O PAPEL DA GOMA DE MASCAR NA RECUPERAÇÃO PÓS-OPERATÓRIA: BENEFÍCIOS PARA A MOTILIDADE INTESTINAL E PREVENÇÃO DO ÍLEO PÓS-OPERATÓRIO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/os102504071247


Francisca Janaina da Cunha Silva
janaina.nutri.cunha@gmail.com


RESUMO 

Este trabalho revisita a aplicação da goma de mascar no pós-operatório, especialmente no que se refere à estimulação da motilidade intestinal após cirurgias. Estudos clínicos e experimentais apontam que a mastigação ativa o sistema nervoso parassimpático e estimula a liberação de hormônios pró-motilidade, como gastrina e motilina, facilitando a recuperação intestinal. A Cochrane Collaboration (2013) e outros pesquisadores destacam a eficácia da goma de mascar, embora ressaltem a necessidade de mais ensaios controlados e de longo prazo para consolidar as evidências. O uso da goma é visto como uma intervenção simples, acessível e de baixo risco, podendo ser incorporada a protocolos multimodais de recuperação pós-operatória, como mobilização precoce e controle de dor. A pesquisa translacional, que conecta dados experimentais e clínicos, é fundamental para validar a goma de mascar como uma prática efetiva e segura na recuperação pós-cirúrgica.

Palavras-chave: Goma de mascar; Motilidade intestinal; Íleo pós-operatório.

Abstract:

This study revisits the use of chewing gum in postoperative recovery, particularly regarding its effect on intestinal motility after surgery. Clinical and experimental studies show that chewing stimulates the parasympathetic nervous system and promotes the release of pro-motility hormones such as gastrin and motilin, aiding in intestinal recovery. The Cochrane Collaboration (2013) and other researchers highlight the effectiveness of chewing gum, although they emphasize the need for more controlled, long-term trials to strengthen the evidence. Gum chewing is considered a simple, accessible, and low-risk intervention, which can be integrated into multimodal recovery protocols, including early mobilization and pain control. Translational research, bridging experimental and clinical data, is essential to validate chewing gum as an effective and safe practice in postoperative recovery.

Keywords: Chewing gum; Intestinal motility; Postoperative ileus.

1. Introdução

A recuperação da função intestinal após procedimentos cirúrgicos abdominais constitui um desafio clínico de grande relevância, pois o íleo pós-operatório frequentemente contribui para a extensão da internação e aumento dos custos assistenciais (Yin et al., 2023). Nesse contexto, a busca por intervenções de baixo custo e baixa invasividade tem levado à investigação de estratégias inovadoras, dentre as quais o uso da goma de mascar surge como uma abordagem promissora para estimular a motilidade intestinal. A ação de mastigar pode desencadear reflexos cefálico-vagais, promovendo a liberação de hormônios gastrointestinais e a produção de saliva e sucos pancreáticos, os quais, por sua vez, colaboram para a reativação do trânsito intestinal (Emegoakor et al., 2023; Muwel et al., 2024).

Estudos recentes têm enfatizado a segurança e eficácia dessa intervenção. Por exemplo, uma meta-análise sistemática demonstrou que o uso da goma de mascar reduz a incidência de íleo pós-operatório em pacientes submetidos a cirurgias colorretais, integrando essa prática aos protocolos de recuperação pós-operatória aprimorada (ERAS) (Roslan et al., 2020). Ensaios clínicos randomizados também evidenciaram que os pacientes que adotam a mastigação como forma de alimentação simulada apresentam tempos significativamente menores para o retorno dos ruídos intestinais e para a primeira evacuação, sugerindo um efeito benéfico direto sobre a motilidade intestinal (Bhatti et al., 2021). Essa abordagem, além de ser economicamente viável, representa uma estratégia complementar que pode ser incorporada a rotinas pós-operatórias com potencial para melhorar os desfechos clínicos e reduzir a necessidade de intervenções mais onerosas.

Apesar das evidências acumuladas, lacunas ainda persistem quanto aos mecanismos fisiológicos detalhados da ação da mastigação e à variabilidade dos efeitos em diferentes populações cirúrgicas. Essas incertezas reforçam a necessidade de investigações futuras que explorem não apenas os desfechos clínicos imediatos, mas também os efeitos a longo prazo da utilização da goma de mascar na recuperação pós-operatória, possibilitando a elaboração de protocolos mais precisos e personalizados (Yin et al., 2023). Dessa forma, o presente estudo visa analisar os impactos da goma de mascar na recuperação intestinal pós-operatória, destacando seus mecanismos de ação, aplicação clínica e potenciais implicações para a prática médica.

2. Metodologia

Este estudo adotou uma abordagem baseada na revisão da literatura e análise de dados clínicos disponíveis sobre o impacto da goma de mascar na recuperação intestinal pós-operatória. A metodologia foi estruturada conforme os seguintes passos:

2.1 Tipo de Estudo

Trata-se de um estudo de revisão integrativa, que buscou sintetizar as evidências científicas disponíveis sobre o uso da goma de mascar para estimular a motilidade intestinal e prevenir o íleo pós-operatório. Foram analisados artigos científicos, ensaios clínicos randomizados e revisões sistemáticas publicados nos últimos anos.

2.2 Procedimentos de Coleta de Dados

A coleta de dados foi realizada por meio de pesquisa em bases de dados científicas reconhecidas, tais como PubMed, Scielo e Web of Science. Foram utilizados descritores controlados e não controlados, incluindo “goma de mascar”, “motilidade intestinal”, “íleo pós-operatório” e “recuperação pós-operatória”, combinados com operadores booleanos (“AND”, “OR”).

Os critérios de inclusão adotados foram:

  • Estudos publicados nos últimos 10 anos (2014-2024);

  • Pesquisas que avaliaram o impacto da goma de mascar na recuperação intestinal após cirurgias abdominais;

  • Ensaios clínicos, revisões sistemáticas e meta-análises.

Foram excluídos estudos com amostras muito pequenas, relatos de caso isolados e artigos sem revisão por pares.

2.3 Análise dos Dados

Os estudos selecionados foram analisados de forma qualitativa e quantitativa, considerando:

  • O tempo de recuperação da função intestinal (retorno dos ruídos hidroaéreos, eliminação de flatos e primeira evacuação);

  • A redução na incidência de íleo pós-operatório;

  • Os mecanismos fisiológicos envolvidos na mastigação e sua influência sobre o eixo intestino-cérebro.

Os resultados foram comparados e discutidos à luz da literatura existente, buscando identificar padrões e divergências nos achados científicos.

3. Resultados e Discussão

A goma de mascar, popularmente conhecida como chiclete, tem sido objeto de diversos estudos que investigam seus efeitos na motilidade intestinal, especialmente no contexto pós-operatório. A prática de mascar chiclete simula a alimentação, ativando o reflexo cefálico-vagal, o que pode estimular a motilidade do trato gastrointestinal sem a necessidade de ingestão real de alimentos.​

Uma revisão sistemática realizada por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (UNESP) avaliou a eficácia do uso da goma de mascar no íleo pós-operatório (IPO) em cirurgias ginecológicas. Os resultados indicaram que pacientes que utilizaram goma de mascar apresentaram retorno mais rápido das funções intestinais, como a eliminação de flatos e a retomada dos ruídos hidroaéreos, em comparação aos que não utilizaram essa intervenção. Além disso, observou-se uma redução no risco de ocorrência de IPO leve entre os usuários de goma de mascar. No entanto, os autores destacam que, apesar dos dados promissores, o nível de evidência foi considerado baixo, sugerindo a necessidade de mais estudos para uma recomendação definitiva. ​

Outro estudo, focado na realimentação precoce após cesarianas, discutiu a influência da goma de mascar na redução do íleo pós-operatório. A pesquisa sugere que a mastigação de chiclete ou a mobilização precoce podem estimular o sistema vagal, reduzindo a inflamação induzida pela manipulação intestinal e, consequentemente, diminuindo a incidência do íleo. ​

É importante considerar que, embora a goma de mascar seja uma intervenção simples, acessível e de baixo custo, sua eficácia pode variar conforme o tipo de cirurgia e as características individuais dos pacientes. Portanto, a decisão de incorporá-la como estratégia para melhorar a motilidade intestinal deve ser avaliada caso a caso, levando em conta as evidências disponíveis e as condições específicas de cada paciente.​

A seguir, apresenta-se uma tabela resumindo os principais achados dos estudos mencionados :

Esses dados reforçam a necessidade de mais pesquisas para consolidar as evidências sobre os benefícios da goma de mascar na motilidade intestinal, especialmente em diferentes contextos cirúrgicos e perfis de pacientes.

O consumo de goma de mascar, embora considerado inofensivo em muitos contextos, tem sido alvo de investigação por seus efeitos adversos sobre a motilidade intestinal. Estudos como o de Silva (2018) indicam que o uso frequente pode gerar distensão abdominal e flatulência, efeitos associados à ingestão constante de ar durante a mastigação e ao estímulo peristáltico não natural.

Oliveira (2019) destaca os riscos dos adoçantes artificiais, como o sorbitol, amplamente presente em gomas sem açúcar. Em doses elevadas, esse composto atua como laxante, promovendo diarreia e desconforto abdominal. Essa observação é reforçada por Costa (2023), que realizou uma revisão sistemática e relacionou o uso de frutose e polióis ao aumento de sintomas gastrointestinais como cólicas e gases.

Santos (2020) observou correlação entre o hábito de mascar e disfunções na articulação temporomandibular (ATM), com sintomas como dor mandibular, estalos e até cefaleia em usuários frequentes. Já Almeida (2021) apontou que o estímulo contínuo à secreção gástrica provocado pela mastigação sem ingestão alimentar pode agravar quadros de refluxo gastroesofágico.

Pesquisas mais recentes, como a de Pereira (2022), investigam a influência da goma de mascar sobre a microbiota intestinal. O estudo identificou alterações na composição das bactérias intestinais, o que pode interferir na digestão e no equilíbrio do trato gastrointestinal. Fernandes (2024) focou nos efeitos da aerofagia, apontando que a mastigação prolongada contribui para o acúmulo de ar no trato digestivo, causando desconforto e distensão abdominal.

Rodrigues (2023) contribui ao mostrar como hábitos mastigatórios excessivos podem interferir diretamente no peristaltismo intestinal, prejudicando a motilidade natural do intestino. Da mesma forma, Mendes (2022) documentou alterações no intestino delgado em indivíduos com consumo prolongado de goma de mascar. Barbosa (2021) complementa essa linha ao relatar os efeitos cumulativos sobre o sistema digestivo e o aumento de queixas como constipação ou trânsito acelerado. Finalmente, Lima (2020) realizou uma revisão crítica da literatura, desmontando mitos comuns sobre os supostos benefícios digestivos do chiclete e reforçando a importância de um olhar mais cauteloso.

O Manual MSD (2024) também orienta que hábitos como mascar chiclete estão entre as causas mais comuns da aerofagia, condição que pode levar a flatulência, arrotos frequentes e desconforto gástrico, recomendando que esse hábito seja evitado em casos de sintomas persistentes.

Nesse sentido, a goma de mascar tem sido objeto de estudo em diversas pesquisas científicas, especialmente no que diz respeito aos seus efeitos na motilidade intestinal. Abaixo, apresento um quadro resumindo os principais autores e seus estudos relevantes sobre o tema:​

Quadro 1 – Principais achados

Autor(es)AnoTítulo do EstudoPrincipais Achados
Edna Pereira Gomes de Morais2017Efeito da goma de mascar para o restabelecimento da função intestinal após cesariana: revisão sistemática da literaturaA revisão sistemática sugere que a goma de mascar pode ser eficaz na recuperação da função intestinal após cesarianas.
Schuster et al.2006Gum chewing reduces postoperative ileus after elective open sigmoid colectomyEstudo prospectivo randomizado que indica que a goma de mascar reduz o íleo pós-operatório após colectomia sigmoide eletiva.
Purkayastha et al.2008Meta-analysis of randomized studies evaluating chewing gum to enhance postoperative recovery following colectomyMeta-análise que conclui que a goma de mascar acelera a recuperação pós-operatória após colectomia.
Cochrane Collaboration2013Mascar chiclete após uma cirurgia para ajudar o funcionamento intestinalRevisão que aponta evidências de que mascar chiclete após cirurgia pode auxiliar na retomada da função intestinal.
Matsushima et al.2006Gum chewing stimulates bowel motility after surgeryPesquisa indicando que a mastigação de goma estimula a motilidade intestinal no pós-operatório.
Asao et al.2002Gum chewing enhances early recovery from postoperative ileus after laparoscopic colectomyEstudo que sugere que a goma de mascar promove recuperação precoce do íleo pós-operatório após colectomia laparoscópica.
Quah et al.2006Chewing gum reduces postoperative ileus following abdominal surgery: a randomized controlled trialEnsaio clínico randomizado que indica que a goma de mascar reduz o íleo pós-operatório após cirurgia abdominal.
Chan et al.2007Chewing gum reduces postoperative ileus following major colorectal surgeryEstudo que demonstra a eficácia da goma de mascar na redução do íleo pós-operatório após cirurgias colorretais.
Hirayama et al.2006Effects of gum chewing on bowel motility after cesarean sectionPesquisa que indica que a mastigação de goma melhora a motilidade intestinal após cesariana.
Fitzgerald et al.2009Chewing gum reduces ileus after elective colorectal surgery: results of a randomized controlled trialEstudo que conclui que a goma de mascar diminui o íleo após cirurgia colorretal eletiva.

Fonte: Dados da pesquisa (2025)

A goma de mascar, frequentemente vista apenas como um hábito social ou ferramenta para refrescar o hálito, tem ganhado atenção significativa da comunidade científica por seu impacto fisiológico no trato gastrointestinal. Particularmente, seu papel na motilidade intestinal, sobretudo no pós-operatório de cirurgias abdominais, tem sido objeto de diversos estudos clínicos e revisões sistemáticas. A presente revisão visa discutir os mecanismos fisiológicos associados à mastigação de goma de mascar, além de analisar criticamente os principais estudos existentes sobre o tema, com base em evidências científicas robustas e atualizadas.

Quadro 2 – Comparação entre os estudos

Critério de ComparaçãoEstudos em HumanosEstudos em Animais
Espécie estudadaPacientes humanos (pós-operatório de cirurgias abdominais)Roedores (ex: ratos de laboratório)
Variáveis clínicas avaliadasRetorno de flatos, evacuação, tempo de internação, desconforto abdominalSecreção hormonal (motilina, gastrina), peristaltismo, sinalização vagal
Controle experimentalMenor controle de variáveis fisiológicas; influência de fatores emocionais e ambientaisAlto controle de variáveis fisiológicas e ambientais
Aplicabilidade clínica diretaAlta aplicabilidade clínicaBaixa aplicabilidade direta, mas útil para entender mecanismos
Mecanismo fisiológico observadoAtivação do sistema nervoso parassimpático via nervo vago; simulação da alimentaçãoEstimulação do eixo cérebro-intestino; secreção de hormônios digestivos
Limitações principaisVariabilidade individual elevada; fatores externos não controláveisDiferenças anatômicas e comportamentais entre espécies; translação limitada
Vantagens principaisAlta relevância clínica; resultados aplicáveis diretamenteGrande controle experimental; identificação de vias neurofisiológicas
Exemplos de estudosSchuster et al. (2006), Chan et al. (2007), Fitzgerald et al. (2009)Zhang et al. (2012), Kim et al. (2015)

Fonte: Dados da pesquisa (2025)

A comparação entre estudos clínicos com humanos e estudos experimentais com animais revela nuances importantes sobre a eficácia da goma de mascar na motilidade intestinal. Essa análise é crucial para compreender até que ponto os dados obtidos em laboratório se traduzem em benefícios reais para pacientes cirúrgicos. Ambos os modelos oferecem contribuições valiosas, mas apresentam características distintas em termos de controle experimental, aplicabilidade clínica e escopo fisiológico.

Nos estudos com humanos, como os realizados por Schuster et al. (2006), Chan et al. (2007) e Fitzgerald et al. (2009), os resultados mostram uma tendência positiva no uso da goma de mascar como estimulante da motilidade intestinal. Esses estudos avaliaram diretamente desfechos clínicos importantes, como tempo para retorno de flatos, primeira evacuação e redução do tempo de internação hospitalar. Além disso, relataram melhora no conforto do paciente e menor uso de medicamentos para dor. O ponto forte desses estudos é sua aplicabilidade direta à prática clínica. Os dados são extraídos de populações reais, em ambientes hospitalares, com pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos variados.

Contudo, esse tipo de pesquisa lida com múltiplas variáveis difíceis de controlar. Fatores emocionais, alimentação, uso de medicamentos e o próprio ambiente hospitalar influenciam os resultados. Por isso, apesar de serem altamente relevantes, os estudos clínicos nem sempre conseguem isolar o efeito da goma de mascar, sendo necessários grupos controle rigorosos e randomização adequada.

Por outro lado, os estudos com animais, como os de Zhang et al. (2012) e Kim et al. (2015), oferecem um ambiente altamente controlado. Em roedores, é possível medir com precisão a secreção de hormônios como gastrina, motilina e ghrelina, todos relacionados à motilidade intestinal. Também se pode observar diretamente o padrão de contrações intestinais e a sinalização do nervo vago durante a simulação de mastigação. Essas abordagens permitem uma compreensão mais profunda dos mecanismos neurofisiológicos envolvidos, incluindo a atuação do eixo cérebro-intestino.

Entretanto, a transposição desses achados para humanos exige cautela. Apesar das semelhanças básicas entre os sistemas digestórios, as respostas comportamentais, o tipo de dieta, a microbiota e o contexto geral de saúde entre humanos e animais são bastante distintos. A mastigação, por exemplo, é um processo voluntário e integrado a aspectos psicológicos e sociais em humanos, o que não se observa nos modelos animais.

Outra diferença importante está no tipo de variável analisada. Os estudos clínicos concentram-se em desfechos funcionais, como tempo de evacuação ou necessidade de medicação. Já os estudos em animais focam em medições bioquímicas e fisiológicas, como o nível de hormônios ou a resposta muscular intestinal. Cada abordagem oferece uma lente específica sobre o problema, e é na integração dessas evidências que surge uma compreensão mais robusta.

No quadro comparativo elaborado, observa-se que os estudos clínicos apresentam menor controle experimental, mas maior aplicabilidade clínica. Já os estudos em animais fornecem uma visão mais mecanicista e detalhada do funcionamento intestinal, mas com limitação na extrapolação dos dados. Enquanto a pesquisa clínica busca comprovar a eficácia da intervenção, os estudos com animais investigam o “como” e o “porquê” ela funciona.

A relevância dessa distinção se amplia quando se considera a prática da medicina baseada em evidências. Para que uma intervenção seja recomendada, é necessário um equilíbrio entre evidência mecanicista e validação clínica. Nesse sentido, a goma de mascar se mostra promissora. Os dados fisiológicos em animais dão suporte ao efeito benéfico da mastigação na ativação do sistema nervoso parassimpático e na liberação de hormônios pró-motilidade. Já os dados clínicos demonstram que essa resposta se traduz em melhor recuperação pós-operatória.

A Cochrane Collaboration (2013) reconheceu esses efeitos em sua revisão, mas também indicou a necessidade de ensaios mais padronizados e de longo prazo para reforçar as recomendações clínicas. O mesmo é destacado por Kim et al. (2015), que sugerem que futuros estudos devem combinar os dados experimentais com observações clínicas para desenvolver intervenções mais eficazes.

Em termos práticos, a goma de mascar é uma intervenção simples, acessível e com baixo risco, o que a torna atraente em contextos clínicos. No entanto, seu uso não deve ser considerado isoladamente, mas como parte de um protocolo multimodal de recuperação pós-operatória. Esse protocolo pode incluir mobilização precoce, controle de dor, nutrição adequada e suporte psicológico, todos com papel na recuperação da função intestinal.

A contribuição dos estudos em animais continua sendo essencial para refinar nosso entendimento sobre como a mastigação afeta o eixo cérebro-intestino. Esses dados também ajudam a identificar quais pacientes podem se beneficiar mais dessa intervenção ou em que situações ela pode ser contraindicada.

Portanto, longe de serem metodologias opostas, os estudos em humanos e animais são complementares. Quando interpretados em conjunto, eles permitem uma visão mais completa e fundamentada da intervenção. Essa integração deve continuar sendo incentivada para que possamos oferecer aos pacientes terapias que sejam ao mesmo tempo eficazes, seguras e cientificamente embasadas.

A pesquisa translacional – aquela que conecta o laboratório à clínica – é o caminho mais promissor para validar o uso da goma de mascar como parte do cuidado cirúrgico. Fortalecer essa ponte é, portanto, uma prioridade para pesquisadores, profissionais da saúde e gestores públicos comprometidos com a melhoria contínua da assistência ao paciente.

Entre os diversos estudos analisados, destaca-se o trabalho de Morais (2017), que apresenta uma revisão sistemática sobre o uso da goma de mascar no restabelecimento da função intestinal em mulheres submetidas à cesariana. O estudo reforça que a mastigação simula o ato alimentar e ativa mecanismos reflexos do sistema digestório, estimulando a motilidade sem a necessidade de ingestão calórica. Essa conclusão é corroborada por Schuster et al. (2006), que conduziram um ensaio clínico randomizado com pacientes submetidos à colectomia aberta, observando uma redução significativa no tempo de íleo pós-operatório entre aqueles que utilizaram goma de mascar no pós-operatório imediato.

Purkayastha et al. (2008) contribuíram com uma meta-análise valiosa que sintetiza resultados de múltiplos estudos clínicos, corroborando a eficácia do chiclete na recuperação gastrointestinal após cirurgia colorretal. A Cochrane Collaboration (2013), autoridade global em revisões sistemáticas, também reconhece os benefícios da goma de mascar, embora ressalte a necessidade de mais estudos padronizados para fortalecer o grau de evidência. Matsushima et al. (2006) trouxeram uma nova perspectiva ao mostrarem que a mastigação estimula diretamente a motilidade intestinal, mesmo na ausência de ingestão calórica, devido ao estímulo vagal ativado pela ação mastigatória. O trabalho de Asao et al. (2002) é pioneiro ao associar a mastigação de chiclete à recuperação mais precoce de pacientes submetidos à colectomia laparoscópica, defendendo a intervenção como medida de baixo custo e fácil aplicação. Quah et al. (2006) exploram os efeitos da goma em diversos tipos de cirurgias abdominais e demonstram benefícios consistentes, como a redução da distensão abdominal e da necessidade de uso de analgésicos no pós-operatório. Chan et al. (2007) investigaram o uso da goma em cirurgias colorretais de grande porte, relatando melhora significativa no tempo de internação hospitalar e no conforto do paciente. A pesquisa de Hirayama et al. (2006) foca em pacientes submetidas à cesariana, apresentando dados que sustentam a mastigação como estratégia complementar à mobilização precoce. Por fim, Fitzgerald et al. (2009) realizaram um estudo clínico rigoroso que conclui pela eficácia da goma de mascar em reduzir o tempo de íleo, reforçando sua adoção em protocolos pós-operatórios.

Diante da análise dos estudos apresentados, observa-se uma consistência nos achados que apontam para os benefícios fisiológicos da goma de mascar na estimulação do sistema nervoso parassimpático, responsável pela regulação da motilidade gastrointestinal. Os mecanismos envolvidos incluem aumento da salivação, ativação do nervo vago e liberação de hormônios gastrointestinais como gastrina e motilina. Essas respostas contribuem para a retomada mais rápida da função intestinal após procedimentos cirúrgicos. Embora a maioria dos estudos destaque os efeitos positivos, é fundamental que mais ensaios clínicos multicêntricos e com maior rigor metodológico sejam realizados para estabelecer diretrizes clínicas consolidadas. Até lá, a goma de mascar se mostra uma intervenção segura, de baixo custo e com potencial relevante na recuperação pós-operatória de pacientes cirúrgicos.

A comparação entre estudos realizados com seres humanos e aqueles conduzidos em modelos animais é fundamental para avaliar a translação dos achados científicos para a prática clínica. No caso da goma de mascar e seus efeitos na motilidade intestinal, há uma variedade de estudos empregando diferentes metodologias, que oferecem perspectivas complementares sobre os mecanismos envolvidos.

Estudos clínicos realizados com humanos, como os de Schuster et al. (2006), Chan et al. (2007) e Fitzgerald et al. (2009), investigaram diretamente os efeitos da mastigação de chiclete no pós-operatório de cirurgias abdominais. Esses trabalhos envolveram pacientes reais submetidos a procedimentos como colectomias ou cesarianas, avaliando desfechos clínicos como tempo para retorno de flatos, evacuação e duração da internação hospitalar. Em geral, tais estudos demonstraram que a goma de mascar atua como estímulo para a motilidade gastrointestinal, ativando reflexos parassimpáticos por meio da simulação da alimentação, sem ingestão efetiva de alimentos.

Por outro lado, estudos em modelos animais, embora menos numerosos, também contribuíram para o entendimento dos mecanismos neurofisiológicos. Em roedores, a estimulação da mastigação simulada demonstrou aumentar a liberação de hormônios gastrointestinais como gastrina e motilina, além de promover alterações no padrão de contrações intestinais. Essas pesquisas são relevantes porque permitem o controle rigoroso de variáveis fisiológicas e fornecem dados sobre vias neurais específicas envolvidas na motilidade (ZHANG et al., 2012).

Contudo, a extrapolação direta dos achados em animais para humanos deve ser feita com cautela. Apesar das semelhanças anatômicas e funcionais entre espécies, fatores como o estresse induzido em laboratório, o tipo de dieta, microbiota intestinal e até a forma de mastigação são substancialmente diferentes. Além disso, o ambiente hospitalar humano envolve outras variáveis clínicas e comportamentais que não estão presentes em modelos experimentais.

A Cochrane Collaboration (2013), ao revisar ensaios clínicos com humanos, destacou a consistência dos efeitos positivos da goma de mascar, mas reforçou a importância de ensaios bem desenhados e controlados para confirmar a eficácia da intervenção. Já revisões sistemáticas com inclusão de estudos experimentais em animais, como a de Kim et al. (2015), apontam que o mecanismo de ação da mastigação está ligado à ativação do eixo cérebro-intestino, reforçando a hipótese fisiológica dos estudos clínicos.

A combinação dos dados provenientes de ambas as metodologias fortalece a base teórica sobre a eficácia da goma de mascar na melhora da motilidade intestinal. Enquanto os estudos com humanos validam a eficácia prática, os estudos com animais contribuem para a compreensão mecanicista dos processos envolvidos. Juntas, essas abordagens constroem um panorama mais completo e fundamentado, essencial para a adoção segura e embasada dessa prática na rotina clínica cirúrgica.

Portanto, a integração entre pesquisas clínicas e experimentais deve continuar sendo incentivada, respeitando os limites e potencialidades de cada abordagem. Essa sinergia é essencial para transformar hipóteses fisiológicas em recomendações médicas baseadas em evidências.

CONCLUSÃO

A análise dos estudos sobre o uso da goma de mascar no pós-operatório revela que, tanto a pesquisa em modelos animais quanto os ensaios clínicos com humanos, oferecem insights valiosos sobre os mecanismos envolvidos na melhora da motilidade intestinal. A evidência acumulada demonstra que a mastigação de goma ativa o sistema nervoso parassimpático, estimula a liberação de hormônios gastrointestinais e facilita a recuperação intestinal após cirurgias, como colectomias e cesarianas.

Embora os estudos clínicos confirmem os efeitos benéficos dessa prática, a Cochrane Collaboration (2013) e outros autores, como Kim et al. (2015), enfatizam a necessidade de ensaios mais rigorosos e de longo prazo, a fim de estabelecer diretrizes clínicas mais consistentes. Já os estudos em modelos animais contribuem para a compreensão dos mecanismos fisiológicos subjacentes, como a ativação do eixo cérebro-intestino, o que complementa os achados clínicos e oferece uma base para futuras intervenções.

A integração entre essas abordagens, a pesquisa translacional, é crucial para a validação e implementação da goma de mascar como uma estratégia efetiva e segura no cuidado pós-operatório. Embora simples, acessível e com baixo risco, a goma de mascar não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um protocolo multimodal de recuperação. Além disso, a combinação de dados experimentais e clínicos possibilita uma visão mais holística e fundamentada, o que é essencial para oferecer aos pacientes terapias mais eficazes e cientificamente respaldadas.

Portanto, os dados disponíveis sugerem que, embora a goma de mascar seja promissora, mais estudos são necessários para solidificar sua aplicação clínica. A continuidade dessa pesquisa será determinante para oferecer intervenções pós-operatórias seguras e eficazes, fundamentadas em evidências robustas, e garantir que os benefícios observados sejam amplamente aplicados em contextos clínicos.

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