REPRODUCTIVE PLANNING: PERSPECTIVE OF A FAMILY AND COMMUNITY MEDICINE RESIDENT ON ACCESS TO RESOURCES IN A VULNERABLE POPULATION IN THE FEDERAL DISTRICT.
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202503091121
Rafaela Oliveira Moreira de Carvalho1
Arthur Lobato Barreto Mello2
Eduarda Dutra Lopes3
Resumo
A Estratégia Saúde da Família (ESF) foca em cuidados integrados, destacando o papel do Médico de Família e Comunidade (MFC). Este estudo relata a experiência de residente em MFC, abordando o planejamento reprodutivo em Unidade Básica de Saúde responsável por população vulnerável no Distrito Federal.
Palavras-chave: Planejamento Familiar, Planejamento Reprodutivo, População Vulnerável, Anticoncepção, Laqueadura Tubária, Atenção Primária, Residência Médica.
Abstract
The Family Health Strategy (FHS) focuses on integrated care, highlighting the role of the Family and Community Doctor (FCD). This study reports the experience of a resident in FCD, addressing reproductive planning in a Primary Health Care Unit responsible for a vulnerable population in the Federal District.
Keywords: Family Planning, Reproductive Planning, Vulnerable Population, Contraception, Tubal Ligation, Primary Care, Medical Residency
1. Introdução
Segundo a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), a Atenção Básica (AB) / Atenção Primária à Saúde (APS) representa o conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas que envolvem promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância em saúde, desenvolvida por meio de práticas de cuidado integrado e gestão qualificada, realizada com equipe multiprofissional e dirigida à população em território definido. É desenvolvida de forma descentralizada, ocorrendo no local mais próximo da vida das pessoas, representa a porta de entrada e o primeiro contato dos usuários com o sistema. (BRASIL, 2017).
A Estratégia Saúde da Família (ESF) visa a reorganização da atenção básica no país, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde (SUS), se apresentando como estratégia de expansão, qualificação e consolidação da assistência à saúde, favorecendo a reorientação do processo de trabalho e agregando maior potencial de aprofundar os princípios, as diretrizes e os fundamentos da atenção básica, ampliando a resolutividade e o impacto na saúde das pessoas e coletividades. (BRASIL, 2017).
A APS se desenvolve por meio de equipes multidisciplinares, sendo o Médico de Família e Comunidade (MFC) um de seus componentes. Especialidade Medicina de Família e Comunidade baseia-se no oferecimento de cuidados em saúde abrangentes e continuados, envolvendo a promoção de saúde, prevenção de doenças, tratamento de doenças agudas e crônicas, englobando o atendimento a todas as idades e ambos os sexos com o principal objetivo de melhorar a saúde individual e da comunidade. (GUSSO, 2019).
Para a formação nessa especialidade, em 1976 surgiram os primeiros programas de residência médica, nominados como Medicina Geral e Comunitária (MGC), tendo sua oficialização, assim como das demais especialidades, ocorrida em 1981, por meio da Resolução nº 07/81 da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). (NABUCO et al, 2019). A residência médica está consagrada como a melhor forma de inserção de profissionais médicos na vida profissional, sob supervisão, e de capacitação em uma especialidade. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 2004).
Para estimular a formação de Médicos de Família e Comunidade no Distrito Federal, em 2021 foi divulgada a portaria n° 928 de 2021, que institui o Programa de Incentivo às Residências de Medicina de Família e Comunidade, segundo este documento o residente de MFC atua assumindo uma equipe de Saúde da Família (eSF) por um período de 2 anos, sob orientação de preceptores Médicos, e recebem um benefício financeiro, complementando a bolsa de residência (DISTRITO FEDERAL, 2021)
A atuação do Médico Residente em MFC neste contexto é marcado pela interlocução da formação pedagógica com demandas assistenciais, caracterizando o modelo de formação baseado no ensino-serviço. (GOMES, 2024).
Segundo a Matriz de competências do Médico de Família e Comunidade, dentre diversos objetivos a serem alcançados, podemos destacar a utilização eficiente dos recursos de saúde; oferecer uma ampla gama de serviços dentro de seu propósito de ações e adaptar sua prática às necessidades de seus pacientes. Nesse escopo, destacam-se também as ações de planejamento familiar/reprodutivo que são voltadas para o fortalecimento dos direitos sexuais e reprodutivos dos indivíduos. (BRASIL, 2020).
O Planejamento Reprodutivo é tratado dentro do contexto dos direitos reprodutivos, tendo, como principal objetivo garantir às pessoas a decisão de ter ou não filhos e quando tê-los. A Política de Assistência Integral à Saúde da Mulher de 1984 teve um papel crucial na consolidação das questões relacionadas à fecundidade sendo apoiada em 1996 pela Lei Nº 9.263, preconizada pelo Ministério da Saúde (MS), que democratiza o acesso aos meios de anticoncepção ou de concepção nos serviços públicos de saúde, ao mesmo tempo que regulamenta essas práticas na rede privada, sob o controle do Sistema Único de Saúde (SUS). (BRASIL, 2002).
O processo vivido no Brasil se soma às ideias aventadas em 1994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) em que foi declarado que o objetivo dos programas de planejamento reprodutivo deve ser o de capacitar os indivíduos a decidir de forma livre e responsável sobre o número e espaçamento entre gravidezes e dispor das informações e meios para assim o fazer. (UNFPA, 1994).
O SUS disponibiliza diversos métodos contraceptivos: hormonais de uso oral e injetável, de barreira, como o diafragma e os preservativos, o dispositivo intrauterino (DIU) e, ainda, a laqueadura e a vasectomia, que são métodos de esterilização cirúrgica de caráter definitivo. A escolha do melhor método deve ocorrer de forma livre e informada, conforme a necessidade e preferência do paciente. (BRASIL, 2022).
A gravidez não intencional, ou seja, aquela não planejada, tem o potencial de resultar em sérias consequências para a mulher e para a criança e sua família, estando frequentemente associada a complicações durante a gestação, sintomas ansiosos e depressivos, indução de aborto, parto prematuro e nascimento com baixo peso, justificando o aumento de mortalidade das mães e recém-nascidos. (BRASIL, 2022).
Dentre os principais fatores para ocorrência de gravidez não planejada, destaca-se a falta de informação acerca de direitos sexuais e reprodutivos, acesso precário e uso incorreto ou descontinuação dos métodos contraceptivos. (ARAÚJO e NERY, 2018). Nessa perspectiva, as ações realizadas no SUS com o objetivo de primar pela estabilidade das famílias desde a sua constituição se desenvolvem através da assistência ao planejamento familiar, que fica predominantemente a encargo das equipes de Estratégia Saúde da Família, modelo prioritário de Atenção Primária à Saúde no Brasil. (RIOS et al, 2023; BRASIL, 2017).
O presente trabalho, traz a perspectiva de uma médica residente em MFC que assumiu uma equipe de Saúde da Família em uma Unidade Básica de Saúde no Distrito Federal. O trabalho surgiu como uma proposta de refletir sobre a realização do planejamento reprodutivo, principalmente o acesso à laqueadura tubária, abordando ações, dificuldades e potencialidades relacionadas ao tema em uma população vulnerável do DF.
Sendo assim, o objetivo geral deste trabalho é relatar a experiência de uma médica residente em Medicina de Família e Comunidade sobre as ações em saúde relacionadas ao planejamento reprodutivo Unidade Básica de Saúde em Sobradinho, Distrito Federal. Os objetivos específicos são apresentar as ações de planejamento reprodutivo desenvolvidas pela equipe durante o período da residência; descrever a influência da Nota técnica N. 13/2023, que trata sobre a regulação e realização de esterilização cirúrgica feminina e masculina, no acesso ao procedimento pelas pacientes da equipe; e discutir ações efetivas de garantia de acesso ao planejamento reprodutivo.
2. Metodologia
Trata-se de um artigo do tipo relato de experiência realizado após ampliação do conhecimento sobre o Planejamento Reprodutivo e as políticas disponíveis no DF. Durante a residência foi elaborado um trabalho no módulo teórico de Política, Planejamento e Gestão acerca do tema Gestão da Clínica, com enfoque na auditoria das filas de espera servindo de estopim para a formulação deste trabalho.
Diante da experiência relacionada às devoluções das solicitações após a vigência da Nota técnica N. 13/2023 e a partir dos resultados obtidos, decidiu-se realizar o trabalho com enfoque na vivência do Residente em MFC perante os desafios da orientação sobre planejamento reprodutivo e sua relação com as políticas públicas vigentes no DF.
A revisão de literatura foi realizada utilizando-se as bases de dados: Pubmed, Scielo, Google Acadêmico, aplicando as seguintes palavras chaves: Planejamento Familiar, Planejamento Reprodutivo, População Vulnerável, Anticoncepção, Laqueadura Tubária, Atenção Primária, Residência Médica, além disso foram incluídos na pesquisa referências sugeridas no módulo teórico Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Residência Médica em rede de Medicina de Família e Comunidade da Secretaria de Estado de Saúde (SES) – DF.
Por se tratar de um relato de experiência vivido pela própria residente, o presente trabalho dispensa liberação do Comitê de Ética, uma vez que não contém dados sigilosos de prontuários de pacientes ou informações dos membros da equipe de Saúde da Família.
3. Resultados e Discussão
A UBS em questão, localiza-se em Sobradinho, Distrito Federal, e compreende seis equipes. Cada uma composta por um médico residente de MFC, um enfermeiro de família e comunidade, de um a dois técnicos de enfermagem, de um a dois agentes comunitários de saúde (ACS) e equipe de saúde bucal, além de 3 preceptores especialistas em Medicina de Família e Comunidade. No ano de 2024, de janeiro a novembro, foram realizados 34.301 atendimentos, excluindo os atendimentos odontológicos e visitas domiciliares.
A equipe em foco no trabalho é constituída por uma médica residente, um enfermeiro, duas técnicas de enfermagem, uma ACS, uma odontóloga e uma técnica em higiene bucal. Os profissionais são responsáveis por 2713 cidadãos cadastrados, sendo 1447 mulheres e 790 entre 10 e 39 anos, a estimativa total corresponde ao território adstrito que compondo o Condomínio Novo Setor de Mansões (ruas A a D), Condomínio Vila Nova e Assentamento Dorothy Stang. Considera-se que a equipe tenha mais de 4.000 pacientes em sua área, contudo devido déficits no cadastramento essa estimativa não é comprovada.
O Assentamento Dorothy Stang é um ajuntamento atualmente liderado pela Associação dos Moradores Lutadores e Apoiadores do Residencial Dorothy Stang (AMREDS), localizado em Sobradinho, Distrito Federal. A associação foi fundada oficialmente em 26/01/2018, em seu estatuto declara ser uma instituição sem fins econômicos constituída por prazo indeterminado, tendo por objetivo estudos e pesquisas no sentido de melhorias sociais e culturais da coletividade. (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES, LUTADORES E APOIADORES DO RESIDENCIAL DOROTHY STANG, 2018).
A ocupação tem origem em 2015, sendo que no princípio da sua formação o território era um assentamento de Sem-Terra liderado pelo movimento Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL), reunindo aproximadamente 600 famílias em situação de grande vulnerabilidade. Durante sua consolidação e até os dias atuais foi solo de diversos conflitos pela terra e influência. Hoje o movimento não está mais presente no território.
Durante os dois anos de residência, em contato próximo com a população e nos atendimentos individuais, foi possível observar características marcantes da comunidade relacionadas à falta de recursos, tornando a população totalmente dependente do que é oferecido pelo sistema público.
As questões de saúde relacionadas à gravidez na adolescência, à violência doméstica e interpessoal, os problemas de saúde mental, a insegurança alimentar e dependência das políticas públicas para provimento das necessidades no lar também eram conteúdos frequentes dos atendimentos realizados. Devido a fragilização econômica e social dos pacientes, há uma maior busca por atendimentos, sendo a UBS uma porta de entrada importante, favorecendo a abordagem dos problemas descritos paralelamente.
Ao observar o volume de pacientes gestantes, incluindo adolescentes, identificou-se o planejamento reprodutivo como alvo a ser abordado nas consultas, pelo impacto socioeconômico e sob as demandas de atendimentos. Em reuniões de equipe, foram programados atendimentos coletivos, porém pelas experiências vivenciadas em outros grupos e pela identidade da população-alvo, decidiu-se por abordar a questão individualmente em todos os atendimentos em mulheres e homens em idade fértil.
Notou-se que o questionamento sobre o planejamento reprodutivo para homens é barrado por alguns tabus relacionados à prática sexual, principalmente quando há parceria fixa. Na perspectiva das mulheres, houve maior interesse em usar os métodos anticoncepcionais hormonais com preferência para os injetáveis por conta da facilidade do uso.
Durante o atendimento das gestantes, principalmente no início do terceiro trimestre, adquirimos o hábito de perguntar sobre o desejo de gerar filhos após o parto e orientamos sobre os métodos contraceptivos disponíveis na unidade. Em casos de mulheres que preenchiam os critérios para laqueadura, preenchemos os documentos necessários para o procedimento no intra-parto, tendo sucesso em apenas cinco gestantes em dois anos. Pelos relatos das pacientes, notamos que a maior dificuldade relacionada à laqueadura no intra-parto estava associada ao desejo do profissional obstetra em realizar o procedimento, seja por motivação pessoal, falta de recursos ou pressão de atendimento.
Quando a realização de laqueadura no intra-parto não era uma opção, seja pela via de parto preferencial ser a vaginal ou em caso de pacientes não gestantes, a equipe solicitava a consulta em Cirurgia Ginecológica pelo Sistema de Regulação (SISREG), processo que se tornou um grande desafio enfrentado nas orientações, pois a oferta dos procedimentos e consultas era limitada e com grande fila de espera, dificultando a abordagem de demanda sensível ao tempo.
No SUS, órgãos reguladores são responsáveis pelo gerenciamento, otimização dos recursos e qualificação do acesso do usuário, denominados Gerências de Regulação de Saúde (GER), subordinadas às Diretorias Regionais de Atenção Primária à Saúde, que tem como uma de suas funções desenvolver atividades voltadas à promoção do acesso dos usuários aos serviços de saúde, de acordo com os protocolos assistenciais e de regulações vigentes. (DISTRITO FEDERAL, 2021).
O Ministério da Saúde/DATASUS disponibiliza aos estados, municípios e Distrito Federal o Sistema Nacional de Regulação (SISREG). Este é composto por três módulos: Ambulatorial (marcação de consultas e exames especializados), Internação Hospitalar e Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade/Custo (APAC). O sistema é acessado pela internet e integrado a alguns sistemas de informação gerenciados pelo órgão como: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e Cartão Nacional de Saúde (CNS).
Um dos procedimentos regulados via SISREG é a consulta com a cirurgia ginecológica para realização de esterilização cirúrgica feminina – laqueadura tubária. Para acesso das pacientes à realização do procedimento de laqueadura existem protocolos e notas técnicas que orientam os fluxos de encaminhamento. Podemos elencar alguns períodos e publicações de notas importantes para a organização do fluxo de laqueadura/vasectomia:
– Em 1997, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria Nº 144 e, posteriormente, da Portaria Nº 048 incluiu a laqueadura tubária e a vasectomia no grupo de procedimentos cirúrgicos do SUS, permitindo a esterilização no caso de homens e mulheres maiores de 25 anos ou com pelo menos dois filhos vivos, e no caso de risco para a mãe ou para o filho, tendo testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos, observando um prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade do casal e a realização da cirurgia. (MARCOLINO, 2004)
– Em 08 de julho de 2023, a Secretaria de saúde do DF, divulgou a nota técnica Nº 13/2023 – SES/SAIS/CATES/DUAEC, que estabelece fluxo para a regulação e realização de cirurgia de esterilização cirúrgica feminina e masculina no âmbito da Rede Pública de Atenção à Saúde no Distrito Federal. (DISTRITO FEDERAL, 2023). Dispondo em seu conteúdo os critérios para solicitação do procedimento, que são: mulheres ou homens com capacidade civil plena; com idade superior a 21 anos, ou ter pelo menos dois filhos vivos; e passar por atendimento individual ou em grupo, de orientação e aconselhamento multidisciplinar; e respeitar o prazo mínimo de 60 dias entre o registro da manifestação de vontade e a realização do procedimento. (DISTRITO FEDERAL, 2023). Ademais, é necessário solicitação de propedêutica mínima para encaminhamento: exame ginecológico completo, teste imunológico para gravidez, hemograma completo, rotina laboratorial para pacientes com necessidades especiais e/ou comorbidades; ultrassonografia pélvica transvaginal, realizada na primeira fase precoce do ciclo; colpocitologia oncótica preventivo colhido há menos de 1 ano; e a realização das orientações sobre planejamento reprodutivo. (DISTRITO FEDERAL, 2023).
Ao considerar a nota técnica Nº 13/2023 de 08 de julho de 2023, percebem-se fatores limitadores e possíveis barreiras de acesso, que dificultam o encaminhamento de pacientes que preenchem os critérios para solicitação. Dentre esses fatores, destaca-se: solicitação de exames laboratoriais e de imagem e a realização do preventivo em período de até 1 ano.
Ressaltando a solicitação de exames laboratoriais e de imagem como propedêutica mínima, considerando que em nossa realidade não há oferta de vagas necessárias para abarcar os pacientes com necessidades especiais e/ou comorbidades, também se torna uma barreira para as pacientes com indicação de realização de laqueadura, tornando a oferta ainda mais escassa ao se tratar de exame básico para preenchimento de critério para consulta ginecológica.
Ademais, a realização de preventivo há menos de um ano, se contrapõe às orientações do Ministério da Saúde, em que esse procedimento, é indicado para pacientes com vida sexual ativa, especialmente as que têm entre 25 e 64 anos, porém a solicitação da esterilização definitiva abarca mulheres a partir de 21 anos, além disso, esse exame tem indicação de ser realizado trienalmente após dois resultados normais consecutivos. (INCA, 2016).
Tais demandas, mesmo que intuitivamente básicas, constituem barreiras de acesso para populações menos favorecidas e que necessitam integralmente do SUS, pois é notável que a alta demanda do sistema para as demais questões de saúde impossibilitam o provimento dessa determinação.
É importante destacar algumas experiências da equipe em seus atendimentos diários:
Do montante de 15 pacientes encaminhadas para realização de laqueadura no intra-parto, apenas oito tinham via de parto cesariana como preferencial e destas, cinco foram submetidas à laqueadura, as demais ainda aguardam a consulta com a cirurgia ginecológica.
Fato corriqueiro após o agendamento da cirurgia é o cancelamento do procedimento após alguns dias ou até mesmo durante a preparação para a cirurgia sob a alegação de falta de equipamentos ou recursos humanos.
Considerando as barreiras da Nota Técnica n° 13/2023, da totalidade de solicitações realizadas pela equipe para consulta ginecológica no período prévio à divulgação da nota, todas foram devolvidas, com justificativa de solicitação de propedêutica mínima. Ademais, quantidade irrisória das solicitações devolvidas no período, foram reenviadas devido a falta de acesso aos exames para se adequar aos descritores mínimos, as demais solicitações foram enviadas com conteúdo incompleto.
O cotidiano dos atendimentos envolvendo o planejamento reprodutivo é desgastante considerando as dificuldades de acesso a procedimentos e métodos anticoncepcionais e também de realizar educação em saúde, entendendo que quando alguns métodos não estão disponíveis os pacientes têm dificuldade em aderir ao uso de outras alternativas, gerando um fluxo de gestações não planejadas e não aceitas.
A oferta de laqueadura deve ser acessível assim como dos demais métodos anticoncepcionais, contudo, superando a ideia de “contenção de natalidade”, é necessário entender que a educação em saúde e o conhecimento sobre direitos e possibilidades se configura como a principal estratégia no sentido de gerar autonomia e autoconhecimento, construindo resultados que não podem ser quantificados mas tem o seu valor em si.
Devemos capacitar as pessoas e as comunidades, investindo tempo ao abordar sobre o provimento de recursos básicos, a disponibilidade de tempo para os cuidados com os filhos, os objetivos do casal e questões culturais como determinantes para refletir em consultas de planejamento familiar.
A oferta de opções para se planejar a concepção de filhos deve ser democrática e contemplar as necessidades e limitações no que diz respeito à saúde pública, com possibilidades de fácil acesso, para que o propósito tenha sua finalidade cumprida. A educação em saúde deve abranger questões práticas e de planejamento de vida, tornando as mulheres e os homens conhecedores de suas responsabilidades, com autonomia para tomarem decisões e terem acesso ao método de sua preferência, sem barreiras ou limitações.
4. Conclusão
O planejamento reprodutivo no contexto da atenção primária e em populações marginalizadas é um grande desafio, seja pela questão cultural envolvendo o processo de ter ou não filhos, quanto por tabus relacionados à contracepção. Ademais, percebe-se que quando as barreiras individuais são esclarecidas, barreiras de acesso a procedimentos se tornam grandes vilãs ao se oferecer um serviço de saúde. Durante a residência, a sensação de impotência frente as regulações de consultas e exames foi desafiadora, principalmente ao perceber a função do médico como um recurso da população para ter acesso a seus direitos em saúde.
As Políticas Públicas de Planejamento Reprodutivo precisam ser repensadas visando o melhor acesso das pessoas ao serviço necessário para que sua decisão seja consumada, é necessário que a oferta de métodos contraceptivos seja facilitada, sem impedimento ou custos adicionais que prejudiquem a adesão dos usuários. Ademais, é necessário revisitar as orientações relacionadas ao tema, para que os fluxos não se contraponham, gerando discordâncias que confundem a tomada de decisões dos profissionais assistentes.
É urgente a revisão da Nota Técnica Nº 13/2023, de forma a adequar a realidade vivenciada hoje no Sistema Único de Saúde considerando a limitação de recursos e o número de vagas disponíveis para a realização do procedimento, respeitando as melhores evidências sobre o assunto.
Destaca-se a importância da participação dos profissionais na elaboração dos fluxos para regulação, reconhecendo e valorizando seu papel na assistência, como conhecedor das necessidades, demandas e dificuldades da população, e a Responsabilidade Técnica Distrital que discute e estabelece os critérios para a regulação dos procedimentos e consultas, tornando o atendimento coeso e compatível com os serviços oferecidos.
As equipes da ESF devem ser incentivadas a pensar em estratégias personalizadas para suas populações e realidades, seja por meio de grupos ou nos atendimentos individuais, visando a melhor abordagem do Planejamento Reprodutivo, entendendo a potencialidade do assunto e gerando um fluxo de melhor compreensão dos direitos sexuais e reprodutivos.
Além das questões contrastantes entre ter ou não filhos, nota-se que é imprescindível abordar outras questões qualitativas ao se pensar em saúde individual e familiar, permitindo que a família faça sua própria avaliação, elabore seu plano e gerencie de forma consciente o planejamento familiar, direcionados para o desenvolvimento da família em diferentes fases do ciclo de vida.
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1Graduada em Medicina, pela Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal, ESCS – DF
https://orcid.org/0000-0002-3252-9182
https://lattes.cnpq.br/4455217147843542
Escola de Saúde Pública, DF, Brasil
E-mail: rafaelacarvalho.mfc@gmail.com
2Graduado em Medicina pela Universidade do Estado do Pará, UEPA; Mestre em Políticas Públicas de Saúde pela Fiocruz Brasília
https://orcid.org/0000-0002-4953-7576
http://lattes.cnpq.br/9025774545121026
Escola de Saúde Pública, DF, Brasil
E-mail: arthurmello91@gmail.com
3Graduada em Medicina na Escola Superior de Ciências da Saúde, Residência em Medicina de Família e Comunidade pela ESCS e mestranda em Políticas Públicas pela Fiocruz Brasília
https://orcid.org/0000-0001-9817-7303
http://lattes.cnpq.br/8769092835266845
Secretaria de Estado de Saúde, DF, Brasil
E-mail: eduardadutralopes@gmail.com