DO PACTO AUTOBIOGRÁFICO AO PACTO DIABÓLICO: OS ESCRITOS EPISTOLARES DE KAFKA, SEGUNDO O PONTO DE VISTA DE GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202504101318


Samuel Cardoso¹


Resumo: O presente artigo pretende investigar a forma como Franz Kafka se utilizava de seus textos autobiográficos, em especial suas cartas, a partir das reflexões levantadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari, em sua famosa obra a respeito da literatura do autor tcheco. Em contraste com uma visão dita mais ortodoxa sobre o gênero em questão (visão aqui representada pelas percepções de Philippe Lejeune), pretende-se demonstrar como, para os autores de mil platôs, Kafka inverte o esperado pacto biográfico, tentando projetar seu sujeito do enunciado sobre a realidade concreta, em vez de fazer dele a expressão do homem de carne e osso, com seus sonhos, pensamentos e desejos. Passando pela  discussão de certos conceitos dos autores franceses, pretende-se demonstrar como estes entendiam o uso estranho e criativo que Kafka fazia de suas cartas, como um instrumento de reescrita do mundo, invertendo a lógica mais comum a respeito da percepção dos textos ditos biográficos.

Palavras-Chave: Pacto Autobiográfico, Literatura Menor, Palavras de Ordem

Abstract: This article investigates how Franz Kafka utilized his autobiographical texts, particularly his letters, drawing upon the reflections of Gilles Deleuze and Félix Guattari in their well-known work on Kafka’s literature. Contrasting with a more orthodox view of the genre (represented here by Philippe Lejeune’s perceptions), it aims to demonstrate how, for the authors of A Thousand Plateaus, Kafka inverts the expected biographical pact, seeking to project his subject of enunciation onto concrete reality, rather than making it an expression of the individual with his dreams, thoughts, and desires. By discussing certain concepts of these French philosophers, this work aims to show their understanding of Kafka’s peculiar and creative use of his letters as a tool for rewriting the world, thus overturning the common logic regarding the perception of so-called biographical texts.

1- INTRODUÇÃO

Pacto Autobiográfico foi um conceito desenvolvido por Philippe Lejeune ainda na década de setenta e posteriormente reformulado, a fim de comportar, dentro da taxonomia autobiográfica, textos menores (como diários e cartas) e textos que fugiam ao gênero narrativo (como a poesia). Prevê, o pacto autobiográfico, uma espécie de ligação entre a vida de um indivíduo (os acontecimentos, os sentimentos, os sonhos, as paixões) e os textos nos quais este a descreve. Trata-se, em suma, de um pacto pela verdade, no qual, mesmo inconscientemente, o leitor esperará que a narrativa de uma vida corresponda à verdade daquilo que foi vivido. Em outras palavras, trata-se de um conceito que prevê uma aliança entre autor e leitor, bem como uma dimensão um tanto transparente (sem distorções) da linguagem, capaz de registrar a história de uma vida nos signos que marcam o papel.

Dentre tantos autores respeitados do panteão literário ocidental, Kafka foi certamente um dos que mais nos presenteou com toda uma sorte de textos autobiográficos (cartas, notas e diários), que compõem quase uma obra à parte em sua já bastante volumosa obra literária. Menos conhecidos que seus demais escritos, os textos autobiográficos demonstram por si mesmos um nível de complexidade e maquinação que os coloca lado a lado com os textos ditos literários. Uma pergunta surge, certamente, da leitura desses textos: devem eles ser considerados parte da obra literária de Kafka, existe de fato algo em sua natureza que os distingue dos textos ditos ficcionais? Ou será que, no fundo, tudo não passará sempre de ficção?

Ao analisarem a obra autobiográfica (em especial as cartas) de Kafka, Gilles Deleuze e Félix Guattari respondem a essa pergunta de forma no mínimo curiosa: em um posicionamento teórico no qual literatura e vida se penetram, não há espaço “[…] para se perguntar se as cartas fazem ou não parte da obra, nem se elas são fonte de certos temas da obra; elas fazem parte integrante da máquina de escrita e expressão” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 63), são movimentos de escrita, nos quais as palavras mergulham nos corpos e os penetram, nos quais a linguagem passa a exercer efeito sobre o real, em vez de ser dele apenas uma imagem desfocada. Vida e linguagem, palavra e acontecimento, tudo se mistura. Se a vida pode mergulhar, com honestidade e até certa doçura, na dimensão plana da linguagem, a linguagem também pode penetrar, como pura materialidade, na dimensão tridimensional da vida concreta.

O presente trabalho pretende investigar como Gilles Deleuze e Félix Guattari compreendem a relação entre vida e obra no que diz respeito aos textos literários (em especial aos textos epistolares) do autor de A metamorfose. Para atingir tal objetivo, porém, um caminho um tanto tortuoso se faz necessário: o projeto literário de Kafka (sua máquina de escrita) só pode ser visualizado claramente em conjunto, segundo Deleuze e Guattari (2015), o que exige o esclarecimento de certos conceitos-chave dos autores franceses, bem como uma percepção mais profunda de sua forma de pensar, para que só então se possa compreender como as cartas se inserem dentro desse contexto mais amplo. Como primeiro movimento, porém, o presente estudo tenta esclarecer o conceito de Pacto autobiográfico como elaborado e revisado por Philippe Lejeune, a fim de indicar as visíveis divergências entre os autores e demonstrar como o pacto autobiográfico, nos textos epistolares de Kafka, parece inverter o movimento esperado entre o sujeito da enunciação e seu duplo refletido.

2- LEJEUNE E O PACTO AUTOBIOGRÁFICO

“Pacto autobiográfico” é um conceito desenvolvido pelo filósofo francês” Philippe Lejeune em seu primeiro livro, A autobiografia na França (1971), conceito que prevê uma espécie de liame entre a verdade do texto e a verdade do mundo, consequentemente entre a vida do autor e aquilo que escreve. Em outras palavras, por pacto autobiográfico, entende-se uma espécie de pacto pela verdade (ou ao menos um pacto pela busca da verdade), ato performativo que liga o autor a uma construção narrativa de si mesmo, construção esta materializada na própria materialidade do texto, colocada em jogo na cumplicidade da leitura. Em outras palavras, para o filósofo, haveria um acordo tácito entre autor e leitor, nos textos biográficos, que conduziria os participantes da enunciação à crença da verdade sobre o que é dito. 

Em seus primeiros escritos, Lejeune entendia a autobiografia como um simples subgênero do gênero romanesco, o que o levou a confundir os conceitos de narrativa e de ficção, bem como a renegar o caráter autobiográfico de escritos menores como cartas e diários. Definia-se, desse modo, o gênero autobiográfico “como a narrativa retrospectiva em prosa que alguém faz de sua própria existência, quando focaliza especialmente sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 82). Requeria-se, por isso mesmo, uma coincidência entre a identidade do autor, do narrador e do protagonista (as figuras de base da narrativa, dentro e fora do texto), bem como uma cronologia retrospectiva: da origem (nascimento biológico ou simbólico) ao fim (entendido como o encerramento de um ciclo²). De início, a ideia de pacto autobiográfico excluía a poesia (por ser subjetiva demais) e formas menores de escrita em prosa (como cartas, crônicas e diários), por serem pequenas demais para conter a história de uma vida inteira, retendo, no máximo, fragmentos perdidos dessa história.

Décadas mais tarde, com a experiência e a consciência adquiridas pelo caminho, o próprio Lejeune tratou de reformular as ideias centrais de seus primeiros livros, relativizando boa parte de suas exigências, atingindo, por isso mesmo, um nível mais filosófico e menos técnico do conceito de autobiografia. O pacto, que anteriormente precisava ser explícito (formal), agora poderia achar-se implícito no próprio texto. A coincidência dos nomes próprios (e o que são, afinal, os nomes próprios?) agora não mais seria exigida, pois a identidade de uma existência singular pode se dissimular no jogo dinâmico dos fonemas. Por fim, até mesmo a linearidade e o tamanho dos textos ditos autobiográficos acabaram revisados, abrindo, por isso mesmo, um campo gigantesco de análise. Diários, cartas, ensaios, todos deixariam entrever, de forma mais ou menos explícita, o pacto que liga vida e texto. A poesia, por mais subjetiva que seja, por mais dinâmicos que sejam seus sujeitos, pode carregar em seus versos a essência de uma vida real. Em “O pacto autobiográfico: 25 anos depois”, principal texto a revisar os conceitos de autobiografia, Lejeune deixa claro: só o pacto faz a diferença. Só o pacto pode reter a verdade de uma vida no próprio corpo da letra que a escreve. É o pacto (e apenas ele) que diferencia um romance autobiográfico de uma autobiografia, uma carta ou um diário de seus respectivos duplos em um romance, um acontecimento histórico e singular de um conto ou uma novela.

O pacto, assim entendido como um contrato, uma aliança, deve ser levado em conta pelo leitor, ainda que para ser ignorado. A ideia original, de que o pacto é externo ao texto, é definitivamente abandonada por Lejeune. O pacto é formal, mas isso apenas na dimensão em que os corpos penetram as palavras. Se, e apenas se, a história contada pelos signos penetrar a história da vida de seu autor, teremos um pacto autobiográfico, seja qual for sua forma. É a vontade de verdade, a vontade de fazer com que a linguagem corresponda aos problemas, acontecimentos e dilemas reais, o que torna o pacto tão poderoso. E é essa vontade, sempre presente, sempre presumida, o que faz com que os textos biográficos se tornem tão especiais.

Para acreditar em tudo isso, obviamente, faz-se necessária certa dose de boa fé. Isso, por si só, explica a dificuldade encontrada pelos gêneros biográficos, tomados quase sempre como uma escrita menor: “[…] as pessoas desconfiavam do pacto! O momento em que alguém nos prepara para suas confidências e tenta nos seduzir é certamente visto como uma fraqueza ou um ardil, que deveria ser lido com indulgência e não como um momento forte e verdadeiro.” (LEJEUNE, 2008, p. 83). Fé, no entanto, é diferente de ingenuidade. O próprio Lejeune esclarece: “Eu confiei neles (…) É uma promessa. Acreditar nela não significa que eu era um tolo, ou um etnólogo ingênuo que acreditava na verdade literal das lendas contadas pelos indígenas, mas que mergulhava na verdade dessa magia”. (LEJEUNE, 2008, p. 84). Magia assumida pela própria narrativa, que funde a palavra concreta (a linguagem como corpo entre corpos) ao corpo material de seu escritor.

Compreender a narrativa autobiográfica como uma tentativa ingênua de reter a essência de uma vida no corpo de um texto (o que levaria a uma simples virtualização ou registro), no entanto, mostra-se um grande equívoco. O texto autobiográfico não é um documento histórico, tampouco ficção travestida de história. A autobiografia se apresenta, segundo Lejeune, como um processo literário de reconstrução de uma história, uma tentativa de dar sentido à vida que se inscreve no texto. O que se busca, no processo de escrita, não é virtualização da experiência vivida, e sim a reconstituição dessa experiência por meio da potência da prática literária, a reconstrução da potência da vida pela força dos signos. A autobiografia é uma forma de reviver, de desmanchar a própria história nas letras que a escrevem, para fazer do texto uma nova experiência de vida. Ficção e autobiografia são, portanto, casos distintos de narrativa, mas isso porque a própria narrativa faz parte da vida e deve ser entendida como uma prática, não como simples simulacro: “Hoje sei que transformar sua vida em narrativa é simplesmente viver. Somos homens-narrativa. A ficção significa inventar algo diferente dessa vida” (LEJEUNE, 2008, p. 86). História e letra estão desde sempre unidas. Os textos autobiográficos são aqueles que aceitam essa ligação e fazem dela a matéria prima de uma nova experiência.

A pergunta que o conceito de pacto autobiográfico procura responder (é possível a essência de uma vida se inscrever na linguagem?) pode, no entanto, ser invertida, e teríamos algo como: é possível a linguagem se inscrever na essência de uma vida? Até aqui, tentou-se esclarecer o sentido de pacto autobiográfico como compreendido por Lejeune. Gilles Deleuze e Félix Guattari têm, certamente, um posicionamento bastante diferente (quase oposto), apesar de também reconhecerem um imbricamento entre a linguagem e o mundo. Antes de analisar como o pacto autobiográfico é compreendido no livro que analisa a obra de Kafka, faz-se necessário analisar a articulação entre a linguagem e a vida e as potencialidades do texto literário no pensamento de Deluze e Guattari. Só então será possível analisar o conceito de Literatura Menor e os desdobramentos de tal concepção na análise que Deleuze e Guattari fazem da obra de Kafka, especificamente em suas cartas.

3- A LINGUAGEM E A VIDA EM DELEUZE E GUATARRI

O que é a linguagem? A questão, assim como diversas de suas respostas formuladas ao longo da história, é bastante antiga. O que define a linguagem? Seria ela representação, designação, ou sentido? Poderíamos afirmar que ela é tudo isso e muito mais. Sob a perspectiva formal, a linguística estrutural oferece algumas respostas: um signo (uma palavra, que pode ser um som ou uma marca) substitui algo ao qual se refere. O que é representado ou designado nunca consegue abarcar o objeto em sua totalidade, mas apenas uma imagem, uma espécie de reflexo dele. Surge, então, uma longa cadeia de signos, que, pela sua lógica distributiva e oposição, constroem o próprio fenômeno da significação. Como último passo, esses signos se organizam em uma frase ou em um período específico, conforme regras sintáticas preestabelecidas, e assumem posições estruturais dentro da língua (como sujeito, verbo, complemento etc.). Embora a estrutura varie de uma língua para outra, ela sempre se faz presente.

No entanto, isso não parece ser suficiente. A linguística e os estudos sobre linguagem evoluíram ao longo dos anos. Alguns teóricos identificaram na criatividade da linguagem (em nossa competência e desempenho) o principal atributo da espécie humana e expandiram essa ideia para os domínios políticos. Outros, por sua vez, perceberam que não são as sentenças já cristalizadas (nem as regras estruturantes que as compõem) que definem a essência da linguagem, mas sim a enunciação. Invertendo a antiga dicotomia língua-fala e atribuindo à fala a primazia, percebeu-se que o signo (estrutura vazia) só se preenche e se torna real quando passa pela boca (ou pelo corpo) que o emite. A mesma palavra, evidentemente, já foi pronunciada por outros corpos, passando por diversas bocas, o que faz com que esse simples conjunto de sons articulados, já tão complexo em seu funcionamento, tenha múltiplos donos e uma história densa. Outros pensadores apontam que, ao se mapear o trajeto e as vozes que se agregam a uma sentença ao longo do tempo, podemos identificar não apenas seu local político, mas também o local epistemológico de sua origem. Há ainda aqueles que veem a linguagem como a chave para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo. Por fim, há os os que, para o bem ou para o mal, fazem da linguagem (e do “eu”) a morada do sujeito que fala. Saussure, Chomsky, Bakhtin, Pêcheux, Lee Whorf, Benveniste, entre outros, cada um à sua maneira, contribuiu — e ainda contribui — para que possamos olhar a linguagem de uma forma mais rica e multifacetada. Apesar das diferentes abordagens, o que fica claro é que a linguagem humana é, acima de tudo, um fenômeno extremamente complexo, que envolve estrutura, capacidade, função, atividade, cognição, organização, e mais. Essas dimensões não podem ser separadas sem que se perca a totalidade do fenômeno.

O que Deleuze e Guattari trazem de mais significativo sobre a linguagem é, acima de tudo, a tentativa de descobrir uma nova dimensão dos fenômenos linguísticos, que vai além da simples revisão dos conceitos tradicionais. Para eles, a linguagem se apresenta como algo que é inscrito nos próprios corpos dos sujeitos, em um nível molecular, onde os signos e o mundo, as palavras e as coisas, se misturam de maneira indiscernível (rizoma). Como afirmam, “uma mesma partícula funcionará como corpo que age e sofre, ou mesmo como signo que faz ato, que cria palavra de ordem, conforme a forma em que se encontra” (DELEUZE; GUATTARRI, 1995b, p. 21-22).

Deleuze (1974), ao abordar a filosofia da linguagem, não encontra sua base na linguística moderna, mas em uma tradição muito mais antiga: a dos estoicos, filósofos da Grécia Antiga. Segundo o autor, foram os estoicos os primeiros a desenvolver uma teoria da linguagem, antecedendo a metafísica platônica e seu binarismo (ideia-matéria), que influenciou a linguística saussuriana. Em suma, os estoicos elaboraram uma teoria da linguagem que precede as bases metafísicas que marcaram os estudos da linguagem desde a filosofia platônica. Deleuze e Guattari, nesse sentido, encontram nos estoicos uma espécie de “Melquisedeque” da filosofia da linguagem.

Antes de mergulhar na filosofia da linguagem dessa escola tão complexa, no entanto, é necessário entender um pouco de sua cosmologia. Para os estoicos, o mundo sensível está dividido entre corpos materiais e acontecimentos imateriais. Os corpos são formados pela aglomeração de substâncias, enquanto os acontecimentos surgem do choque entre esses corpos. Cada evento é resultado desse choque, transformando os corpos, e cada transformação é marcada pelo movimento e pelo devir. Nascer, crescer, engordar e morrer são exemplos de acontecimentos, pois os corpos estão sempre em transformação. Não há um mundo das ideias ou um espírito, além do acontecimento, que nada mais é que a transfiguração dos corpos. A essência da vida reside no movimento contínuo das coisas.

E o que seria a linguagem? Certamente não o signo, já que este, por si só, também não passa de um corpo. No entanto, os signos nos atravessam, nos tocam: às vezes, nos deixam quase sem perceber, outras vezes deixam marcas ou feridas profundas. Podemos também absorver os signos, tornando-os parte de nós mesmos. Se eles não nos fazem crescer ou engordar, como o alimento que ingerimos, suas propriedades físicas, e são essas que importam, carregam outros atributos. O que é o pensamento, senão o signo que impõe uma violência ao corpo que pensa?

O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência desse encontro que assegura a necessidade do que ele provoca. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; ao contrário, ele é a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar dentro do próprio pensamento. Essa gênese implica algo que violenta o pensamento, tirando-o de seu estado natural de estupor, de suas possibilidades meramente abstratas (DELEUZE, 2003, p. 91).

E o que seria a representação, senão os signos (e seus respectivos campos simbólicos) desenhando seus traços sobre o real, tornando-se parte dele, cravando divisões virtuais no espaço social, material e político? A representação, a significância e a inferência são, na verdade, efeitos ou dimensões secundárias. O efeito mais relevante da linguagem sobre o mundo é, para Deleuze e Guattari, o que podemos chamar de “palavra de ordem”. Para esclarecer melhor esse conceito, contudo, será necessário um novo espaço de discussão.

4- DEVIRES, CORPOS SEM ORGÃOS E LINHAS DE FUGA: A LITERATURA MENOR EM KAFKA

É do romancista e linguista Elias Canetti, grande admirador do “poeta maldito” Karl Kraus, que Deleuze e Guattari extraem sua noção de “palavra de ordem”, assim como a metáfora que a ilustra: o rugido do leão. Muito mais do que uma simples ameaça, o rugido do leão configura uma espécie de “divisão do espaço”, separando aqueles que têm a capacidade de matar daqueles que não desejam morrer. Trata-se ao mesmo tempo de uma sentença de morte e de uma possibilidade de fuga. A palavra de ordem deve, portanto, ser compreendida não apenas como “comando”, mas também como ordenação, organização, divisão e estabelecimento de fronteiras. Cada ordem, por menor que seja, cada sentença mínima (sob a ótica pragmática, e não gramatical), carrega em si uma pequena sentença de morte: “Uma ordem do pai ao filho — ‘você fará isso’, ‘não fará aquilo’ — não pode ser dissociada da pequena sentença de morte que o filho sente em algum ponto de sua existência” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 45). No entanto, esse princípio original da linguagem traz consigo também uma dimensão positiva de resistência: a fuga, entendida aqui não como renúncia, mas como uma abertura para novas possibilidades, um rasgo no tecido do concreto, que conduz o pensamento a novas formas de pensar.

Mas a palavra de ordem é também algo mais, indissociável disso: é como um grito de alerta ou uma mensagem de fuga. Seria simples demais afirmar que a fuga é uma reação à palavra de ordem; ao contrário, ela se encontra, na verdade, embutida nesta, como sua face oposta em um arranjo complexo, seu outro componente. […] A palavra de ordem possui dois tons. O profeta recebe igualmente as palavras de ordem ao fugir, como quando deseja a morte: o profetismo judaico combinou o desejo de estar morto com o impulso de fuga, juntamente com a palavra de ordem divina (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 46).

Por um lado, há uma força que transforma a própria linguagem em um espaço de ordem, de definição de certezas (Deleuze chamaria isso de territorialização), de sedimentação de verdades, que impõe uma ordem de juízo sobre a realidade. Por outro, há uma potência de fuga, de metamorfoses, de devir, onde toda verdade e julgamento se desintegram.

O modo maior e o modo menor são duas abordagens da língua: uma, voltada para extrair dela constantes; outra, para colocá-la em uma variação contínua. No entanto, dado que a palavra de ordem é a variável de enunciação que efetua a condição da língua e define o uso dos elementos segundo uma ou outra abordagem, é à palavra de ordem que devemos nos voltar, como a única “metalinguagem” capaz de capturar essa dupla direção, esse tratamento duplo das variáveis (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 45).

Neste ponto, fica claro que a base filosófica de Deleuze e Guattari é Nietzsche. Vontade de Verdade (o desejo de compreender o mundo, de classificá-lo, dividi-lo em partes e torná-lo mais compreensível: o desejo de dar um sentido à vida para dominá-la) e Vontade de Potência (o desejo de se entregar ao fluxo espontâneo dos corpos e suas potências, desejo de se libertar das algemas da moral e do julgamento, a alegria que só se encontra diante do abismo), ambas atravessam a trama dos corpos e a potência da linguagem. A linguagem é, portanto, inseparável dos desejos que transporta em seus signos.

Ao evocar Kafka, Kleist, Beckett, Proust, Carroll como representantes de uma literatura menor em oposição a figuras como Goethe e Schiller, Deleuze e Guattari não têm em mente uma suposta missão política explícita ou implícita desses textos (o que seria, sem dúvida, uma leitura bastante redutora), tampouco os usos de uma norma estética (algo que, em muitos casos, sequer faria sentido), mas sim a forma como a obra de cada um desses autores se relaciona com a inscrição de uma palavra de ordem no mundo, a maneira como os pratos da balança se inclinam para o lado de uma sentença de morte ou, ao contrário, para o lado de uma rota de fuga. Como exemplo (e há muitos outros), consideremos a relação entre o que Deleuze e Guattari chamam de uma máquina de guerra nômade (representante da literatura menor) e a ordem imposta pelo Estado (representante da literatura maior):

Os nômades criaram uma máquina de guerra contra o aparelho estatal. […] Ao longo de uma longa história, o Estado foi o modelo do livro e do pensamento: o logos, o filósofo-rei, a transcendência da Ideia, a interioridade do conceito, a república dos espíritos, o tribunal da razão, os funcionários do pensamento, o homem legislador e sujeito. O Estado se pretende a imagem interiorizada de uma ordem do mundo e a raiz do homem. No entanto, a relação de uma máquina de guerra com o exterior não é outro “modelo”, mas um arranjo que torna o próprio pensamento nômade, tornando o livro uma peça para todas as máquinas móveis, uma haste para um rizoma (Kleist e Kafka contra Goethe). (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 35)

A diferença entre uma literatura maior e uma literatura menor não reside, portanto, em naturezas ontológicas distintas, mas sim em contingências ou, do outro lado, dispersões que buscam tornar a literatura um espaço de ordem mimética do mundo. Como as antigas religiões de mistério, que capturavam o brilho e o caos do céu estrelado para transformá-los, com a autoridade de tempos imemoriais, na representação do mundo dos “homens de bem”, a linguagem pode ser a ordenadora do mundo dos homens. Ou, pelo contrário, também pode ser entendida como um espaço onde os signos se chocam contra os corpos sem qualquer contingenciamento que nos proteja deles, para fazer ruir a ordem das coisas e possibilitar outras formas de pensar.

Kafka seria, assim, um dos representantes de uma literatura menor, uma literatura do devir, das metamorfoses, que desafia a ordem da linguagem escrita no mundo. Mas como o escritor tcheco operou essa desterritorialização? Para Deleuze e Guattari, Kafka criou uma máquina literária de desafio, que seguiu, de alguma forma, uma ordem cronológica, das cartas aos romances, passando pelas novelas. Em cada um desses campos, ele operava diferentes desterritorializações.

Nas novelas, Kafka se entregou ao que Deleuze e Guattari chamam de “devires animais”, entre outros. Os animais não são metáforas do homem, mas outro estado. Não são ainda uma linha de fuga, mas a desenham. Não representam, certamente, a fúria animalesca do homem que se liberta da dominação; mostram-se, ao contrário, como seres contingenciados, escravizados, que desenham suas próprias linhas de fuga, para demonstrar a força da opressão sobre o corpo e criar em seus leitores o desejo de fugir.

Os juízos certamente existem para esses animais. Os personagens de Kafka são atravessados por forças poderosas que não podem controlar, sentem a sentença de morte em seus corpos. Gregor Samsa, por exemplo, em A Metamorfose, é vítima de um poder que usa seu corpo, transfigurando-o violentamente, até que ele se veja transformado em um inseto. Acompanhamos um longo processo, no qual Gregor ora se entrega ao desejo de ordem que o aprisiona (como quando ele se apega ao quadro da mulher de peles, o único objeto humano em seu quarto, enquanto sua irmã tenta retirá-lo da parede), ora se entrega a seu devir-inseto (como quando percebe, com alegria, que pode se agarrar às paredes e ao teto e se mover com grande agilidade). Surge, então, a ferida dolorosa da maçã que o pai atirara em suas costas, que apodreceu sobre sua carapaça. A maçã não passava de um juízo, como se dissesse: “você é um homem, não pode se pendurar no teto como um animal! Volte a se comportar como um homem!”. O devir inseto, por outro lado, traça uma linha de fuga, um caminho pelo qual Gregor pode se libertar das forças que tentam aprisioná-lo e classificá-lo como “homem trabalhador, bom filho e irmão, um exemplo a ser seguido”. É um devir que não existe apenas em Gregor, mas também em todos aqueles que acompanham sua história. É um devir expressão-conteúdo, não uma metáfora, como Deleuze e Guattari insistem em nos lembrar. É um devir que penetra em nós:

Em suma, as novelas animalescas são uma peça da máquina de expressão, distinta das cartas, pois elas não operam mais no movimento aparente, nem na distinção de dois sujeitos; mas, ao atingir o real, escrevendo no próprio real, elas não deixam de estar presas em uma tensão de dois polos ou de duas realidades opostas (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 70).

E os romances? Para os filósofos franceses, os romances representam o ápice da literatura menor. Mais do que as novelas, os romances ilustram um mundo no qual o homem é vítima de vontades cegas e severas, que invadem sua vida e se apoderam de seu corpo. A justiça e a lei não são nunca frutos de um juízo transcendente e sábio, mas o resultado de uma série de agenciamentos concretos que definem sua função (não o contrário, como poderia acreditar qualquer entusiasta ingênuo do direito). A literatura pode representar a vida? Kafka, afirmam Deleuze e Guattari, vai além: ele a antecipa. A lei e a justiça são impostas por uma verdadeira coleção de máquinas abstratas (com engrenagens bem mais concretas do que imaginamos) que se infiltram na vida dos personagens até o ponto de feri-los ou mesmo executá-los: máquina fascista (O Processo), máquina burocrática-soviética (O Processo, também O Castelo), máquina compartimentalista-capitalista (América). Kafka não representa o mundo, ele nos ajuda a entendê-lo, até mesmo aquelas coisas que ainda não existem:

A linha de fuga criadora arrasta consigo toda a política, toda a economia, toda a burocracia e a jurisdição: ela as suga, como um vampiro, para fazerem sons ainda desconhecidos, os sons do próximo futuro: fascismo, stalinismo, americanismo, as potências diabólicas que batem à porta (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 76-77, grifo dos autores).

Nos romances, Kafka não só descreve os tons de um futuro nebuloso (com suas máquinas diabólicas), mas também contribui para a composição de uma resistência: as máquinas se dissolvem (como na Colônia Penal). A força que os romances de Kafka aperfeiçoam (mas que já estava presente mesmo em seus primeiros textos) contra as engrenagens dessas máquinas futuras é a força do riso: “Jamais houve autor mais cômico e alegre do ponto de vista do desejo; jamais autor mais político e social, do ponto de vista do enunciado. Tudo é riso, a começar pelo processo. Tudo é político, a começar pelas cartas a Felice” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 68). A força do riso e do cinismo ajuda a dissolver a verdade arbitrária da palavra de ordem, a intromissão violenta do signo no mundo natural. Gargalhar na cara do leão, entregar-se, como um suicida, à sentença de morte, talvez seja a melhor forma de escapar.

Por fim, as cartas. As cartas são o primeiro movimento, não necessariamente o mais simples, da máquina de escrita kafkiana. Com elas, Kafka aprendeu que não apenas a vida pode se materializar na linguagem, mas que a linguagem também pode se inscrever na vida, promovendo uma verdadeira inversão do real-virtual. Esse complexo funcionamento das cartas dentro da máquina de escrita de Kafka será analisado a seguir.

5- DO PACTO AUTOBIOGRÁFICO AO PACTO DIABÓLICO: A AVENTURA PERVERSA DA DUPLICAÇÃO DOS SUJEITOS

Um Vampiro! É assim que Deleuze e Guattari caracterizam Kafka, no uso que ele faz de suas cartas. Cartas são, via de regra, ferramentas para nos manter conectados às pessoas queridas que estão distantes, para nos aproximarmos delas, depositando nas palavras escritas todo o sentimento de saudade, gratidão e ausência. Certo? Elas são, sem dúvida, um gênero biográfico pessoal, no qual o sujeito do enunciado penetra o espaço virtual da linguagem como duplo, para tentar se aproximar das pessoas queridas, de algum modo. Entretanto, poderíamos pensar nas cartas não como um espaço de materialização do sujeito que sofre ou que ama, mas como algo diferente, e até mesmo mais estranho: um verdadeiro laboratório de signos, de onde podem emergir fórmulas imprevistas. O espaço de aproximação se transformaria, desse modo, em um espaço de pura experimentação.

Kafka inverte o pacto biográfico tradicional, substituindo-o por algo mais diabólico, torna-se o verdadeiro Fausto da escrita, com sua escrivaninha funcionando como seu altar e seus papéis e tinta como fórmulas secretas. Se considerarmos a famosa distinção entre o sujeito da enunciação (aquele sujeito de carne e osso, que se representa ao dizer “eu”) e o sujeito do enunciado (um ser de papel que deveria apenas representar, na carta, a ausência do sujeito da enunciação), veremos, como Deleuze e Guattari observam, que Kafka se recusa a seguir esse pacto sagrado. Seu sujeito do enunciado não é apenas uma extensão do sujeito real; ele o alimenta, o amplia, para que tenha uma vida própria: “O uso das cartas, então, consiste nisso… ele transfere o movimento sobre o sujeito do enunciado, conferindo-lhe um movimento aparente, um movimento de papel, poupando o sujeito da enunciação de qualquer movimento real” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 62).

Aqui, não se trata de desonestidade ou traição, mas sim de um uso alternativo do espaço virtual da carta. Mas para que serviria tal uso subversivo? Deleuze e Guattari explicam: Kafka retira das cartas “[…] uma força física para escrever… Um fluxo de cartas por um fluxo de sangue” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 60). O duplo, que deveria ser apenas uma repetição do sujeito real, transforma-se em um vampiro que alimenta seu mestre. As cartas de Kafka são o sangue que o sustenta: cartas-morcegos, como chamam Deleuze e Guattari. A escrita de Kafka está sempre ligada à sua Vontade de Potência.

Kafka expande, em suas cartas, a paixão, transformando-a em uma paixão virtual. Suas cartas para as namoradas descrevem o movimento de um sujeito do enunciado cada vez mais apaixonado, enquanto o sujeito de carne e osso permanece indiferente ao pacto conjugal. “Ele só teme duas coisas: a cruz da família e o alho da conjugalidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 59). O amor perfeito, para Kafka, é aquele que se encerra quando o fluxo constante das cartas cessa, pondo fim a qualquer vínculo material:

Exemplo de um amor tipicamente kafkiano: um homem se apaixona por uma mulher que ele viu apenas uma vez; toneladas de cartas são trocadas; ele nunca poderá visitá-la; guarda as cartas em um baú; e no dia seguinte à última carta, ao voltar para casa à noite no campo, atropela o carteiro (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 61).

Não que ele não amasse, mas o fazia na potência dos signos, nutria um intenso amor virtual, uma constante experiência de amar, nas letras que desenhava sobre o papel.

Por outro lado, as cartas para o pai são um experimento de culpa, não uma neurose. De acordo com Deleuze e Guattari, Kafka amplifica seu complexo de Édipo e o coloca em exibição, tornando-o sua bandeira. Ele abandona o Édipo neurótico, no qual o pai amado se torna o pai odiado, e cria, em seu lugar, um Édipo esquizo, no qual a inocência do pai é repetida em uma sentença ainda mais severa para o filho. No entanto, Kafka exibe este Édipo robusto com um objetivo positivo: “A questão do pai não é como se tornar livre em relação a ele (como na questão edipiana), mas como encontrar um caminho onde ele não o encontrou” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 61). Ele projeta a imagem do pai sobre o mapa do mundo para localizar as falhas que o rosto do pai não cobre.

Compreender que a neurose (o desejo submisso) gera o Édipo, e não o contrário, é a chave para entender sua obra. Encarar a culpa e escavar uma linha de fuga é o propósito dessa escrita. A Carta ao pai não deve ser vista como um acerto de contas, muito menos como um desabafo. Ela não é uma expressão de angústia de um neurótico indefeso diante de um pai poderoso; ao contrário, é a luta do filho contra uma maquinaria que pesa sobre ele, que faz de seu corpo o lócus de uma culpa ancestral. A carta, por si só, busca escavar uma rota de fuga.

Se considerarmos os textos de Kafka apenas como expressão dos sentimentos de um sujeito frágil, como uma forma de luta introspectiva, não entenderemos sua verdadeira essência. Deleuze e Guattari alertam sobre o perigo de interpretá-los dessa maneira: “É por isso que é tão impróprio, tão grotesco, opor a vida à escrita de Kafka, supor que ele se refugia na literatura por falta, fraqueza ou impotência diante da vida. Um rizoma, uma toca, sim, mas não uma torre de marfim. Uma linha de fuga, sim, mas não um refúgio” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 76-77). Seus textos são uma expressão de uma vontade de agir, que escorrega sobre a realidade mais do que se aprofunda no virtual. Eles estão longe de ser uma prisão de papel; são, ao contrário, o efeito puro dos signos sobre os corpos. Uma construção política, um grito de guerra, até mesmo nas mais simples cartas de amor.

O que nos interessa aqui, neste trabalho, no entanto, é essa aparente inversão do papel autobiográfico empreendida pelo autor tcheco. Se, para Lejeune, a força de uma vida (seus sentimentos, suas emoções, suas lembranças e seus desejos) poderia ser capturada pela potência criadora dos signos, para Deleuze e Guattari, a força da linguagem poderia, pelo contrário, desenhar algo absolutamente novo sobre o real, forçar saídas e possibilitar espaços de pensamento. Em suma, a linguagem poderia reescrever o real, dando-lhe outros contornos, outra existência, mais potente que a original.

Se a proposta de Philippe Lejeune parece representar, nos dias atuais, uma percepção mais ortodoxa sobre os textos biográficos, apesar da profundidade de suas análises, Deleuze e Guatarri parecem nos indicar, a partir do potente exemplo de Kafka, que há muito mais a se fazer com esses textos, que eles possuem outros papeis, tão importantes quanto o pacto autobiográfico, ou talvez até mesmo mais. Se, no primeiro exemplo, é o real que pode, na força dos signos, materializar-se na linguagem, no segundo caso, é a força dos signos que pode penetrar a realidade de carne e sangue da existência concreta, como um corpo entre os outros corpos. De nossa parte, ficaremos com a segunda proposta, que nos parece inovadora, sem contudo abandonarmos a primeira, que nos soa muito mais acalentadora.

6- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para compreender os efeitos que uma literatura como a de Kafka atinge, faz-se necessário visualizar uma nova dimensão da linguagem. O espaço do texto literário é certamente o espaço do neutro (o vazio, o fora), que não está nem no mundo, nem propriamente nos signos, virtualidade da linguagem que evoca sua própria ausência, como já afirmava Heidegger: “O lugar de chegada convocado na evocação é uma vigência que se abriga na ausência” (HEIDEGGER, 2013, p. 22). Mas a ausência do evocado é certamente preenchida pela materialidade do signo que nos atinge na própria prática da leitura. É nessa dimensão de materialidade da linguagem (portanto, uma dimensão positiva) que Deleuze e Guattari elaboram seus estudos.

O texto atravessa o vivível. Não são os conteúdos significativos expressos pelo texto que fazem de uma obra literária uma máquina de guerra política. A máquina literária criada por Kafka é política justamente porque não pressupõe a passividade de uma linguagem transparente (língua instrumental), e sim a potência efetiva dos signos. É no interior da linguagem e em seus efeitos sobre os corpos que a língua se torna política, não na relação entre a representação e o representado. As cartas de Kafka participam ativamente dessa máquina de escrever nos corpos. Como os romances e as novelas, elas possuem uma função, como uma engrenagem dessa máquina.        

Não era intensão deste trabalho investigar como Deleuze e Guattari viam o pacto autobiográfico, e sim esclarecer como a visão dos autores contrastava com a visão de um autor como Lejeune. Se as posições de Deleuze e Guattari sobre as cartas de Kafka parecem opostas às que Lejeune formula em seus textos, é preciso esclarecer: elas não são excludentes. Como Deleuze e Guattari mesmo demonstram, o maior perigo das cartas residia em uma espécie de refluxo: se os sentimentos alimentados e inflados por esse ser de papel se voltarem realmente contra seu dono, não resultaria isso em uma reterritorialização a partir do objeto que deveria justamente escavar uma rota de fuga? Dizer que a linguagem se escreve no real, não significa, portanto, negar que o real se materializa no texto. As dimensões tratadas pelos autores franceses, em suas respectivas obras, são certamente diferentes: em Lejeune, o real se inscreve na linguagem; em Deleuze e Guattari, a linguagem se escreve no mundo, participa dele. Isso, contudo, não significa que essas duas dimensões tão importantes da escrita não possam coexistir.


²Se não há nenhum problema em iniciar um texto dito autobiográfico pelo nascimento biológico do sujeito-narrador, o mesmo não pode ser dito sobre sua morte, pois isso automaticamente transformaria a autobiografia em ficção (espécie de Memórias Póstumas de Brás Cubas), já que, parece óbvio, mortos não podem escrever sobre si próprios. Mais tarde, como se verá, o próprio Lejeune reveria essa ideia: a simbologia e a ficção não apagam o pacto, não podem destruir a vontade de verdade que o sustenta.

BIBLIOGRAFIA

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas fortes. São Paulo: Perpectiva, 1974.

_____. Proust e os signos. 2.ed. trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vl. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de janeiro: Editora 34, 1995.

_____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vl. 2. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de janeiro : Editora 34, 1995b.

_____. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. Sçao Paulo: Editora 34, 1997.

_____. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2015

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2013.

LEJEUNE, Philippe. Pacto biográfico: 25 anos depois. In: _____. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.


¹Mestre em Educação na área de Educação, Linguagem e Memória pela Universidade do Extremo Sul Catarinense-Unesc. Doutorando em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catarinense-Unesc. Bolsista do Programa de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Novel Superior – CAPES.