O REGIME JURÍDICO DA REFORMA AGRÁRIA E SEU IMPACTO NO CONCEITO TRADICIONAL DE TERRAS DEVOLUTAS

REGISTRO DOI:


Jefferson Lemes dos Santos
Orientadora: Profa, Dra. Angela Cassia Costaldello


A reforma agrária instituída no Brasil com a Constituição Federal de 1988 colide com estrutura jurídica vigente. A tentativa de democratizar o acesso à terra coadunada com uma política de estímulo ao cumprimento da função social da propriedade privada, impactou os principais pilares da sociedade capitalista Estado e propriedade. A própria noção da atuação estatal ganha outro significado, uma vez que o Estado deixa de ser visto apenas como um garantidor da fruição e preservação da propriedade capitalista1, para desempenhar um papel muito mais incisivo na mitigação da desigualdade social agrária.

Com essa mudança, a própria forma de se pensar o direito também se altera, ensejando em novos institutos jurídicos que visam regular a atuação social do Estado. A crescente coletivização do direito é um exemplo dessa mudança de paradigma, que se distancia cada vez mais da lógica individualista característica do direito moderno2. O uso coletivo da propriedade, preconizada pela reforma agrária, se insere nesse contexto de mudança e de rupturas.

Tais rupturas não se apresentam de forma incisiva. Ao contrário, a mentalidade consolidada acerca da propriedade individual torna o processo de ruptura lento e gradual. Não raro, novo e velho colidem. Os efeitos desta colisão são percebidos quando institutos clássicos apresentam incompatibilidades na aplicação conjunta com institutos inovadores. Um exemplo clássico é o conceito de terra devoluta, cuja a matriz histórica remonta ao século XIX, e que, a partir da implementação da reforma agrária, sofreu uma reformulação drástica.Com advento da Lei 8.629/1993, as terras devolutas são preferencialmente destinados à reforma agrária. Esse regime de “preferência” cria uma situação curiosa, afetando o bem

1 “O poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político existe como poderio dos economicamente poderosos, para servir seus interesses e privilégios e garantir-lhes a dominação social.” (CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000. p. 530) .

2GROSSI. Paolo. Para Além do Subjetivismo Jurídico Moderno. In: FONSECA, Ricardo Marcelo SEELANDER, Airton Cerqueira Leite (orgs.) História do Direito em Perspectiva. Curitiba: Juruá, 2008. p.19-20

devoluto a uma finalidade específica uma vez que o conceito devoluto pressupõe uma desafetação.3

Junto com esse descompasso do direito em prever fórmulas jurídicas eficazes na efetivação da reforma agrária, há também um ambiente de crise em relação ao conceito de bens públicos. A instabilidade cognata à incerteza quanto ao melhor critério que define os bens públicos (subjetivista ou funcionalista), torna ainda mais difícila correta definição acerca dos bens imóveis que estão afetados à reforma agrária.

Isso porque, os bens imóveis sob o “domínio” do Estado e destinados a concretização da reforma agrária, se configuram de forma tão peculiar ao ponto de não se compatibilizarem integralmente com as “roupagens jurídicas” usualmente aplicáveis. Um exemplo elucidativo é a função social função do bem público sob a tutela do Estado durante o processo de assentamento das famílias sem terra. Segundo o texto constitucional4, será assegurado aos assentados a outorga de título de domínio ou concessão de uso. Essa duplicidade na forma de regular a relação entre assentado e coisa, gera uma celeuma acerca da função social dos imóveis destinados à reforma agrária.

Na outorga do título de domínio, o bem outrora desapropriado, estará apto a retornar à circulação enquanto propriedade, e a função social teve uma postura momentânea, como uma antessala da nova mercantilização da terra. No entanto, caso seja outorgado a concessão de uso, não há a transferência do domínio ao parceleiro, e o Estado ainda mantém a uma relação jurídica com o imóvel. Na segunda hipótese a finalidade da reforma agrária e a responsabilidade do Estado não se esgota com a titulação os imóveis. Ou seja, há duas formas completamente distintas de se efetivar a reforma agrária.

Outra questão interessante diz respeito aos limites da propriedade. Historicamente buscou-se encontrar contornos jurídicos acerca do uso da propriedade a partir da elástica noção de função social da propriedade5. Com a Lei da Reforma Agrária (Lei 8.629/19936) houve a introdução de uma figura jurídica que limita a propriedade a partir do tamanho, e não apenas em relação a função.


3 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. rev. atual e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 971

4 “Art. 189. Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos.” BRASIL. Constituição (1988). Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

5 GOMES, Orlando; FACHIN, Luiz Edson. Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 123- 125

As vicissitudes que acompanham o regime jurídico dos bens destinados à reforma agrária deixam claro que as classificações clássicas não dão conta da complexidade ínsita ao tema bens públicos. Tal incongruência reafirma a necessidade de revisar as categorias criadas pelo Código Civil. A preocupação com a classificação não deriva de um inconformismo tecnicista, ou sem qualquer fundamento. Classificar importa na alterar o regime jurídico, modificando uma plêiade de situações jurídicas que se constituem em razão do bem ser “dominical” ou ser de “uso especial”. Nesse sentido, a atividade classificativa deve ser conduzida no sentido de abarcar situações que vão além da classificação do Código Civil, evitando incompatibilidades a realidade social.

Com o objetivo de contribuir para o aprimoramento da teoria da classificação dos bens públicos, o presente texto se propõe a realçar as incongruências que a classificação civilista alberga em face da complexidade do regime jurídico da reforma agrária, dando especial importância às alterações no conceito de terras devolutas. Para tanto, incialmente haverá um breve delineamento de como o Código Civil classifica os bens públicos, bem como algumas críticas trazidas a esta forma classificativa. Depois, será feito um dimensionamento dos aspectos jurídicos da reforma agrária. Por fim, será feito um cotejo entre o regime jurídico dos bens afetos à reforma agrária com a noção clássica do conceito de terras devolutas.

O código civil e o regime dos bens públicos

O regime dos bens públicos é delineado pela Lei 10.405/20027 (Código Civil) nos artigos 98 a 103.


6 “Art. 22 (…) § 1o Após transcorrido o prazo de inegociabilidade de dez anos, o imóvel objeto de título translativo de domínio somente poderá ser alienado se a nova área titulada não vier a integrar imóvel rural com área superior a quatro módulos fiscais.” BRASIL. Lei nº 8.629, de 25 de janeiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. D.O. DE 26/02/1993, P. 2349

7 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. D.O.U. DE 11/01/2002, P. 1

Logo no art. 988 é possível identificar a preocupação do legislador em definir quais as espécies de bens que estariam suscetíveis ao domínio privado sob o prisma da propriedade. Essa característica é herança do código de 1916, visto que, em relação à disciplina, não houve mudanças substanciais na redação9, sendo os atuais dispositivos cópias da redação anterior.

Assim, para compreender a atual disciplina jurídica dos bens públicos pelo Código Civil de 2002, e a ênfase dada ao instituto da propriedade, é necessário ter por base o diploma promulgado em 1916. Como o antigo diploma era essencialmente individualista10, e visava uma espécie de conciliação entre uma estrutura completamente conservadora e os ideários da modernização11, a preocupação do Código foi regular o regime dos bens públicos à luz dos interesses burgueses de circulação de mercadorias e reforço do instituto da propriedade da época.

Esse ideário atualmente continua pujante no Código Civil de 2002, que caracteriza os bens públicos pela identificação básica da relação entre sujeito, objeto e terceiros12. Tal arquitetura reflete em grande parte os delineamentos dado à propriedade nos direitos reais, ao conjugar os critérios sintéticos (bens submetidos aos sujeitos públicos art. 98), analíticos (forma de fruição do bem art. 99) e descritivos (características do direito art. 100 a 103)13.

Na concepção sintética, o conceito dos bens públicos parte de um viés puramente subjetivista. Para identificar a natureza do bem deve-se identificar o titular do bem, posto que “São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às conceituação pode ser feita à luz de três critérios: o sintético, o análitico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo com Windscheid, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.” (GOMES, Orlando. Direitos reais. Coor. Edvaldo Brito — 21. ed. rev. e atual./ por Luiz Edson Fachin, — Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 103)


8 Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.

9 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: Função social e exploração econômica.

Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 104

10 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

11 COSTA FILHO, Venceslau Tavares Um código “social” e “impopular”: uma história do processo de codificação civil no Brasil (1822-1916) – Recife: O Autor, 2013. p. 227

12 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: Função social e exploração econômica. Belo Horizonte: Fórum , 2009, p. 106

13 “O direito real de propriedade é o mais amplo dos direitos reais — ‘plena in re potesta’. Sua

pessoas jurídicas de direito público interno”14. Segundo a redação, não importa qual a funcionalidade do bem, se está ou não afetado a satisfação de um interesse público imediato, mas tão somente se integra o domínio de um sujeito de direito público.

No âmbito analítico, o Código Civil classifica os bens públicos em três ordens diferentes. Discrimina os bens públicos de uso comum do povo, partindo de um rol exemplificativo. Essa catalogação é extremamente criticada por não definir, com clareza, quais os fundamentos de constituição do bem de uso comum.15 Diante da laconicidade, coube à doutrina o papel de atribuir os contornos conceituais desta classificação, começando pela definição de exemplificativo e não exaustiva em relação ao rol trazido pelo Código.16

Na mesma linha, sob o critério analítico o Código cuida também dos bens afetados a uma utilidade pública, elencando como exemplos edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração. Tais bens seriam de uso especial e juntamente com os de uso comum do povo comporia o domínio público indisponível dos bens estatais.

Por fim, o Código Civil cria também uma terceira categoria, denominada bens dominicais. Diferentemente das categorias anteriores, os bens vinculados a tais categorias não respondem ao domínio público e sim ao domínio privado17, exercendo o Estado as faculdades e prerrogativas como qualquer proprietário privado18, podendo usar, gozar, e fruir a coisa19.


14 Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.

15 “Ao invés de dizer quais os predicados que levam o bem a ser de uso comum ou especial, o Código, notadamente para os de uso comum, limita-se a caracterizá-los pelos exemplos, como se isso fosse suficiente para todos entendam que tipo de bem (e de uso) se trata.” ( MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: Função social e exploração econômica. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 109)

16 “O art. 66, 1,[Código de 1916} é exemplificativo. Nele, não se falou, por exemplo, de lagos e lagoas navegáveis.” p. 68 (MIRANDA, Pontes)

17 “Bens dominicais ou do patrimônio disponível são os que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades (CC, art. 99, III). Sobre eles o Poder Público exerce poderes de proprietário” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1 : parte geral – 15. ed. – São Paulo :Saraiva, 2017. p.337)

18 “Os bens dominiais (ou dominicais) são os que formam o patrimônio dos entes públicos. São aqueles objetos de propriedade do Estado como de qualquer pessoa, como se particular fosse. Seu direito de propriedade é exercido seguindo os princípios de direito constitucional, administrativo e civil, como as estradas de ferro, títulos da dívida pública, telégrafos, oficinas do Estado etc.” (VENOSA, Sílvio de Salvo Direito civil: parte geral. 17 ed. – São Paulo : Atlas, 2017. pp 326-327)

19 “Os chamados bens ‘dominicais’, bens do patrimônio privado das entidades estatais, são bens que pertencem à União, aos Estados Federados, ao Distrito Federal, aos Territórios e aos Municípios, a título privado. p. 68 (MIRANDA, Pontes)

No âmbito descritivo, o Código Civil atribui ao regime jurídicos dos bens públicos determinadas características que orientam a fruição do bem, sendo eles a) imprescritíveis, b) impenhoráveis e, c) inalienáveis.

A imprescritibilidade e impenhorabilidade são características comuns a todos os bens públicos, ao passo que o próprio Código excepciona a inalienabilidade em relação aos bens dominicais.

Tal panorama é fortemente criticado por aqueles que, reputando a insuficiência dos parâmetros atribuídos pelo Código Civil, almejam uma classificação a partir da funcionalidade do bem, em detrimento de um critério puramente subjetivista. Sob o prisma funcionalista não há grande relevância na identificação do detentor do domínio, pois o que realmente importa é a finalidade a que o bem se presta20.

Nesse sentido, a crítica se constrói em torno da exclusão que o regime subjetivista faz ao desconsiderar bens de titularidade privada, mas que pela sua essencialidade, se submetem ao regime de direito público. Um exemplo é o regime atribuído aos prédios de presídios públicos construídos por meio de parceria público- privada, nos termos da Lei 11.079/0421. Na mesma linha, bens das pessoas jurídicas de direito privado, enquanto prestadoras de serviços público, também são públicos22 pela definição funcionalista, distando por completo da definição civilista.

Pelo critério funcionalista pode-se identificar, por exemplo, que o bem imóvel derivado do processo de reforma agrária, mesmo após a outorga do título de domínio, permanece sujeito a um regime de direito público. Nos termos da Lei 8.629/199323, com outorga de domínio privado ao parceleiro, transformando-o em proprietário daquele imóvel, o bem permanece inegociável por um período de 10 anos. Significa dizer que, com a dominialidade do bem sendo transmitida à família sem terra e não havendo mais domínio público, permanece o interesse público em impedir a reconcentração de terras e formação novos latifúndios. Esse regime da inegociabilidade, conforme se verá adiante, não é um mero limitador do direito de propriedade, tal qual se conhece pelo instituto da propriedade resolúvel. É, outrossim, é um verdadeiro ato de afetação do imóvel ao interesse da coletividade, tornando-o não apenas inalienável, mas também insuscetível de circulação por outras formas (arrendamento, garantia real, penhora judicial, etc.).


20 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: Função social e exploração econômica. Belo Horizonte: Fórum , 2009, p.117

21 BRASIL. Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. D.O.U. DE 31/12/2004, P. 6

22 GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 8 ed. – São Paulo: Saraiva, 2003. pp. 682-683. .

23 Art. 18. A distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária far-se-á por meio de títulos de domínio, concessão de uso ou concessão de direito real de uso – CDRU instituído pelo art. 7o do Decreto-Lei no 271, de 28 de fevereiro de 1967. § 1o Os títulos de domínio e a CDRU são inegociáveis pelo prazo de dez anos, contado da data de celebração do contrato de concessão de uso ou de outro instrumento equivalente, observado o disposto nesta Lei.

Assim, ainda que o bem esteja sob o critério subjetivista sob o domínio privado (da famíla, outrora sem terra, agora pequena “proprietária”), haverá a permanência do regime de direito público, tornando completamente imprópria a desconsideração de sua natureza pública.

Conceito de reforma agrária.

Segundo Luiz Lima STEFANINI, a reforma agrária é um conjunto de medidas administrativas e jurídicas levadas a efeito pelo poder público, buscando modificar modificação e à regência de alguns institutos jurídicos, a revisão das diretrizes da administração ou a parcial reformulação das normas e medidas, com o objetivo de sanear os vícios intrínsecos e extrínsecos do imóvel rural e de sua exploração, sem a derrogação dos princípios que asseguram a propriedade privada24. No mesmo sentido, Luiz Ernani Bonesso de Araújo entende que reforma agrária “é um ato do poder público que visa a modificar um estrutura vigente, num ‘status quo’, o que implica dizer, mudar as relações de poder em uma determinada área.“25Depreende- se desse raciocínio que reformar a estrutura agrária significa dizer que o Estado interferirá na propriedade privada a fim de condicioná-la a função social, porém sem abolir a essência da propriedade privada.

A partir de 1985, quando o debate sobre a reforma agrária ganhou um certo destaque no cenário político nacional, o Legislativo Federal não tardou em reconhecer a necessidade de implementar uma reforma agrária. A necessidade da intervenção estatal para apaziguar as revoltas sociais no campo era uníssona entre os congressistas. Não havia divergência quanto a conveniência ou oportunidade da reforma, mas apenas em como ela ocorreria na prática e qual seria o conteúdo jurídico que daria os contornos da interferência do Estado na propriedade fundiária. Basicamente, o Congresso Nacional era unívoco ao reconhecer, na reforma agrária, uma medida “necessária e fundamental”, porém a disputa pela normatização da reforma agrária engendrava uma disputa homérica26. Surge, então, uma dualidade entre as formas que o regime jurídico político brasileiro lidaria com a questão agrária. De um lado, a reforma agrária teria um caráter mais radical, interferindo de modo mais incisivo nos pilares da propriedade, tornando-se um instrumento de diminuição da apropriação privada da terra enquanto meio de produção. Por outro lado, havia forte resistência quanto à instituição de uma reforma agrária perniciosa ao capitalismo agrário brasileiro, defendendo-se uma reforma agrária com um perfil capitalista, representando um aumento na distribuição da propriedade fundiária, visto que a concentração e a ociosidade das terras agrárias também representaria riscos ao desenvolvimento capitalista27.


24 STEFANINI, Luiz Lima. A propriedade no direito agrário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978p. 28

25 ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. O acesso à terra no Estado democrático de direito. – Frederico Westphalen: Ed. Da URI, 1998. p.103

Reformar a estrutura agrária é, portanto, uma decisão política. A incidência com que haverá maior ou menor transformação na realidade social, atuando de forma mais incisiva ao mitigar a concentração da propriedade privada, depende do conteúdo que a atividade legislativa dará à reforma agrária.

A disputa pelo conteúdo da reforma agrária ganhou contornos mais relevantes no processo da Assembleia Nacional Constituinte. Tendo em vista que é a partir da constituição que são delineadas as questões centrais de uma comunidade política, tais como a limitação do poder, legitimação da ordem jurídica, afirmação de identidade política, criação de garantias e programação da atuação estatal28, o debate para atribuição de conteúdo à atuação administrativa do Estado na propriedade fundiária se acirrou. Em linhas gerais, parte dos congressistas propugnavam um processo de reforma agrária mais brando, com pouca interferência do Estado na propriedade privada e uma ampla gama de proteção ao proprietário descumpridor da função social. Outra parte buscava uma reforma agrária mais progressista, com a perda sumária do imóvel em se tratando de latifúndio, limite máximo para o tamanho da propriedade e emissão automática na posse em favor do ente desapropriante29.


26 É por isso que todo pronunciamento enuncia que ‘a reforma agrária é necessária é fundamental” e que as “demandas dos homens sem terra na luta pela posse da terra são legítimas”. Entretanto, a partir de tal enunciação, as posições são divergentes numa luta para par fixação do sentido e do significado que cada proposta de reforma agrária pode assumir.” SILVA, Jeanne. Nos labirintos da reforma agrária no Estado democrático de direito brasileiro. Uberlândia: EDUFU, 2015. p162

27 SANTOS, Luasses Gonçalves Dos. Função social da propriedade: retomada histórica e crítica de seus fundamentos liberais. Curitiba, 2013. fl 171. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná

28 •  SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. – 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 89

Essa polarização simbólica30 ocorrida na construção do sentido da reforma agrária consubstanciou um texto que, em alguma medida, mescla essas duas vertentes. Se por um lado o constituinte aventou a possibilidade de uma reforma agrária de mercado, sob o prisma da multiplicação de pequenos proprietários, por outro assegurou que o Estado poderá distribuir as terras sob regime de cessão de uso mantendo a terra estatizada, aproximando-se de um regime mais coletivista/socialista31. Esse modelo dual de se entender a reforma agrária, é característico do processo constituinte que ocorreu nos anos 1987-1988, onde a construção do texto em reflete os antagonismos e as tensões políticas32, que no caso da reforma agrária se polarizou entre grupos que lutavam pela democratização do acesso à terra, em contraposição ao grupo de ruralistas politicamente organizados.33

Não somente o Texto Constitucional reforça o compromisso que a comunidade política assumiu com a reforma agrária, mas legislação ordinária também reverbera essa vontade política fazendo uma descrição muito mais detalhista do significado de reforma agrária, minudenciando a forma de atuação estatal e as finalidades institucionais que busca ao intervir na realidade agrária para transformá- la. Assim, o Estatuto da Terra (Lei 4.504/1964), a Lei da Agriculta Familiar (Lei 11.326/2006) e Lei da Reforma Agrária (Lei 9.629/1993), são dispositivos infraconstitucionais que, em conjunto, dão o conteúdo jurídico da reforma agrária.


29 SANTOS, Jefferson Lemes; ZILIOTTO, Thaís Letícia Borazo. Terra de trabalho campo de disputa: a reforma agrária na tratativa constitucional. In: Constituição texto e contexto: 30 anos depois.coor. SALGADO, Eneida Desiree- Íthala, 2018, p. 190

30 BUTTO, Michelle. Mecanismos deliberativos na Assembleia Nacional Constituinte: a polarização simbólica da reforma agrária. Dissertação (Mestrado em Ciência Política), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2009. p. 33

31 MARQUES, Benedito Ferreira . Direito agrário brasileiro – 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 131

32 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.p. 113.

33 SANTOS, Jefferson Lemes; ZILIOTTO, Thaís Letícia Borazo. Op. Cit. p.187-188

Do Estatuto da Terra extrai-se os objetivos da reforma agrária, forma de execução dos planos, forma de financiamento e critérios genéricos de distribuição de terras. Quanto aos objetivos, o citado diploma apregoa que a reforma agrária “visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio”34. Em relação à forma de execução, o diploma legal determina que serão elaborados planos periódicos, nacionais e regionais, com o estabelecimento de prazos específicos conforme os projetos de assentamento, visando racionalizar a atuação estatal através mediante o planejamento detalhado. Cria também competências financeiras ao órgão executor, como a emissão dos títulos da dívida agrária, bem como realizar operações de compra e venda para angariar recursos. Cumpre destacar que o Estatuto da Terra faz referência, ao tratar da distribuição da terra, ao regime obrigatório da propriedade, corroborando com a perspectiva capitalista de distribuição de propriedade. Conforme já apontado, esse regime não subsiste atualmente visto que a Constituição vigente albergou expressamente a possibilidade da distribuição ocorrer sob regime de concessão,35 tornando a obrigatoriedade da outorga de título de domínio não recepcionado pela Constituição.

Lei de Reforma Agrária (Lei 9.629/1993) o conteúdo normativo mais detalhado sobre a questão, visto que o texto comporta as principais diretrizes que norteiam a intervenção estatal na estrutura agrária. Há previsões que vão do procedimento prévio de criação de assentamentos da reforma agrária, à efetiva consolidação dos projetos de assentamento.36 Nesse iter, há a relação administrativa que se estabelece entre o assentado e a Administração, o qual, a lei também cuida em regular ao estabelecer o critério de seleção para ingresso no programa de reforma agrária,37 bem como as obrigações relativas à guarda e conservação durante a efetivação do projeto38. Esse diploma legal atualmente é regulamentado pelo Decreto 9.311/201839, estabelecendo as disposições mais detalhadas sobre o processo de ingresso e condições de permanência da família sem terra programa.


34 “Art. 16. A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio.” BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências D.O. DE 30/11/1964, P. 49 (SUPLEMENTO)

35 CF 189

36Consolidar significa finalizar o projeto assentamento onde as famílias assentadas já possuíssem condições básicas de sustentabilidade. Esta finalização ocorre através da emissão de título de domínio, buscando cessar o vínculo que o Estado tenha com o imóvel utilizado para assentar as famílias sem terra. Nesse sentido, OLIVEIRA. Augusto de Andrade. Critérios de avaliação de qualidade e a consolidação de assentamentos de reforma agrária no Brasil: a experiência do “programa de consolidação e emancipação (auto-suficiência) de assentamentos resultantes de reforma agrária -pac”. Porto Alegre, 2010. Fl. 424. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural) Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências Econômicas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. p. 69

critério de seleção para ingresso no programa de reforma agrária,37 bem como as obrigações relativas à guarda e conservação durante a efetivação do projeto38. Esse diploma legal atualmente é regulamentado pelo Decreto 9.311/201839, estabelecendo as disposições mais detalhadas sobre o processo de ingresso e condições de permanência da família sem terra programa.

A existência desse arcabouço legislativo além de regulamentar o projeto constitucional de reforma agrária, também representa o interesse público que se constrói em torno da democratização do acesso à terra. Por mais que a expressão “interesse público”, seja dotada de certa vagueza e fluidez,40 é notório que a vasta produção legislativa em torno da reforma agrária simboliza o interesse de toda a comunidade política. Compreender essa noção é essencial para o exercício da atividade administrava, visto que sua condição de validade está arraigada nos interesses refletidos no ordenamento jurídico, de modo que a prática de qualquer ato somente encontrará validade caso não contrarie tais interesses41.

A existência do interesse público na efetivação da reforma agrária produz efeitos significativos no regime jurídico dos bens imóveis que são utilizados pelo Estado para modificar a realidade agrária. Uma vez que há afetação a uma utilidade pública, a fim de concretizar alguma finalidade ou serviço público, o bem será considerado como de uso especial para a Administração42. Logo os bens imóveis utilizados pela reforma agrária são, em suma, considerados como bens de uso especial.


37 Art. 19. O processo de seleção de indivíduos e famílias candidatos a beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária será realizado por projeto de assentamento, observada a seguinte ordem de preferência na distribuição de lotes: I – ao desapropriado, ficando-lhe assegurada a preferência para a parcela na qual se situe a sede do imóvel, hipótese em que esta será excluída da indenização devida pela desapropriação; II – aos que trabalham no imóvel desapropriado como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários, identificados na vistoria; III – aos trabalhadores rurais desintrusados de outras áreas, em virtude de demarcação de terra indígena, criação de unidades de conservação, titulação de comunidade quilombola ou de outras ações de interesse IV – ao trabalhador rural em situação de vulnerabilidade social que não se enquadre nas hipóteses previstas nos incisos I, II e III deste artigo; público; V – ao trabalhador rural vítima de trabalho em condição análoga à de escravo; VI- aos que trabalham como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários em outros imóveis rurais; VII – aos ocupantes de áreas inferiores à fração mínima de parcelamento.

38 Art. 21. Nos instrumentos que conferem o título de domínio, concessão de uso ou CDRU, os beneficiários da reforma agrária assumirão, obrigatoriamente, o compromisso de cultivar o imóvel direta e pessoalmente, ou por meio de seu núcleo familiar, mesmo que por intermédio de cooperativas, e o de não ceder o seu uso a terceiros, a qualquer título, pelo prazo de 10 (dez) anos..

39 BRASIL. Decreto nº 9.311, de 15 de março de 2018. Regulamenta a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e a Lei nº 13.001, de 20 de junho de 2014, para dispor sobre o processo de seleção, permanência e titulação das famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária. D.O.U. de 16/03/2018, P. 16.

40 HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional do interesse público. – Belo Horizonte: Fórum, 2011. P.151

41 HACHEM, Daniel Wunder. Op. Cit. p. 162

Cabe ressalvar, em relação às áreas comunitárias, para construção de parques, praças e campos de futebol criados pelos PDAs43, nos projetos de assentamentos. Apesar de tais áreas serem designadas nas dependências de um assentamento, cujo o imóvel é bem de uso especial, o uso que se faz dessas áreas comunitárias44 é eminentemente aberto à população em geral, não se exigindo um título especial45 dos usuários para o acesso aos espaços. A existência de tal uso configura uma afetação distinta do bem, que estando fora do domínio “privatístico” do Estado, tem seu regime jurídico de bem de uso especial transposto para um bem de uso comum, sem que haja um ato formal de desafetação. Vale lembrar que, a existência da previsão formal da área comunitária no PDA transforma o bem em área de uso comum, pois nem todos os empreendimentos que se constroem em tais áreas (igrejas, escolas, currais comunitários) são de uso irrestrito à coletividade em geral. Dito de outro modo, pode haver nas áreas comunitárias uma construção realizada por um grupo específico de moradores, os quais, serão os únicos legitimados a utilizarem o local. Logo, a desafetação ocorre de modo implícito a partir do momento em que o bem de uso especial é intrinsecamente modificado pelos usos que se faz dele46


42 MARÇAL, Justen Filho. Curso de direito administrativo. 12.ed.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016 p. 1472

43 “É a sigla de Plano de Desenvolvimento do Assentamento. O PDA é feito após a criação do assentamento por uma empresa ou entidade de assistência técnica contratada pelo Incra. A elaboração do Plano conta com a participação das famílias assentadas. Nele é definida a organização do espaço, com indicação das áreas para moradia, produção, reserva florestal, vias de acesso, entre outros aspectos. Além disso, o PDA relaciona as atividades produtivas a serem desenvolvidas no assentamento, as ações necessárias à recuperação e à preservação do meio ambiente, o programa social  e  de  infraestrutura  básica”.  Fonte:  INCRA-  Site  oficial,  disponível  em:<http://www.incra.gov.br/oqueepda> Acesso em: 16.09.2019

44 “O documento do Planejamento do Assentamento a ser entregue ao INCRA deve conter os seguintes itens: a)Organização do espaço por meio do anteprojeto de parcelamento: como e onde vão ficar as áreas de moradia, produção, reserva legal, preservação permanente, área social e estradas”. p. 26 NOGUEIRA, R. F. A organização sócio-espacial do assentamento Olga Benário.Viçosa; Universidade Federal de Viçosa, 2007. 63p. (Monografia apresentada ao curso de Geografia)

45 “Caracteriza o uso especial o caráter de individualidade do uso, que demanda do usuário do bem algum título especial que o legitime ao uso.” p. 243 (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: Função social e exploração econômica. Belo Horizonte: Fórum , 2009)

46 Nesse sentido, Marçal Justen Filho apregoa o cabimento de bens intrinsecamente afetados e que independem de um ato formal para alteração de seu regime jurídico. p. 1475 (MARÇAL, Justen Filho. Curso de direito administrativo. 12.ed.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016)

Em suma, uma vez o bem utilizado no projeto constitucional de reforma agrária, estar-se-á afetando o bem de tal maneira a um interesse público pujante e eloquente, que ecoa do art. 186 da Constituição e das legislações infraconstitucionais. Tal afetação torna inconcebível caracterizar o bem como uso dominical, restando apenas as figuras uso comum e especial aplicável ao regime jurídico dos bens imóveis afetados à reforma agrária.

Terras devolutas e Reforma Agrária

Etimologicamente terra devoluta significa “devolvida”47. Era utilizada para se referir às porções de terras entregues pela Coroa aos súditos que não eram por estes aproveitadas, sendo assim “devolvidas” à ela pela falta de utilidade. Apesar de ser esse o conteúdo histórico do conceito do termo devoluto, tal configuração não se refletiu no conceito jurídico apregoado pela Lei de Terras48 nos idos de 1850. O conceito linguístico deu lugar ao conceito jurídico, segundo o qual terras devolutas seriam aquelas não legitimadas por algum título de propriedade, tampouco estavam sendo utilizadas pela Coroa49. Devoluta não era mais a terra “devolvida”, mas sim a terra não utilizada.

Os historiadores se debruçaram com certo afinco em torno desta lei tamanha sua relevância para formação de institutos jurídicos centrais ao direito brasileiro. Tome-se por exemplo o direito de propriedade, que começa a surgir no país, em toda a sua expressão moderna, a partir Lei de Terras. A terra começa passa a ser uma mercadoria, e, enquanto tal, inaugura um novo regime jurídico, substituindo o posseiro, o meeiro, o sesmeiro, pelo agora moderno proprietário50.


47 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21. ed. – Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 261

48 BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Coleção das leis do Brasil. 1850. V. 1., P. 307

49 “As terras devolutas são os bens imóveis que, qualificados como públicos pela Lei 601/1850, porque, na data da vigência dela, não se encontravam nem (a) afetados ao desenvolvimento de atividades estatais nem (b) sob a posse privada, não receberam uma outra qualificação jurídica posteriormente”. (MARÇAL, Justen Filho. Curso de direito administrativo. 12.ed.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016 p. 1525)

50 “Eis o significado crucial da ‘Lei de Terras’: até 1850 poder-se-ia falar de posseiro, concessionário ou sesmeiro, mas não de proprietário (nos moldes em que modernamente esse termo é compreendido). A partir de então, finalmente, seria possível ver emergir de modo claro a figura do proprietário, quer fosse o proprietário particular, quer fosse o proprietário Estado”. (FONSECA, Ricardo Marcelo. Vias da Modernização Jurídica Brasileira: A cultura jurídica e os perfis dos juristas brasileiros. A “Lei de Terras” e o advento da propriedade moderna no Brasil. In: Anuário Mexicano de Historia del Derecho. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas Unam, n. 17, p. 97-112, 2005 p. 110)

A historiografia também lembra que a Lei de Terras surge num processo de substituição da mão de obra escravizada pela mão de obra livre e assalariada. Nesse sentido, sua função foi regular a relação de apropriação do território brasileiro, vedando o acesso à terra às populações antes escravisadas e pelos imigrantes que vinham da Europa para constituir colônias e trabalhar nas lavouras de café e cana-de- açúcar, resignificando a estrutura agrária brasileira a partir de uma colonização sistêmica51.


É digno de nota o fato de que, durante algum tempo, as terras devolutas puderam ser objeto de usucapião. Além da forma prevista para legitimar a posse primária (art. 5ª, da Lei de Terras52) havia a possibilidade do decurso do tempo gerar a aquisição de propriedade, mediante o instituto do usucapião. Tal possibilidade se extirpou do ordenamento jurídico com o advento do Código de 1916, ao atribuir aos bens públicos, dentre eles as terras devolutas, a característica de imprescritibilidade. Essa característica foi flexibilizada durante alguns períodos nos quais se passou a admitir a existência de usucapião pro-labore (Constituições de 1934, 1937 e 1946) e o usucapião especial (Lei no 6.969, de 10-12-81). Atualmente a Constituição Federal (arts. 183, § 3º, e 191, parágrafo único) assegura o regime de imprescritibilidade aos havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes: § 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terreno aproveitado ou do necessario para pastagem dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, comtanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.§ 2º As posses em circumstancias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em commisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito á indemnização pelas bemfeitorias.Exceptua-se desta regra o caso do verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hypotheses: 1ª, o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionarios e os posseiros; 2ª, ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco annos; 3ª, ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10 annos.§ 3º Dada a excepção do paragrapho antecedente, os posseiros gozarão do favor que lhes assegura o § 1°, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionario ficar com o terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar- se tambem posseiro para entrar em rateio igual com elles.§ 4º Os campos de uso commum dos moradores de uma ou mais freguezias, municipios ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a pratica actual, emquanto por Lei não se dispuzer o contrario.

51 A proposta de “colonização sistemática” contida na lei, neste particular, teria seu sentido referenciado por uma longa permanência: ressignificar uma estrutura social calcada no latifúndio, ao modernizar as suas relações produtivas, implicaria em estabelecer os meios para a conservação do antigo poder senhorial, de cariz antigo, sobre a pré-modernidade. (BECHTLUFFT, Bernardo Pinhón. O vazio da terra: análise dos debates parlamentares em torno à proposta colonizatória da lei nº 601/1850 (1842- 1850). Curitiba, 2018. 166f. Dissertação (Mestrado em Direito), Centro Universitário Internacional, Uninter. p. 21)

52Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou bens públicos53. Tal abertura à apropriação privada pela forma prescritiva se deve ao fato de associar as terras devolutas à ausência de utilidade, legitimando assim, do ponto de vista da política agrária implementada nesses períodos, a apropriação pelo particular que, ao ocupar aquela parcela, deu ao imóvel a melhor destinação à luz da função social.

Como mencionado, o regime jurídico constitucional vigente não comporta mais essa forma de apropriação das terras devolutas, entretanto o sentido de bem não utilizado (seja pelo particular sob forma de propriedade seja pelo ente público) ainda acompanha o conteúdo jurídico da terra devoluta. Segundo Marçal Justen Filho, o fator característico seria essa duplicidade de não pertencer ao particular e não estar afetado às funções do Estado se deve ao fato se que

As terras devolutas são os bens imóveis que, qualificados como públicos pela Lei 601/1850, porque, na data da vigência dela, não se encontravam nem (a) afetados ao desenvolvimento de atividades estatais nem (b) sob a posse privada, não receberam uma outra qualificação jurídica posteriormente. O instituto jurídico da terra devoluta é próprio do direito brasileiro e resulta da evolução político -jurídica nacional. A identificação das terras devolutas envolve a situação jurídica dos bens por ocasião da vigência da Lei 601/1850. ”54.

Em sentido similar, e acentuando a característica residual do conceito de terras devolutas, encontra-se o posicionamento da Maria Sylvia Zanella di Pietro. A autora divide o conceito de terras devolutas em dois momentos distintos, se referindo primeiramente às terras que ainda não foram objeto de discriminação e não se incorporaram legitimamente ao domínio particular, e num segundo momento às terras que já foram incorporadas ao patrimônio público mas que afetadas a qualquer uso público.”55.

Acentuando a característica de bens dominicais, José Santos de Carvalho Filho entende que “As terras devolutas fazem parte do domínio terrestre da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e, enquanto devolutas, não têm uso para serviços administrativos. Por serem bens patrimoniais com essas características, tais áreas enquadram-se na categoria dos bens dominicais”.56


53 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. rev. atual e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 971

54 MARÇAL, Justen Filho. Curso de direito administrativo. 12.ed.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p 1521.

55 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Op. Cit. p. 971

56 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 31. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017. p. 668

Observa-se que predomina, segundo os excertos acima, denominadores comuns na classificação do das terras devolutas. O primeiro, diz respeito ao domínio eminentemente público, visto que no imóvel devoluto não recai o manto da propriedade privada. O segundo se relaciona à suadesafetação a algum uso público, atraindo assim um regime eminentemente dominical57. Dito de outro modo, terra devoluta será uma faixa de terra pública sem afetação a uma utilidade específica.

Com base em tais premissas, é forçoso reconhecer que o atual regime jurídico da reforma agrária impactou significativamente tal instituto, ao ponto mitigar o instituto das terras devolutas. Tanto a Constituição quanto a Lei da Reforma Agrária, criaram um regime de destinação às terras devolutas no país, vinculando seu uso à reforma agrária. Desse modo, não é possível afirmar as terras devolutas não tenham um uso público predefinido.

Segundo o artigo 18858 da Constituição vigente deve haver a necessária compatibilização entre o uso das terras devolutas com a reforma agrária. Corroborando com esse entendimento, Benedito Ferreira Marques expõe que:

“Ao dispor que a destinação das duas categorias de terras, obrigatoriamente deve ser compatibilizada acoma política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária, o legislador constituinte limitou o campo de utilização desses bens públicos, que não pode ser outro senão dar sentido à regra contida no inciso XXIII da constituição Federal, qual seja, fazer que o imóvel rural cumpra sua função social, cujos pressupostos estão delineados no art. 186 da própria Carta Magna59

De modo a complementar o dispositivo constitucional, o artigo 1360 da Lei 8629/1993 também criou um regime de afetação expressa61para as terras devolutas, destinando todas as terras rurais, sejam elas devolutas ou não, à execução dos planos de Reforma Agrária. Para Júnior Divino Fidelis, esse dispositivo coaduna o interesse público em torno da reforma agrária de modo extremamente significativo, retirando da margem da discricionariedade administrativa o poder de decidir o destino das terras rurais sob domínio do Estado. Para o autor, uma vez que a reforma agrária está atrelada à dignidade da pessoa humana, o direito ao acesso à terra é dotado de um status de “fundamentalidade”. Com isso, a vinculação ganha contornos mais incisivos uma vez que o imóvel estará afetado à reforma agrária mesmo que haja interesse na sua utilização para outras finalidades atreladas a política agrária, como a regularização fundiária. Isso fica claro, quando a Administração nega o pedido de regularização fundiária previsto no artigo 9862 do Estatuto da Terra para utilização do imóvel para fins de reforma agrária. Note-se que mesmo havendo o interesse público na regularização fundiária esta é preterida em razão da prevalência da reforma agrária, dado seu status de “fundamentalidade” e, portanto, atrelada à dignidade da pessoa humana.63


57 MARÇAL, Justen Filho. Curso de direito administrativo. 12.ed.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p 1525

58 “Art. 188. A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.”

59 MARQUES, Benedito Ferreira in: Constituição federal comentada. ed 1ª. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 2639

60Art. 13. As terras rurais de domínio da União, dos Estados e dos Municípios ficam destinadas, preferencialmente, à execução de planos de reforma agrária.

61 Marçal Justen Filho, entende que haverá situações, enfim, em que o bem comporta diversas utilizações e a Administração Pública promove formalmente sua afetação. Essa é a solução desejável, mas não pode ser imposta compulsoriamente com efeito retroativo. Não é possível afirmar que a ausência da afetação formal desqualifica o bem como público, o que poderia configurar até mesmo uma interpretação ofensiva ao princípio da segurança jurídica.” (MARÇAL, Justen Filho. Curso de direito administrativo. 12.ed.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 1476

A redação do art. 13 da Lei 8.629/1993 se refere à afetação sob forma de preferência. Diz-se que as terras rurais serão “preferencialmente” destinadas à reforma agrária. Por mais que a vinculação não seja direta, não cabe argumentar que a preferência jurídica criada pelo legislador não goza de força normativa para caracterizar a afetação para tal finalidade. Dois motivos podem ser aventados para sustentar essa afirmação, sendo o primeiro o fato da afetação prescindir de uma utilização material, bastando apenas uma destinação prévia ao uso para ser caracterizada64; o segundo em razão do ordenamento jurídico comportar diversas figuras de preferências com forte conteúdo normativo. Cite-se como exemplo a preferência que o crédito real tem em relação aos créditos pessoais,65 que condiciona a validade da execução à estrita observância do crédito privilegiado. Nesse sentido a “preferência” é dotada de amplo conteúdo normativo, sendo suficiente para que o art. 13 da Lei 8.629/1993 configure como uma verdadeira afetação.


62 Art. 98. Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, tornando-o produtivo por seu trabalho, e tendo nele sua morada, trecho de terra com área caracterizada como suficiente para, por seu cultivo direto pelo lavrador e sua família, garantir-lhes a subsistência, o progresso social e econômico, nas dimensões fixadas por esta Lei, para o módulo de propriedade, adquirir-lhe-á o domínio, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.

63FIDELES, Júnior Divino. et. all. Lei no 8.629/1993 Comentada por Procuradores Federais. 2a Edição revisada e atualizada. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra – PFE/Incra. – Brasília: Incra, 2018. p. 162

64 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: Função social e exploração econômica. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 121

65 Art. 961. O crédito real prefere ao pessoal de qualquer espécie; o crédito pessoal privilegiado, ao simples; e o privilégio especial, ao geral.

Essa afetação à reforma agrária atribui uma finalidade/utilidade pública ao bem devoluto não cabendo mais ser enquadrado como tal, mas sim, como um bem de uso especial. Assim universo dos bens considerados devolutos tornam-se extremamente reduzidos, restringindo-se apenas àqueles que não estão sob o domínio particular e não são passíveis de serem utilizadas para fins de reforma agrária ou outra finalidade pública.

Dito de outro modo, para a caracterização de terras devolutas faz-se necessário um ato formal indicando que o imóvel não é pode ser utilizado para fins de reforma agrária. Tal ato deverá ser devidamente motivado, apontando as razões que impedem o imóvel de figurar entre os bens da reforma agrária, seja porque a área em que está situado não corresponde a área de interesse de acordo com o Plano Nacional da Reforma Agrária vigente, seja porque, o tamanho da área é insuficiente para a realização a criação de assentamentos.66

A imprescindibilidade da motivação impede que haja qualquer presunção de “devolutividade” ao imóvel rural que não esteja sob o domínio privado. Entendendo- se que o conceito de devoluto é residual, conforme Maria Sylvia Zanella di Pietro 67, para identificar um bem devoluto é necessário perquirir, sucessivamente, se: a) o imóvel integra o domínio privado?;b) O imóvel foi desafetado em relação a sua utilização para fins de reforma agrária? e c) Para além do uso na reforma agrária, há outra utilidade pública sobre o bem? Somente em caso dessas três perguntas quedarem-se negativas é que se estrará diante de uma terra devoluta.

Cabe observar que a destinação à reforma agrária assume papel central no conceito de terras devolutas, pois não se trata de qualquer uso público, mas sim um uso preconizado pelo constituinte originário (artigo 18868) e pelo legislador federal ordinário. Essa configuração normativa interfere no (usado outras vezes antes- substituir) regime jurídico das terras devolutas a exemplo do que ocorreu com as terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades indígenas.


66 Portaria nº 243 de 8 de julho de 2015, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, define um tamanho mínimo para a criação de assentametnos a partir do número mínimo de famílias possível de serem assentadas. Segundo a alínea “b” do inciso III, do art. 7º, a “capacidade de assentamento projetada não inferior a quinze famílias, exceto se tratar-se de uma ampliação de assentamento já existente, calculada a partir do potencial de geração de renda produtiva do imóvel ou outras situações específicas devidamente justificadas” (BRASIL. Portaria nº 243 de 8 de julho de 2015, do Ministério do Desenvolvimento Agrário. DOU de 10/07/2015, nº 130, Seção 1, pág. 99)

67 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. rev. atual e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p.971

68 Art. 188. A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.

Antes da Constituição de 1988, a leitura estrita da Lei de Terras (601/1850) caracterizava as terras indígenas como bens devolutos. A partir do momento em que a Constituição reconheceu a utilidade social da preservação socioambiental que estas comunidades tradicionais realizam, elegendo como dever do Estado sua preservação, tornando-se inconcebível imaginá-las como devolutas, pois seria evidente a afetação à utilidade pública.69 Situação semelhante ocorreu com as terras rurais sob domínio do Estado, que a partir da nova configuração normativa trazida pelo regime jurídico da reforma agrária, ganhou um novo elemento no conceito de terras devolutas.

O uso adequado do conceito de terras devolutas é extremamente significativo pois ajuda a balizar a relação entre Estado, particular e imóvel da forma tecnicamente correta e juridicamente válida. Entretanto verifica-se que mesmo após quase três da vigência da Lei 8.629/1993, diversos imóveis acabam sendo indevidamente considerados como devolutos. Cita-se como exemplo a edição do Decreto 3.743/200170, que autorizou a doação de porções de terras devolutas a municípios situados na Amazônia Legal, sem considerar ou ao menos mencionar a necessidade de desafetação em relação à reforma agrária.

Em outros casos, a correta classificação jurídica pode significar uma forma defesa do patrimônio público. Não raro se tem discutido o cabimento da usucapião em bens públicos dominicais. As terras devolutas capitaneiam essa discussão, pois a ausência de afetação somada à atividade de boa-fé do particular que ocupou e deu uma destinação econômica ao bem “inutilizado” pelo Estado, justificaria o processo de apropriação privada71. A ação de legitimação de posse, regulada pela Lei 6.383/ 197672 vai nessa linha ao possibilitar que o particular possa se apropriar de bens públicos devolutos, sob a justificativa de torna-lhes úteis73. Há, portanto, uma “fragilidade” em torno dos bens devolutos, visto que carência de afetação tende a flexibilizar a característica da imprescritibilidade. Assim reconhecer que a Lei da Reforma Agrária estabeleceu mais critérios para o reconhecimento de bens devolutos, significa reconhecer o caráter protetivo que a lei trouxe à coisa pública.


69 MARÇAL, Justen Filho. Curso de direito administrativo. 12.ed.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 1524

70 BRASIL. Decreto nº 3.743, de 5 de fevereiro de 2001. Regulamenta a Lei no 6.431, de 11 de julho de 1977, que autoriza a doação de porções de terras devolutas a Municípios incluídos na região da Amazônia Legal, para os fins que especifica, e dá outras providências. D.O. E. de 06/02/2001, p. 1

71 JUNIOR, Cláudio Grande. Usucapião quarentenária sobre terras do estado: fundamentos jurídicos, atualidade e repercussão na questão agrária brasileira. Goiânia, 2012. fl. 423. Dissertação (Mestrado em direito agrário). Programa de Mestrado em direito agrário, Universidade Federal de Goiás. p.409 72 BRASIL. Lei nº 6.383, de 7 de dezembro de 1976. Dispõe sobre o Processo Discriminatório de Terras Devolutas da União, e dá outras Providências.

Essa reformulação no conceito de devoluto interfere em diversas relações jurídicas que se constituem em torno do conceito de devoluto. No conceito clássico, diante da ausência de domínio privado havia uma pressuposição de que o bem era devoluto, legitimando assim a União iniciar o processo discriminatório de terras devolutas previsto na Lei 6.383/ 1976. Com o regime de afetação de terras públicas, não há mais o suporte fático de aplicação da Lei da Ação Discriminatória de Terras Devolutas, pois a aplicação da referida lei depende necessariamente do conceito de devoluto.

Conclusão.

As inovações jurídicas trazidas pela Constituição Federal e pela Lei da Reforma Agrária atribui novos elementos na reflexão sobre a relação entre Estado e propriedade privada. Esse novo regime jurídico, além ampliar a legitimidade estatal em interferir na propriedade privada, impactou significativamente em categorias clássicas do direito.

O conceito de terras devolutas é uma dessas categorias. Historicamente se atribuiu o conceito de devoluto ao bem que não integrava o domínio privado, tampouco era afetado a alguma utilidade pública. Com a regulamentação dada ao patrimônio estatal pela Constituição e pela Lei 8.629/1993, esse conceito bipartite tornou-se insuficiente para definir os bens devolutos, visto que agora faz-se necessário um ato formal de desafetação para que o imóvel passe a ser considerado como devoluto.

A introdução desse elemento ao conceito de devoluto impacta significativamente nas diversas relações jurídicas que se constroem vinculadas à visão clássica. Assim o próprio cabimento da Lei 6.383/1976 para regular o processo


73 Art. 29 – O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse de área contínua até 100 (cem) hectares, desde que preencha os seguintes requisitos: I – não seja proprietário de imóvel rural; II – comprove a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo mínimo de 1 (um) ano. de discriminação de terras públicas é reduzido, pois, diante da ausência de legitimidade do domínio privado, não caberá presumir que o imóvel é devoluto.

A mitigação do conceito de devoluto reforça a necessidade de uma classificação dos bens públicos mais alinhada ao critério funcionalista. A identificação puramente subjetivista, como sugere a perspectiva civilista, apresenta-se como insuficiente para classificar os bens públicos, sobretudo os bens devolutos.

A necessidade de uma desafetação formal implica numa mudança de paradigma, pois torna-se impossível pressupor que uma faixa de terra, ocupada por um particular sem justo título, seja presumidamente um bem dominical (devoluto). A presunção que se constrói diante da “não propriedade”, a partir do art. 13 da Lei 8.629/1993, é a de que o imóvel é um bem de uso especial afetado à reforma agrária. Esse raciocínio marca a preponderância do critério da funcionalidade sobre o critério subjetivo, uma vez que para conceituar um bem imóvel como devoluto é necessário um ato formal explicitando que aquela faixa terras não pode ser utilizada para fins de reforma agrária.

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