer que são “declarações inconsequentes” [julgamento (-)] que a pandemia é uma “pequena crise” [avaliação social (-) ↓], que “brinca com fogo” [avaliação social (-)] o que mostra desaprovação e imprudência do governo brasileiro. O biólogo Fernando Reinach compara o sistema de saúde do Brasil com o da Itália e alerta que o Brasil não teve nenhuma atitude para conter a pandemia e, por isso a situação no Brasil pode sair do controle “provavelmente [modalização de probabilidade] vamos nos queimar” [avaliação social (-)] resultante de ações irresponsáveis e prejudiciais à sociedade.
(4) É assim que Bolsonaro encara crises verdadeiras: menospreza seus riscos e as considera criações da imprensa. Tem sido assim também no trato da crise econômica: enquanto milhões de cidadãos continuam a enfrentar a dura realidade do desemprego graças ao crescimento pífio do PIB sob Bolsonaro, o governo tenta convencer o distinto público de que tudo vai bem.
Discussão: Nesse trecho o editorialista utiliza avaliações por meio das palavras “menospreza seus riscos” [avaliação social (-)] realizado pelo Bolsonaro com relação às verdadeiras crises, a pandemia da Covid-19, pois não mostra preocupação com o bem estar da população; em “pífio PIB” [avaliação social (-)] é sugerido que o governo não consegue promover o crescimento econômico, juntamente com o uso da nominalização (Eggins, 1994) se referindo ao “crescimento” do pífio PIB enquanto aumenta o prestígio do público com “distinto público” [julgamento (+)] uma expressão de respeito com os cidadãos ao mesmo tempo em que tenta convencer o leitor a enxergar que a gestão Bolsonaro não está exatamente como o ele tenta fazer-nos acreditar.
(5) No caso dos efeitos da pandemia do coronavírus sobre a economia global, com óbvias consequências negativas sobre o já claudicante crescimento do Brasil, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a dizer que estava “absolutamente tranquilo”. Esse estado de negação, a exemplo do que acontece no caso do coronavírus, atrasa a adoção de medidas que poderiam ajudar o País a enfrentar a crise.
Discussão: Aqui observa-se que o editorialista inicia o trecho descrevendo os impactos da pandemia sobre a economia global e a do Brasil por meio de “efeitos”, “economia global”, “consequências”, “crescimento”, nominalizações (Eggins, 1994), recurso persuasivo que deixa o texto mais complexo e leitor como leigo no assunto, destaca a negação do governo brasileiro sobre esses efeitos em nosso país, volta a usar os recursos persuasivos de legitimização por voz de expert quando cita o ministro da economia Paulo Guedes e sua inércia diante dos problemas, e recorre à alguns léxicos avaliativos como “óbvias consequências negativas” [avaliação social (-)↑ ], “claudicante crescimento do Brasil” [avaliação social (-)↑ ] e, ainda, destaca a fala do ministro que se diz “absolutamente tranquilo” [julgamento (-) ↑ ] diante da crise do coronavírus, desta forma ao citar Paulo Guedes que deveria demonstrar credibilidade, mostra que há um contraste entre a postura do ministro e a gravidade da situação, o autor busca persuadir o leitor a interpretar que a economia está cambaleando e a gestão está totalmente inadequada.
(6) Enquanto trata problemas reais e graves como pouco relevantes, o presidente da República despende a energia que extrai de seu cargo com crises inventadas pela inesgotável imaginação dos bolsonaristas. O mais recente delírio manifestado pelo presidente foi a denúncia de que a eleição de 2018 foi “fraudada”.
Discussão: Ainda sobre o estado de negação das crises, o parágrafo inicia com uma comparação entre os problemas reais e graves com outros inventados aos quais o então presidente devota toda sua atenção. Os recursos persuasivos usados aqui chamam a atenção para “problemas graves” [avaliação social (-)↑] tratados como “pouco relevantes” [avaliação social (-)↑] pois o presidente não dá a devida importância a esses problemas, não busca meios para amenizar e tranquilizar os cidadãos, ao passo que se importa com “crises inventadas [processo mental] pela inesgotável imaginação dos bolsonaristas” [julgamento (-)↑ token ] como é o caso da denúncia de que a eleição de 2018 foi “fraudada”, o seu mais “recente delírio” [julgamento (-)] uma avaliação negativa com relação ao comportamento do presidente Jair Bolsonaro que parece agir de forma insana, gastando energia com o que cria em sua mente.
(7) “Eu acredito que, pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu tinha sido, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender teve fraude. E nós temos não apenas palavras, nós temos comprovado, brevemente eu quero mostrar”, disse Bolsonaro, com sintaxe muito peculiar. Mais tarde, questionado sobre quando mostraria as tais “provas”, o presidente desconversou: “Eu quero que você me ache um brasileiro que confia no sistema eleitoral brasileiro”.
Discussão: É possível observar a descrença de Bolsonaro no sistema eleitoral pelo processo mental “eu acredito que pelas provas que tenho” e “no meu entender teve fraude” que revela suas percepções e tenta criar uma empatia com o leitor, aqui pode-se dizer que há a criação de um “mundo textual” (Downing, 2003) no qual as proposições apresentadas parecem ser coerentes e terem sentido para o presidente. Por outro lado, ao usar o recurso persuasivo da narrativa (Fowler 1991) o editorialista faz com que o leitor tenha confiança nas informações que virão na sequência e relembra falas do presidente que desconversa ao ser perguntado quando apresentará as provas que tem.
(8) É evidente que uma declaração dessa gravidade merecia o repúdio imediato das instituições democráticas, como fez o Tribunal Superior Eleitoral ao reafirmar a lisura das eleições de 2018 e das anteriores. E é espantoso que o presidente da República, no auge de uma combinação de turbulências que ameaçam seriamente o futuro imediato do País, prefira mobilizar a opinião pública e as instituições em torno de seus Devaneios persecutórios e conspirativos. Isso talvez indique que ele acha que o mundo gira em torno de sua excelsa figura.
Discussão: Inicia-se o parágrafo com “É evidente” [modalização de probabilidade] um recurso linguístico que orienta o leitor a aceitar a argumentação que virá na sequência como uma verdade sem a necessidade de maiores explicações; uma “declaração dessa gravidade” [avaliação social (-)] a indicação de que o sistema eleitoral é uma fraude deve ter “repúdio [avaliação (-)] imediato das instituições democráticas” por ser imprópria. Observa-se o uso de legitimização (Reyes, 2011) por voz de expert ao citar o Tribunal Superior Eleitoral que confirma “a lisura [avaliação social (+)] das eleições” valoriza a integridade do sistema eleitoral brasileiro, ao mesmo tempo em que fortalece o argumento. Mais uma vez é usado um recurso linguístico avaliativo “é espantoso” que orienta o leitor a perceber a situação como algo que choca, pois o presidente age de forma imprudente ao acreditar numa fraude criada em sua mente e que parece ter mais importância do que a crise pela qual o mundo e o próprio Brasil passam, assim o autor do texto usa léxicos gramaticais que aguçam o pensamento crítico do leitor como em “turbulências que ameaçam [processo mental] seriamente [avaliação social (-) ↑ ] o futuro imediato do País”, “Devaneios persecutórios e conspirativos [julgamento (-)↑]” promovendo o questionamento da veracidade dos pensamentos do presidente, e termina com uma crítica ao comportamento egocêntrico do presidente e o uso da ironia para mostrar uma visão distorcida da importância de sua pessoa num momento em que nossa sociedade precisa de apoio e orientação “isso talvez [modalização de probabilidade – com engajamento heteroglóssico, envolve o leitor na avaliação] indique que ele acha que o mundo gira em torno de sua excelsa [julgamento (-) token] figura”, uma avaliatividade aparentemente positiva, mas que depende do contexto para se fazer entender uma avaliação negativa. Por meio dos léxicos linguísticos é perceptível a condução de ideias que valorizam a postura do Tribunal Superior Eleitoral e desaprovam o comportamento do presidente.
(9) Infelizmente, esse tem sido o padrão de comportamento do presidente Bolsonaro ante os inúmeros desafios que se lhe apresentam desde que tomou posse, e nada indica que será diferente até o final do mandato, especialmente à medida que fica mais clara a sua incapacidade de governar, qualquer que sejam as circunstâncias.
Discussão: O uso do léxico avaliativo “infelizmente”, logo no início, guia o pensamento crítico do público de que o próximo evento a ser descrito é de desaprovação e, assim o faz, “esse tem sido o padrão [julgamento (-)] de comportamento”, diante Da conduta de Bolsonaro frente às crises reais da sociedade brasileira que sofre as consequências da pandemia da Covid-19 na saúde e na economia. Ressalta que o seu comportamento não modificará por “sua incapacidade [julgamento (-)] de governar” que demonstra a cada enfrentamento das diversas situações. As escolhas avaliativas mostram que seu comportamento é imprudente, repetitivo e ineficaz.
(10) Ou seja, hoje já é possível dizer que a grande crise que o Brasil enfrenta não é a economia travada ou a ameaça epidêmica do coronavírus; a verdadeira crise do País é não ter governo justamente quando ele é mais necessário.
Discussão: Por fim, há uma conclusão de que “é possível dizer” [modalização de probabilidade] que o Brasil enfrenta uma “grande crise” [avaliação social (-)↑] a de “não ter governo quando ele é mais necessário”. De forma heteroglóssica, o que possibilita outras vozes, o editorialista considera que a crise econômica e a pandemia são secundárias quando há um desgoverno, uma ausência de liderança adequada quando mais precisamos.
Ao analisar os parágrafos do editorial é possível observar o uso de léxicos avaliativos metonímicos que fortalecem a argumentação do escritor e corroboram com a construção da metáfora: A principal crise que o Brasil enfrenta durante a pandemia é a falta de governo.
A mensagem do editorial é convencer o leitor de que o governo brasileiro não está preparado para enfrentar a crise do coronavírus e para isso lança mão de escolhas léxico-gramaticais apoiadas em recursos retóricos da persuasão para o convencimento, narrativas de fatos que mostram a negação da verdadeira crise e a invenção de crises para desviar a atenção do que é emergencial combater. Os recursos de persuasão e as posições avaliativas são conduzidas retoricamente para efetivar, no leitor, a reciprocidade de valores que se alinham com os de um editorial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo visa responder às seguintes perguntas: (a) Como a retórica persuasiva é utilizada para construir e disseminar a narrativa de que determinadas crises são ‘falsas’? (b) De que modo a construção discursiva do editorial utiliza as estratégias persuasivas para promover a reciprocidade do leitor com os valores (ideológicos) compartilhados no jornal?
O editorial tem o objetivo de mostrar que o então governo não tem condições de enfrentar a crise da Covid-19 que ameaça o sistema de saúde e a economia do Brasil, para isso discorre sobre a negação da crise, a inércia para a tomada de medidas que poderiam amenizar as consequências negativas e combater a crise, a preocupação com uma crise inventada para desviar a atenção dos cidadãos. Nota-se que o editorial usa alguns recursos de persuasão como a legitimização por voz de expert, de nominalizações que proporcionam abstração teórica e o coloca como especialista do assunto (Eggins, 1994). Outro recurso usado para persuadir é narrar/descrever o discurso do presidente destacando a minimização da importância de uma crise mundial e do perigo que ela representa para o sistema brasileiro de saúde e para a economia. O autor orienta a leitura crítica do leitor ao salientar um trecho, significativo com o processo mental “acredito” e “”no meu entender”, do discurso do presidente em que tenta desviar a atenção de uma grande crise ao sugerir uma suspeita de fraude no sistema eleitoral, e, por meio de escolhas linguísticas de legitimização, o texto revela a falsa crise, inventada em meio a falta de liderança e num momento tão crítico. O processo mental, aqui destacado, mostra um “mundo textual” (Downing, 2003), dentro do qual as proposições apresentadas tornam-se coerentes e fazem sentido para o presidente naquele momento, ou seja, acreditar numa falsa crise.
Assim, fortalece o argumento de que o país está sem um governo adequado quando ele mais precisa de um, pois o presidente tem um comportamento inaceitável, ignorando a pandemia e criando crises que para ele são mais importantes e cujas provas não são apresentadas. Leva o leitor a refletir sobre a ausência de uma liderança eficaz durante a crise da pandemia, uma vez que as ações governamentais se mostraram inadequadas e preocupantes, não correspondendo às expectativas de um gestor em tempos tão desafiadores.
A persuasão é construída conforme o desenvolvimento do texto por meio de escolhas avaliativas lexicogramaticais que foram analisadas e revelaram os valores e ideologias que subjazem o discurso do presidente e a narrativa do editorialista para moldar a opinião do leitor.
ANEXO
As falsas crises, e a verdadeira
Já é possível dizer que a grande crise que o Brasil enfrenta não é a economia travada ou a ameaça do coronavírus; a verdadeira crise é não ter governo quando ele é mais necessário.
Notas & Informações, O Estado de S. Paulo
15 de março de 2020/03h00
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a disseminação do coronavírus atingiu a proporção de pandemia global. A designação é, na prática, pouco mais que simbólica, mas com ela a OMS pretende chamar a atenção de todo o planeta para os graves riscos econômicos e de saúde pública associados à expansão desenfreada da doença. “Estamos profundamente preocupados tanto com os alarmantes níveis de disseminação e de severidade da pandemia como com os alarmantes níveis de inação”, disse o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Assim, a OMS torna oficial o que já era a conclusão de epidemiologistas de várias partes do mundo, inclusive do Brasil. A crise do coronavírus é concreta, não uma “fantasia” criada pela “grande mídia”, como disse o presidente Jair Bolsonaro. Preocupa sobremaneira que o governo brasileiro, a julgar pelas declarações inconsequentes do presidente, esteja propenso a considerar a pandemia como sendo apenas uma “pequena crise”. Isso é “brincar com fogo” , como comentou o biólogo Fernando Reinach em sua coluna no Estado. “E provavelmente vamos nos queimar”, completou ele, ao lembrar que o sistema de saúde da Itália já entrou em colapso e que tal perspectiva levou diversos países a adotar medidas drásticas para tentar frear a expansão do vírus. No Brasil, contudo, as autoridades nem sequer decidiram quais são os cenários possíveis e, como escreveu Reinach, parecem preferir “esperar para ver”.
É assim que Bolsonaro encara crises verdadeiras: menospreza seus riscos e as considera criações da imprensa. Tem sido assim também no trato da crise econômica: enquanto milhões de cidadãos continuam a enfrentar a dura realidade do desemprego graças ao crescimento pífio do PIB sob Bolsonaro, o governo tenta convencer o distinto público de que tudo vai bem.
No caso dos efeitos da pandemia do coronavírus sobre a economia global, com óbvias consequências negativas sobre o já claudicante crescimento do Brasil, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a dizer que estava “absolutamente tranquilo”. Esse estado de negação, a exemplo do que acontece no caso do coronavírus, atrasa a adoção de medidas que poderiam ajudar o País a enfrentar a crise.
Enquanto trata problemas reais e graves como pouco relevantes, o presidente da República despende a energia que extrai de seu cargo com crises inventadas pela inesgotável imaginação dos bolsonaristas. O mais recente delírio manifestado pelo presidente foi a denúncia de que a eleição de 2018 foi “fraudada”.
“Eu acredito que, pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu tinha sido, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender teve fraude. E nós temos não apenas palavra, nós temos comprovado, brevemente eu quero mostrar”, disse Bolsonaro, com sintaxe muito peculiar. Mais tarde, questionado sobre quando mostraria as tais “provas”, o presidente desconversou: “Eu quero que você me ache um brasileiro que confia no sistema eleitoral brasileiro”.
É evidente que uma declaração dessa gravidade merecia o repúdio imediato das instituições democráticas, como fez o Tribunal Superior Eleitoral ao reafirmar a lisura das eleições de 2018 e das anteriores. E é espantoso que o presidente da República, no auge de uma combinação de turbulências que ameaçam seriamente o futuro imediato do País, prefira mobilizar a opinião pública e as instituições em torno de seus devaneios persecutórios e conspirativos. Isso talvez indique que ele acha que o mundo gira em torno de sua excelsa figura.
Infelizmente, esse tem sido o padrão de comportamento do presidente Bolsonaro ante os inúmeros desafios que se lhe apresentam desde que tomou posse, e nada indica que será diferente até o final do mandato, especialmente à medida que fica mais clara a sua incapacidade de governar, qualquer que sejam as circunstâncias.
Ou seja, hoje já é possível dizer que a grande crise que o Brasil enfrenta não é a economia travada ou a ameaça epidêmica do coronavírus; a verdadeira crise do País é não ter governo justamente quando ele é mais necessário. https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,as-falsas-crises-e-a-verdadeira,70003233516?utm_source=twitter:newsfeed&utmmedium=social-organic&utm_campaign=redes-sociais:032020:e&utm_content=:::&utm_term=
Acesso em 04/10/2021
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