“FLOR DE RETAMA” A SONG AND A FIGHT FOR FREE EDUCATION
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202504021853
Marco Antonio Ccahuana Peceros1,
Eliana Ferreira dos Santos Vieira2
RESUMO
Desde o tempo dos Incas, século XIII a XVI, as danças e as canções sempre foram instrumentos para manter viva a memória e os costumes dos povos do Ande peruano. Difundidas de forma oral de geração em geração, serviram para a transmissão de conhecimentos sobre os diferentes aspectos da vida desses povos. A canção carrega uma história e muitas delas de acontecimentos que marcaram a história de distintas sociedades, garantindo que esses acontecimentos não caiam no esquecimento. Ricardo Dolorier Urbano conta através de “Flor de Retama” o testemunho de quem combateu o opressor – neste caso, a ditadura militar peruana de 1968 – para reivindicar o direito a uma educação gratuita. A memória de acontecimentos de mobilizações de povos em luta pelos seus direitos serve de alicerce para que as novas gerações – sobretudo as pertencentes a grupos vulneráveis – não se amedrontem e clamem o que por direito lhes corresponde, seja por meio de suas produções artísticas, seja em movimentos sociais.
Palavras chave: Canção. Literatura. Resistência. Testemunho.
ABSTRACT
Dances and songs – since the time of the Incas, century XIII to XVI – have always been instruments to keep alive the memory and customs of the people of the Peruvian Andes, transmitted orally from generation to generation, serving to transmit knowledge about different aspects of the life. Songs always carries a history and many of them with knowledge that marked the history of different societies, it is up to us to ensure that these events do not fall into oblivion. Ricardo Dolorier Urbano tells through “Flor de Retama” the testimony of those who fought against oppression – in this case the military dictatorship from 1968 – to claim the right to free education. The memory of events of uprisings of peoples clamoring for rights serves as support so that new generations – especially those belonging to vulnerable groups – do not become discouraged and demand what is rightfully theirs.
Keywords: Song. Literature. Endurance. Testimony.
Introdução
Desde a época da invasão espanhola, em especial no Ande peruano, as lutas sociais sempre estiveram presentes. A região de Ayacucho no Peru é conhecida porque foi ali que aconteceu a última batalha contra os espanhóis na guerra de independência hispano-americana, em 1824, e significou o fim definitivo dos vice-reinados na América espanhola (Pereyra, 2017).
Os cidadãos – principalmente os mais pobres – tiveram que pleitear seus direitos, mesmo morando em um país, supostamente, livre. Essas reivindicações, muitas vezes, exasperadas, assumiram uma intensidade que, em alguns momentos, colocou em xeque os governos regentes.
Essas constantes lutas, que ainda hoje prosseguem, em diferentes níveis e por diversos motivos, foram, ao longo da história resgatadas e contadas por peças de teatro, contos, poemas e também por canções de grande apelo popular. O melhor exemplo sobre a memória desses acontecimentos é quando Tupac Amaru II ordena a encenação de “Ollantay” – peça teatral, considerada a mais antiga expressão da literatura quéchua – em 1780, com a finalidade de que a população sinta orgulho da herança quéchua e lute contra os espanhóis. Assim, a memória de acontecimentos de mobilizações de povos em clamor dos seus direitos, não raro, negados pelos que mantêm o poder, serve de alicerce para que as novas gerações – sobretudo as pertencentes a grupos vulneráveis – não se amedrontem e lutem pelo que por direito lhes corresponde.
“Flor de retama”, de Ricardo Dolorier, que será analisada neste artigo, com base em teóricos que trataram dos temas abordados, é um dos exemplos de canções em que essa memória é preservada e nos permite refletir sobre as complexas relações entre arte, testemunho e história. Ela faz referência à luta pela liberdade social e cultural dos cidadãos submetidos por uma estrutura de poder de herança colonial.
O que aconteceu em Huanta?
Como abordado anteriormente, as danças e as canções – desde o tempo dos Incas – sempre foram instrumentos para manter viva a memória e os costumes dos povos do Ande peruano. Difundido de forma oral, de geração em geração, serviram para a transmissão de conhecimentos sobre os diferentes aspectos da vida, como a adoração aos Apus, Wakataki; o plantio e a colheita, Wanka; as despedidas dos mortos, Harawi; festas tradicionais, Huayno e Wifala; etc (Altamirano, 2021): “A música tem a capacidade única de acessar regiões do cérebro que estão relativamente preservadas, mesmo quando outras funções cognitivas estão comprometidas. Isso pode levar a momentos de clareza e conexão emocional em meio à confusão e esquecimento” (Miranda, 2024).
A educação escolar na América Latina quase sempre foi privilégio de uma classe dominante e os mais vulneráveis tiveram que lutar para ter acesso a ela. Ricardo Dolorier Urbano conta, através de uma canção, o testemunho de quem lutou contra o opressor – neste caso o Governo – para reivindicar o direito a uma educação gratuita e recusar o que Gonzales Prada chama de ordem estabelecido, “[…] deixamo-nos flagelar pelos governos, nesta tirania latente que se chama ordem estabelecido” (Gonzales, 1988, p.190).
Professor da Universidade Nacional de Educação “La Cantuta”, de Lima, Ricardo Dolorier perde dois de seus estudantes no massacre de Huanta, consternado por estes acontecimentos faz uma visita à cidade, na qual a população lhe relata tudo que tinha acontecido. Esta tristeza misturada com o sentimento de impotência, motiva-o a escrever “Flor de retama”, como forma de expressar o páthos causado pela tragédia. Desta maneira, coloca-se como testemunha deste terrível acontecimento. Como afirma Seligmann-Silva, “devemos, no entanto, por um lado, manter um conceito aberto da noção de testemunha: não só aquele que viveu um ‘martírio’ pode testemunhar” (Seligmann-Silva, 2003, p.48).
Em 1969, no segundo ano da ditadura militar no Peru, Juan Velasco Alvarado assina o Decreto Supremo 006, que é um retrocesso e faz com que a educação escolar das classes menos favorecidas seja ínfima ou em muitos dos casos nula, e como Gonzales (1988) diz, que como o desfavorecido tem fome de educação e clama por esta, temos – o Governo – que fechar-lhe a boca, as vezes para sempre.
DECRETO SUPREMO N° 006/69/EP.
04 de março de 1969
Artigo 1º – a partir da iniciação do ano escolar de 1969, os alunos dos plantéis oficiais de educação Secundária Comum, de Educação Secundária Técnica, Mando Intermedio e Formação em Magistério, que percam a gratuidade do ensino, abonarão a suma de cem soles (S/ 100,00) mensais, de abril a dezembro.
Artigo 4° – suspende-se o direito à gratuidade do ensino àqueles alunos que desaprovarem seus estudos regulares […]. (SITER LIMA, 1969, tradução nossa).
De acordo com Gonzales (1988) os povos são desgraçados porque sofrem a injustiça social, a exigência do pagamento de cem soles mensais era algo impossível de ser cumprido pelas famílias do ande peruano que, na sua maioria careciam de recursos financeiros – numa nação em que só há duas classes sociais, a dos possuidores e a dos possuídos. Trabalhadores agrícolas recebiam dois soles diários, o que era insuficiente para pagar a mensalidade exigida pelo Governo e arcar com outras despesas necessárias à sobrevivência, como colocar comida na mesa.
No país, diz Matto (1889), existem irmãos que sofrem, explorados na noite da ignorância e martirizados nas trevas que pedem luz; a ignorância do proletariado é o que o Governo quer manter com o Decreto 006, e a luz é o que o povo quer alcançar, através de sua luta. Para Gonzales, a classe dominante, por herança colonial, mantém o subjugamento das classes menos favorecidas, “escravatura, servidão e proletariado são a mesma coisa, modificada pela ação do tempo” (Gonzales, 1988, p. 203, tradução nossa). É nesse contexto de desigualdade e exploração extrema da classe trabalhadora, que ocorre o massacre dos estudantes.
No dia 04 de junho de 1969, o Diretor do Colégio Gonzales Vigil de Huanta, no departamento de Ayacucho, exigiu o pagamento da mensalidade aos alunos que tinham sido reprovados em pelo menos uma disciplina no ano anterior e expulsa aqueles que não cumpriram a exigência; no dia 09 de junho, relata Gutierrez (2019), inicia-se uma greve por parte dos estudantes expulsos do Colégio, apoiada por outros alunos; os mais afetados por essa expulsão eram os alunos do turno noturno, que, na sua maioria, eram filhos de camponeses.
No dia 13 de junho de 1969, o Frente Único de Estudiantes Secundários de Ayacucho decreta greve indefinida em apoio aos estudantes huantinos. As revoltas, como as de Huanta, vêm como dolorosa e fecunda preparação das pessoas que tentam se desvencilhar do jugo da opressão. Os estudantes huantinos, na sua luta, usavam frases como: “queremos estudar, mas Velasco não nos quer”, “as botas se dão de graça, mas os livros custam caro” (ArkeoAyacucho, 2021), uma clara alusão a que o Governo Militar não negava os recursos para os Militares e exigia riquezas dos mais pobres.
No dia 21 de junho de 1968, foi decretado toque de recolher em Ayacucho, e os diários da capital do país, alinhados do Governo, estampavam nos seus titulares: “turbas paralisam a cidade, graves distúrbios em Ayacucho”, “pelas violentas manifestações, suspendem aulas”, “nega-se que há mortos, toque de recolher em Ayacucho” (Zela, 2020).
No dia 22 de junho de 1969, a polícia leva presos a dirigentes estudantis e campesinos em Huanta, em resposta realizam uma reunião popular na praça principal de Huanta, concentrando-se estudantes, pais e campesinos. A resposta do Governo foi rápida, enviando um destacamento armado à cidade de Huanta, os Sinchis, a força de elite da Guarda Civil.
Canção, memória e testemunho
A canção exerce um poder para transformar a vida das pessoas, ao tocar ou escutar uma canção trazemos para nossa memória eventos que marcaram a nossa existência, vindo à tona as alegrias e as tristezas (Mendívil, 2022); por meio da canção, os sujeitos subalternos, impedidos de falar pela estrutura de poder, estabelecem um diálogo horizontal com seus pares e é através desta que as pessoas que testemunharam os atos violentos de repressão em Huanta, podem manter viva a lembrança da luta e da união do povo e que estes atos não caiam no esquecimento das futuras gerações. A canção permite a transmissão de conhecimentos de maneira decolonial, em oposição à hegemonia ocidental o mundo andino se encaminha para a transformação da sociedade.
Em contextos como esse, a literatura oral – em especial a canção – costuma ser uma estratégia de resistência simbólica e resistência cultural, pois articula-se à memória cultural e à identidade nacional. Harnoncourt divide em três modalidades a música verbal: “recitar cantando, cantar recitando y cantare” (Harnoncourt, 2006, p.223); a primeira, refere-se ao falar naturalmente; a segunda, ao ato de declamar; e a terceira, cantare ou cantar que corresponde ao aria. Zumthur classifica também em três tipos o canto falado “a voz falada, o recitativo, e o canto melódico” (Zumthur, 1991, p.187), embora os termos sejam diferentes, ambas classificações se correspondem. A palavra cantada para Altamirano (2017) faz que um cantor se converta no dono de uma voz singular ligado a uma determinada cultura que executa e enuncia uma atividade social. Dolorier transpõe a oralidade em literatura escrita, adicionando a esta a resistência textual. A canção como prática discursiva e literatura de resistência, preserva e recria a memória cultural andina, para Arán (2005, p.71) “texto e sociedade interagem discursivamente” (apud Altamirano, 2021, p.97); “Flor de retama” no processo de contestação e resistência coloca ênfase na dimensão política da literatura e testemunha o conflito social vivenciado pelas comunidades do ande peruano.
Considerando que as canções são fenômenos culturais constituídos por um conjunto de elementos linguísticos dispostos segundo as convenções do sistema retórico […] As canções de luta narram simbolicamente os principais acontecimentos sociais “opressão”, os movimentos de levantamento, a repressão, etc. (Altamirano, 2023, p.227, tradução nossa.)
A forma discursiva das canções nos leva a explicar e compreender as relações interdiscursivas e intertextuais entre estas e os discursos narrativos, abarcando o plano sonoro e o textual, para Altamirano (2017, p. 224) “todas as canções, são textos orais que, em forma de cantos, preexistiam na memória coletiva andina antes da escritura dos relatos, por tanto, a maioria de elas não são criações literárias próprias”. Ricardo Dolorier Urbano apropria-se do real e o transforma numa criação literária, logo, a literatura não reflete a realidade, senão, a transfiguração num texto artístico; a literatura “[…] enquanto narração testemunha uma falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido “o real” com o verbal.” (Seligmann-Silva, 2003, p.46). O testemunho parece convocar o artista comprometido com a vida da maioria: “Onde a sangue do povo/Ali, derrama-se”.
A retama ou Spartium Junceum é uma espécie de planta pertencente à família Fabaceae, típica nas regiões do Ande, com a sua flor amarela característica, usada também com fins medicinais, suporta muito fulgurante as inclemências do tempo e adorna os vales do ande peruano. A cor amarela, cor representativa do Inti, o deus Sol, e, transfigurada na flor amarela da retama simboliza a sabedoria, a humildade e a felicidade, assim, estas qualidades encontram-se presentes nas pessoas reunidas na praça de Huanta.
Venham todos a ver
Ai, vamos a ver!
Na praça de Huanta
Amarillito flor de retama
Amarillito, amarillando
Flor de retama
O eu lírico chama a ouvintes/leitores para presenciar, para testemunhar o trágico acontecimento que está por suceder, para nos mostrar como os flagelados lutam contra o opressor e ao mesmo tempo nos instiga para que nos posicionemos e sejamos partícipes desta resistência. Somos chamados para à praça porque é o lugar central nessas cidades do Peru, não geograficamente, mas lugar central de poder, onde se encontram a Prefeitura e a Igreja. Estes versos relatam a vida de uma comunidade, não a vida cotidiana, mas a vida de luta e resistência, degradada pela hostilidade de quem detém o poder. Para Bosi, “a escrita de resistência, a narrativa atravessada pela tensão crítica, mostra, sem retórica nem alarde ideológico, que essa “vida como ela é” é. Quase sempre, o ramerrão de um mecanismo alienante, precisamente o contrário da vida plena e digna de ser vivida” (Bosi, 1996, p. 23)
Quem testemunha um evento, como o acontecido em Huanta, costuma experimentar uma incoerência no momento de relembrar os episódios vividos. Essa falta de palavras para descrever o barulho, o cheiro, o sentimento de impotência, etc. que a pessoa experimenta cria esta lembrança, muitas vezes, emaranhada e nebulosa, colocando em dúvida se o acontecido foi real ou um devaneio.
Como herança colonial espanhola, os castigos a quem questionasse o governante eram perpetrados na praça central das cidades, assim como aconteceu com Tupac Amaru em 1572, que depois de ter sido capturado e antes de ter a cabeça decepada na praça de Cusco, pronunciou as seguintes palavras: Ccollanan Pachacamac ricuy auccacunac yahuarniy hichascancuta (mãe terra, testemunha como meus inimigos derramam meu sangue) (Altman, 2010). Foi também nas praças que diferentes gerações derramaram seu sangue, lutando pelos seus direitos.
Nos versos seguintes, o eu lírico anuncia que a população valente, reunida na praça de Huanta, está ciente do perigo que está por vir e mesmo assim, está disposto a lutar até o final:
Ali mesmo floresce
Amarillito flor de retama
Amarillito, amarillando
Flor de retama
O poema parece suprir uma experiência comum a todos os falantes de uma língua: a dificuldade de encontrar palavras apropriadas para expressar a ira, o ódio, o amor, o companheirismo, etc. Essa dificuldade é comum aos textos considerados de testemunho de uma tragédia, que visam mobilizar “essa linguagem entravada, por outro lado, só pode enfrentar o “real” equipada com a própria imaginação: por assim dizer, só com a arte a intraduzibilidade pode ser desafiada – mas nunca totalmente submetida” (Seligmann-Silva, 2003, p.47). Dolorier faz uso de vários instrumentos literários para poder expressar aquela “intraduzibilidade”, aquele sentir, para poder expressar e compartilhá-lo através destes versos: “Ali, onde as serras se acendem/Até alcançar a aurora”. Aurora aqui remete metaforicamente ao de um novo tempo, de mais justiça, de mais igualdade para as populações mais vulneráveis, que se encontram nas serras, predominantemente no Ande peruano (Heikkinen, 2021) e que se mantiveram unidas para preservar os seus costumes e, como a letra desta canção, formada por versos de extensão variada, numa composição polimétrica, testemunha, para alçar a sua voz de protesto.
Há, no poema, o uso recorrente da metáfora do “raiar do dia”, da aurora, da luz, que seriam, pontos incrustados nas serras e enquanto mais juntas fiquem poderão irradiar sua luz até os vales e até o céu, indicando e construindo a transformação da vida dessas comunidades. Aurora que ilumina a senda da estrada, da caminhada, num sentido mais imediato, e da luta, num sentido metafórico. Antes das estradas, a única forma de chegar a outra comunidade andina era através de estreitos caminhos pedregosos, caminhando uma pessoa atrás da outra formando uma cadeia humana igual à dança wifala (Arguedas, 2012) – para que as populações se possam unir e deixem de ser flageladas: “Ali, onde as faldas se fazem mulheres/Os meninos têm que ser homens antes de ser meninos.”
No plano empírico, os estudantes, ao serem expulsos do colégio poderiam ter corrido chorando atrás dos pais e resignar-se a nunca mais estudar, mas eles fizeram algo que o Governo não esperava, aquelas crianças e adolescentes, como diz o eu poético, tornaram-se “homens antes de ser meninos” e “mulheres” que defenderam seu presente e seriam eles que tentariam construir o seu futuro, ou seja, a transformação da realidade pela qual lutam esses sujeitos também é vivida por eles.
No contexto vivido no ande peruano, o amadurecimento precoce é comum. Os filhos mais velhos assumem às vezes o papel dos pais, tomando conta dos mais novos, enquanto os progenitores saem a trabalhar. O salto das etapas da vida que crianças e jovens tiveram que sofrer para tomar as atitudes de adultos, mostra-os como flores radiantes, mesmo sem ter desenvolvido os botões. A flor da retama é, assim, um símbolo para representar a identidade de um povo cujos membros muitas vezes são anónimos, porque atuam em uma união que os faz parecer um único ser.
As faldas, presentes nos versos anteriormente citados, fazem dupla referência, primeiro: à base da serra onde geralmente localizam-se as comunidades de campesinos que foram deslocados para estas partes altas pelos fazendeiros que se apropriaram das melhores áreas de cultivo; segundo: à saia, vestimenta usada tipicamente pelas mulheres, que, por meio dessa palavra são referidas metonimicamente. A estes meninos e meninas negam-se o desfrute da infância, pela situação económica de suas famílias decorrente da degradante situação em que o Governo quer mantê-los.
A mobilização e a resistência por parte de estudantes adolescentes que não aceitando a imposição que os segrega a ser um grupo desvalido e indefenso, têm que assumir a responsabilidade de defender o seu presente para poder acreditar num futuro melhor, mesmo sabendo que como partícipes desta ação poderiam perder a vida. Para Seligmann-Silva, nessa “[…] modalidade testemunhal encontra-se a figura do mártir – no sentido de alguém que sofre uma ofensa que pode significar a morte.” (Seligmann-Silva, 2003, p.47)
Ali, amarillito amarillando cresce
La flor de la retama!
De acordo com Seligmann-Silva, a arte oferece mais possibilidades para expressar em palavras um evento traumático, “Aquele que testemunha se relaciona de um modo excepcional com a linguagem, ele desfaz os lacres da linguagem que tentavam encobrir o “indizível” que a sustenta” (Seligmann-Silva, 2003, p.48).
As canções do Ande são de matiz agudo e desgarrador, expressam fundamentalmente a dor e o sofrimento é por isso que “a linguagem é antes de mais nada o traço – substituto e nunca perfeito e satisfatório – de uma falta, de uma ausência.” (Seligmann-Silva, 2003, p.48)
Por cinco esquinas estão
Os Sinchis entrando estão
Os eventos traumáticos, para Seligmann-Silva (2003), são batalhas e acidentes, onde quem testemunha narra a resistência e não só o fato violento vivido. Nos versos de Dolorier, sugere-se a ideia de que o perigo se aproxima sem que ninguém mostre resistência. No plano empírico, os Sinchis chegaram em Huanta no final da tarde e tiveram que entrar na cidade a pé porque a ponte tinha sido derrubada e se viram obrigados a deixar os veículos no caminho, a população com medo do toque de recolher, estava retornando para suas casas (Zela, 2024).
Vão a matar estudantes
Huantinos de coração
Amarillito, amarillando
Flor de retama
O leitor/ouvinte é convocado para testemunhar a luta de jovens pelos seus direitos e é alertado da aproximação do perigo, o eu lírico alerta que eles serão assassinados, colocando esse receptor na situação de um espectador impotente, que não consegue intervir para salvar estes estudantes. Aqueles que sobrevivem “defrontam-se a cada dia com a tarefa de rememorar a tragédia e enlutar os mortos” (Seligmann-Silva, 2003, p.42), enfrentando a situação de aceitação ou negação da perda de um irmão, de um amigo, bem como a permanência de uma situação injusta.
É curioso que o Governo chame de manifestações violentas às reivindicações justas por parte de estudantes e seus pais, armados com cartazes e atirando “palavras” contra as autoridades, estes últimos sentindo-se atingidos pelo calibre mais alto da munição, sangravam, não sem antes convocar a quem pudesse – os Sinchis – prender a estes “criminosos”, colocar ordem na população “violenta”, gente que “atenta contra” as instituições públicas colocando em xeque às autoridades.
Vão a matar campesinos
Huantinos de coração
Amarillito, amarillando
Flor de retama
A morte trágica de um familiar pode causar uma grande consternação e muitas vezes se experimenta um trauma. Para Seligmann-Silva “trauma é […] um desencontro com o real; em grego, vale lembrar, trauma significa ferida.” (Seligmann-Silva, 2003, p.49). a perturbação da vida cotidiana das pessoas causada pelos Sinchis, impactou tão profundamente à população huantina, que na memória coletiva deste povo criou-se uma ferida; os Sinchis enviados pelo Governo, entraram em Huanta para um único propósito, acabar com as manifestações a qualquer custo, isso significou, levar preso a quem pudessem e matar a quem resistisse.
A sangue do povo tem
Rico perfume
Para Federico Altamirano “[…] o simbolismo das canções, baseado no pensamento mítico do homem andino, esconde poeticamente acontecimentos sociais de resistência” (Altamirano, 2023, p.227, tradução nossa). As belas flores – crianças e jovens – obrigadas a desabrochar antes de tempo, profanadas e arrancadas do pedúnculo, atiradas no chão para apagar a sua beleza e o seu brilho, lutam ainda contra tudo isso e continuam exalando o seu perfume, seus corpos não serão manchados e a sua voz chegará ainda a mais pessoas.
No massacre de Huanta, na versão do Governo, foram tiradas as vidas de 22 pessoas, entre alunos e pais; mas no testemunho das pessoas que conseguiram escapar do massacre, os mortos passaram de 100 (Zela, 2024). Para ocultar o acontecido os Sinchis levaram a maioria dos corpos longe de Huanta onde nunca mais seriam encontrados.
Cheira a jasmins, violetas, gerânios e margaridas
A pólvora e dinamite
Os jasmins, as violetas, os gerânios e as margaridas, como mostram estes versos, simbolizam os homens, mulheres, crianças e jovens do ande peruano que lutaram ao uníssono e deram a sua vida para que os que ficaram mantenham a esperança de um futuro digno, esses caídos são vistos como seres anônimos pelo Governo, mas que um pai pode identificar o seu filho e pode falar o seu nome completo, uma mãe pode dizer o que a sua filha gostava mais de fazer e um irmão pode falar o que este gostava mais de brincar; a letra desta canção utiliza a metáfora para ressignificar os enunciados e ao mesmo tempo que a mensagem seja compreensível por todos, para Altamirano, “a linguagem figurada, ao estar constituída por uma série de figuras retóricas, possui uma expressividade elocutiva para emocionar ou persuadir ao receptor.” (Altamirano, 2023, p.227, tradução nossa.)
É inimaginável o desespero que as pessoas tiveram que passar, muitas delas trancadas na sua própria casa por medo do toque de recolher, escutando os tiros e os gritos dos moribundos nas ruas e os outros tentando desesperadamente fugir das balas, mas com refúgio incerto. É inimaginável também que depois de uma noite violenta sair na rua e se deparar com os corpos dos estudantes jogados no chão, com o sangue correndo pela calçada e a pólvora pairando pelo ar. Nesse momento a pessoa se pergunta se o que está presenciando é real ou não, e se as suas memórias ainda estão intactas ou estão-se tornando nebulosas, deslocando “o real para uma área de sombra” (Seligmann-Silva, 2003, p.47); a memória tem que coexistir com o esquecimento, porque relembrar um evento traumático com todos os detalhes pode abalar profundamente o psicológico da pessoa, assim, Seligman-Silva entende que “a memória só existe ao lado do esquecimento: um completa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o qual o outro se inscreve”. (Seligmann-Silva, 2003, p.53)
A pólvora e dinamite
¡Carajo!
Ao final de todo o sangue derramado, de todas as lágrimas e de todos os gritos fica a impunidade dos culpados, escusando suas ações como justas e tentam distorcer a verdade. Na perspectiva da voz lírica, os corpos dos que agora são conhecidos como “mártires da educação” não despertavam repulsa e nem exalavam odores fedidos para as pessoas que os presenciavam, mas traziam o cheiro de flores, flores que tinham sido regadas por sangue de crianças e adolescentes que lutaram para que o futuro dos que ficaram seja melhor; cheiro de flores para que o corpo dos mártires não seja profanado pela pólvora expelida dos canos das armas dos Sinchis.
A canção termina com uma interjeição “carajo” para mostrar uma forte rejeição com o atuar das forças policiais e para solidarizar-se com todos os que pereceram nesta luta desigual.
A verdade de acontecimentos como este tem de se transformar em resistência e como Seligmann-Silva fala, “A memória – assim como a linguagem, com seus atos falhos, torneios de estilo, silêncios, etc. – não existe sem a sua resistência.” (Seligmann-Silva, 2003, p.52).
No dia 25 de junho de 1968, o Governo restabelece a gratuidade da educação com o decreto lei Nº 17717 e justifica o acontecido em Huanta como protestas contrárias à Reforma Agraria (Zela, 2024), que estava sendo tratado no mesmo mês. Inconcebível pensar que o campesino que não possuía terra própria e tinha que trabalhar nas terras de algum fazendeiro por uma diária de dois soles, mobilize-se e se oponha a uma reforma agrária, da qual ele seria o principal beneficiado; mais curioso e na mesma vez aterrador é que o Governo tente esconder uma chacina e tergiverse os clamores da população.
Considerações finais
“Flor de Retama” já foi marcada como canção pertencente a grupos terroristas por parte de aqueles que detêm o poder, por parte de aqueles que temem que o indefenso lute, por parte de aqueles que amam aos pobres e fazem de tudo para que eles permaneçam sempre assim, pobres.
Segundo Gonzales (1988), as pessoas que lutam contra a opressão, muitas vezes, derramam sangue, mas criam luz; suprimem homens, mas elaboram ideias; para que as gerações vindouras, através do testemunho daqueles que tiveram que lutar para ter o direito ao ensino gratuito, não permitam que aqueles direitos conquistados sejam suprimidos por quem detém o poder.
A canção sempre carrega uma história e muitas delas de acontecimentos que marcaram a história de distintas sociedades, este “testemunho também tem que pôr fim um culto aos mortos” (Seligmann-Silva, 2003, p.55), cabe a nós fazer com que estes acontecimentos não caiam no esquecimento, porque a verdadeira história não sempre é contada naqueles volumes grossos de livros de história que muitas vezes só serve para narrar “fatos” que beneficiem a quem está no controle, por isso, a canção, passada de geração em geração de forma oral não pode ser manipulada nem abolida por aqueles que se agarram ao poder e se converte na principal ferramenta para contar a história de luta e resistência.
O testemunho de quem vivenciou os terríveis acontecimentos, narrados nesta canção, tem que ser o fundamento para que quem ainda está oprimido se levante e lute, que use a melhor arma contra aqueles opressores, a educação.
Referências
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1Universidade Federal de Alagoas
2Semed-Maceió